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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

CAPITALISMO E MORFOLOGIA URBANA NA LONGA DURAÇÃO: RIO DE JANEIRO (SÉCULO XVIII-XXI)

Nelson da Nóbrega Fernandes
Departamento de Geografia - Universidade Federal Fluminense
nobregat@terra.com.br


Capitalismo e morfologia urbana na longa duração: Rio de Janeiro (século XVIII-XXI) (Resumo)

No pensamento sobre a cidade latino-americana há uma longa tradição estabelecendo que as suas morfologias urbanas sempre apresentaram diferenças estruturais quando comparadas com aquelas da Europa e dos EUA. Este trabalho questiona tal tradição considerando que o Brasil desde a colônia é parte do sistema mundial capitalista e que a produção do espaço urbano responde às exigências deste sistema em suas diferentes fases. Tomando como exemplo o Rio de Janeiro procura-se demonstrar que, desde o século XVIII até o presente, a evolução da morfologia urbana carioca acompanhou e reproduziu, com diferentes níveis de intensidade e de defasagens temporais, os mesmo padrões morfológicos e de regulação das cidades do capitalismo central.

Palavras-chave: morfologia urbana, planejamento urbano, Rio de Janeiro


Capitalism and Urban Morphology over a long time period: Rio de Janeiro (18th to 21st   Century) (Abstract)

There is a long tradition on the study of the Latin-American city which establishes that its urban morphologies have always presented structural differences when compared to those of Europe and the USA. This work questions such tradition by considering that Brazil, since the colony period, is part of the global capitalist system and that the production of the urban space responds to the demands of such system in its different stages. Taking Rio de Janeiro as example, this work aims to demonstrate that since 18th century up to the present the evolution of the carioca urban morphology followed and reproduced, with different levels of intensity and temporal lags, the same morphological patterns and regulation criteria of the central capitalism cities. 

Keywords: urban morphology, urban planning, Rio de Janeiro


Ao longo do tempo aprofundou-se a idéia de que as cidades latino-americanas são substancialmente diferentes daquelas do capitalismo central, estas sempre vistas como o tipo ideal a ser atingido em termos de ordenamento territorial, usos, padrões arquitetônicos e estéticos. No início do século XX nossos reformadores tinham por principal objetivo borrar tal diferença, e dentro do possível trataram de substituir o velho tecido urbano - visto apenas como a herança do passado colonial - por boulevards, praças, parques e edificações. Paris era o modelo, o método, como precisamente conceituou Engels, foi o de “Haussmann”.

Depois da Segunda Guerra a idéia de tal diferença se ampliou no pensamento sobre a cidade latino-americana, agora subordinada ao subdesenvolvimento e como parte das teorias das trocas desiguais, do imperialismo e da dependência. Um das vozes mais influentes daquele período, Pierre George, assim se referiu a estrutura das cidades dos países subdesenvolvidos em  Précis de Géographie Urbaine (1961). Tais cidades estão “muito longe de corresponder aos critérios descritivos das cidades européias ou norte-americanas” (George, 1983: 7), pois “uma diferença de natureza separa as cidades dos países industrializados, de economia capitalista ou socialista, das cidades dos países subdesenvolvidos, principalmente na medida em que se admite que o subdesenvolvimento não resulta de um atraso na evolução geral (...). Trata-se não apenas de diferenças funcionais – ligadas à penúria da indústria nacional – mas também da herança de modos de existência (...) dos resultados presentes ou herdados dos contatos de  colonização, e finalmente do assédio das cidades dos camponeses famintos” (George, op. Cit.:121).

Na década de 1970 tal diferenciação foi revitalizada por outros pensadores que foram e são paradigmas dos estudos urbanos. É o caso de Castells (1974), que difundiu as idéias de que a “urbanização sem industrialização”, “macrocefalias” e “hiperurbanização” eram típicas dos paises dependentes e formavam uma realidade que não poderia ser reconhecida com as teorias e modelos que trataram das cidades européias e norte-americanas. Como recentemente testemunhou Capel (2002:5): “Milton Santos nunca ha abandonado la idea de que Brasil es um pais subdesarrollado y que las metrópolis de ese pais son características de esa sistuación de subdesarrollo ”.

Não resta dúvida que o marco teórico e político do subdesenvolvimento deu sólidas bases de sustentação para a idéia de que nossas cidades são subdesenvolvidas e portanto sempre foram e continuavam sendo diferentes em suas estruturas e morfologias. Combatendo a permanência e insistência desta compreensão entre nós, Capel (ibid.) apontou os limites do conceito de cidade subdesenvolvida, cujo olhar “enviesado” impede a percepção de aspectos importantes da realidade, e recomendou, em tom de desafio, que em muitos casos devemos adotar

“otros marcos conceptuales (...) con los mismos presupuestos que se utilizam para estudiar las ciudades de los países llamados desarrollados (...) [pues] (...) muchos rasgos que Milton Santos y otros geógrafos iberoamericanos consideran típicos de las metrópolis brasileñas, o del llamado Tercer mundo em general,  se dan también em las de los países desarrollados”.

Estimulado por este desafio este trabalho procura refletir sobre aquilo que aproximam nossas cidades daquelas do capitalismo central e não apenas sobre o que as diferenciam. Pensamos que na medida em que cidades, de qualquer latitude e tempo, passam a integrar o sistema capitalista mundial elas tendem a reproduzir e desenvolver, mais ou menos de forma sincrônica e em proporções variáveis, os processos de produção e a morfologia das cidades européias e norte-americanas. Não é parte disto que o Mundo está vendo agora mesmo na China? Com algumas diferenças compartilhamos com aquela “perspectiva diferente” sugerida por Capel (op. Cit: 6):

“la de considerar a Brasil como um território y una sociedad que va formando progresivamente parte de la nueva Europa Ultramarina desde el siglo XVI y lo es plenamente desde el siglo XVIII o XIX, permitiria entender mucho mejor aspectos esenciales de la evolución de este país así como de otros paises iberoamericanos”.

Por outro lado, Capel reafirma nossas conclusões anteriores sobre o equívoco da aplicação do modelo centro-periferia usado para a interpretação das cidades brasileiras e ao Rio de Janeiro em particular (Fernandes: 1996).

Vamos tratar esse ponto de vista considerando a evolução do Rio de Janeiro do século XVIII ao século XXI, tendo como marco teórico a dialética entre os ciclos seculares de acumulação capitalista e a gestão capitalista do Estado (Braudel: 1996), (Arrigui: 1996), do território e a morfologia das cidades. Com uma periodização um pouco diferente, acompanhamos aquela geografia histórica já apontada por Soja (1993: 210), segundo a qual “a evolução da forma urbana (a estrutura interna da cidade capitalista) tem seguido o mesmo ritmo periodizável de formação e reformação induzidas pela crise que moldou a paisagem macrogeográfica do capital desde os primórdios da industrialização em larga escala”. São considerados quatros grandes ciclos de acumulação e de gestão do território e da cidade: o século XVIII, com o mercantilismo e a gestão policial; o século XIX com o liberalismo; o século XX, com o fordismo-keynesianismo; e finalmente o período pós-1970, com o neoliberalismo. Dentro de cada ciclo, e nos limites deste trabalho, registramos alguns processos de gestão do território e as morfologias da cidade capitalista que o Rio de Janeiro reproduziu de modo mais ou menos sincrônico com o que se passava na Europa e nos EUA.

