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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

O papel do patrimônio nas políticas de revalorização do espaço urbano

Glória da Anunciação Alves
Universidade de São Paulo
gaalves@usp.br

O papel do patrimônio nas políticas de revalorização do espaço urbano (Resumo)

A cidade de São Paulo, assim como outras no mundo como Lisboa, Barcelona e Buenos Aires, vem passando por um processo de requalificação de determinadas áreas, em especial, das localizadas nos chamados centros históricos e/ou tradicionais. No caso paulista, algumas ações pontuais foram feitas na área central, com investimentos na recuperação/requalificação de espaços que concentravam os chamados patrimônios históricos- urbanístico-culturais, como foi o caso da Praça da Sé e da Catedral ali existente, bem como os projetos de revalorização/recuperação de outras Praças como a da República e de outras áreas como a da anteriormente denominada Cracolândia e hoje chamada de Nova Luz, além de propostas de revisão de áreas já modificadas como a do Vale do Anhangabaú. Em todas as propostas de modificações, primeiramente ressalta-se a característica de “degradação”, sujeira, presença de populações (como transeuntes, trabalhadores ambulantes ou como moradores) de baixo poder aquisitivo que, em geral, carregam o estigma de “suspeitos”, ressaltando o caráter de periculosidade e insegurança. Esse reconhecimento, tornado consensual, faz com que tanto poder público como iniciativa privada promovam a revalorização da área sob o argumento da necessidade de valorização do patrimônio existente, ainda que, como será discutido, parte desse patrimônio seja destruído nesse processo sob a alegação de que, ao final do mesmo, haveria a possibilidade de uma revalorização/requalificação sócio-cultural-econômica na região. É isso que procuraremos discutir neste trabalho.

Palavras-chave: Patrimônio, revalorização, destruição, espaço urbano

The role of heritage in the policy of revaluing urban space (Abstract)

Certain areas of the city of São Paulo, as many others around the world, including in Lisbon, Barcelona and Buenos Aires, have been going through a process of requalification, in special the ones commonly known as old and/or traditional city. Regarding São Paulo, some exceptional actions have been taken downtown with investments in rehabilitation/requalification of areas that concentrated the historical, urbanistic and cultural heritages, such as Praça da Sé and its cathedral, as well as the revaluation/rehabilitation projects of other squares like Praça da República, other areas as the previously called Cracolândia (due to high consumption/deal of crack), known today as Nova Luz, besides propositions to reevaluate areas already modified, such as Vale do Anhangabaú.. In all propositions to modify sites, it is firstly underlined its deterioration, litter and the presence of low-income populations (passer-bys, street vendors or residents), generally stigmatized as “potential suspects”, emphasizing danger and lack of security in those places. This belief, which has become consensual, results in that public as well as private companies promote the rehabilitation of the areas basing their reasoning in the necessity of adding value to the existing urban heritage, although, as it will be discussed in this paper, part of this heritage might be destroyed in this very process, under the allegation that upon completion, the action would allow the social, cultural and economical revaluation/requalification of the area . This paper is intended to provide a contribution to this discussion.

Keywords: Urban heritage, rehabilitation, destruction, urban space

Podemos dizer que hoje os estudos sobre as cidades possibilitam compreender as dinâmicas globais do processo de reprodução capitalista, ainda que as particularidades dos lugares existam e correspondam a um processo de construção sócio-espacial que é ao mesmo tempo  marcado pelas influências globais que, por sua vez nos locais específicos, também influenciam os processos de produção espacial.

Enquanto tendência geral, alguns espaços das grandes cidades vêm passando por processos semelhantes de valorização/desvalorização sócio-econômica: nos referimos aos centros históricos das grandes cidades.

Os centros históricos das cidades, principalmente das latino-americanas e em especial das cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, entre outras, até os anos 50 do século XX possuíam a característica de terem uma centralidade única: seu centro era denominado por seus habitantes como sendo a cidade.

Mas qual a característica desse espaço central, denominado pela população como cidade e pelos geógrafos brasileiros a partir dos anos 50[1] como centro? Por que, ao longo do século XX há o que muitos denominam por  decadência e abandono dos centros históricos ? Por que da tentativa de requalificação desses espaços? Quais os elementos mais destacados na maior parte dos processos de revalorização das áreas centrais? Qual o papel do patrimônio histórico nesse processo? Quais as contradições do mesmo? É o que tentaremos discutir neste artigo.

