menú principal

volver al programa provisional

X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona


IMAGENS: TESTEMUNHAS OCULARES DAS SIMBOLOGIAS TOPONÍMICAS,
DAS RACIONALIDADES HUMANAS E DO MODO DE PRODUÇÃO
[1]

Ângela Massumi Katuta
Universidade Estadual de Londrina (PR)
angela.katuta@gmail.com


Imagens: testemunhas oculares das simbologias toponímicas, das racionalidades humanas e do modo de produção (Resumo)

No presente trabalho fazemos uma breve discussão sobre os mapas enquanto imagens que testemunham as transformações das espaço-temporalidades. Utiliza-se como exemplo os mapas TO, do medievo e aqueles produzidos no contexto da moderna sociedade ocidental. A partir do debate da diferença na apresentação da imagem dos lugares presentes nos mesmos, discute-se a tendência à descrição dos mapas modernos em contraposição com aqueles produzidos no medievo que tendiam à narração. Conclui-se que as imagens cartográficas expressam as transformações nas cosmologias dos distintos grupos sociais. Dessa maneira, transformam-se as relações sociedade e meio, conseqüentemente, alteram-se as concepções de espaço e também as imagens por ela produzidas.     

Palavras-chave: imagens, modo de produção, testemunhos


Imágenes: Testimonios oculares de las simbologías toponímicas, de las racionalidades humanas y del modo de producción (Resumen)

En este estudio hacemos una breve discusión sobre los mapas mientras imágenes que testígan las transformaciones de las espacio-temporalidades. Utilizase como ejemplo los mapas TO, de la edad medieval y aquellos producidos nel contexto de la moderna sociedad occidental. Partiendo del debate de la diferencia en la presentación de la imagen de los lugares presentes en los mismos, discutiese la tendencia a la descripción de los mapas modernos en contraposición con aquellos producidos en la edad medieval que tendían a la narración. Concluyese que las imágenes cartográficas expresan las transformaciones en las cosmologías de los más distintos grupos sociales. De esta forma, transformase las relaciones Sociedad y Medio, consecuentemente, alterase las concepciones de espacio y también las imágenes por ella producidas. 

Palabras clave: imágenes, modo de producción, testigos


Images: ocular evidences of the toponimic symbolism, human reasoning and way of production (Abstract)

In this work we make a short discussion about maps as images that give evidence of the transformations of space-temporalities. We use as exemple the medieval TO maps and those which were produced in the context of werstern modern society. Starting from the debate of the difference in the presentation of  place’s images in them, we discuss the inclination for description of moderns maps in opposition with those which were produced in the medieval society that have a tendency to narration. In the conclusion we affirm: the cartographics images are the expressions of the transformations in the cosmologies of diferents socials groups. Thus, changes happens on the relationships between Society and Environment and, as consequence, conceptions of space are modified, and also the images which were produced by it.

Keywords: images, way of production, evidences  


Ao longo da história da humanidade, os seres humanos, em suas relações com o Meio, ao produzir, reproduzir e transformar por meio do Trabalho as concepções que possuem dos lugares, de si mesmos, do Outro e dos elementos da natureza, inventam e transformam as suas noções de espaço e tempo, portanto, suas representações espaciais, seus mapas, suas cartografias e sua própria geografia; esta última aqui entendida como conjunto de saberes sobre os lugares derivados da ação humana no mundo que modifica a paisagem e também se transforma no processo. Foram e são estes saberes que, dentre outros, garantiram até o momento a sobrevivência de diversos grupos humanos e, conseqüentemente, a realização de toda a sua produção.  

Wertheim defende a tese de que nossas concepções de espaço e os entendimentos que construímos de nós mesmos são elementos imbricados. Isso ocorre pelo fato de estarmos “[...] inextricavelmente incrustados no espaço, o que pensamos deve logicamente refletir em nossas concepções do esquema espacial mais amplo.” (Wertheim, 2001: 27. Grifo meu). É por isso que uma história do espaço e de suas imagens presentes em produtos culturais como mapas, pinturas, esculturas e outras figurações espaciais, expressa as transformações pelas quais passaram as cosmologias dos diferentes grupos sociais. É importante salientar que estas visões de mundo transformam-se em função das relações que estes grupos estabelecem com o Meio (relação Homem e Meio), sendo o Trabalho, num amplo sentido, pressuposto fundamental para a formação e transformação de toda cosmologia humana e, conseqüentemente, dos produtos humanos.

