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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona


A ECONOMIA SOLIDÁRIA NA CIDADE CAPITALISTA:
CONFLITOS E CONTRADIÇÕES DA REPRODUÇÃO DO CAPITAL NO ESPAÇO URBANO

Tatiane Marina Pinto de Godoy[1]
Doutoranda em Geografia
Observatório Territorial – Centro de Estudos Ambientais
Universidade Estadual Paulista /UNESP Rio Claro
tatiane.godoy@uol.com.br



A Economia Solidária na cidade capitalista: conflitos e contradições da reprodução do espaço urbano (Resumo)

A Economia Solidária consiste em uma forma, ainda não definida espacialmente, de base associativista e cooperativista, voltada para a produção, comercialização e consumo de bens e serviços, de modo autogerido, tendo como finalidade a reprodução ampliada da vida. Esta forma de produção envolve a dimensão social, econômica, política, cultural e espacial. Debatemos aqui o caráter emancipador da Economia Solidária tendo como lugar a cidade capitalista e buscamos responder qual é o lugar dos empreendimentos solidários. Para tal questão utilizamos dados oriundos do Programa Economia Solidária em Desenvolvimento no Brasil, do governo federal, que visa mapear e instituir políticas públicas que subsidiem este setor no território brasileiro. A partir desta intervenção do Estado, buscamos compreender a contradição entre o papel e a ação do Estado na geração de trabalho e renda através empreendimentos autogeridos inseridos no contexto de um modo de produção da cidade que visa à acumulação ampliada do capital.

Palavras Chave: Economia Solidária, Cidade, Reprodução.


The Solidary Economy in the capitalist city: conflicts and contradictions of the reproduction of the capital in the urban space (Abstract)

The Solidary Economy is a way of association and cooperation not yet spatially defined. It seeks for production, commercialization and consumption of goods and services, by self-managed means, having as a purpose the enlarged reproduction of life. This production form involves the social, economical, politics, cultural and spatial dimension. At this opportunity we debated the emancipator character of the Solidary Economy having the capitalist city as place. We also try to answer what is the place of the Solidary enterprises. For that we have used the data from the Solidary Economy Program, which have been developed by the federal government in Brazil. This Program seeks to map and to create public policies to subsidize this sector in the Brazilian territory. Starting from this intervention of the State, we try to understand the contradiction between the role and the action of the State concerning work and income generation through self-managed enterprises inside a way of production of the city that seeks to the enlarged the capital accumulation. 

Key words:  Solidary Economy, City, Reproduction.


Estudar a Economia Solidária através de um enfoque espacial nos remete à Geografia Econômica. Mas não se trata tão somente de estudar a localização, a distribuição e a organização social das atividades nas suas diferentes escalas. Para podermos apontar, e se possível iluminar, as contradições presentes nos espaços produzidos por modos de apropriação que em um primeiro momento se mostram contrastantes como são o da acumulação capitalista e o da produção solidária é necessário recorrer a vários aportes teórico-metodológicos sem nos desviar da premissa de que o espaço é produto das relações sociais, bem como condição de reprodução destas relações sociais.

Nossa orientação teórica é de uma geografia crítica que vai além das análises locacionais. Nosso esforço vai à direção de uma análise que dê conta do desvendamento das relações sociais produtoras do espaço geográfico e de suas implicações na reprodução da humanidade. Tal objetivo nada mais se justifica do que pela necessidade de uma nova forma de viver, que inclua pessoas marginalizadas dos avanços da ciência pós-moderna cujos resultados segregam grande parte dos homens.

Ao escolher a Economia Solidária como tema de estudo, vislumbramos a possibilidade de contribuir para o conhecimento e talvez para o aprimoramento de uma forma de produzir que agrega pessoas e não apenas agrega o capital. A análise da Economia Solidária, ou mais especificamente dos empreendimentos solidários, no âmbito da geografia nos assegura a possibilidade de estudar as políticas públicas do Estado através de duas categorias: o território e o lugar. Mas sem nos esquecermos da questão da mundialidade.

Optamos por investigar mais detidamente os empreendimentos solidários no contexto urbano. A cidade, produto mais complexo do trabalho humano, é a materialização em um mesmo espaço de diversas territorialidades. Sua divisão social é mais visível. No mesmo espaço urbano estão presentes ricos, pobres, patrões e empregados. A cidade é um campo de forças, cujo conflito está em um primeiro olhar de forma latente, mas que através de um olhar informado se manifesta na dimensão do visível através da divisão centro/periferia.

A implosão-explosão do urbano, metáfora lefebvriana[2] emprestada da física nuclear, ou seja, a enorme concentração de pessoas, de atividades, de riquezas e de objetos projetou fragmentos múltiplos e disjuntos como são as periferias e os subúrbios levando ao que hoje se chama de fase crítica. A problemática urbana carrega consigo a crise da cidade, na sua forma mais aparente manifestada nas diferentes territorialidades, e a crise humana decorrente da negação da reprodutibilidade das relações sociais com o cerceamento do acesso ao trabalho, e conseqüentemente impedindo o acesso às outras esferas da vida como o direito à moradia, ao consumo e ao lazer, por exemplo. Estas duas crises são indissociáveis. A crise humana leva a crise da cidade, que por sua vez é condição da negação humana.

Temos também o suporte da Geografia do Comércio. As trocas são parte integrante da economia. P. George (1976, p. 267) afirma que os modos e as relações de produção, assim como as necessidades de ordem técnica, exigem formas particulares de comércio. Analisaremos as trocas comerciais dos empreendimentos solidários já que não há produção sem consumo, tanto quanto sem a distribuição e a troca, como nos assegura Marx[3]. Os empreendimentos de produção solidária necessitam da troca tanto quanto os empreendimentos de produção capitalista pelo simples fato de que sua produção precisa ser consumida para que possa ser novamente produzida. Cabe-nos analisar de que maneira esta relação econômica se dá na Economia Solidária, já que, a discussão sobre a produção envolve um grau determinado de desenvolvimento social. Mais uma vez retomando Marx (1976, p. 110), podemos dizer que todas as épocas da produção possuem certas características ou determinações comuns. Tentaremos identificar quais são as particularidades da produção solidária, bem como de sua distribuição, troca e consumo em relação à produção capitalista.