O centro urbano

No Brasil até anos 50 do século XX, o centro era o lugar que possuía centralidade urbana, isto é,  podia, na visão de Lefebvre “sempre reunir mais objetos e atos e situações e novos objetos, novos atos, novas situações”[2]. As ruas e os espaços públicos, em geral e em especial das áreas centrais,  permitem o uso sem exigir a permanência, ou a identificação e a exposição do indivíduo ou grupo. Ainda que não exijam a permanência, dialeticamente, servem de espaços de referência de duração, de história. Ao longo do tempo permitiu uma construção simbólica por parte dos habitantes. Esses centros concentravam serviços, comércios, equipamentos públicos de saúde, lazer, cultura, da administração pública da cidade, de finanças, dos serviços jurídicos, além de serem o lugar para onde os fluxos de transporte público se direcionavam e de onde se dispersavam também.  Assim, o centro tudo concentrava e, em especial na cidade de São Paulo  que a partir dos anos 70 cresce com imensas periferias, era a referência para a vida dos habitantes da cidade, tanto daqueles que viviam no centro, quanto dos que vivam com muitas carências nas periferias e que nessa área da cidade conseguiam resolver parte das necessidades impostas pelo cotidiano.

Muitas vezes da ida ao centro tornava-se um programa que alterava o cotidiano de carências de todos os tipos: a beleza, a monumentalidade, a concentração de atividades e serviços eram algumas das características dessa área central e que correspondia ao que os moradores das periferias identificavam por cidade, que se contrapunha aos outros lugares do município.

Deste modo o que hoje chamamos de “centro histórico” da cidade é povoado das mais diversas formas e atividades, que, no conjunto, formam a representação do que se chama de cidade.  Desta maneira, o centro surge como a expressão maior de cidade. É o local em que as relações se renovam constantemente, permitindo, ao mesmo tempo, a existência  pela duração da ação, pela mudança mais lenta de suas formas, e da instabilidade, pela multiplicidade de atividades, pessoas, permissões, proibições e transgressões que se realizam na pluralidade das relações existentes.

Esse lugar central integra e dispersa. Para ele convergem, até mesmo graças ao sistema de circulação que aí tem seu ponto nodal, pessoas, mercadorias, veículos, informações. É o lugar que reúne, integrando os fluxos vindos das mais diversas áreas da própria cidade, e até mesmo de outros mercados regionais e internacionais. Se, no passado, nesses fluxos, predominavam a circulação de bens materiais, hoje se dispõe da circulação de informações e de capitais através de impulsos, sem que, necessariamente, a mercadoria materializada, enquanto um produto com presença física, precise circular na cidade. De um ponto a outro, os capitais são transferidos entre instituições sem que , muitas vezes, haja uma produção material de algum bem. O centro ainda tem, hoje, esse papel de integrar pontos de produção de capital, de informações.

Ao mesmo tempo em que é ponto de convergência, também é de onde se dispersam os mesmos fluxos de  capitais, informações, bens materiais e pessoas. O que se produz e é divulgado nesse centro, a vida urbana que se gesta, reproduz-se por outros pontos, às vezes integralmente, outras em parte, gerando em outras localidades, modelos de vida semelhantes, mas que ainda mantêm uma determinada particularidade. O centro, desta forma, só existe como centro na relação com outros lugares, já que se coloca como ponto de onde se integram e se dispersam atividades.

A desvalorização do centro

Se, no caso paulista, esse centro era único até os 50, a partir dos 60  ele perde essa característica. Além dos sub-centros[3]existentes na cidade como Pinheiros, Santo Amaro, Penha, entre outros, temos também o que Cordeiro[4] chamaria de desdobramento da área central, que seria caracterizado por áreas muitas vezes não contínuas ao centro ou sub-centros existentes, concentrando atividades outrora só encontradas no centro tradicional, mas de modo mais especializado e menos diversificado.

Esse processo que levaria à constituição de uma policentralidade na cidade, faz com que algumas atividades produtivas (como determinadas lojas comerciais e de serviços),  bem como determinadas camadas sociais (em geral as mais abastadas) passem a, respectivamente, se instalar e freqüentar novas centralidades da cidade, ainda que mais seletivas (em sentido lato) a ponto de nos questionarmos se poderíamos chamar a essas novas áreas de centro, no sentido que Lefebvre propõe, isto é, para além do econômico.