O Rio de Janeiro e a morfologia das cidades no mercantilismo

Preliminarmente, vale a pena ter em conta que no pensamento sobre a cidade brasileira o distanciamento das situações ideais européias e americanas aparece de modo ainda mais acentuado que naquelas de origem hispano-americana. Predominou até bem pouco tempo a idéia de que, diferentemente das cidades de colonização espanhola, nossas cidades sofriam da ausência de planejamento, sendo legitimas herdeiras do desleixo e da espontaneidade característicos do urbanismo islâmico, medieval e português. Como salientou Brenna (1996: 415), desde Sergio Buarque de Holanda, passando por Robert Smith e Leonardo Benevolo este raciocínio foi amplamente justificado, concretizando o que Delson (1979) chamou de “mito da cidade não planejada”. Atestando a força de tal mito Max (1980: 25, 26) não só reafirmou tal característica como identificou a sua permanência em nossa urbanização moderna e contemporânea, apesar de sua “traça mais regular”. Na sua visão, apesar da generalização do “desenho em tabuleiro de xadrez”, problemas topográficos, fundiários e sobretudo a exploração comercial subvertem o ordenamento pretendido, o que “numa escala mais ampla e com outra fisionomia confirmam a irregularidade geral”. Mesmo considerando cidades que tiveram um plano e destoaram do improviso português, como Salvador, Niterói e Belo Horizonte, “a irregularidade venceu nestes e em outros casos de exceção”.

O suposto de que as cidades construídas pelos portugueses no Brasil não foram planejadas ou reguladas começou a ser questionado por Reis Filho (1968) e desmontado nos últimos vinte anos por trabalhos como os de Delson (op. cit.), Araújo (1992) e Rossa (2002). Através deles se pode reconhecer que o amplo projeto de ordenamento do território, por meio de fundação de cidades planejadas por Portugal no século XVIII, não foi algo limitado às circunstâncias históricas. Esta experiência esteve dentro de um período que foi o da maturidade da longa tradição portuguesa na construção de cidades, em seu próprio território desde os tempos romanos, e entre o século XV e o século XVIII na África, na Ásia e, extensamente, como em nenhuma outra parte, no Brasil. Tradição que incorporou as influências da arquitetura e do ordenamento urbano e territorial da Ilustração, por meio da imposição de códigos e princípios de construção e regulação que refletiam conceitos e estratégias de ação do Estado absolutista que, note-se, foram aplicados indistintamente na metrópole e na colônia.

Um pouco diferente do que fomos acostumados a pensar, as relações entre a metrópole e a colônia nem sempre foram constituídas por rupturas e polarizações, pois, especialmente no século XVIII, quando o absolutismo consagrou a gestão policial do Estado, houve um notável esforço na busca da integração política e econômica das populações e dos territórios de todas as partes dos reinos que não excluía sua colônias. Conforme se vê em Foucault (2006: 413) a palavra polícia tinha então um significado muito diferente, já que se referia a “la totalidad de los médios para acrescentar, desde adentro, las fuerzas, del Estado”. À polícia cabia então cuidar e administrar da melhor forma os recursos naturais e humanos de seus territórios e promover o bem-estar geral dos súditos, especialmente “del mantenimiento del orden y la disciplina, los reglamentos que tiendem a hacerles cómoda la vida y procurarles las cosas que necesitan para subsistir”. Esta foi uma era da disciplina e da regulação da sociedade e do espaço, o que resultou no modelo urbano barroco.

Com o urbanismo barroco, observou Mumford (1982: 378), houve uma “clarificação” do espaço das apertadas e congestionadas cidades medievais através da abertura de avenidas e praças, pela construção de jardins públicos, de palácios, fortalezas e quartéis. Com esta nova ambiência procurava-se estabelecer padrões de comportamento mais disciplinados, somado à apreciação estética centrada no conceito da perspectiva oriunda do renascimento italiano que exigia uma arrumação dos objetos arquitetônicos e urbanos de modo a que estes se apresentassem diante do observador expondo a lógica do mundo vigente. A paisagem construída exercia assim uma função pedagógica afirmando na frente de todos os princípios esclarecidos e vigilantes do Estado policial. A avenida permitia tanto a contemplação do palácio como o espetáculo das paradas militares ou o rápido deslocamento das tropas em situações de distúrbio. As praças retangulares foram delimitadas por uma seqüência de fachadas que repetiam o mesmo estilo arquitetônico criando um espaço fechado e simétrico quando visto de qualquer de seus ângulos, como se registra em casos das praças reais de Madrid e Paris. Ao contrário da cidade medieval, cuja morfologia heterogênea, complicada e surpreendente exige uma compreensão lenta através de suas diferentes perspectivas, para o ideal do urbanismo barroco a cidade deve aparecer e ser vista de um só golpe.

A clarificação barroca se manifesta mais ainda pela construção de jardins ou parques no coração das cidades, a partir do século XVII, dando certa popularidade a um espaço de luxo que até então esteve restrito aos que podiam freqüentar os jardins dos palácios. Ali se podiam repetir com certa moderação os excessos e prazeres da sociabilidade da corte, e também se exibia a capacidade do homem de subordinar e disciplinar a natureza através da retificação e geometrização dos canteiros e alamedas, pela poda sistemática de plantas e árvores. E embora menos espetacular mas igualmente perseguidas estiveram as preocupações relacionados com o abastecimento de víveres e água, com a saúde e a higiene publica, com as atividades insalubres e outros temas de interesse do Estado policial.

Com o século XVIII o Brasil se tornou a principal fonte de recursos de Portugal. O imenso território cuja posse era ameaçada por outras potências da época foi objeto de um amplo e bem sucedido planejamento urbano e territorial, através da fundação de novas cidades e reformas das mais antigas. No primeiro caso estão especialmente as cidades nas fronteiras em disputa com Espanha no Sul, no Oeste e na Amazônia. Só entre 1755 e 1759 (Rossa, op. Cit: 293) foram fundadas cerca de 60 cidades na Amazônia. Apesar da enorme precariedade material da maioria de tais intervenções, estas cidades foram modelares em termos dos princípios e códigos do urbanismo barroco português, que estava “patente em todos os detalhes da intervenção”. E no caso de cidades mais antigas, ricas e importantes do Brasil houve o mesmo processo de clarificação de parte de seus tecidos urbanos primitivos. Segundo Pessoa (s/d: 1136) “são inúmeros os exemplos de intervenções nas cidades da América Portuguesa resultado da obra de engenheiros militares, arquitetos e arruadores”. Em Ouro Preto houve demolições para a criação de uma nova praça para abrigar o Palácio dos Governadores e a casa da Câmara; em Salvador e Mariana as câmaras firmaram normas para os vãos e pés direitos que foram cumpridas e “resultaram em espaços urbanos compostos por arquiteturas em série como a Rua Direita de Mariana ou a cidade baixa de Salvador”.

Muito provavelmente o Rio de Janeiro deve ter sido a cidade brasileira que sofreu a maior intervenção urbanística barroca, já que no século XVIII tornou-se o principal centro político do império português no Atlântico Sul e capital da colônia. Tal influência se aprofundou mais ainda no inicio do século XIX, quando a cidade se tornou a própria metrópole do império português. Contudo, conforme Bicalho (2003: 233) nos mostra, desde o inicio do século XVIII se praticava o principio de que as cidades-capitais deveriam reproduzir a metrópole “ao menos no que diz respeito à organização de sua morfologia espacial, mesmo que separada pelo oceano e a distância entre o Velho e Novo Mundo”. Ela nos dá um exemplo de como em 1726 as autoridades metropolitanas proibiram que o Senado carioca permitisse o funcionamento de um curral e matadouro no Largo do Paço, atual Praça XV. Segundo as palavras destas mesmas autoridades “à imitação das vilas e cidades do reino, e da Corte de Lisboa” no Rio de Janeiro deveria-se observar também a regra “de estar o curral e matadouro afastado da cidade”. Através de seus funcionários na colônia a metrópole cuidava das condições da higiene em nome da ordem e da higiene pública, conforme mandava o Estado policial e o urbanismo barroco.