A existência de uma sobredeterminação entre as concepções de espaço, espacialidades e geografias tecidas pelos seres humanos e suas identidades, é lugar comum nos debates científicos. Ao se transformarem as relações de produção, modificam-se as concepções de espaço, as espacialidades vivenciadas, os registros toponímicos, suas territorialidades e os próprios seres humanos, bem como as paisagens nas quais os mesmos vivem. Tal fato pode ser verificado na comparação dos mapas produzidos pelos ocidentais no período compreendido entre o medievo e a modernidade, é o que pretendo demonstrar no item a seguir.

As imagens como testemunhas oculares das transformações cosmológicas: estudo de caso dos mapas produzidos entre o Medievo e a Modernidade

A presente análise dialoga fundamentalmente com a obra de Peter Burke (2004) intitulada Testemunha ocular: história e imagem, sobretudo com as seguintes teses:

- “[...] as imagens oferecem virtualmente a única evidência de práticas sociais [...]”. (Burke, 2004: 13).

- “[...] Imagens são especialmente valiosas na reconstrução da cultura cotidiana de pessoas comuns, suas formas de habitação, por exemplo [...].” (Burke, 2004: 99).

- “Historiadores da agricultura, da tecelagem, da impressão de papéis, da guerra, da mineração, da navegação e das outras atividades práticas, a lista é virtualmente infinita, têm-se baseado intensamente no testemunho de imagens para reconstruir as maneiras pelas quais arados, teares, máquinas impressoras, arcos, armas de fogo, e assim pr diante, eram utilizados, bem como para mapear as mudanças súbitas ou graduais por que passaram as concepções desses instrumentos. [...].” (Burke, 2004: 100).

- “Num ângulo positivo, imagens freqüentemente revelam detalhes da cultura material que as pessoas na época teriam considerado como dados e deixado de mencionar no texto. [...] O testemunho de imagens é ainda mais valioso porque elas revelam não apenas artefatos do passado (que em alguns casos foram preservados e podem ser diretamente examinados) mas também sua organização; os livros nas prateleiras de bibliotecas e livrarias [...], por exemplo [...]”. (Burke, 2004: 120-121).

Tomando por base as idéias presentes na obra do autor citado, somadas ao conjunto de leituras e estudos que venho realizando sobre mapas e outras imagens, fiz o presente exercício com o objetivo de demonstrar que é possível fazer as mesmas afirmações no tocante à produção cartográfica dos diferentes grupos humanos, pois estas expressam as concepções de espaço (simbologias toponímicas) e as geografias elaboradas no contexto de um determinado modo de produção.

Segundo Ginzburg (2001: 100 et seq.), o medo e a desvalorização das imagens prevalecem em toda a Idade Média européia, daí a pequena variedade de mapas, pinturas e outras produções imagéticas no período, tanto no tocante à quantidade quanto à qualidade de obras, temáticas e sujeitos sociais envolvidos nesta produção cultural. Nesta época, a imago era entendida como ficção, abstração, realidade pálida e empobrecida por uma série de razões, dentre as quais podem ser citadas:

- O fato de que era produzida pelo ser humano que, por ser imperfeito no contexto desta cosmologia, transpunha esta mesma característica para as suas obras. Neste contexto societário, somente a Deus era possível a perfeição.

- A maneira realista de compreender a linguagem. Isso porque além da imago permitir várias interpretações – ação esta vista com maus olhos pela Igreja, instituição que ditava a única interpretação possível do real, porque representante na terra da vontade divina, daí ser verdadeira apenas a sua interpretação do real –, sua materialização tem como pressuposto a generalização de alguns elementos, processo este entendido, via de regra, por sociedades iconoclastas como empobrecedor e simplificador da realidade.