A proliferação de centralidades, principalmente econômicas e/ou produtivas, faz parte do processo de expansão da centralidade mas que, dialeticamente, promove a desvalorização dos centros tradicionais e ou históricos. Trata-se do fenômeno da dispersão dos centros que serve ao fortalecimento do processo de centralização e que implica uma valorização/desvalorização dos núcleos centrais em razão de uma funcionalidade definida por uma racionalidade econômica e pelo crescimento da população e da mancha urbana. A valorização de determinados locais é possível graças à desvalorização, mesmo que momentânea, de outras áreas centrais. Nessa lógica, empresas passam a se deslocar para os novos centros em razão das vantagens que lhes apresentam as incorporadoras : acesso fácil às vias de trânsito rápido, o que descomplica o escoamento da produção e a chegada de clientes; prédios com garagens permitindo o estacionamento de funcionários, clientes e representantes, que, no centro tradicional, sofrem restrições; edifícios modernos, capazes de incorporar as tecnologias de comunicações que alguns prédios do centro antigo só poderiam fazê-lo se sofressem mudanças estruturais, além da possibilidade da criação de heliportos no alto dos prédios, facilitando ainda mais o acesso à região e permitindo escapar dos congestionamentos existentes na cidade paulista marcada pelo transporte individual .

Deste modo, o deslocamento para essas áreas, que despontam como novas centralidades funcionais, faz com que o centro histórico perca parte de sua produção econômica, modificando os tipos de lojas  e produtos existentes bem como o tipo de população que passa a usufruir os espaços centrais. Continua existindo uma mescla sócio-econômica da população , entretanto aumenta o número de pessoas com menor poder aquisitivo circulando, trabalhando e vivendo nas regiões centrais. Esse fato aliado a pouca conservação dos prédios , muitos deles abandonados ou tendo mudado de função, fez com que se criasse um consenso de que os centros históricos, e em especial o de São Paulo, estaria degradado, abandonado e, portanto, desvalorizado econômica e socialmente .

Os investimentos tanto públicos como privados passam a se concentrar nas novas áreas de centralidade econômica da cidade, enquanto que as tradicionais áreas centrais parecem fadadas ao abandono. Ao menos é isso que no senso comum se difunde, e assim o centro de lugar de encontro e possibilidades passa a ser o lugar da violência, no medo, do perigo.

Mas há muito investimento patrimonial no centro histórico e há limites para a desvalorização do espaço. Deste modo, e para que cesse a desvalorização e se institua um processo e revalorização, poderes locais aliados muitas vezes a capitais financeiros nacional e internacionais criam estratégias de revalorização da área central, tendo como “inspiração” processos de requalificação de áreas centrais postos em marcha em várias cidades do mundo. Assim muitas das tentativas de revalorização das áreas centrais possuem um toque déjà vu.

A requalificação dos centros e o papel do patrimônio

A revalorização do centro tradicional de São Paulo tende a passar por processos semelhantes aos que ocorreram na requalificação dos centros das cidades de Boston (EUA), do bairro do Bronx em Nova Iorque (EUA), de Dublin (Irlanda), de Barcelona (Espanha) onde áreas centrais passaram por um processo em que as iniciativas privadas, em associação com a municipalidade, formaram parcerias tendo como carro chefe do processo a revalorização do patrimônio já edificado por meio de estratégias que envolvem as renovações culturais, dirigidas e aliadas ao desenvolvimento econômico e urbanístico. Aproveitando-se do patrimônio arquitetônico, este é recuperado esteticamente e, muitas vezes, a ele se conjugam novas funções, diferentes das de origem, de forma a contribuírem para o novo momento de crescimento econômico. Foi o que aconteceu com o Pelourinho[5] (em Salvador, Bahia), onde lojas de comércio e empresas passam a ocupar as casas, que, recuperadas, fazem parte do processo que reafirma a localidade enquanto área de atração turística, com um discurso de geração de empregos e capital para a cidade. Com a revalorização econômica, a área passa a atrair novos investimentos, sendo que o valor do metro quadrado na área se eleva, e muitos dos antigos moradores se mudam do local e uma nova forma social  aí se estabelece. O que se institui é o moderno, que utiliza a forma arquitetônica antiga que se valoriza enquanto objeto de consumo cultural,  mas descarta o antigo modo de viver, introduzindo novos agentes no lugar, empresários e comerciantes que fazem o local ser produtivo e integrado com a economia.