Já vimos que este trabalho não poderá simplesmente se classificar como de Geografia Econômica, Urbana ou do Comércio. Para a investigação que estamos desenvolvendo é preciso superar a subdivisões da ciência geográfica. Entendemos que a análise espacial só pode ocorrer tendo como premissa que o espaço geográfico é aquele produzido pelo trabalho humano, seja no campo ou na cidade, seja através das atividades primárias, secundárias ou terciárias. O espaço é produzido na atividade agrícola, industrial, comercial ou financeira. Sobretudo, o espaço é produzido pelas relações sociais de produção e, ele é condição de reprodução destas mesmas relações sociais.

Fizemos um recorte espacial para a análise crítica que pretendemos. Seria humanamente impossível querer dar conta de toda a complexa materialidade social. Portanto reafirmamos que escolhemos o espaço urbano para o estudo dos empreendimentos solidários, ainda que a Economia Solidária possua raízes profundas no espaço rural. Podemos receber a crítica de que o urbano já atingiu o meio rural através de suas estruturas racionalizadas, da produção agrícola mecanizada e informatizada. Mas é nas cidades onde se encontra o grande contingente populacional. No Brasil, segundo dados do Anuário dos Trabalhadores – DIEESE 2006, da população total de 169.799.160 habitantes, 137.953.959 vivem nas cidades. Também deve ser considerada que do total da população economicamente ativa, apenas 20,6 per cento realizavam atividades agrícolas em 2001 (DIEESE 2006).

Uma crítica à economia política do espaço

Para entender as dinâmicas da produção e reprodução do espaço geográfico é preciso entender as dinâmicas das práticas sociais em toda a sua complexidade. Se vivemos em um modo de produção que prima pela acumulação sempre ampliada do capital, é de fundamental importância que se identifique seus agentes e suas práticas, suas relações de produção e, sobretudo, suas relações sociais de produção.

Lefébvre nos afirma que é preciso ir além da (re)produção material da sociedade para entendê-la. Em suas palavras:

 “a práxis engloba, simultaneamente, a produção material e a produção espiritual, a produção dos meios e a dos fins, a dos instrumentos, a dos bens, a das necessidades. Produzir e reproduzir não significa apenas lançar na circulação, troca e acumulação, um determinado número de objetos produzidos (instrumentos de produção ou bens de consumo). É também produzir e re-produzir as múltiplas relações sociais que permitem a produção e também a apropriação dos bens (e igualmente os limitam ou os obstaculizam)” (Lefébvre apud Ajzenberg, 2005 p.10).

Vivemos num mundo de necessidades criadas para a reprodução sempre ampliada do capital. Neste mundo da mercadoria, do espetáculo, onde a mundialização da produção e das trocas submete a moral à mercadoria e às finanças, como afirma Ajzenberg (2005, p. 14), o ser humano enquanto produtor de riquezas se coisifica.

Para Debord (1997, p. 37) a sociedade do espetáculo constrói a sua unidade sobre o esfacelamento. Este esfacelamento, ou seja, esta destruição da consciência humana como sujeito da história, leva a alienação do individuo em relação ao produto de seu trabalho, não apenas a alienação de sua posse, mas a alienação da consciência de seu papel como produtor da mais-valia, que é apropriada pelo possuidor dos meios de produção.

Este esfacelamento é também a especialização extrema do trabalho. A divisão do trabalho possibilitou a perda da consciência de classe e o rompimento das solidariedades. A sociedade tornou-se individualista, e apenas isto, afirma Ajzemberg (2005, p. 13).

A organização do trabalho precarizou as condições dos trabalhadores e desfez a coletividade. O individualismo cultivado de maneira exacerbada reinvidica as necessidades criadas pelo mundo da mercadoria espetacularizado.

A sociedade do espetáculo cria a passividade e dela necessita. A individualização, resultado do esfacelamento da sociedade, isola os indivíduos. Estes perdem a sua consciência coletiva. Lukacs, citado por Lefèbvre (2005, p. 24), afirma que a consciência de classe do proletariado, assim como da burguesia, muda de acordo com a conjuntura. Em um mundo preconizado pela troca, e pelo espetáculo que dela se faz, a consciência de classe é aquela da individualização com a generalização extrema das necessidades.

Lefèbvre (2005, p. 21) supõe que as classes sociais se caracterizam diferencialmente pelas necessidades que, análogas, surgem em escala mundial, independentemente das diferenças de país, raça, classe, regime político.

Entretanto, a insatisfação também se tornou mercadoria, afirma Debord (1997, p. 40). E nesta mesma linha de pensamento Lefèbvre (2005, p. 21) mostra que a generalização das necessidades não significa satisfações idênticas mas, assim, o problema se desloca as noções negativas – de insatisfação, falta, privação, frustração, aspiração mais ou menos irrealizada – a dialética presente na mercadoria enquanto afirmação e negação da vida.

Em sua “psicologia das classes sociais” Lefèbvre (2005, p.21) traz uma metodologia de estudo considerando a vida cotidiana dos diferentes grupos sociais. A abordagem distinta da economia no estudo dos níveis de vida e da sociologia no estudo dos gêneros de vida não é capaz isoladamente de atingir em profundidade o psiquismo de classe. Assim, a proposta de Lefèbvre é a do vivido em uma situação. As análises das relações de produção não se esgotam no modo de produção, mas para compreendê-las é necessário o conceito de vida cotidiana. Na proposta de Lefèbvre este conceito não exclui em nada o trabalho produtivo. Ao contrário: ele o implica.

De Lefèbvre emerge a dimensão temporal e espacial na compreensão das lutas de classe. Ele nos mostra que o espaço e o tempo tornaram-se simultaneamente mercadorias em torno das quais ocorrem as formas modernas de luta de classe. A transformação verdadeira do mundo vai além da mudança do modo de produção capitalista para um outro modo de produção. Ela demanda a consideração do desenvolvimento da luta de classe com sua forma tradicional inclusa na moderna: a luta pelo espaço e pelo tempo.