A presentia, palavra ligada há tempos nesta sociedade às relíquias dos santos, foi cada vez mais associada à eucaristia. Dessa maneira, em 1215, com a proclamação do dogma da transubstanciação, o medo das imagens lentamente começa a diminuir.

“[...] Aprende-se a domesticar as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos dessa reviravolta foi o retorno à ilusão na escultura e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, não teríamos nem Arnolfo di Cambio, nem Nicola Pisano, nem Giotto. A ‘idéia da imagem como representação no sentido moderno do termo’, de que Gombrich falou, nasce aqui.” (Ginzburg, 2001: 102).

A aceitação das imagens ocorre em função de um conjunto lento de mudanças sócio-econômicas e culturais que vão se processando no final do medievo. Sendo o mercantilismo e seu espraiamento territorial elementos fundamentais no processo de transformação da cosmologia cristã. Dessa maneira, verifica-se que mercantilismo, aristocracia, burguesia e suas formas de ordenação espaciais, concepções de espaço e imagens nutrem relações muito profundas entre si. Não por acaso, a Itália e a Holanda se tornaram destacadas produtoras de imagens, seja sob a forma de pinturas ou mapas. Svletana Alpers (1999) em sua obra intitulada A arte de descrever aborda com muita propriedade as relações entre as demandas sociais e as imagens produzidas em um determinado contexto espaço-temporal.

Considerando o exposto, observemos a imagem a seguir:

 

Figura 1
Mapa-múndi TO (século XII)

Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 48)

Os mapas TO ou mapas de roda foram produzidos na Idade Média. Os mais antigos que ainda hoje existem datam do século VIII. “A letra O representa simbolicamente um anel ou um oval, no qual se acha normalmente inscrito um T que resulta da subdivisão esquematizada em três continentes.” (Dreyer-Eimbcke, 1992: 47). Estão representadas no mapa a Ásia – porção superior –, a África – porção inferior direita do observador – e por fim, a Europa. Verifica-se que a Terra Santa, onde estão apresentados Adão, Eva e a serpente, está situada na porção superior do mapa, orientado sempre para o Oriente, em função da valorização desta espacialidade na cosmologia cristã. Cada grupo social coloca em relevo nos seus mapas as espacialidades e personagens valorizados pela sua cosmologia.  

“[...] A haste do T é formada pelo mar Mediterrâneo entre a Europa e a África ou ‘Líbia’. O braço setentrional da trave é representado pelo rio Don, pelo mar de Azov, pelo mar Negro e pela porção oriental do Mediterrâneo entre a Ásia e a Europa. O braço meridional é constituído pelo rio Nilo, que separa a Ásia da ‘Líbia’.” (Dreyer-Eimbecke,1992: 47).         

A cartografia hegemônica do Ocidente latino no medievo, como todo e qualquer conhecimento, era elaborada conforme os preceitos bíblicos – os únicos confiáveis, sendo as escolas monásticas ou, de maneira geral, os clérigos seus principais produtores autorizados. Por isso, seus mapas apresentam o mundo e os mais variados lugares sempre com base nas informações presentes na Bíblia (palavra de Deus), daí a cartografia da Idade Média ser uma testemunha ocular da espacialidade hegemônica cristã. A palavra de Deus escrita na Bíblia, essencial para o entendimento do mundo à época, era uma base de dados fundamental para a construção de mapas TO. Conseqüentemente, para entendê-los e interpretá-los, é necessário um certo domínio da cosmologia cristã presente na Bíblia, especificamente do Gênesis, livro do Velho Testamento.

Muitos autores tendem a afirmar que os mapas elaborados nesta época expressavam uma visão subjetiva do mundo, em oposição às imagens consideradas objetivas, presentes nos atuais planisférios e mapas modernos. Dentre os autores podemos tomar como exemplo Kimble (2000: 235 et seq.), cujo livro intitulado A geografia na Idade Média, faz referência à cartografia da época. Especificamente no Capítulo 8, intitulado Os Mapas na Idade Média, o autor afirma:

“[...] No todo, provavelmente é correto dizer que a grande maioria destes mappaemundi são para serem considerados como obras de arte e não de informação. Seus autores estavam criando algo muito diferente da malha cartográfica moderna cujo mérito é ser documento essencialmente útil, e por uma construção científica. [...] Para a maioria deles um mapa era uma estrutura maleável na qual objetos de interesse popular, muito mais do que científico, poderiam ser desenhados. O sabor da época se propagou, como já tivemos a oportunidade de saber, no sentido do maravilhoso, e o mapa mundi medieval estava mais voltado à elaboração do seu departamento de literatura.” (Kimble, 2000: 236-237).