Ao longo do século XVIII o Largo do Paço foi sendo lentamente transformado no principal palco da cena barroca do Rio de Janeiro, como foi representado na tela de Leandro Joaquim “Revista Militar no Largo Paço”. È um registro da ultima grande intervenção no então Largo do Paço dos Vice-Reis realizada pelo engenheiro sueco Jacques Funk, em 1789. Fechando o lado sul da praça foi reformado o palácio dos vice-reis. Construído em 1743, pelo Brigadeiro Jose Fernandes Pinto Alpoim, o prédio ganhou um segundo andar que lhe deu um aspecto apalacetado e imponente conforme exigia seu conteúdo político. Ao fundo, a praça está fechada pelo Convento e as Igrejas das ordens primeira e terceira de Nossa Senhora do Carmo.  Do lado norte há um conjunto de prédios de três pavimentos rigorosamente alinhados. A fachada leste que está voltada ao mar é formada por um cais de pedra, com escadas e tem em seu centro um chafariz de Mestre Valentin. Tratado com esmero está também vigiado por baterias de canhões e, como bem observou Sisson (1983: 56), ali não era apenas o “core” do Brasil mas também o “ponto inicial/terminal privilegiado de trocas entre a metrópole e a colônia”. Muitos autores assinalam que a morfologia da Praça XV, dos edifícios ao calçamento da praça, assim como seus usos, proporcionavam a teatralidade necessária de uma porta oficial de capital barroca, sendo muito semelhante à Praça do Commercio em Lisboa.

O aqueduto da Carioca, a construção de fontes, a drenagem de pântanos, bem como a disciplinarização dos usos dos espaços da cidade - como o deslocamento do mercado de escravos para um ponto segregado, o Valongo -, mostram a persseguição e a realização do ideal da cidade barroca no Rio de Janeiro, que alcançou o seu auge com a implantação de um jardim sobre a lagoa do Boqueirão. Como em toda a parte os jardins foram concebidos para a fruição de uma sensibilidade ilustrada e uma sociabilidade cortesã e foi o equipamento mais sofisticado que o urbanismo barroco proporcionou a uma cidade em sua época.

O Passeio Público é obra do Vice-rei Luís de Vasconcelos, também responsável pela remodelação do Largo do Paço. É o primeiro jardim público do Brasil e sua construção teve finalidades de saneamento, embelezamento e, particularmente, o desenvolvimento de uma sensibilidade paisagística. Projetado por Mestre Valentim e erguido entre 1779-1783, para a sua realização foi demolido um pequeno morro para com suas terras preencher a laguna junto ao mar. Sobre o aterro foi implantado um jardim murado, desenhado com alamedas retilíneas e arborizadas com arvores frutíferas tropicais, muitas provenientes de outras partes dor reino como a mangueira, a jaqueira e o fruta-pão. Uma alameda central comunicava o Portão voltado para a cidade com o cais de proteção de sua fachada marítima, sobre o qual foi erguido um terraço e dois pavilhões dedicados a Apolo e a Mercúrio. De fato este deve ser o primeiro mirante carioca e com ele se inaugurou a relação da cidade com a paisagem, conforme observou Pessoa (s/d:1138). Mas ali também foi lugar de encontros, reuniões e celebrações dos grupos afluentes da cidade. A rua frontal foi chamada de Belas Noites e não por acaso ali foi surgindo o bairro da Lapa, uma das primeiras zonas da cidade com uma presença notável das classes superiores. Por isto mesmo nos parece um erro histórico e geográfico considerar-se que quando D João VI aportou por aqui, em 1808, encontrou apenas uma aldeola portuguesa.

O Rio de Janeiro e a morfologia urbana no capitalismo liberal e industrial

As guerras napoleônicas marcam o fim de um longo ciclo de acumulação que foram comandados por um Estado policial e pela lógica mercantil. Em sua substituição começa um novo ciclo baseado na indústria e no livre comércio. Em toda a parte nota-se um recuo do Estado na gestão do território e do urbano, que agora devem ser comandados pela mão invisível do mercado e da sociedade civil, especialmente a burguesia.  O sistema mundial se reestrutura e se expande, seu centro é deslocado para Inglaterra, as ex-colônias tornam-se Estados soberanos e se inserem no sistema político internacional, a África e a Ásia são subjugadas aos impérios europeus. Entramos na era da hegemonia britânica traduzido por Arrighi (op. Cit.) como o “imperialismo de livre comércio”. As novas bases técnicas, sociais e políticas do capitalismo industrial reestruturaram em diferentes graus os territórios, as regiões e redes urbanas, mas a face mais notável e espetacular deste processo foi o crescimento sem precedentes da urbanização e das grandes cidades. 

Substituindo a cidade barroca surge o que Soja (op.cit.: 214) chamou de “cidade capitalista industrial da livre concorrência”, primeiro na Europa e nos EUA e depois em situações periféricas como a América Latina.  De forma esquemática pode-se dividir a história desta cidade em dois períodos, antes e depois das primeiras grandes reformas urbanas que na Europa foram levadas adiante entre o final de 1840 e a década de 1870: Londres: (1848- 1865): Paris (1853-1869), Bruxelas (1867), Viena (1859-1872), e as expansões de Barcelona (1859) e Florença (1864-1867) (Benevolo 1994: 117) Na América Latina há certo atraso no desenvolvimento deste processo com as reformas urbanas ocorrendo na virada dos séculos XIX e XX.

Antes de tais reformas as cidades cresceram explosivamente e quase sem nenhuma interferência estatal foram entregues completamente ao laissez-faire então cultivado, de modo que qualquer regulação na produção e uso do espaço urbano foi rechaçado. Para Benévolo (op. Cit.:24) entre 1776 e 1832 as cidades e os campos dos EUA e da Europa “permanecem praticamente privados de controlos urbanísticos adequados”, o que tornava idealmente quase desnecessária a existência do Estado. David Ricardo pregava a abolição dos impostos e de alfândegas; Adam Smith a privatização das propriedades públicas como remédio para o desequilíbrio fiscal.. Nestas circunstâncias, houve uma enorme degradação física e social do ambiente. Segundo Hall (2002:17), em 1880 um contemporâneo cunhou a expressão “cidade da noite apavorante”, manifesta especialmente nos bairros miseráveis dos centros industriais ingleses, focos preferenciais de epidemias, marginalidade e rebeliões cada vez mais ameaçadoras ao sistema e seus grupos dominantes. Como o grosso da moradia popular se instalou em velhos bairros da cidade, a reação das classes superiores foi se retirar para alegres subúrbios cheio de verde e natureza, principalmente depois da ferrovia e dos bondes, configurando-se assim uma estrutura urbana consagrada mais tarde pelo modelo de Burgess, com os pobres no centro, os ricos na periferia e as classes médias nos anéis intermediários.

As reformas urbanas denunciaram os limites dos postulados liberais na gestão da cidade e diante da crise política, social e ambiental foi requerida a intervenção do Estado para a remodelação dos centros das cidades, uma verdadeira reconquista da centralidade pela burguesia e pelo Estado, através da demolição de bairros e zonas populares centrais e o conseqüente deslocamento destes grupos sociais para localizações periféricas e suburbanas. A suburbanização do proletariado e a edificação sobre a velha cidade de novos centros para os negócios, residência e atividades das classes superiores e o Estado são os aspectos mais marcantes deste processo. Estas transformações alteraram a estrutura das cidades segundo o modelo de Burgess, notadamente pelo aparecimento de setores periféricos populares muitas vezes associados com a indústria. Doravante a estrutura urbana irá assumir cada vez mais uma forma como aquela apresentada por Homer Hoyt, na qual a principal diferença para Burgess foi o desenvolvimento de setores de círculo periféricos residenciais segregados para todas as classes sociais.