A hipótese de Lefèbvre é que as classes sociais se caracterizam diferencialmente pelas necessidades. Estas necessidades resultam de uma crítica geral da vida cotidiana. Entretanto “as distinções entre as necessidades profundas e as necessidades artificiais, as necessidades elementares e superiores, as necessidades materiais e as necessidades coletivas, espirituais, culturais, ou morais, não são nem elaboradas, nem suficientemente relacionadas à análise crítica da prática social” (Lefèbvre, 2005 p. 21).

Lefèbvre admite a existência de classes sociais definidas nas obras clássicas: classe burguesa, classe operária, classe camponesa e classes médias. Mas cabe nos perguntarmos qual classe está imune à manipulação. Debord (1997, p. 233) diz que ninguém pode afirmar que não está sendo ludibriado ou manipulado só em raríssimos instantes o próprio manipulador pode saber se ganhou. Mas, se a sociedade do espetáculo é uma sociedade da passividade pela necessidade criada por uma classe dominante, quem é essa classe dominante? A burguesia? A burguesia, mesmo sendo a única classe social efetivamente revolucionária, sempre quis ser igual à aristocracia. As classes médias, por sua vez, copiam a burguesia e, o proletariado, nas palavras de Lefèbvre (2005, p. 35), enquanto influenciadas pela classe dominante, tem o papel irrisório do último vagão em um trem. A imitação de classe acaba tem por conseqüência a ignorância das necessidades e satisfações artificiais em relação às necessidades reais.

O estado crítico em que vivemos é produto de uma alienação generalizada? Como já dissemos anteriormente nós vivenciamos na atualidade uma crise generalizada, que separa e distingue pessoas e lugares. Esta crise está presente no espaço da cidade e do campo, com a diferenciação dos lugares como produto da desigualdade social. Mas, mesmo o espaço sendo produto de relações sociais dialéticas, ele ainda é concebido através de uma lógica cartesiana que não é capaz de decifrá-lo na sua complexidade. O homem, alienado de sua condição enquanto sujeito da história, não possui a compreensão de seu espaço. Seu cotidiano é colonizado pelo espetáculo. Suas necessidades são orientadas pela autonomia do valor de troca. O espaço produzido por esta economia política nega a vida humana.

Para Debord é necessário que a teoria enquanto entendimento da prática humana seja reconhecida e vivida pelas massas para que haja a revolução proletária. Esta é a verdadeira necessidade. Ao término da obra “A sociedade do espetáculo” há um caminho para a satisfação dessa necessidade.

“Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipação de nossa época. Nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa ‘missão histórica de instaurar a verdade no mundo’, tarefa que cabe, ainda e sempre, à classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática controla a si mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão ‘diretamente ligados à história universal’ somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas suas próprias condições”.

A transformação deste mundo da mercadoria espetacularizado passa necessariamente pelo desenvolvimento da luta de classe, que inclua sua forma moderna, a luta por uma nova cidadania: uma luta pelo espaço e pelo tempo.   

A divisão do trabalho na cidade

A análise da relação entre urbanização e cidade permite-nos compreender o espaço urbano, como materialidade presente, mas também como processo, como acumulação de outros tempos, como expressão das formas como se organizaram e reorganizam as cidades, tendo em vista a urbanização e suas determinações.

Nos países subdesenvolvidos, o processo de urbanização esteve quase sempre associado a um modelo econômico excludente. A concentração de terras e a precariedade das condições de vida no campo levaram grandes parcelas da população rural a migrar para as cidades, as quais cresceram sem planejamento.

Todos os países desenvolvidos, além da maioria das nações industrializadas recentemente, possuem altas taxas de urbanização. Mas também há países que possuem baixas taxas de industrialização, sem mesmo possuírem parques industriais, que são fortemente urbanizados. Nestes casos as atividades agropastoris são bastante mecanizadas e ocupam pouca mão-de-obra, a qual está empregada no setor de serviços.

Há, portanto, dois conjuntos básicos de fatores que condicionam a urbanização: os atrativos, que chamam migrantes para as cidades, e os repulsivos, que os levam a sair do campo.

A urbanização está associada à industrialização, ou seja, às transformações provocadas na cidade pela indústria, notadamente quanto à geração de empregos, em atividades secundárias ou terciárias, tanto nos países desenvolvidos quanto nas regiões mais industrializadas dos países emergentes. Essas condições surgiram primeiramente nos países de industrialização antiga, ou desenvolvidos. Nesses além das transformações urbanas, houve, como conseqüência da Revolução Industrial, também  uma revolução agrícola, ou seja, uma modernização da agropecuária que, ao longo da história, possibilitou a transferência agrícola, ou seja, uma modernização da agropecuária que, ao longo da história, possibilitou a transferência da população do campo para cidade.

As transformações ocorridas no campo pelo desenvolvimento do mundo da mercadoria, acompanhada da decomposição da cidade na qual esse mesmo mundo se aninhou e expandiu, através da industrialização, levou à explosão-implosão, momento este em que, para Lefèbvre (2002), nasce o urbano. Não se podia mais, portanto, pensar em termos de cidade e campo. Tratava-se, a partir de então, de um outro processo mais amplo, rico, profundo e dialético, nas palavras de Martins no prefácio da edição brasileira d’A Revolução Urbana, de Henri Lefèbvre, assim: a urbanização da sociedade,  processo desconcertante para o pensamento e a ação.

Não podemos nos esquecer, no entanto, que o urbano é um modo de vida e que a cidade é a concretização deste modo de vida. A urbanização não é um mero aumento da população residente nas cidades. Também não é simplesmente a expansão das cidades. A problemática urbana não pode ser entendida enquanto for considerada como subproduto da industrialização. Para Lefèbvre, a análise da urbanização enquanto sentido e finalidade da industrialização prossegue a ponto de se poder afirmar que tal formulação é ao mesmo tempo essencial e insuficiente.

Em sua obra “A Revolução Urbana” Lefèbvre levanta a hipótese de uma urbanização completa da sociedade. Para o referido Autor a sociedade urbana é aquela que resulta da “urbanização completa, hoje virtual, amanhã real”.[4]

Para Lefèbvre vivemos hoje em uma fase ou zona crítica que tem como característica a problemática urbana em nível mundial, ou seja, os mesmo problemas ou ausência de respostas encontram-se tanto no capitalismo como no socialismo. Tal noção de fase ou zona crítica se faz necessária, já que os conceitos antigos não são mais suficientes e novos conceitos se formam.