Verifica-se neste trecho a negação de imagens cartográficas do medievo enquanto  documentos informativos de uma determinada espaço-temporalidade em função de se considerá-las “como obras de arte”. Este entendimento é temerário na medida em que nega a possibilidade do entendimento das mais variadas obras humanas, inclusive as de arte, enquanto testemunhos de cosmologias dos mais diferentes grupos sociais. Esta compreensão tem como fundamento uma concepção absolutista da verdade e do significado do que seja ou não um conhecimento verdadeiro do real, entendidos pelo referido autor apenas na perspectiva da cosmologia científica moderna, que expurga de seu horizonte cognitivo todo o conjunto de objetos considerados como artísticos. Isso porque equivocadamente compreende que as produções classificadas como artísticas não são passíveis de estudos científicos, dada a carga de subjetividade presente nas mesmas. Este entendimento nega a dimensão social e objetiva de toda produção humana e, ao fazê-lo, elimina a possibilidade de estudar as produções artísticas como testemunhos ou registros de formas de entendimento de mundo.

Entendemos que todo conhecimento é um meio de orientação essencial para a sobrevivência dos grupos sociais (Elias, 1998). Ora, se a racionalidade cristã bem como seus mapas perduraram por um longo tempo, foi exatamente porque tais conhecimentos eram relativamente congruentes com a realidade da época. Atendiam à demanda realizada pela sociedade naquela espaço temporalidade, portanto, compunham o seu projeto societário e sua concepção de real. Sociedade e indivíduo nutrem entre si relações dialéticas, por isso, o segundo sofre influência das determinações sociais e também nestas interfere.

A afirmação de que os mapas TO apresentavam uma visão subjetiva do mundo, pelo fato de não se constituírem em fontes de informações objetivas é, no mínimo, temerária. Expressa muito mais nossa incapacidade de entender ou racionalizar sobre outras noções de espaço, espacialidades e mapas, como acertadamente afirma Wertheim (2001: 53): “[...] não somos capazes de conceber um lugar como ‘real’ a menos que tenha uma localização matematicamente precisa do espaço físico.” Eis um exemplo da maneira absolutista de utilização da concepção moderna de espaço.

Não por acaso, muitos autores contemporâneos usam os termos virtual, simbólico ou imaginativo para se referirem aos mapas do medievo e mesmo de outros grupos sociais, defendendo que se tratam de quase-mapas, pré-mapas ou de algo próximo aos “verdadeiros” mapas. Este posicionamento desconsidera e deslegitima a produção de grupos sociais que possuem uma cosmologia distinta da ocidental moderna, além disso, toma como verdadeiras e, portanto, legítimas, apenas produções cartográficas que estabelecem localizações matematicamente precisas do espaço físico, ou seja, que referendam a moderna concepção de espaço.

Bevan e Phillot (apud Kimble, 2000: 238) afirmam que “[...] um mappamundi medieval, para ser devidamente apreciado, deveria, num grau considerável, ser visto como um romance ilustrado.” A despeito das concepções reducionistas ou modernas de espaço, espacialidade e de mapas utilizadas pelos autores, é importante destacar que sua afirmação indica o caráter ou fundamento narrativo do mapa TO medieval, em oposição ao mapa moderno, eminentemente descritivo.