No caso paulista é em seu centro que se concentra boa parte dos bens tornados patrimônio histórico da cidade: são prédios, praças, logradouros que fazem parte  da história  e resgatam o processo do desenvolvimento da cidade, que, desde o início do século vinte, já apontava São Paulo como uma cidade moderna no país. Mesmo que  muitos dos habitantes da cidade desconheçam a história desses bens, eles são marcos do centro, referenciais para as pessoas que por eles passam e a eles conferem novas histórias, e até mesmo novos nomes. Nos anos 80, muitos dos que usavam os ônibus no Vale do Anhangabaú (ainda não remodelado[6]) chamavam a Praça Ramos de Azevedo de “praça dos gatos”, uma referência à quantidade desses animais que ocupavam os jardins do local. Lugares como a Praça Ramos, o Viaduto do Chá, a Praça do Patriarca, o Largo do São Francisco, a Praça da Sé e mesmo o Vale do Anhangabaú são referenciais da população que para eles deslocavam-se como forma de acesso ao transporte público que ligava o centro ao restante da Metrópole. Edifícios como o Martinelli, o Prédio do Banespa, Teatro Municipal, Catedral da Sé e todo o conjunto arquitetônico existente, principalmente no núcleo, traduziam a monumentalidade  e o poder do centro paulista.

Mas nem sempre a indicação de um imóvel como parte do patrimônio histórico da cidade foi visto com bons olhos por parte, principalmente, da iniciativa privada e, em especial, pelos proprietários dos imóveis. Um caso notável na cidade de São Paulo no final dos anos 80 foi à polêmica sobre o tombamento da mansão dos Matarazzo[7], na avenida Paulista. Na época, durante a administração municipal de Luiza Erundina (Partido dos Trabalhadores, gestão 1989-1992), foi requerido o tombamento da Mansão, que, segundo a administração, transformaria o lugar no museu do trabalhador. O que poderia ter significado o reconhecimento e distinção tornou-se motivo de disputa judicial já que a família Matarazzo tinha a intenção de vender o terreno, de grande valor[8] no mercado imobiliário. O processo de tombamento se arrastou e em 1996, após uma tentativa frustrada de demolição na calada da noite, mas que causou abalos na estrutura, a Mansão veio abaixo e tornou-se um estacionamento.

A conversão de um imóvel em patrimônio histórico durante muito tempo foi vista como um problema por seus proprietários. Em muitos desses tombamentos os edifícios ou propriedades só poderiam manter o uso original, não podendo ter outras funções ou finalidades, o que, dentro de uma dinâmica de transformação do espaço urbano, parecia congelar possíveis ações transformadoras, no sentido de fomentar investimentos e novos negócios.

Diante desse tipo de resistência,  quando das propostas para requalificação da área central de São Paulo, as Operações Urbanas e Operações interligadas voltadas à área central, possibilitaram a reconstrução ou reforma de alguns edifícios de modo a capacitá-los para novos usos, fato que era dificultado pela legislação anterior, que na tentativa de preservar o patrimônio histórico, impossibilitava o uso desses edifícios para outras finalidades que não as de origem.

Mesmo mudando de funções, a partir da restauração arquitetônica, abre-se a possibilidade de refazer a memória da metrópole, não como uma história do centro dada e acabada, reduzida a fatos e datas, mas, como marcas de momentos históricos de uma coletividade, que ligada ou em confronto com o poder político, cria “monumentos” na cidade que podem servir à reflexão do mundo.

Entretanto, essa possibilidade vê-se cada vez mais distante quando em nome da preservação ou manutenção do patrimônio existente , muitos edifícios (já com a aprovação de alteração de uso, às vezes mantendo-se apenas a fachada, mas com alterações significativas no interior) e áreas do centro consideradas como um todo de interesse patrimonial histórico, quando transformadas tendem a afastar os usuários que aí viviam, trabalhavam ou transitavam. Em nome da “recuperação” de determinada área, grandes mudanças sócio-espaciais são realizadas e, em determinadas situações, coloca-se em suspenso até o que se considera por patrimônio, elegendo-se qual é mais patrimônio, qual deve ser preservado e qual por vir a baixo, não mais apenas por iniciativas de proprietários que, descontentes, sabotam fisicamente os edifícios de modo a inviabilizar processos de tombamento, mas também por parte da administração pública.

O que isso revela? Como nos mostra Otilia Arantes[9], que a cultura se tornou elemento fundamental nas estratégias de gestão das cidades: o tripé cidade, empresa, cultura vem transformando os espaços urbanos e, em especial os dos centros históricos e ou tradicionais das cidades.