É através de um discurso coerente, porém não acabado, porque comporta por essência o inacabamento,  que se define uma reflexão sobre o futuro, o que implica na transdução. Partir do objeto meio concreto, meio virtual, como é o caso do urbano, um objeto que ainda não se materializou completamente. A transdução se apresenta como consciência lógica dessa possibilidade. Neste discurso a dimensão temporal, evacuada pela epistemologia e pela filosofia do conhecimento, é reintroduzida.

O fenômeno urbano prolonga e acentua, num plano novo, o caráter social do trabalho e seu conflito com a propriedade privada dos meios de produção. O urbano não suprime as contradições do industrial. Os conflitos inerentes à produção entravam o fenômeno urbano, impedem o desenvolvimento do urbano, reduzindo-o ao crescimento.

Lefébvre nos diz também sobre a complexificação da sociedade, quando ela passa do rural ao industrial e do industrial ao urbano. Tal complexificação atinge o espaço e o tempo porque a complexificação do espaço e dos objetos que nele se situam não ocorrem sem uma complexificação do tempo e das atividades que nele se desenvolvem.

Esta tese da complexificação parece filosófica, e o é às vezes, mas para Lefèbvre ela se vincula ao conhecimento científico, parcelar, mas efetivo: teorias da informação, das mensagens, da codificação e da decodificação. Por isso ele a declara metafilosófica por ser ao mesmo tempo global e articulada ao conhecimento. Teoricamente, o conceito de complexidade se funda na distinção entre crescimento e desenvolvimento.

Se para Marx o crescimento e o desenvolvimento, que se discerniam, evitando confundir quantitativo e qualitativo, podiam e deviam andar juntos, a experiência mostrou que pode sim haver crescimento sem desenvolvimento. O crescimento que devia ser um meio se tornou um fim. Há para Lefèbvre que se ampliar, diversificar e formular de outro modo a lei de desenvolvimento desigual (de Lênin) para dar conta do conflito entre crescimento e desenvolvimento revelado no curso do século XX.

Assim, se a teoria da complexificação anuncia e prepara a desforra do desenvolvimento sobre o crescimento, a teoria da sociedade urbana vai ao mesmo sentido. Tal desforra está apenas no seu começo.

Todas essas considerações evocam a prodigiosa extensão do “urbano” a todo o planeta, evocam a sociedade urbana, com suas virtualidades e seu horizonte. A extensão-expansão do urbano não vai continuar sem dramas, porque se o fenômeno urbano tende a transpor fronteiras, as trocas comerciais e as organizações industriais e financeiras parecem reafirmá-las. Dessa forma os efeitos de uma possível ruptura no plano industrial e financeiro (crise de superprodução, crise monetária) serão acentuados pela extensão do fenômeno urbano e pela formação da sociedade urbana.

Atualmente, em qualquer grande cidade, o espaço urbano é fragmentado, ou seja, se estrutura como um quebra-cabeça em que as peças fazem parte de um todo, mas cada uma delas tem sua própria identidade.  Essa fragmentação, quase sempre associada a um intenso crescimento urbano, faz com que os cidadãos não vivam a cidade por inteiro, mas apenas os fragmentos fazem parte de seu cotidiano e caracterizam o seu lugar, ou seja, o seu local de moradia, de trabalho, de estudo e de lazer – os locais por onde circulam. As desigualdades sociais se materializam na paisagem urbana. Quanto maiores foram as disparidades entre os diferentes grupos e classes sociais, maiores são as disparidades de moradia, acesso aos serviços públicos, ou seja, o direito à cidade.

Assim, para Lefébvre (2002) o fenômeno urbano depende de uma leitura total porque nem a superação de seus fragmentos e conteúdos, nem sua reunião confusa podem  defini-lo. Há um paradoxo do fenômeno urbano, que é comparável ao paradoxo fundamental do pensamento e da consciência. Ou seja, o urbano é pontual. Ele se localiza e se focaliza. Intensifica-se aqui ou ali. Ele não existe sem esta localização: o centro. A pontualidade do fato é uma regra. Em torno de um ponto, tomado como centro (momentâneo) reina uma ordem próxima, que a prática produz e a análise compreende - a isotopia (cidade). Ao mesmo tempo o fenômeno urbano é colossal. A ordem próxima, ao englobar uma ordem distante, agrupa as pontualidades distintas, reunindo-as nas suas diferenças – heterotopias. Isotopia e heterotopia se afrontam e desta nasce uma centralidade diferente, que se impõe e depois será reabsorvida no tecido espaço-temporal. Descobre-se assim como forma o movimento do pontual e do colossal, do lugar e do não-lugar, da ordem urbana e da desordem urbana.

O fenômeno urbano contém uma práxis, porque ele produz não à maneira da agricultura e da indústria, mas como ato que reúne e distribui, ele cria, e manifesta-se como movimento. A centralidade e a contradição dialética que ela implica excluem o fechamento, isto é, a imobilidade.

O urbano como forma e realidade nada tem de harmonioso. Ele se apresenta como lugar dos enfrentamentos e confrontações, unidade das contradições. O urbano poderia ser então definido como lugar da expressão dos conflitos e lugar do desejo (lugar onde se concentra o desejo das necessidades). A sociedade industrial também nada tinha de harmoniosa. Ela era na verdade contraditória e conflituosa. A racionalidade coerente que separava e dissociava tudo o que tocava, ainda é tomada por ideólogos, em especial os do urbano, como princípio de uma organização superior.

Dessa forma, Lefèbvre formula algumas leis do urbano, que são, antes de tudo, leis e preceitos negativos. O rompimento de barreiras, o fim de todas as separações e a destruição dos obstáculos que acentuam a opacidade das relações e os contrastes entre transparência e opacidade são negatividades que implicam uma positividade, característica da sociedade urbana através da substituição do contrato pelo costume, da re-apropriação, pelo ser humano, de suas condições no tempo, no espaço e nos objetos e, politicamente numa perspectiva que “não pode ser concebida sem a autogestão estendida da produção e das empresas às unidades territoriais” (Lefébvre, 2002 p. 163).