Garcia (1995: 239) afirma que a matéria da narração é o fato ou um episódio real ou fictício, entendido como qualquer acontecimento de que o ser humano participe direta ou indiretamente. A narração supõe ação, um enredo, tendendo, portanto, mais à polissemia do que a descrição. É importante salientar que entendo que inexiste a monossemia e polissemia em si e per si, ou que um objeto em si seja monossêmico ou polissêmico. A monossemia e a polissemia devem ser consideradas no contexto dos jogos ou usos da linguagem socialmente realizados. Um objeto ou linguagem não são monossêmicos ou polissêmicos em si, mas, dependendo dos usos sociais que deles se fazem, acabam por apresentar maior ou menor grau de mono ou polissemia.

Na contrapartida da narração, a matéria da descrição é um objeto, ser, coisa, paisagem, sentimento, contudo, supõe uma representação mais congruente com uma realidade empiricamente existente, daí sua maior tendência à monossemia. “Descrição miudamente fiel é, como certos quadros, uma espécie de natureza morta.” (Garcia, 1995: 231). Subjacente à descrição há a intencionalidade da fidelidade à dimensão empírica do real. Não por acaso, as descrições se fundamentam em objetos empiricamente visíveis.

Alpers (1999), ao estudar a arte de descrever por meio da pintura holandesa, especificamente a partir das obras de Vermeer e Rembrandt, conclui que esta era eminentemente descritiva, em comparação com a produção italiana, caracterizada pela autora como sendo narrativa. Ao identificar a pintura holandesa como descritiva, afirma ter nela existido um impulso cartográfico. A partir desta identificação, traça um paralelo entre a cartografia moderna e a pintura holandesa; daí a mesma afirmar que, apesar de atualmente os cartógrafos e historiadores de arte terem concordado em manter a separação entre cartografia e arte, essa é uma fronteira que teria “[...] intrigado os holandeses. Pois numa época em que os mapas eram considerados um tipo de pintura, e em que as pinturas desafiavam os textos como uma maneira fundamental de compreender o mundo, a distinção não era nítida.” (Alpers, 1999: 253).

A ênfase na descrição de elementos empírica e matematicamente localizáveis no espaço físico é o elemento essencial que permite a distinção e oposição entre o mapa moderno, considerado científico em uma perspectiva científica moderna, e aqueles narrativos, elaborados a partir de outras cosmologias e concepções de espaço, como é o caso do mapa medieval, cuja concepção de espaço é qualitativa. Não por acaso, representações cartográficas que fazem uso desta última concepção são consideradas como não objetivas e, por isso, classificadas como pré-mapas ou quase mapas.

É preciso salientar ainda que, ao contrário do que muitos pensam, o divisor de águas entre as pinturas e os mapas não é tão nítido quanto parece. Os exemplos mostrados por Alpers (1999) e os mapas estudados pela equipe de Harley e Woodward (1987, 1994) demonstram este fato. Em diferentes momentos históricos, cartografia e pintura ora se distanciam, ora se aproximam ao ponto de amalgamarem-se, qual o movimento de ritornelo[2] em um grande concerto.

Não por acaso, as imagens, figurações espaciais ou mapas “pré-históricos” estudados pelo grupo de pesquisadores ligados a Harley e Woodward (1987, 1994) foram, igualmente, objetos de pesquisa dos historiadores de arte. Também Alpers (1999) tende a questionar em seu estudo uma nítida distinção entre mapas e pintura. É que, se abordada em sua espaço-temporalidade, a cartografia produzida pelos seres humanos nem sempre esteve fundada em uma concepção moderna de espaço. Dessa maneira, subjacente a toda cartografia existem diferentes concepções de espaço, que não são as mesmas porque o modo de produção, bem como as relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si e com o meio que os circunda e suas territorialidades são diferentes. Conseqüentemente, seus mapas, cartografias e geografias serão diferentes.

Ao defendermos a existência de uma nítida separação entre mapas e pinturas estamos descolando ambas as produções dos seus contextos espaço-temporais de realização, negamos as linguagens como práxis, enquanto relações humanas que são e, portanto, os jogos de linguagem nos quais elas se realizam. Este habitus é próprio da cosmologia ocidental hegemônica que, ao enfatizar a identidade do objeto descolada das relações sociais na qual a mesma é tecida, tende a estancar o movimento do conhecimento. Retiramos tais produções do âmbito das práxis humanas e as diferenciamos somente a partir de sua forma, expressão de uma concepção moderna e hegemônica de espaço.