Entre a segunda metade do século XIX e 1930 pode-se dizer que a estrutura e a morfologia urbana do Rio de Janeiro acompanharam, com diferenças e defasagens, o processo verificado no capitalismo central, pois aqui a cidade também foi impulsionada e comandada pela expansão industrial do sistema mundial guiada pela gestão liberal do Estado e do urbano. Assistimos assim o mesmo recuo do Estado no ordenamento e regulação das atividades urbanas, o crescimento explosivo das principais cidades graças à imigração européia e ao êxodo rural, impulsionados pela expansão do sistema exportador primário em países como o Brasil. A adequação das infra-estruturas de transporte e produção às novas escalas do comércio mundial, bem como a incorporação das novas pautas de consumo pelos diferentes grupos sociais desenharam, num primeiro momento, o mesmo tipo de estrutura urbana de Burgess. Assim, conforme demonstramos anteriormente (Fernandes: 1996), ao longo da segunda metade do século XIX, e especialmente após a implantação do bonde e da ferrovia, foi nítido o abandono das zonas centrais pelos estratos ricos e médios e a sua fixação em subúrbios verdejantes e salubres. Enquanto isto os pobres se adensavam em cortiços e moradias insalubres em situação similar àquelas da “cidade da noite apavorante”. Tal modelo se acentuou até o princípio do século XX, - as primeiras favelas surgiram no final do século XIX em morros do centro do Rio de Janeiro – quando aqui se repetiu pelos mesmos motivos e com os mesmos projetos arquitetônicos e urbanísticos que a Europa vinha fazendo há meio século com suas cidades mais importantes.

De um modo geral o pensamento sobre a “hausmmannização” do Rio de Janeiro é visto como o ato inaugural de nossa urbanização capitalista e da intervenção do Estado no urbano. Pelo que temos desenvolvido até agora, no nosso entender a Reforma Urbana de Pereira Passos (1903-1906) não foi nenhuma coisa nem outra. Aliás, nem mesmo a reforma de Paris significou um ato inaugural da intervenção do Estado no urbano e/ou da urbanização capitalista, já que tal avaliação desconsidera a cidade barroca construída pelo Estado policial e sua contribuição para o desenvolvimento e a acumulação capitalista. Dentro desta perspectiva nos parece um erro conceber que a “hausmmannização” destruiu a cidade medieval, no caso europeu, e colonial no caso brasileiro, pois tal perspectiva desconhece a profundidade e extensão da urbanização sobre a lógica da acumulação mercantil e da gestão policial dos séculos XVII e XVIII. E desconhece também que as reformas urbanas sob a égide do liberalismo já se abate sobre uma cidade que tinha sido transformada em grande parte pelo mercado, pelas forças industriais e pelo Estado liberal. A Paris de antes de Hausmmann, ou o Rio de Janeiro de antes de Passos era a cidade real do ideal do liberalismo. Possuíam ou pelos tendiam para uma estrutura conforme a concepção de Burgess. Mas as contradições extremas que ali se desenvolveram e a acumulação industrial obrigaram a retomada de certo intervencionismo na regulação e produção do urbano por parte do Estado, que desde então irá se acentuando até assumir, com a crise geral do liberalismo, as feições antiliberais típicas do fordismo-keynesianismo, na qual a estrutura urbana e a morfologia das cidades assumem com nitidez a forma prevista por Hoyt.

O Rio de Janeiro e a morfologia da cidade fordista

Entre as duas guerras mundiais do século XX esgotou-se o longo ciclo de acumulação sob a hegemonia britânica e o sistema mundial se reconfigurou através da emergência de um novo regime de acumulação e de uma nova hegemonia do sistema mundial, seu centro se desloca de Londres para Nova York. Os Estados Unidos se tornaram o principal paradigma de modernização e avanço das sociedades, inclusive em termos da gestão do Estado e do urbano. Se o século XIX foi o século do liberalismo na gestão do Estado e das cidades, pode–se dizer que o século XX, depois da primeira guerra e até a década de 1970, foi antiliberal e reintroduziu o planejamento urbano na regulação e a produção das cidades. Por razões óbvias o paradigma desta cidade foi a cidade produzida nos EUA. Desde os arranha-céus no centro aos subúrbios de suas extensas classes médias promovidos pelo automóvel, passando pelas zonas de obsolescência dos bairros centrais, os shoping centers e operações de renovação urbana foi ali que se desenhou mais nitidamente a cidade fordista. Segundo Soja (op.cit.: 219) foi com base neste espelho que processos semelhantes se desenvolveram por toda a parte, embora na Europa a suburbanização, a fragmentação política metropolitana e o abandono do centro tenham sido menos intensos em sua morfologia urbana. Assim como as cidades do mercantilismo e do liberalismo se realizaram reproduzindo mais ou menos o tipo ideal de seu tempo, o mesmo se deu durante o fordismo, pois os modelos urbanos são sempre referencias que têm que se adaptarem as condições histórico-geográficas de cada lugar, de tal modo que quase sempre acontecem  na realidade de forma incompleta.   

Soja não reconheceu explicitamente a paternidade de Homer Hoyt para morfologia da cidade americana pós-30 que descreveu, embora admita que a mesma seja uma ampliação muito maior daquilo do que vinha ocorrendo desde o período final da cidade liberal. A nova morfologia foi marcada por uma descentralização sem precedentes da indústria, dos bairros operários e das classes média e alta distribuídos em setores de círculos, a permanência e reprodução de enclaves étnicos raciais em partes das zonas centrais que foram objeto de ondas de destruição e renovação urbana para a localização de empresas e outros grupos sociais. Através de Hall (162, 173) compreendemos que ali também emergiu com maior clareza os novos princípios do planejamento após a primeira guerra mundial, com a concretização de um amplo movimento que teve como conceito-chave a região geográfica de La Blache e Patrick Geddes como patrono. Seu marco mais notável foi a fundação nos anos 1920 da Regional Planning Association of America (RPAA), que teve entre seus fundadores alguém como o jovem Lewis Mumford. A influência da RPAA foi enorme, considerando que ela forneceu idéias e recursos humanos para o New Deal contribuindo para os rumos keynesianistas que a gestão do Estado, do urbano e do território em geral iria assumir após 1930.

Aspectos marcantes da morfologia urbana vindo dos EUA logo se desenvolveram nas grandes cidades brasileiras e particularmente no Rio de Janeiro em particular. Lima Barreto, por exemplo, criticou severamente no final da década de 1910 a construção de sky-scrapers e a suburbanização desenfreada do litoral atlântico (Dezouzart: Fernandes: 2007). Tal reconhecimento também ocorreu com promotores imobiliários que identificaram seus projetos com aqueles realizados nas nações mais adiantadas, ou então daqueles que os criticavam acusando-os de alienados e copiadores de outras realidades, insensíveis às nossas carências e especificidades históricas. Para os primeiros este era o caminho para a superação do atraso e a civilização de nossas cidades; para os segundos era um desvio que só produzia caricaturas e contradições urbanas, como bairros em que conviviam lado a lado a favela e residências de alto status e que repetiam a herança colonial da casa grande e senzala. De qualquer forma, isto sempre pareceu incomum ou fora do lugar.

Mais difícil ainda foi relacionar a nossa morfologia urbana com o regime de acumulação fordista, pois o nosso capitalismo atrasado, subordinado e industrialmente fraco, recém saído da escravidão, impedia de início qualquer aproximação com a Europa e os EUA. Com já foi dito, as idéias sobre o subdesenvolvimento cristalizaram a especificidade de nossas cidades durante a segunda metade do século XX e eclipsou completamente as possibilidades de uma compreensão que aproximasse nossa urbanização com aquela do capitalismo central. Foi por seu caráter de cidade subdesenvolvida e dependente que Abreu (1987: 13,15) recusou a adoção dos princípios da Escola de Chicago e da economia urbana neoclássica como marcos teóricos para o estudo da evolução do Rio de Janeiro, sem considerar que tais esquemas explicativos vinham perdendo consistência para própria realidade americana no século XX com o fordismo e a suburbanização da indústria e de seus trabalhadores, bem como pela intervenção do Estado, do planejamento urbano e do welfare state. Assim foi possível pensar nossas cidades acreditando que a sua estrutura interna era o oposto daquilo previsto por Burgess para as cidades dos EUA. Estranhamente, apesar das proposições de Hoyt serem da década de 1930 e refletirem o parto da cidade fordista nos EUA, o pensamento sobre a cidade continuou a interpretá-la segundo Burgess e ignorando-se Hoyt. Note-se que mesmo o David Harvey de “A justiça social e a cidade” esqueceu de Hoyt (Fernandes: 1996). Dentro desta visão a estrutura da cidade brasileira (subdesenvolvida) não era apenas diferente; era simplesmente o inverso do que acontecia na realidade urbana americana (desenvolvida), já que aqui apenas os pobres foram deslocados para a periferia e os setores médios e de alto status continuaram nas áreas centrais e jamais se suburbanizaram.  A fidelidade a tal raciocínio foi tão sólida que na década de 1980, quando a ocupação de uma periferia como a Barra da Tijuca foi realizada através de autopistas, do automóvel particular, condomínios e shoping centers, a maioria de nossos autores optaram em situá-la dentro do centro, por mais que tal conceituação exigesse a completa deformação de sua localização geográfica inegavelmente suburbana.