Toda esta discussão acerca da cidade e do urbano na visão de Henri Lefèbvre nos dá margem para especular se os empreendimentos de economia solidária estariam no contexto da autogestão proclamada pelo Autor como característica da sociedade urbana ainda virtual. Tal pergunta se vincula ao caráter emancipatório salientado pelos defensores da Economia Solidária. A formação de redes de cooperação e a iniciativa de inúmeras empresas geridas por trabalhadores, juntamente com as novas formas de gestão democrática das cidades, seriam parte da Revolução Urbana necessária para a urbanização completa da sociedade?

Lefèbvre propõe um projeto, um caminho de construção do direito à cidade e alcance da sociedade urbana. Tal projeto não é um programa. Ele visa a produção de uma diferença diferente das que podem induzir-se nas relações de produção existentes. Tem como hipótese que é através do espaço (e do tempo), por meio de uma concepção de espaço, que se pode produzir esta diferença das diferenças. Lefèbvre defende que:

"Só um projeto global pode definir todos os direitos, os direitos dos indivíduos e dos grupos, determinando as condições do seu ingresso na prática. Entre estes direitos, recordemos: o direito à cidade (o direito a não ser afastado da sociedade e da civilização, num espaço produzido com vista a essa descriminação) – e o direito à diferença (o direito a não ser classificado à força em categorias determinadas por potencias homogeneizantes) [...]". (Lefébvre, 1973, p.38).

Diante destas considerações, nos colocamos como desafio especular se os empreendimentos de economia solidária estariam no contexto deste projeto global. Lefèbvre (1973, p. 39) nos alerta que “o projeto só pode resultar de um esforço coletivo, espontâneo e consciente, teórico e prático, para determinar a via”. Para o Autor, nesta elaboração já cooperaram os grupos parciais e diferenciais, sobretudo os que o poder central rejeita para as periferias mentais, sociais e espaciais.

Se as periferias são impotentes, se estão destinadas isoladamente às revoltas locais e pontuais, não deixam por isso de ter a possibilidade de transbordar os centros, a partir do momento em que estes são abalados. Se o projeto não se pode elaborar, ou se não possui nenhuma eficácia, é porque os fatos ditos sociais escapam ao pensamento e à ação, porque consistem apenas em acasos e necessidades igualmente cegos, em fluxos e refluxos. (LEFÈBVRE, 1973, p. 39).

São diante de tais termos que consideramos oportuno o debate acerca da possibilidade da Economia Solidária situar-se entre as ações e estratégias que consistem em tornar possível amanhã o impossível de hoje.

O crescimento do número de empreendimentos econômicos solidários no Brasil

O que entendemos por Economia Solidária consiste em uma forma, ainda não definida espacialmente, de produção, distribuição e consumo, de base associativista e cooperativista, voltada para a produção, comercialização e consumo de bens e serviços, de modo autogerido, tendo como finalidade a reprodução ampliada da vida. Esta forma de produção envolve a dimensão social, econômica, política, cultural e espacial e no discurso de seus defensores, as experiências de Economia Solidária se projetam no espaço onde estão inseridas com a perspectiva da construção de uma sociedade justa e democrática, reafirmando a emergência de atores sociais com a emancipação dos trabalhadores como sujeitos históricos.

Boaventura de Sousa Santos (2003) destaca que qualquer análise que procure sublinhar e avaliar o potencial emancipatório das propostas e experiências econômicas não capitalistas que se tem vindo a fazer por todo o mundo deve ter em conta que, face ao seu caráter anti-sistêmico, essas experiências e propostas são frágeis e incipientes. Em sua obra intitulada Produzir para Viver, Santos (2003) analisa as alternativas a partir do que ele designa por “hermenêutica das emergências”, ou seja, uma perspectiva que interpreta de uma maneira abrangente a forma como as organizações, movimentos e comunidades resistem à hegemonia do capitalismo e aderem às alternativas econômicas fundadas em princípios não capitalistas.

"Esta perspectiva amplia e desenvolve as características emancipatórias dessas alternativas para torná-las mais visíveis e credíveis. Isto não implica que a hermenêutica das emergências renuncie à análise rigorosa e à crítica das alternativas analisadas. Todavia, a análise e a crítica procuram fortalecer as alternativas e não propriamente diminuir seu potencial." (Santos, 2003, p. 04).

Para Gaiger (2003), a economia solidária mostra-se capaz de converter-se no elemento básico de uma nova racionalidade econômica, apta a sustentar os empreendimentos através de resultados materiais efetivos e de ganhos extra-econômicos, como demonstram algumas pesquisas empíricas, que apontam a cooperação na gestão e no trabalho ao invés de contrapor-se aos imperativos de eficiência, atua como vetor de racionalização do processo produtivo, com efeitos tangíveis e vantagens reais, comparativamente ao trabalho individual e à cooperação, entre os assalariados, induzida pela empresa capitalista.

Para o fortalecimento da Economia Solidária no Brasil o Ministério do Trabalho e Emprego criou a SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária) que, juntamente com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, está realizando o mapeamento dos empreendimentos solidários em todo o território nacional. Para isto foi implantado o SIES – Sistema de Informações de Economia Solidária, que se constitui em um instrumento para visibilidade da Economia Solidária e que tem como objetivo orientar e subsidiar os processos de formulação e execução de políticas para seu desenvolvimento.

O levantamento, iniciado em 2005, já identificou 21.859 mil empreendimentos econômicos solidários, superando a expectativa de que houvesse em torno de  20 mil em todo o país. Também se constatou que está havendo um crescimento da Economia Solidária na década de 1980, mas com o principal incremento a partir da década de 1990.

O Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, elaborado pelo Governo Federal através da SENAES/MTE visa à articulação de políticas públicas de geração de trabalho e renda ao combate à pobreza e a inclusão social. Aproveitando as bases e redes já existentes, de prefeituras municipais e governos estaduais, o programa busca através da Rede Nacional de Gestores Públicos de Políticas de Fomento à Economia Solidária, construir a integração destas políticas com vistas a sua consolidação.