Ainda que hoje isso apareça com maior clareza, esse processo, ao menos no caso paulista, vem ocorrendo desde os anos 80. Na requalificação do Vale do Anhangabaú, as obras garantiram a continuidade de fluidez do trânsito, este agora  utilizando  vias expressas subterrâneas, abaixo da praça transformada , segundo os discursos oficiais, em espaços de lazer para a população, ainda que pelas pesquisas realizadas tenha se tornado um lugar de passagem que só em eventos especiais possibilitam o ficar na Praça, ficar este cada vez mais restrito por meio de proibições que atendem interesses da iniciativa privada[10]. Hoje essa transformação espacial já está sendo revista e já se cogita transformar novamente a Praça de modo que dê mais possibilidades do uso do automóvel para acesso a ruas da região. Novamente se pensa em mudanças espaciais tendo como referência ações executadas em outras cidades do mundo, no caso tomando a rambla do centro histórico de Barcelona como exemplo.

Se o Vale do Anhangabaú, que realmente era um referencial simbólico para a população juntamente com a Praça Ramos, foi transformado para que sirva como um belo cartão postal da cidade e ao mesmo tempo afaste a população que aí circula ou se aglomera quando de grandes eventos, podendo representar simbolicamente “perigo” para turistas  e camadas da população com maior poder aquisitivo, o mesmo vem ocorrendo com outros espaços da área central.

Na requalificação da Praça da Sé e da Praça da República, privilegiou-se as mudanças nas Praças de modo a dar mais visibilidade, e com isso de acordo com os projetos, mais segurança aos transeuntes, já que as mudanças impediriam que pessoas sem moradia, como os mendigos por exemplo, dormissem como o faziam antes das transformações, nos bancos (sobre ou sob eles), nos vãos e degraus dos jardins. Até mesmo a estética dos bancos foi modificada: os bancos das praças, apelidados de bancos antimendigos, possuem divisórias que impedem que alguém possa se deitar sobre  nele ou abaixo dele, bem como outros tipos de contatos corporais como abraços, impedindo até mesmo o namoro no espaço público.

Mas talvez a situação mais emblemática possa ser a que vem ocorrendo na área denominada atualmente pelo poder público como Nova Luz.

A região da Luz, que faz parte da área central da cidade, teve um grande projeto de transformação sócio-espacial durante os anos 90, quando por iniciativa do governo do Estado e com financiamento do BIRD e Banco Mundial, a antiga estação Julio Prestes foi desativada e transformada na Sala São Paulo, tida como o melhor local em termos de acústica, e que acolhe apresentação de orquestras nacionais e internacionais. Além da Sala São Paulo, foi também restaurada a Pinacoteca do Estado, criado o Museu da Língua Portuguesa e recuperado o Parque da Luz e a Estação da Luz .

Não se pode negar que se reinvestiu no patrimônio existente, mesmo que para permitir o desenvolvimento de um plano estratégico que visa, de acordo com documentos do poder público, garantir a que São Paulo torne-se uma cidade global, como podemos ver abaixo:

“A crescente internacionalização dos fluxos de bens, serviços e informações dão origem à formação de uma rede mundial de metrópoles, onde são geradas e por onde transitam as decisões financeiras, mercadológicas e tecnológicas capazes de moldar os destinos da economia mundial. Os centros urbanos situados no topo da hierarquia do sistema urbano nacional são denominados Cidades Globais, que atuam como foco de irradiação das decisões tomadas em escala planetária para as demais cidades do sistema”.

Ao lado delas existem as Cidades Mundiais. Nestas, as vantagens comparativas regionais e metropolitanas, derivadas das atividades exportadoras, devem constituir-se no principal foco de dinamismo para as grandes metrópoles, em especial as atividades ligadas à indústria intensiva em tecnologia e aos serviços típicos de cidades mundiais, tais como telemática, pesquisa e desenvolvimento (P&D), consultoria de negócios, gestão empresarial e financeira e serviços de transportes internacionais. São Paulo já pode ser considerada dentro desta categoria. Mas é preciso consolidar e avançar o papel de São Paulo como Cidade Global [11].

Essas ações de valorização do patrimônio na região da Luz, deveriam ter promovido o chamado efeito metástase, como se a cidade fosse um organismo, um sistema, em uma visão que recorda em muito a Escola de Chicago[12], que a exemplo do pensado para a cidade de Barcelona nos anos 80 quando uma série de ações pontuais, muitas delas advindas de reivindicações de Associações de vizinhos, promoveriam mudanças do entorno.