Embora desde a Revolução de 1930, e acompanhado o novo regime de acumulação que estava sendo gerado nas matrizes do capitalismo, o Estado brasileiro tenha assumido uma feição crescentemente antiliberal, intervindo decididamente no ordenamento do território e do urbano e demais aspectos da vida econômica e social, nossos interpretes nunca viram qualquer possibilidade do desenvolvimento do fordismo entre nós. As medidas tomadas por Vargas em termos da legislação trabalhista, habitacional, de saúde e educação foram demonizadas por seus críticos, tanto de direita quanto de esquerda, sendo reduzidas a estratagemas de controle das massas pelo ditador populista, invariavelmente acusado de distribuir tais benefícios apenas para seus protegidos, apaniguados e seguidores. Desta maneira foi quase impossível imaginar-se  com alguma credibilidade que no Brasil tenha se praticado, por exemplo, na habitação social, algo próximo ou inspirado no Estado do Bem Estar Social e no fordismo.

Dentro dos limites deste trabalho vamos tratar da realização da cidade fordista no Rio de Janeiro considerando apenas a intervenção do Estado na habitação social, em um período que vai de 1930 até o golpe militar de 1964. Nosso ponto de vista deriva de observações empíricas da paisagem do Rio de Janeiro, na qual se pode ver grandes conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, cujas pesquisas de Bonduki (2004) sobre as origens da habitação social no Brasil confirmaram amplamente.

Um aspecto preliminar e geral nesta discussão está no reconhecimento de que o urbanismo no século XX, em suas diferentes vertentes, foi em grande parte e nas palavras de Hall (op. Cit:), “uma reação contra os males produzidos pela cidade do século XIX.”, seja pelo compromisso sincero com a solução do sofrimento daqueles milhões de pobres que habitavam cortiços e favelas, seja por aqueles que temiam a violência generalizada e insuficientemente reprimida, ou pior ainda, a insurreição das massas. No Rio de Janeiro este quadro se manifestou com particular virulência com a Revolta de Vacina, em 1904, que ocorreu no meio da primeira reforma urbana da cidade na era industrial. Embora esta rebelião tenha muitos ingredientes, inclusive a sua instrumentalização para um golpe de Estado por setores militares e outros grupos, não houve duvida entre os contemporâneos que seu combustível mais potente foi justamente a crise da habitação, exacerbada pela destruição de parte dos bairros centrais onde ainda vivia a maior parte das classes populares. A percepção da ameaça da situação explosiva que representava a crise da moradia popular mobilizou as forças políticas e o próprio governo foi obrigado a nomear uma comissão para estudar a questão. Embora tenha prevalecido a posição liberal de que o mercado deveria resolver a questão com o discreto apoio do governo, alguns de seus membros, como o inspetor da Diretoria Municipal de Obras, Everardo Backeuser, propuseram “a intervenção franca, positiva e declarada do Estado, emprestando capitais ou construindo ele mesmo as casas” necessárias em locais bem comunicados da cidade. “Backeuser enxergava na crise uma questão social potencialmente explosiva, cujo remédio não adviria do receituário liberal nem das leis ‘naturais’ da economia’ (Benchimol, 1992: 293).

Embora somente depois de 1930 o Estado tenha seguido de forma mais sistemática as recomendações de Backeuser, a verdade é que já em 1912, sob o mandato do governo antiliberal do presidente Marechal Hermes, houve uma intervenção na questão e a construção de duas vilas proletárias no Rio de Janeiro, uma delas prevista para alcançar as proporções de um bairro. No nosso entender Hermes foi uma antecipação de Vargas no tratamento da questão habitacional no Brasil e, ao mesmo tempo, demonstra que aqui se buscavam soluções idênticas para os mesmos problemas vividos pelas cidades do capitalismo central e da América Latina. (Yujnovsky: 1984) (Hidalgo: 2004).

A teoria do subdesenvolvimento descreveu as morfologias e os processos de estruturação interna das grandes cidades da América Latina com a preocupação essencial com as diferenças que se mantinham entre estas e aquelas do capitalismo central. Olhar apenas para o que não reproduz o capitalismo central é parte da idéia central do mecanismo do desenvolvimento do subdesenvolvimento, não se observando o que é continuidade e reprodução simultânea das cidades em cada grande ciclo secular do capitalismo. Assim nossas ciências sociais quase nunca puderam admitir, por exemplo, o desenvolvimento de um fordismo periférico por aqui, embora isto ignore gritantemente que o Brasil tem um presidente da república que foi produzido nas linhas montagem de uma indústria automobilística em um típico subúrbio industrial de São Paulo. Lula não é uma prova que houve algum fordismo no Brasil e de um Estado com igual figurino? De igual modo temos uma imensa dificuldade de imaginar que também houve certo grau de Estado do Bem-Estar Social ente nós e que as intervenções estatais na questão social, embora não tenham alcançado o mesmo grau dos países centrais ou de vizinhos mais urbanizados, como o Chile e a Argentina, não podem ser reduzidas e compreendidas sob a ótica de que tudo não passou de manipulação populista. Até porque a preocupação com a questão social envolveu muitos grupos políticos, sociais e profissionais que a encararam com outros projetos e compromissos mais amplos, como passaremos a ver rapidamente apontado aspectos da produção estatal da habitação social e o desenvolvimento de morfologia urbana fordista no Rio de Janeiro depois de 1930.

O trabalhou de Bonduki (2004) abre uma poderosa janela para vislumbrarmos como a morfologia e a estrutura urbana das grandes cidades brasileiras se desenvolveram, entre outras coisas, graças à intervenção do Estado na habitação social. E ainda como capital do país o Rio de Janeiro foi alvo privilegiado do novo padrão intervenção do Estado no urbano, desenvolvendo-se aí modelos que depois seriam aplicados no resto do país. A partir de Bonduki (op. Cit.: 13) podemos afirmar que a experiência brasileira em termos de habitação social foi riquíssima, inovadora e contemporaneamente “relacionada com a massiva intervenção que a sócial-democracia européia realizou no período entre guerras em países como a Alemanha, Áustria e Holanda”, hegemonizada pelo movimento modernista e buscando o Estado do Bem Estar Social; e mais ainda, que est espaços residenciais fazem parte do desenvolvimento do regime de acumulação fordista no Brasil.

Demonstrando que os projetos habitacionais construídos no Brasil tinham qualidade comparável aos dos países centrais, que eles são uma parte importante da arquitetura modernista brasileira que reconhecidamente tem relevância mundial, Bonduki se diz impressionado com fato de “mais de cinqüenta anos passados da construção desses conjuntos eles ainda não tenham sido objeto de um estudo adequado, do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo”. O problema é que este processo foi analisado quase sempre apenas do ponto de vista social, político ou econômico, sem levar em conta o objeto empírico em questão. Parece que seus estudiosos muito provavelmente nunca colocaram os pés nestes conjuntos habitacionais e muito menos se dedicaram concretamente a analisar os números, os projetos, o pensamento e a ação de seus principais agentes e os resultados alcançados. Sem tal exame e cegos por uma critica anti-populista, que apontava para as favelas e a periferia em crescimento explosivo como prova de que não se queria e nem se podia resolver a questão, foi fácil reduzir a produção estatal de moradias no período a uma mera propaganda enganosa populista.