Todas estas informações possibilitam conhecer a realidade e a partir dela debater teoricamente o momento atual. A análise da Economia Solidária no âmbito da Geografia possibilita o entendimento da produção de novos espaços econômicos suscitados pela necessidade de novas formas de reprodução do trabalho e da vida e que atualmente são objetos de políticas públicas de diferentes instâncias do governo.

Os dados aqui apresentados descrevem a Economia Solidária no Brasil através de números e informações disponibilizadas pelo Sistema Nacional de Informações sobre Economia Solidária (SIES) e pelo Atlas da Economia Solidária no Brasil, elaborados pela Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego através de um levantamento realizado em 2.274 municípios (correspondente a 41 per cento dos municípios brasileiros). O objetivo desta descrição é o de tomar conhecimento da realidade concreta afim de que se possam investigar suas origens e motivações e mais além, detectar as virtualidades da Economia Solidária enquanto forma de realização da emancipação do trabalho em relação ao capital.

Experiências cooperativistas e associativistas de regiões como a Terceira Itália tem sido debatidas no Brasil pelo Governo Federal através de um Acordo de Cooperação entre o dois países que visa implementar e aperfeiçoar políticas públicas voltadas à Economia Solidária no Brasil. Também merece destaque o complexo cooperativo de Mondragón localizado no país Basco (Espanha) e tomado atualmente como um dos paradigmas do cooperativismo no mundo. Entretanto, estas são experiências que ultrapassam o caráter autogestionário. As experiências italiana e basca, como veremos mais detalhadamente adiante, se constituem em grandes complexos que unem em um mesmo espaço sistemas produtivos com utilização de alta tecnologia e especialização de seus trabalhadores.

Experiências observadas no Brasil, Índia, África do Sul, Moçambique, Colômbia, entre outros países ditos da periferia ou semi-periferia, mostram que são nestes lugares que podem estar presentes as práticas de transformação social mais inovadoras que não se detenham à idéia de progresso e desenvolvimento postas pela Europa e América do Norte, mas que vão além da acumulação material e buscam a emancipação social.

O Brasil passa no momento pelo apogeu do número de empreendimentos econômicos que primam pela gestão compartilhada. Dados apresentados no Atlas da Economia Solidária no Brasil (2005) mostram que até a década de 1970 o aumento do número de empreendimentos econômicos solidários era baixo. Em meados desta mesma década ocorre uma crise internacional motivada pelo embargo do petróleo aos EUA e países da Europa em retaliação de países árabes ao apoio dado à Israel. Esta crise do petróleo desestabilizou a economia mundial e causou uma recessão que extrapolou as fronteiras e atingiu todo o mundo, inclusive o Brasil. Era o fim dos Trinta Gloriosos nos países de economia avançada e que acabou por extinguir a sua política do Estado de bem-estar social. Conseqüentemente os resultados atingiram os países pobres, e o Brasil especialmente sente os efeitos com o crescimento do desemprego que só tende a se intensificar na década de 1980, chamada de a “década perdida”, e na década de 1990 quando as políticas de livre mercado produzem um regime de concorrência onde o corte de custos atinge principalmente os trabalhadores que perderam seus empregos pela automatização da indústria e dos serviços. Outro dado a ser considerado é que se até a década de 1990 o tipo de empreendimento de economia solidária em maior número era representado pelas associações, a partir de então ganham destaque os grupos informais. Há uma redução da expansão das associações e uma relativa estabilidade na expansão de novas cooperativas.

Dentre as regiões brasileiras cabe um destaque ao nordeste que apresenta um significativo crescimento dentre as demais regiões no número de empreendimentos solidários a partir da década de 1990. Sozinho, o nordeste apresenta no ano de 2007 quase 10.000 empreendimentos econômicos solidários, ou seja, nesta região se concentra 44 per cento dos 21.859 empreendimentos levantados pelo Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária – SIES, 2007. As demais regiões isoladamente apresentam em torno de 2.200 a 3.900 empreendimentos desta natureza e com um padrão de crescimento positivo, mas não tão acentuado quanto a região nordestina.

Mas observando-se detidamente os estados federativos observaremos que a tradição cooperativista do Rio Grande do Sul persiste com a presença de 2085 EES, representando 9,53 per cento do total nacional. Sozinho o Rio Grande do Sul é responsável por 58 per cento dos empreendimentos econômicos solidários presentes na região sul e lhe atribuindo o terceiro lugar entre as regiões com maior número de EES.

A região sudeste vem agregando empreendimentos a sua somatória total. Podemos observar isto no acompanhamento da divulgação dos dados pelo SIES. Em 2005 esta região possuía 14 per cento dos empreendimentos, ficando abaixo da região sul, então com 17 per cento dos EES. Este incremento se deu principalmente por conta dos estados de Minas Gerais que passou de 521 EES (2005) para 1236 EES (2007) com um aumento relativo de 137 per cento e Rio de Janeiro que passou de 723 EES (2005) para 1343 EES (2007) com um aumento relativo de 85 per cento. Já o estado de São Paulo subiu de 641 EES (2005) para 813 EES (2007), significando um aumento relativo de 26 per cento. Por fim, o estado do Espirito Santo subiu de 259 EES (2005) para 520 ESS (2007), cujo aumento relativo foi de 100,27 per cento. O menor crescimento constatado no levantamento entre 2005 e de 2007 foi no estado de São Paulo. Vale ressaltar que os dados referentes a este período não significam apenas a criação de novos EES, mas o levantamento daqueles que ainda não haviam sido identificados no período anterior.

No Brasil, a maior parte dos empreendimentos está organizada sob a forma de associações, seguida por grupos informais, cooperativas e outras formas de organização. Cada região apresenta uma distribuição diferenciada. As regiões norte, nordeste e centro-oeste acompanham o perfil nacional. Já as regiões sul e sudeste apresentam uma participação diferenciada como se observará nos gráficos.