Na perspectiva científica moderna de mapa, fundada na concepção de espaço cartesiano-newtoniano-kantiano, são poucas as sociedades humanas que possuem mapas. Este entendimento parece insustentável, dado que a própria sobrevivência dos seres humanos implicou, necessariamente, a constituição e tecedura de cartografias, mapas e geografias com graus de congruência com o real, adequados a cada formação social e modo de produção.

É importante destacar que uma distinção rígida entre cartografia e pintura somente faz sentido no contexto do habitus ocidental hegemônico que, ao cindir razão e sensibilidade, valoriza a primeira, portanto o mapa cartesiano-newtoniano, bem como as noções de espaço euclidianas e projetivas[3] e as figurações espaciais que as expressam, que permitirão, nesta perspectiva hegemônica, o entendimento geográfico do mundo. Eis a opção por noções de espaço e espacialidades realizada no contexto de um determinado modo de produção que, por meio das relações sociais, definirá a identidade dos objetos, bem como a sua legitimidade e, no contexto acadêmico-científico, sua possibilidade de estudo. Não por acaso, a geografia, enquanto área de produção sistematizada do saber, optou e fez uso mais intenso da descrição, daí a sua preferência por mapas modernos em detrimento de outras figurações espaciais que tendem à narração.

Observa-se nos exemplos citados, uma oposição bastante característica da cosmologia ocidental hegemônica presente no raciocínio da identidade fundada na aparência, descolada do sujeito: ou uma figuração espacial é objetiva ou não, é mapa ou não. Esta oposição é perniciosa na medida em que nega o pensamento dialético ao aceitar a “dualidade destruidora[4]”, rompendo com a possibilidade de pensar o ser como sujeito e objeto ao mesmo tempo: “[...] a separação tradicional entre sujeito e objeto transforma-se em uma modalidade específica de autodeterminação consciente e não-consciente.” (Silva, 1986: 53). Entendo que, talvez, o raciocínio mais adequado a utilizar em relação aos mapas seja o de maior ou menor grau de objetividade que, é bom lembrar, não existe per si; trata-se sempre de uma relação entre o que, nas relações sociais, é considerado mais ou menos legítimo, mais ou menos verdadeiro e mais ou menos objetivo.

O mapa TO é uma figuração espacial que expressa a cosmologia hegemônica do medievo, bem como sua espacialidade, cuja concepção de espaço estava fundada em elementos qualitativos e não quantitativos, a métrica do espaço não possuía tanta centralidade naquele modo de produção. As técnicas produzidas e utilizadas à época não permitiam aos ocidentais medievais o transporte de víveres, matérias-primas e de pessoas em longas distâncias pois era uma sociedade ainda não pacificada, fechada em si nas relações entre camponeses e suseranos, mediadas fortemente pela Igreja e suas crenças. Daí os mapas medievais terem como centralidade toda a cosmologia e espacialidades cristãs, elementos fundamentais na orientação e localização sócio-espacial dos senhores e dos servos.

Via de regra, os escritos modernos sobre a produção cartográfica do referido período indicam a dificuldade dos pesquisadores em entenderem as noções de espaço, portanto, as espacialidades do medievo. Esta dificuldade pode também ser entendida como um indicativo da valorização de uma visão suprema e absolutista do espaço, que aponta para a negação dos esquemas espaciais de outras sociedades, bem como de suas territorialidades e geografias. Não por acaso, na geografia hegemonicamente ensinada pelas escolas de massas, se estuda e dissemina a moderna noção de espaço, lentamente produzida para e pelo capital, sendo o Estado nacional e suas subdivisões político-administrativas as categorias e escalas fundamentais de análise. As geografias dos povos indígenas, das etnias africanas e de outros grupos sociais são desconsideradas.