Através da janela aberta por Bonduki podemos ver que a produção estatal de moradias foi significativa em termos quantitativos e qualitativos, muito superiores do que se supunha até então, como se vê nos conjuntos habitacionais que marcaram e ainda marcam profundamente a paisagem do Rio de Janeiro. Esta regra da cidade ocidental do período também foi cumprida por aqui. E isto só foi possível porque já havia no principio dos anos 40 não só capacidade técnica e financeira, mas também vontade política, inclusive de Getúlio Vargas. Entretanto, se contando com todos estes requisitos e até com a vontade do ditador não prevaleceu o desenvolvimento de uma política habitacional no período, como acusam seus críticos, somente concretizada no governo militar com a criação do BNH, é porque houve muitos outros obstáculos que não foram vencidos, e não apenas por causa das limitações do populismo. Isto é definitivo quando se compara a situação brasileira com a da Argentina, pois segundo Yujnovsky na mesma época o peronismo foi capaz de equacionar o problema da habitação em nível europeu, quer dizer, quase totalmente. O reducionismo da critica anti-populista impede que vejamos que a provisão de bens e serviços sociais públicos estatais foi um imperativo para todos os governos do período fordista, independentemente se eram ditadores ou governantes eleitos, se eram liberais, social democratas, nacionalistas, populistas etc. No que nos interessa mais especificamente, contribuíram para a reprodução de parte da morfologia e da estrutura urbana característica da cidade capitalista do período.

O Rio de Janeiro foi profundamente marcado nos 40 e 50 pelos conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, não só pela área construída, pelos bairros e zonas ocupadas, “mas sobretudo pelos seus programas inovadores, onde se associavam edifícios de moradia  com equipamento sociais e recreativos, áreas verdes e de lazer”, integrados em sistemas viários e de transportes novos e remodelados, como a eletrificação de parte do sistema ferroviário suburbanos em 1937, ou a construção de modernas rodovias como as avenidas Brasil,  e as estradas Rio-São Paulo e Rio-Belo Horizonte nos anos 40. É surpreendente do ponto de vista dos conceitos de cidade subdesenvolvida constatar que o rodoviarismo no Brasil começou aproximadamente menos de duas décadas depois dos EUA e tenha se antecipado à Inglaterra em mais de uma década, pois segundo Hall (op. Cit:336) o primeiro trecho de uma auto-estrada naquele país foi construído em 1958, “8 milhas ao redor de Preston, no Lancashire”.

E mais surpreendente ainda é ver com Bonduki (op. Cit.:163) que no primeiro registro da arquitetura brasileira publicada no exterior, Goodwin (1943) observou e elogiou a produção estatal em curso pois ela seguia o que vinha sendo realizado há algum tempo na Europa e mais recentemente nos EUA:“Realengo is an  interesting housing experiment with apartaments as well a single houses”. Situado na beira da ferrovia e a 40 minutos do centro da cidade – o mesmo tempo que é gasto ainda hoje no sistema que é concessão da RENFE espanhola - este subúrbio se tornou mais acessível com a reforma e eletrificação de parte do sistema suburbano de trens, efetuada por Vargas em 1937.  Primeiro conjunto edificado pelo IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários), Realengo foi inaugurado em 1943, com dois mil e trezentos e trinta e quatro unidades residenciais entre casas e apartamentos. Foi dotado de toda infra-estrutura, inclusive uma estação de tratamento de esgotos, escola primária para mil e quinhentos alunos, creche, ambulatório médico e dentário, quadra de esportes, templo católico, horto florestal. Estes princípios foram aplicados em outros grandes conjuntos de mais de mil unidades construídos pelo IAPI , em São Paulo, Recife e Porto Alegre. No Rio de Janeiro temos o caso dos conjuntos de Bangu, vizinho de Realengo e com cinco mil unidades, da Penha, com mil e duzentos e quarenta e oito unidades, Del Castillo, com. mil e quinhentos unidades.

Especialmente em Realengo, os apartamentos de 30 metros quadrados, com quarto, sala e balcão, dispostos em quatro blocos de quatro andares, exprimem com muita clareza o ideal do modo de vida do operário moderno e de massa, no qual grande parte de sua reprodução deve se dar nos espaços coletivos dos bairros e conjunto, playgrounds, parques, clubes, associações etc, e não mais no ambiente privado das casa unifamiliares, em que as mulheres se ocupavam com afazeres domésticos e quintais nos subúrbios. O projeto era tão inovador que incluía o mobiliário, seja porque não havia no mercado móveis compatíveis com as dimensões das unidades, mas, principalmente, porque em seu conceito estava presente a idéia modernista da máquina do morar, de novos hábitos de consumo, de uma família menos numerosa, para quem o tempo livre deveria ser vivido fora de casa, não mais ocupado de jardins e de hortas como previsto nos primeiros projetos de suburbanização do proletariado. Do ponto de vista estético, Bonduki (op. Cit.: 165)ressalta que a distribuição intercalada dos balcões criou “um rico jogo de volumes comparável à solução encontrada por Groppius para a residência estudantil da Bahaus, em Dessau (1926)”.

Em Realengo está uma prova do projeto fordista e modernista da produção estatal de moradias em suas origens.  Bonduki (op. Cit.: 170) identificou também no Rio de Janeiro o conjunto residencial que no Brasil alcançou aquele ideal de forma mais completa e acabada e que precisa “ser situada no contexto de um ciclo de projetos habitacionais e não como uma obra de exceção”.  Trata-se do Conjunto Residencial do Pedregulho, uma das mais destacadas contribuições à arquitetura modernista, que foi construído entre 1947-1952 sobre a vertente de um morro em São Cristóvão. Ao lado e em posição sobranceira ao inicio da recém construída Avenida Brasil, formava com a auto-estrada de acesso à cidade uma paisagem fordista inequívoca de progresso e otimismo tão característico do desenvolvimentismo e dos “gloriosos 30 anos”. O projeto de Afonso Eduardo Reidy foi destinado para os funcionários de baixa renda do Distrito Federal.

Segundo (Mahfuz: 2003) Reidy pertencia a uma ala de arquitetos modernistas que seguiu “um caminho silencioso, de síntese entre a arquitetura moderna européia, as tradições construtivas e urbanas locais, e os problemas reais do país”, diferente de uma segunda ala cuja figura máxima é Oscar Niemeyer, considerada por Mafhuz “crescentemente egocêntrica e autoexpressiva”, especialmente pós-Brasilia. No Pedregulho, partindo do conceito de unité d`habitation, Ready conseguiu desenvolver estudos que Le Corbusier fez para o Rio e Argel em 1929, resolvendo a associação entre a moradia, equipamentos comunitários e as novas relações entre o espaço público e espaço privado. Para além disto, o que marca Pedregulho é o edifício moderno que se acomoda ao perfil do morro, serpenteando-o, criando uma nova relação paisagem-espaço. Aproveitando a encosta ele concretizou no extenso bloco de seis andares a rua suspensa de Le Corbusier, que situada no terceiro andar e acessível diretamente à via publica através de uma ponte, abrigava comércios, áreas de serviço e espaços de recreação, bem como dispensava o uso de elevadores. Hall (op. Cit.: 250) afirma que Le Corbusier durante sua vida desenhou vários projetos uniité d`habitation em diferentes paises mas, “por ironia, sua única realização autentica  e concretizada no chão” foi o Unité de Marselha, em 1946, praticamente na mesma época do Pedregulho. Neste aspecto Reidy foi mais afortunado que Le Corbusier, pois teve oportunidade de logo repetir a experiência de São Cristóvão em uma outra encosta no bairro na Gávea. E ainda nos anos 50 foi projetado um terceiro exemplar da linhagem de Pedregulho, mas agora pelo arquiteto Flavio Marinho do Rego. Situado às margens da Avenida Brasil e da ferrovia, o Conjunto Residencial de Deodoro é vizinho da Vila Proletária de Marechal Hermes, a primeira intervenção estatal na habitação social no Brasil, distando três estações do IAPI de Realengo.