A análise dos dados faz surgir a questão da presença maior de grupos informais nas regiões sul e sudeste do Brasil. Os grupos informais são aqueles que ainda não possuem registro legal por estarem no início de suas atividades ou devido às dificuldades para adequação às normas jurídicas. Podemos apontar algumas causas através das razões para a criação dos empreendimentos econômicos solidários no contexto brasileiro. Os 3 principais motivos para a criação dos EES são: alternativa ao desemprego (21 per cento), complemento de renda dos sócios (20 per cento) e obtenção de maiores ganhos (17 per cento). Na análise regional destacamos que o motivo “alternativa ao desemprego” é o mais citado nas regiões sudeste (58 per cento) e nordeste (47 per cento). Já na região sul aparece como os motivos mais citados “obtenção de maiores ganhos” (48 per cento) e “fonte complementar de renda” (45 per cento). Nas regiões norte e centro-oeste o principal motivo citado é o de complementação de renda, com 46 per cento e 53 per cento respectivamente.

Metade dos empreendimentos econômicos solidários no Brasil atua exclusivamente na área rural, 33 per cento atuam exclusivamente na área urbana e 17 per cento tem atuação tanto na área rural como na área urbana. Fora de contexto se destaca a região Sudeste com 60 per cento dos EES atuando na área urbana. As regiões Sudeste e Sul têm predominância de EES na área urbana, diferentemente do padrão nacional. Mas as proporções entre as atuações na área rural, urbana e mista são melhores distribuídas na região Sul do que na região Sudeste, cujo grande peso são os empreendimentos econômicos solidários urbanos.

Na comparação entre as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, que acompanham o padrão nacional de predominância de empreendimentos econômicos solidários rurais, também podemos observar diferenças. Embora a região Centro-Oeste tenha em números relativos a maior presença de EES rurais, ela possui uma porcentagem de empreendimentos urbanos e mistos superior, ainda que discretamente, ao padrão nacional. A região Norte já é marcantemente caracterizada pela atuação maior dos EES na área rural, mas o grande destaque é a região Nordeste com 63 per cento de ESS rurais.

Podemos afirmar que, se de fato existem espaços econômicos solidários no Brasil, eles são predominantemente urbanos na região Sudeste e rurais na região Nordeste. Cabe, então, investigar as causas destas características tão marcantes e tão distintas ao mesmo tempo em um mesmo território nacional.

Políticas públicas nas diferentes instâncias

O enfrentamento da precarização do trabalho  e das dificuldades de acesso ao emprego tem motivado a formulação de políticas públicas voltadas para a geração de trabalho através de programas que incluem formas autogestionárias de empreendedorismo. Municípios, estados e governo federal têm implantado sistemas de capacitação, apoio e fomento a grupos de trabalhadores que buscam coletivamente se inserir no mercado de trabalho através de produção, comercialização e prestação de serviços. São inúmeras as atividades desenvolvidas por empreendimentos solidários, como vimos anteriormente. Mas o que se tem observado é que estes trabalhadores necessitam primordialmente de apoio do Estado para que possam iniciar e manter os empreendimentos.

São muitos os casos em que a iniciativa de formação de cooperativas e associações parte das políticas de governo e não dos trabalhadores. As condições de pobreza e os poucos anos de estudo formal da grande massa de desempregados leva estas pessoas a desempenhar atividades informais ou temporárias para a sua reprodução cotidiana. As dificuldades do acesso ao emprego pleno com seguridade social tornam a vida destes trabalhadores uma busca incessante pela sobrevivência dia a dia, sem possibilidades de planejar o futuro, de pensar ao longo prazo e sem a visão da coletividade. Evidentemente que toda regra tem a sua exceção. Existem exemplos em que os próprios trabalhadores assumem “as rédeas” de empresas em processo de falência ou entendem que a atividade realizada de forma coletiva oferece maiores possibilidades de manutenção do trabalho e de reprodução. Mas o Estado, que antes era apenas responsável pela regulamentação e fiscalização das questões trabalhistas exercendo também o papel de facilitador na geração de trabalho e renda ao exercer a função de intermediador de mão-de-obra, de qualificação e requalificação profissional, orientação trabalhista e atendimento ao trabalhador pelo Sistema Público de Emprego, passou a buscar novas respostas no âmbito da Economia Solidária.

A iniciativa de formulação e aplicação de políticas públicas para o empreendedorismo autogestionário tem suas raízes nas administrações municipais. É na escala dos municípios que os efeitos do desemprego e da precarização do trabalho são sentidos com maior intensidade. No município e, mais propriamente na cidade, estão materializadas as desigualdades sociais através da fragmentação do espaço e da diferenciação dos lugares. Na medida em que a reprodução social é dificultada pela falta de emprego o espaço social reproduz a dificuldade de acesso à moradia, aos serviços de saúde, educação e segurança. Em uma análise crítica o direito à cidade, muito mais amplo que o acesso a moradia e serviços públicos, é negado quando o homem tem restringida a sua possibilidade de se reproduzir.

Governos municipais, em geral de tendência progressista[5], têm formulado sistemáticas de formação e apoio a grupos de trabalhadores especializados em diversas atividades. Este processo envolve a identificação dos diversos agentes e dos diferentes interesses que permeiam o debate da geração de trabalho e renda na agenda pública e, em seguida, a sua regulamentação como política pública.  A mobilização de grupos representantes da sociedade civil e do Estado no sentido de regulamentar os direitos sociais devem expressar os interesses e as necessidades de todos os envolvidos.

A descentralização das políticas públicas sociais é produto dos movimentos sociais, que na década de 1980, lutaram pelo fim do regime autoritário e pela redemocratização da sociedade e foi tida como sinônimo de democratização. A luta pela democracia política através da participação popular nas decisões do Estado está no mesmo plano da luta pela democracia econômica, passando pelo reconhecimento da força do mercado informal para a sobrevivência de milhões de pessoas, pela necessidade da inversão da concentração da renda e pelo apoio às mais diversas manifestações da economia popular.

É necessário que se ratifiquem programas de economia solidária tanto nos municípios quanto nos estados. Experiências estudadas mostram que os projetos realizados por governos municipais e não regulamentados por lei acabam ou se transformam a ponto de perder suas características originais com a mudança das gestões. As políticas públicas devem ser constituídas de programas regulares e sistematizados, com base legal e institucional. Embora saibamos que mesmo legalmente constituídas muitas políticas públicas não são postas em prática

O território, enquanto expressão geográfica da regulação política, nos permite apreender a divisão do trabalho estabelecida através do Estado. São as ações do Estado quem produzem a hierarquia dos lugares contidos no seu território através da implantação de infra-estruturas que definem as suas capacidades técnica e humana de desenvolvimento. O Brasil possui uma divisão territorial do trabalho reconhecida pela desigualdade de oportunidades entre as suas grandes regiões. Se a região sudeste é reconhecida pela concentração industrial e financeira, a região nordeste tem como característica mais aparente uma agricultura pouco mecanizada e dependente das condições naturais.