Distintas espacialidades engendram diferentes linguagens. “[...] Assim como o ciberespaço não pôde ganhar existência até que novos tipos de linguagem para a comunicação eletrônica fossem desenvolvidos, assim também qualquer novo tipo de espaço requer o desenvolvimento de uma nova linguagem.” (Wertheim, 2001: 223). Em outras palavras, o desenvolvimento da linguagem é a condição para a realização da espacialidade humana e, portanto, para a construção de sua noção de espaço, seus territórios e suas geografias. Espacialidades diferentes, necessariamente, se expressam-realizam por meio de linguagens igualmente diversas.

A seguir, está apresentado o mapa-múndi produzido por Macróbio em 1483 e, subseqüentemente, um outro, datado de 1850/51 produzido por John Tallis & Co, que usa a projeção de Mercator para apresentar a rota da viagem realizada pelo capitão Cook:

Figura 2
Mapa-múndi de Ambrósio Macróbio (1483)

Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992: 118).

Figura 3
Mapa moderno produzido por John Tallis & Co. (1850/51)

Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992: 187).

Se compararmos as Figuras 1, 2 e 3, pode-se verificar que a diferença entre as mesmas se deve às concepções de espaço que a elas estão subjacentes, portanto, remetem a espacialidades, cosmologias e geografias distintas. Se tomarmos como referência o Mapa TO, verifica-se que no mapa de Macróbio, há um aumento significativo das massas de água em relação às terras emersas. No último também aparecem outros continentes e locais, ao mesmo tempo em que suas localizações começam a se tornar mais congruentes com a moderna noção de real e de espaço.

É no período situado entre o Medievo e o Renascimento que os mapas vão se tornando mais descritivos que narrativos. Não por acaso, muitos deles, cada vez com maior freqüência, passam a apresentar a palavra Descriptio em seu frontispício. Segundo Alpers (1999: 247) “[...] Esse era um dos termos que mais se usavam para designar o empreendimento cartográfico. Os autores ou editores de mapas eram referidos como ‘descritores do mundo’, e seus mapas ou atlas como o mundo descrito.” Foi exatamente na passagem do modo de produção feudal para o capitalista que ocorreu a constituição da crença ocidental no isomorfismo entre a linguagem e o objeto que ela representa. O mapa passa a ser entendido como instrumento de descrição do mundo tal qual ele é, ocultando-se as relações entre modo de produção e a produção cultural, entre mapas cartesianos-newtonianos, o habitus das classes sociais hegemônicas e as espacialidades a elas inerentes.

Apesar de inexistir uma exata separação entre narração e descrição, Alpers (1999) nos chama a atenção para a necessidade da distinção entre as tendências narrativas e descritivas em pinturas e mapas. Isso porque elas podem nos auxiliar no discernimento entre esses dois modos de produzir figurações espaciais. “[...] Descritivo é, de fato, um modo de caracterizar muitos dos trabalhos que estamos acostumados a qualificar de realistas.” (Alpers, 1999: 30). Tais obras se caracterizam pela quietude ou imobilidade, sintoma da oposição existente entre estas e os pressupostos da arte narrativa.

“Parece haver uma proporção inversa entre descrição atenta e ação: a atenção à superfície do mundo descrito se faz em detrimento da representação da ação narrativa.” (Alpers, 1999: 30). Para a autora, “[...] as imagens descritivas, pelo menos no século XVII, eram fundamentais para a compreensão ativa do mundo pela sociedade.” (Alpers, 1999: 31), em outros termos, para a dominação dos lugares bem como das matérias-primas e povos neles presentes.

Panofsky, ao comentar a obra descritiva do holandês Jan van Eyck, caracteriza a descrição da seguinte maneira:

“[...] opera como um microscópio e como um telescópio ao mesmo tempo [...] o observador é compelido a oscilar entre uma posição razoavelmente afastada da pintura e várias posições muito perto dela [...] Nem um microscópio nem um telescópio se prestam para observar a emoção humana. [...] A ênfase antes é na quietude que na ação. [...] Medido pelos padrões ordinários, o mundo do Jan van Eyck maduro é estático.” (Panofsky, apud Alpers, 1999: 30).