Se somarmos a estes conjuntos outros que igualmente foram localizados ao longo da Avenida Brasil, Penha (IAPI), Cidade-Jardim dos Comerciários, em Olaria, os conjuntos dos Comerciários e dos Marítimos, no Irajá, os de Bangu e de Padre Miguel, poderemos ver diante de nós um verdadeiro belt de habitação social construído no subúrbio carioca entre 1930-1964. Reparando melhor, veremos que entre estas habitações sociais se instalaram fábricas modernas, muitas estrangeiras, grandes unidades militares, o aeroporto internacional, o novo campus da universidade federal, armazéns e centros de abastecimento. Enfim, enxergaremos uma paisagem tipicamente fordista, salpicada, é verdade, por favelas que se desenvolviam nos restos de terrenos de morros e alagadiços das margens da baia de Guanabara, origens do que é hoje conhecido como complexos de favelas da Maré e do Alemão.

O Rio de Janeiro e morfologia urbana pós-fordista

Ao apresentar os sinais das origens do pós-modernismo na arquitetura Harvey (1992: 44) reconhece com Charles Jencks que a implosão do conjunto residencial Pruit-Igoe, em Saint-Louis, EUA, foi decisiva para a consciência do fim da aplicação dos princípios modernistas e do planejamento urbano. Com os escombros de Pruitt-Igoe sucumbiram também o Estado do Bem Estar Social e o sonho modernista de resolver a crise da habitação na cidade capitalista. Instalava-se então a crise do regime fordista e o início do fim da hegemonia americana no sistema mundial, que agora se torna realidade para os mais incrédulos. Isto também significou uma repetição da assunção das forças do mercado e do recuo do Estado na produção e na regulação do território e do espaço urbano. Tal como havia acontecido no início do século XIX, o liberalismo torna-se novamente hegemônico e comandará a reestruturação do ordenamento interno e da morfologia das cidades capitalistas nas ultimas quatro décadas. Como parte do desenvolvimento do pós-fordismo e da acumulação flexível, foi se desenhando um novo padrão de ordenamento dos espaços das cidades, promovido pela reestruturação produtiva, novas tecnologias, expansão do setor terciário, precarização do trabalho e de direitos sociais, aumento do desemprego, requalificação de áreas urbanas centrais, mercantilização do patrimônio cultural, desregulamentação, globalização dos mercados etc. De uma estrutura urbana mais ou menos definida e previsível em termos sociais e funcionais, nasce outra que leva a uma expansão e uma fragmentação dos tecidos urbanos sem precedentes, surgem novas centralidades urbanas e regionais, zonas prósperas são abandonadas e marginalizadas, a insegurança e a criminalidade se agigantam, levando a novas sínteses, conceitos e metáforas que descrevem a morfologia das cidades contemporâneas, assim enumeradas por Capel (2003: 213): cidade difusa; cidade dispersa, cidade-região, megacidade, hipercidade etc.

O fato de testemunharmos este processo, o grande número de estudos sobre o tema e as limitações deste trabalho permitem que dispensemos fazer sua caracterização mais detalhada na Europa e nos EUA e passemos diretamente para situação brasileira e carioca. Além disto, as transformações do sistema mundial, especialmente a descentralização da acumulação capitalista em direção à Ásia e para o Sul, tornam cada vez mais obsoletos pressupostos, o subdesenvolvimento, por exemplo, em que se basearam as idéias de diferenciação entre as morfologias das cidades latino-americanas face às européias e americanas. Deve ser por isto que Capel (ibid.) ao tratar da cidade contemporânea, embora não deixe de situar as origens deste processo na Europa e nos EUA, inicia suas observações sobre as megacidades usando como exemplo casos da América Latina e da China: México, São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Hong Kong, Shangai, Pequim.

De início é preciso considerar que a crise do fordismo só se realizou no Brasil no final dos anos 70. Apesar do aprofundamento da recessão na Europa e da crise do petróleo, o Brasil seguiu durante este período em acelerado processo de crescimento graças a um galopante processo de endividamento externo. E como em outros períodos já analisados, houve certa defasagem para o desenvolvimento da morfologia pós-fordista no Brasil. E no caso do Rio de Janeiro deve ser anotado que depois de 1960 será enfrentado certo declínio econômico em relação a outros centros urbanos mais dinâmicos, especialmente São Paulo. Por estas razões, o Rio de Janeiro que quase sempre teve a primazia da maioria das inovações urbanísticas no Brasil, perde tal posição para São Paulo. Assim, foi em Barueri, município da periferia de São Paulo, que em 1973 começou a ser construído Alphavile, um novo tipo de loteamento dedicado a empresas não-poluentes e de alta tecnologia como a HP e a Du Pont. Com estas migraram também empregos bem remunerados e a demanda de residências de alto status que viabilizaram a construção de um condomínio residencial, em 1975, com o mesmo nome.  Caso similar é o do Setor da Avenida Luis Carlos Berrini que começou a ser planejado em 1975. Localizado junto ao anel de autopistas – marginal do Rio Pinheiros - e vizinho de bairros das classes altas paulistas como o Morumbi, o empreendimento se consolidou nas décadas seguintes atraindo bancos, empresas de comunicação e de alta tecnologia, hotéis e shoping centers. Por outro lado, foi durante esta época que ficou claro o abandono da zona central de negócios da cidade, bem como a constituição de um “cinturão de ferrugem” nos velhos bairros industriais de São Paulo.

Conforme já salientamos, no Rio de Janeiro as transformações pós-modernas da morfologia urbana foram menos intensas. Uma das mais notadas veio com a ocupação da Barra da Tijuca, a partir do final dos anos 70. Em menos de duas décadas, na fachada costeira de uma baixada de praias, restingas e lagoas foram construídos grandes condomínios de edifícios e de casas para as classes médias e altas, bem como vários shoping centers.  De maneira menos pronunciada, tal tendência também se verificou nas praias oceânicas do município de Niterói, no leste da região metropolitana. Por ter no inicio uma feição predominantemente residencial estas novas zonas periféricas não podem ser tão bem associadas à tipologia das Edges Cities que são uma contribuição marcante para a fragmentação da cidade difusa. Contudo, no caso da Barra da Tijuca dos últimos dez anos, nota-se uma tendência para que tal feição cada vez mais se complete, pois é crescente a localização de sedes empresariais, bancos e serviços voltados para a nova economia, algumas deslocadas do antigo centro. A construção da Linha Amarela nos anos 90, uma autopista municipal com pedágio, que por meio de túneis e elevados e atravessa antigas zonas industriais faz a sua ligação direta com o aeroporto internacional, o sistema viário nacional e o centro da cidade, deu à Barra da Tijuca certo grau de conectividade em termos das redes nacionais e internacionais. Deste modo ela está se transformando em um pólo de negócios, serviços e residências das classes de alto status na borda de uma megacidade e quase independente dela, assumindo assim características de Edgies Cities e conferindo ao Rio de Janeiro esta parte da morfologia da cidade difusa.

Do ponto de vista da regulação das cidades pós-fordistas este quadro ganhou mais nitidez no inicio da década de 90, quando o poder local assumiu a adoção do chamado planejamento estratégico, que busca conduzir o desenvolvimento urbano através de projetos e vetores estruturantes que ao sabor do mercado e da colaboração do Estado devem articular os diversos fragmentos metropolitanos de interesse dos agentes globais. Para demonstrar sua adesão ao que Compans (1996: 215) chamou de “urbanismo de resultados” a prefeitura da cidade contratou os serviços de mundialmente acreditada Tecnologies Urbanas Barcelona S.A.