Para Kapron (2002 p. 51) cabe às prefeituras e aos governos regionais e nacionais ter uma atitude propositiva quanto à articulação de uma política para a economia solidária, porque ela vai muito além das políticas compensatórias. Deve-se ultrapassar a idéia  de atendimento aos “excluídos do mercado” porque a política para  a economia solidária deve ser constituída ativamente como indutora de desenvolvimento.

"(...) a política pública pode colocar o Estado como indutor da constituição de serviços que permitam a capacitação, a qualificação, a informação, a formação, a educação dos trabalhadores e da sociedade, a pesquisa e a inovação." (Kapron, 2002 p. 51).

Um desenvolvimento desconcentrador e não centrado no capital, constituindo uma nova territorialidade da divisão do trabalho, onde o Estado promova  infra-estrutura e  tecnologias não apenas para o atendimento das necessidades do capital internacional, mas para os ganhos na escala da produção local e solidária deve inverter a lógica da apropriação privada  do conhecimento produzido nas universidades públicas. A tecnologia, tão importante para a realização da economia, não deve somente servir de forma privada para a reprodução do capital, mas ser concebida como bem público, voltada para o conjunto da população e inclusive para a produção solidária.

Uma análise para além do que existe: Os exemplos da periferia e semi-periferia

O desenvolvimento do cooperativismo é estreitamente ligado ao desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista. Observa-se ainda que são nos períodos de crise que o número de empreendimentos mais crescem. Mas como analisar a economia solidária em países que nunca tiveram períodos de prosperidade econômica e sempre conviveram com a pobreza de grande parte de sua população.

A história do cooperativismo é mais longa que a da economia solidária. Os trabalhadores da Revolução Industrial, ainda no século XIX e já sofrendo as conseqüências da destituição de seus bens de produção para empregar  apenas a sua mão-de-obra nas fábricas, iniciam o que se pode chamar de embrião do cooperativismo em Rochdale, Inglaterra. A economia solidária, que comporta o cooperativismo, assim como o associativismo e outras formas de trabalho coletivo que primam pela autogestão, é um conceito criado na década de 1990 que tem em seu bojo a discussão das desigualdades sociais suscitadas pelo crescimento econômico que não proporcionou bem-estar a todos. Talvez, o que diferencie a economia solidária insurgente entre o fim do século XX e o presente momento do cooperativismo de cem anos antes seja que as condições sociais pouco avançaram e em alguns casos até regrediram fazendo com que o trabalhador dependa muito mais da intervenção do Estado e de outras instituições para enxergar que o caminho a ser tomado deve considerar outras formas de trabalho que não se restrinjam a relação patrão-empregado.

Nos países onde a carência social é produto de uma super-exploração da época em que ainda eram colônias e simplesmente foram deixados a própria sorte com os processos de independência, o desenvolvimento do padrão capitalista não atinge toda a população. Mas apenas aqueles que exercem algum tipo de dominação interna e que podem pagar pelos avanços técnicos importados.

São nos países ditos da periferia ou semi-periferia que vive hoje 90 per cento da população pobre do planeta. No leste da Ásia e no Pacífico concentram-se um terço da população pobre mundial. Na América Latina e no Caribe um quarto da população vive abaixo da linha de pobreza, ou seja, com menos de US$ 1,00 ao dia. Na África Sub-saariana o número de pobres chegou a 291 milhões até 2004. Estes dados do PNUD (2004) afirmam ainda que onde houve crescimento econômico o padrão de vida não foi melhorado.

Destes países tem emergido experiências de economia solidária que se diferenciam do que relatamos na Europa. São cooperativas de catadores de lixo na Colômbia e na Índia, cooperativas agropecuárias em Moçambique, cooperativas do movimento sem-terra no Brasil, entre outras experiências que aos poucos são divulgadas com um caráter alternativo ao capitalismo. Disto também surge o debate sobre o desenvolvimento alternativo que deverá ser melhor apresentado nas próximas etapas de trabalho.

O que queremos colocar em questão neste momento é o caráter diferenciado que as experiências de economia solidária têm assumido em diversas realidades. Na Europa o cooperativismo é alicerçado na alta tecnologia e especialização de  seus trabalhadores que buscam maior competitividade no mercado mundial. Nos países “em desenvolvimento” ou pobres, a economia solidária surge de uma necessidade ainda mais premente, a de poder sobreviver e se reproduzir. São destes países que surge a hipótese de uma nova forma de se relacionar baseada no solidarismo. Para as pessoas que nunca tiveram nada, e, portanto, nada tem a perder, a construção de uma saída econômica centrada na autogestão também pode fornecer as bases para a emancipação em outras esferas. Seria nestes lugares que a essência da economia solidária, articulando a dimensão econômica, social e política em uma ação coletiva possibilitarão as transformações sociais mais amplas? Seriam estes os lugares da realização da utopia da emancipação?

Notas

[1] Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Orientanda da Prof. Dra. Silvana Maria Pintaudi

[2] Presente na obra A Revolução Urbana,  2002.

[3] K. Marx. Introdução [à crítica da economia política] In: Manuscritos Econômicos Filosóficos e Outros Textos Escolhidos. Os Pensadores. V. XXXV. São Paulo: Abril Cultural. 1974.

[4] LEFÈBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução de Sérgio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p. 15.

[5] Denominamos de progressistas as lideranças políticas “mais radicais em defesa do social”. Ainda cabe uma melhor conceituação visto que no discurso partidário vigente a defesa do social independe da sigla ou ideologia fundante do partido.


Bibliografia

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HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

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SANTOS, B. de S.(Org). Produzir para viver. Os caminhos da produção não-capitalista. Porto: Afrontamento, 2003.

 

Referência bibliográfica

GODOY, Tatiane Marina Pinto de. A Economia Solidária na cidade capitalista: conflitos e contradições da reprodução do espaço urbano. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/181.htm>


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