Entretanto não foi o que ocorreu na região da Luz. Apesar dos investimentos públicos, a região do entorno não foi, naquele momento, alvo de investimentos privados, até porque possuía uma dinâmica que era resultado do processo de expansão da centralidade com todos seus problemas: área em que alguns quarteirões tinham o valor imobiliário depreciado pelo tipo de usos que ali se faziam bem como pela população que ai vivia: prostituição e hotéis voltados a essa atividade, venda e consumo de drogas, presença de população com baixo poder aquisitivo e comércio popular, existência de cortiços ou moradias consideradas impróprias para essa função, apesar de existir ruas com comércio especializado (eletrônicos), como a Santa Efigênia  .

Esse entorno, antes denominado por Cracolância[13] e agora chamado de Nova Luz,  torna-se um enclave ao desenvolvimento e as aplicações e investimentos públicos na região. Por isso a nova ação do poder público, denominada Operação Urbana Nova Luz, para transformar o conjunto e valorizar toda a área.

Essa Operação Urbana pauta-se na manutenção do patrimônio para sua execução. Ao menos é isso que aparece no projeto municipal. Em vários documentos afirma-se que a região como um todo é de valioso significado histórico e de que há   necessidade de sua preservação e restauração, até porque faz parte de um todo articulado a área onde já ocorreram os investimentos públicos. No projeto, a intenção é transformar a região em um novo pólo cultural, tecnológico e de empresas do terciário moderno, a exemplo do que ocorreu na revalorização de parte da cidade de Recife com a instalação do Porto digital. Mas como fica a questão do patrimônio nesse processo?

Neste caso passa a ser seletivo. Usando da racionalidade técnica, são mapeados os edifícios. Ainda que inicialmente a área como um todo tenha sido considerada de interesse histórico, na avaliação posterior boa parte dos edifícios onde moravam as populações de baixa renda, ainda que muitos possuíssem elementos para serem preservados (do ponto de vista arquitetônico), levando-se em consideração os custos e os problemas resultantes da realocação da população local, alguns quarteirões simplesmente foram postos abaixo[14] da noite para o dia em nome da transformação para o bem público. Na região foram decretados 269,3 mil m2 (incluindo  Poupa Tempo[15] Luz, Bombeiros e rua Santa Efigênia[16]) como áreas de utilidade pública. Segundo o projeto, os investidores poderão comprar dos proprietários os terrenos e caso haja impasse, a prefeitura desapropriará a área[17]  e revenderá às empresas interessadas, dando a elas inclusive créditos[18] e incentivos[19].

Essa ação, também denominada de “arrasa-quarteirão”, ainda que tenha sido realizada na calada da noite e aos finais de semana de modo a evitar possíveis conflitos (e que realmente ocorreram entre os moradores e ação pública), foi vista, ou melhor divulgada nos meios de comunicação, como a única alternativa a ser feita na região para acabar com a situação de “degradação social, moral e econômica”  encontrada pelo poder público. Em um jornal de grande circulação a notícia era “Para Kassab, Cracolândia não existe mais”[20]  , como se, na visão do prefeito da cidade, a derrubada de edifícios e a expulsão da população residente acabasse com os problemas[21]. Nessa estratégia, os prédios que antes eram indicados como de interesse histórico e arquitetônico, perdem essa característica já que a população que lá residia era parte da “degradação social, moral e econômica” e o chamado “patrimônio” vêm a baixo por ação direta do Estado, abrindo áreas para criação de novos espaços e atividades, de preferência do terciário superior.

Ainda que específico na cidade, essas ações são semelhantes as ocorridas em outras cidades no mundo e que passam também por um processo de revalorização das áreas centrais. Na requalificação do centro histórico de Barcelona , La Ciutat Vella, se fez uma recuperação seletiva dos locais. Os de grande interesse histórico e/ou arquitetônico foram preservados e recuperados, porém outros foram desapropriados, derrubados e nessas áreas novos edificios, praças, centros cívicos ou outros espaços  foram construídos, requalificando a área, promovendo a valorização do entorno. Nuria BENACH e Rosa TELLOS[22] chamaram a esse processo de “esponjamento” e isso permitia preparar-se para o fenômeno de gentrificação que, ao ver das autoras está em curso, porém junto e em uma contradição-complementar ao processo de manutenção de habitações de baixos aluguéis, predominantemente habitadas por imigrantes e localizadas nas chamadas áreas de interstícios[23].