Na antípoda da Barra da Tijuca, isto é na área central da cidade, onde estão ainda grande parte das malhas urbanas construídas durante os séculos XVII e XVIII pelo urbanismo português, ao qual já fizemos menção inicialmente, também se nota o mesmo processo de valorização dos centros urbanos, da história e da cultura pela estética contemporânea, da espetacularização e do empresariamento das cidades cultivado pelos gestores públicos e privados. Assim, como em outras cidades capitalistas, depois de ter sofrido severos ataques das cirurgias e renovações urbanas pelos seguidores de Haussmann e, depois de 1930, dos modernistas e rodoviaristas, da especulação e verticalização do CBD e do desenvolvimento de zonas de obsolescência em sua periferia, começa no Rio de Janeiro no final dos anos 70 um processo de preservação e valorização de seu patrimônio urbano.

É interessante observar que o Brasil, guiado por um grupo de modernistas foi um dos Estados pioneiros na preservação de grandes malhas urbanas. Centros históricos inteiros foram tombados ainda na década de 1930, como foi o caso de Ouro Preto, prática que segundo Choay (2001) só começou a se desenvolver no princípio dos anos 60 na França. Mas para o tipo de conceito que guiou a preservação dos centros urbanos até então – a cidade museal de Camillo Sitte , que exige uma integridade quase absoluta da tipologia arquitetônica  e urbanísticas dos conjuntos históricos -,  a morfologia da área se apresentava irremediavelmente perdida como uma colcha de retalhos de tempos histórico. E de fato, é muito provável que em nenhuma parte do território brasileiro se veja tão bem exemplificado como no Rio de Janeiro a bela definição de Milton Santos de que “o espaço é uma acumulação desigual de tempos”. Além do mais, a importância política, econômica e cultural desta grande cidade dela fazia um espaço privilegiado para as novas necessidades e experiências que só podiam fazer pequenas concessões ao passado.

A partir de 1970 esta perspectiva e realidade começaram a mudar, inicia-se um lento projeto de revitalização, cheio de conflitos, contradições e descontinuidades através de tombamentos como o do Morro da Conceição, a criação de grandes áreas de preservação como o Corredor Cultural e, mais recentemente, com os projetos de revitalização do Bairro da Lapa e da zona do porto. Em meio a estas morfologias de quatro séculos surgem em vários pontos de sua paisagem, ainda que de modo tímido se compararmos com outras cidade mais dinâmicas, a construção de torres envidraçadas de edifícios inteligentes em áreas de renovação urbana como a Avenida Chile e o Tele Porto na Cidade Nova. Na esteira desta valorização observa-se também a implantação de alguns empreendimentos residenciais e apart-hoteis, indicando que há um movimento de recuperação desta função na área central para as classes médias, uso que foi praticamente varrido do mapa depois dos anos 50, chegando mesmo a ser vetada a construção de edificações para residência pelas leis de ocupação do solo.  

Outro aspecto da morfologia fragmentada das grandes cidades contemporâneas no Rio de Janeiro que desejamos apontar, são os novos modos de ocupação de zonas industriais erguidas antes e durante o período fordista, que podem ser resumidas em dois casos. No primeiro estão áreas e zonas do miolo metropolitano que estão sendo recicladas e tiveram uma mudança de uso voltada para o comércio e serviços: shoping centers, supermercados, empreendimentos residenciais e complexos esportivos. Seu melhor exemplo é a grande área formada junto à Linha Amarela e na interseção com o antigo eixo industrial e residencial fordista da Avenida Suburbana.  Tal tendência começou a se manifestar nos anos 80, quando em terrenos da fábrica Klabin foi construído o Norte-Shoping, o que depois foi seguido também pela reconversão dos edifícios da Tecelagem Nova América, no bairro de Del Castillo, por sinal junto a um conjunto residencial da era Vargas que foi implantado seguindo o modelo de cidade-jardim. Supermercados e grandes cadeias internacionais, como Leroy-Merlin e Wall-Mart, também se instalaram em outros espaços industriais abandonados. Conforme aponta Jesus (2007), dentro das estratégias do city-matkentig e de um grande projeto de reestruturação urbana com todos os seus ingredientes de autoritarismo, privatização dos lucros e socialização das perdas, por ocasião do Panamericano de 2007 foi construído um estádio olímpico (Engenhão) para quarenta e cinco mil pessoas no bairro do Engenho de Dentro, em terrenos das Oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil que ali foi instalada na década de 1870 e que é um dos grandes símbolos esquecidos do inicio da industrialização brasileira. Em situação de paralelismo e não de imitação as linhas gerais do projeto do Engenhão são as mesmas dos Estádios da Luz, em Lisboa, e do novo Wembley, na Inglaterra, firmando uma arquitetura pós-moderna em meio ao antigo subúrbio carioca. Para completar, em terrenos ainda remanescentes das Oficinas, atualmente está em construção um condomínio residencial de edifícios para a classe média.

O segundo caso de transformação das antigas zonas industriais decorre do seu abandono pelo capital e pelo Estado, o que permitiu o desenvolvimento de invasões e a expansão de favelas em bairros industriais e de classes médias que foram entregues à violência do narcotráfico, de milícias privadas e de policiais corruptos, cujas imagens são conhecidas mundialmente e reproduzem as paisagens pós-industriais da ferrugem. Nestes casos estão outras zonas industriais, a exemplo da Avenida Itaóca, em Bonsucesso; de parte da Avenida Brasil; no trecho inicial da Avenida Suburbana, nos bairros de Benfica, Maria da Graça; junto à favela de Mangueira; e na Cidade de Deus, que é vizinha à Barra da Tijuca. Deve-se notar que não é a presença de favelas em si o que torna estas regiões altamente conflituosas e perigosas, pois antes de 1980 havia uma relação positiva que aproximavam mutuamente as fábricas e as favelas. Contudo com a desindustrialização, a precarização do trabalho, a ausência do Estado na provisão dos serviços públicos e a expansão do narcotráfico, estas zonas se deterioram perigosamente. Em muitos casos as empresas cerraram as portas alegando a impossibilidade de ali permanecerem face aos prejuízos perpetrados pela criminalidade. Se antes estes grandes reservatórios de força de trabalho que são as favelas atraiam as indústrias, depois de 1980 tal relação se tornou negativa: as empresas se afastam por causa da violência e os empregos diminuindo aumentam os fatores de deterioração destes lugares. Na paisagem nada é mais significativo deste processo que a conversão de prédios e terrenos industriais em novas favelas, como pode se pode ver em Benfica e na Avenida Brasil.

Conclusões

As proposições aqui apresentadas necessitam de um maior aprofundamento para se tornarem mais consistentes, especialmente para o período do capitalismo em suas fase liberal e fordista. Os estudos já realizados, tanto para as cidades do século XVIII quanto para o período atual, dão uma boa margem de segurança para trilharmos este caminho. Mas isto exige que adotemos a perspectiva teórica da “longa duração” e do capitalismo enquanto um sistema mundial e, finalmente, saiamos dos dualismos metrópole-colônia ou desenvolvimento-subdesenvolvimento que dominaram a nossa imaginação. Assim, independentemente de estarmos falando de cidades do centro ou da periferia do sistema poderemos encontrar, em diferentes graus de desenvolvimento, a reprodução das mesmas morfologias urbanas durante cada grande ciclo de acumulação.

Para as cidades do passado se abrem perspectivas para estudos que façam uma ampla releitura do seu processo de desenvolvimento. Para as cidades do presente, considerando que desde o século XVIII registramos um movimento pendular que ora adota e ora rechaça a intervenção do Estado e do planejamento na produção do urbano, e também, que o ultimo período de gestão liberal do Estado encontra-se em franca fadiga, podemos imaginar que está aberta a possibilidade para reinvenção do planejamento urbano e territorial numa perspectiva antiliberal. Embora a realidade seja sempre mais criativa que a nossa imaginação, tanto a “cidade da noite apavorante” do fim do século XIX descrita por Peter Hall, quanto o “Planeta Favela” de Mike Davis nos levam a tais conclusões.

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