Queremos aqui destacar que ainda que possuam suas especificidades, que tenham um processo histórico diferenciado em sua formação e contrução social, as metrópoles passam hoje por processos semelhantes quanto às proposições e alternativas para a manutenção de seu desenvolvimento, principalmente econômico, que parecem seguir um mesmo roteiro ou estratégia, a ponto que algumas propostas se tornam “modelos” para o desenvolvimento de estratégias em outros locais, como  é o chamado “modelo Barcelona” para as cidades brasileiras.

No caso paulistano, as ações empreendidas nas transformações de áreas que se colocam como fundantes no processo de desenvolvimentno econômico e produtivo da cidade, quase sempre ligadas a uma Operação Urbana, dão uma mostra do papel do Estado nas transformações da cidade. Ainda que haja um discurso que parece dominante do Estado mínimo, vemos que o ele é fundamental no processo de transformação sócio-espacial da cidade. É o Estado, como nos mostra  Ana Fani Carlos em seu estudo sobre as transformações sócios-espaciais na Faria Lima,

“... que se utiliza de seu poder de planejador para, “um nome do interesse público”, desapropriar áreas imensas da metróple (fazendo a terra mudar de mãos), instalando, na seqüência, a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento da nova atividade, e, com isso, mudando o uso, a função e o sentido dos lugares...”[24]

Nesse sentido, o papel do Estado é fundamental na reprodução sócio-espacial da cidade, marcada pelo desenvolvimento capitalista e, como nos mostra Carlos, por meio das Operações urbanas se revela o fato de que “...a compra e venda do solo urbano não é deixada somente ao livre jogo do mercado imobiliário”[25], como se divulga aos quatro ventos, sendo o espaço instrumento fundamental dessa reprodução.

Considerações finais

Por meio da análise e estudo das ações que vêm ocorrendo em São Paulo, e em especial na chamada requalificação da área central, principalmente pelas do Estado sempre articuladas com a iniciativa privada, percebe-se quão importante é o papel do Estado nas transformações sócio-espaciais e o quanto o chamado patrimônio[26] insere-se nesse processo, auxiliando na criação de consensos, que permitem a minimização de possíveis conflitos.

Se parte do patrimônio da cidade outrora foi destruído por não haver uma política pública de preservação e quando em nome do chamado progresso tudo vinha abaixo, hoje temos o Estado, junto com a iniciativa privada, usando de um discurso de preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural como um elemento fundamental para ações de transformação espacial que possibilitem a reprodução do capital.

Das áreas da cidade, dos edifícios, ruas, praças e equipamentos que passam a ser denonimados “patrimônio”, alguns servirão de chamariz para um desenvolvimento do turismo na cidade. Outros como elementos integrados da paisagem urbana que podem favorecer a dinamização de áreas no sentido de servirem como valorizadores de regiões e até talvez promoveram o desejado efeito metástase e, por fim, outros só servem no discurso de fomento de consensos sobre alternativas, que se colocam como únicas, de transformação sócio-espacial, derrubando-se espaços que, após análises técnicas vistas como confiáveis e inquestionáveis, se mostram inviáveis para a preservação. E, com isso, a partir da destruição daquilo que, inicialmente, era reconhecido como de importância aquitetônica, histórica e/ou de referência de vida, valorizam-se áreas que mudam de usos e funções , possibilitando uma profunda mudança do perfil de seus moradores e usuários , favorecendo um processo já existente de segregação sócio-espacial.

Não se trata de um processo exclusivo da metrópole paulista. Processos semelhantes vêm ocorrendo em outras metrópoles e muitas vezes servem de referencial para as estratégias de desenvolvimento a outras cidades. Em todos os casos estudados a racionalidade é posta como algo inquestionável . Difunde-se na vida cotidiana, pelos mais diversos meios (educação escolar formal, meios de comunicação como tv, jornais, revistas, periódicos, filmes, novelas, etc), a noção de competência dos que propõem e servem de referencial às ações de transformação dos espaços urbanos. As propostas feitas por arquitetos, engenheiros, geógrafos, sociólogos, urbanistas, entre outros, conhecidos nacional e internacionalmente[27], são qualificadas e postas como inquestionáveis já que são técnicas, ainda que não se questione qual a dimensão política de tais ações e o projeto de mundo contido nelas. É necessário questionar, deixar claro qual é o mundo que queremos para construir o espaço possível de liberdade.

 

Notas

[1] O centro como elemento diferenciado nos estudos urbanos aparece no trabalho de Nice Lecocq Muller intitulado “A área central da cidade” in Aroldo de Azevedo (coord). A cidade de São Paulo, pp. 121-181 e na tese de doutorado de Milton Santos intitulada O centro da cidade de Salvador.

[2] H. LEFEBVRE.  De lo rural a lo urbano, p. 268.

[3] Segundo Maria Encarnação B. Sposito, os sub-centros se caracterizavam como “Áreas onde se alocam as mesmas atividades do centro principal com diversidade comercial e de serviços, mas em escala menor, e com menor incidência de atividades especializadas” . in O centro e as formas de expressão da centralidade urbana.  Revista de Geografiavol 10, pp. 1- 18

[4] Helena K. Cordeiro. O centro da metrópole paulistana.

[5] J.G. SIMÕES JR. Revitalização dos centros urbanos. Polis, 19.

[6] O Vale do Anhangabaú seria entregue remodelado à população somente em 1991.

[7] O conde Matarazzo foi um os homens mais ricos da cidade de São Paulo, dono de inúmeras indústrias na cidade. Começou a  construção da sua Mansão na avenida Paulista em  1896 e ela só foi concluída em 1941.

[8] Segundo avaliações feitas em 2007, o terreno dos Matarazzo vale no mercado mais de 100 milhões de reais ou cerca de 59 milhões de dólares

[9] Otilia ARANTES. A cidade do pensamento único.

[10] Isso foi discutido na tese de doutorado intitulada “ O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação” de minha autoria.

[11] São Paulo. Diário Oficial do Município. 21/10/05, p. 182.

[12] Wirth (in Velho, 1987), como um dos autores da Escola de Chicago, trabalhava  e fazia um debate da vida urbana nas grandes cidades, entendendo a cidade como um corpo onde cada parte dele tinha uma função e as vias de comunicação (transporte), possibilitavam a circulação dos fluxos de mercadorias e de pessoas. Ainda que essa idéia tenha sido destacada no início do século XX , elas já apareciam segundo Sennett no século XVIII, quando os urbanistas da época penavam a circulação como em um corpo humano com vias oxigenadas (as artérias) e as vias de menor circulação articuladas a um centro dispersor.

[13] Cracolândia “é o termo pejorativo, muito usado na mídia, para se referir a uma parte da região central localizada nas  imediações da Estação da Luz, onde existem muitos  usuários de crack (alucinógeno derivado da cocaína mas com preço muito mais acessível). A região conhecida como Cracolândia tem como limites a Avenida Duque de Caxias, Avenida Rio Branco, Avenida Ipiranga e Rua General Couto de Magalhães”.

[14] Entre janeiro e fevereiro de 2008, 15% da área onde se concentra a população de baixa renda foi demolida.

[15] Poupa tempo é um local onde são disponibilizados à população uma série de serviços da administração estadual permitindo ao cidadão a resolução em um único local de serviços da administração estadual.

[16] Rua especializada em venda de artigos eletro-eletrônicos e de computação.

[17] no total para possíveis desapropriações são 103 mil m2

[18] De até 80% do valor do imóvel.

[19] Entre os incentivos há a possibilidade de 50% de desconto do IPTU (imposto predial e territorial urbano)  e 60% ISS (Imposto sobre serviços).

[20] Folha de São Paulo, 14.02.2008.

[21] Em março de 2008, várias reportagens exibidas na Rede Globo de televisão, denunciavam que a Cracolândia havia mudado para 800m  da antiga área de consumo da droga, o que indica que a população foi expulsa de uma área, indo para outra área próxima também na região central.

[22] N. BENACH, e R. TELLO. “En los intersticios de la renovación. Estrategias de transformación del espacio y flujos migratorios en Barcelona”, Revista de Geografía.

[23] Arredores imediatos das áreas de renovação urbana porém sem a ação de investimentos públicos e ou privados, o que caracteriza em geral essa área com forte desvalorização ainda que muito próxima às áreas requalificadas.

[24] Ana Fani Alessandri CARLOS. Espaço-tempo na metrópole, p. 24.

[25] Ibidem, p. 25.

[26] Em sentido lato, incluindo a importância histórica, arquitetônica, de referência, de vida.

[27] Entre os de reconhecimento internacional podemos citar na atualidade: Borja, Sola-Morales , Acher , Castells entre outros.

 

Bibliografia

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Referencia bibliográfica:

ALVES, Glória da Anunciação. O papel do patrimônio nas políticas de revalorização do espaço urbano. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/226.htm>

 

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