Dessa maneira, fica óbvia a diferença entre o mapa TO, narrativo, e os mapas de Macróbio e de John Tallis & Co, nesta perspectiva, tendendo, apontando e caminhando em direção à descrição. Comparando as Figuras 1, 2 e 3, nota-se também que, com o passar dos anos, cada vez mais o mapa ocidental hegemônico avança rumo à descrição.

É importante salientar que na pintura, principalmente a partir do século XIX, ocorre um movimento diametralmente oposto ao da cartografia bem como da geografia hegemônicas. Isso porque nesse campo artístico passa à existência um sentimento de menosprezo às obras descritivas que, aparentemente, representavam tudo o que existia na natureza “de maneira exata” e “não seletiva”. Exemplo didático que mostra que a exatidão e a seleção de elementos que a corroboram são social e espaço-temporalmente construídas e legitimadas por grupos hegemônicos.

O referido sentimento se tornará cada vez mais fortalecido entre a aristocracia e as elites urbanizadas e letradas da Europa, o que levou a uma certa desvalorização da arte descritiva. Alpers (1999) entende esse processo como resultante do desprezo que os grupos hegemônicos europeus cultivavam em relação aos camponeses da Holanda setentrional: “[...] único lugar na Europa da época onde mais de cinqüenta por cento da terra era propriedade de camponeses. [onde] Diferentemente de outros países, o poder senhorial era fraco ou inexistente.”(Alpers, 1999: 286).

O fundamento do sentimento de desprezo das classes hegemônicas para com a arte descritiva residia, segundo Alpers (1999: 31-32), no primado da mente sobre os sentidos, na valorização da instrução sobre a “ignorância”. Afinal, para entender a arte narrativa fazia-se necessário ter domínio sobre a história a qual ela se referia, disponibilizada ou por meio da tradição oral ou, a partir do advento da imprensa ocidental[5], por meio da linguagem escrita, inicialmente acessível apenas às elites. A arte descritiva apenas deleitava aos olhos e, do ponto de vista do seu consumo, como a concebemos hodiernamente, essa produção nasce com os holandeses[6]. O desprezo pela arte descritiva revelava o temor da decadente aristocracia européia pelos camponeses e os novos ricos que despontavam no horizonte social.

O mapa de Macróbio pode ser visto como uma espécie de ante-sala que aponta para as radicais mudanças que as noções de espaço, as espacialidades hegemônicas e as imagens do mundo irão sofrer junto aos ocidentais nos séculos posteriores. A Terra se encontra dividida em zonas, já se vislumbra um exercício de classificação – zona frígida, incógnita, antípoda –, as superfícies de água aumentam, o que equivale dizer que este mapa, em comparação com o TO, primou ou valorizou uma maior congruência com a realidade fundada na métrica, essencial ao desenvolvimento do capital em sua face mercantil e, posteriormente, industrial. Embora as lendas ainda nele estejam presentes, se compararmos os três mapas (Figura 1, 2 e 3), podemos afirmar que o de Macróbio sinaliza ou indica a mudança de ventos nos rumos da cartografia e da própria geografia ocidentais em direção à descrição, o que as levou a distanciarem-se da narração. Segundo Alpers (1999: 31) Leon Battista Alberti afirmará que a storia na pintura (narrativa):

“[...] comoverá a alma do observador quando cada homem aí pintado mostrar claramente o movimento de sua alma. A história bíblica do massacre dos inocentes, com suas hordas de soldados enfurecidos, crianças moribundas e mães aflitas, foi o epítome daquilo que, deste ponto de vista, a narração pictórica e portanto a pintura devem ser.”

É interessante destacar que a pintura narrativa tinha como foco sobretudo os seres humanos e não a natureza, concebida à época como imóvel e imutável.

Breves considerações

Com base no exposto, conclui-se que as imagens constituem-se em testemunhas oculares das transformações das simbologias toponímicas, das racionalidades humanas, das concepções de espaço, das geografias e cartografias produzidas no contexto dos modos de produção. Transformam-se as sociedades, seus modos de produção, suas relações com o meio, suas ordenações espaciais e também as imagens por elas produzidas, daí as mesmas serem meios que podem nos auxiliar na compreensão das distintas espaço-temporalidades, principalmente no que tange a sociedades ágrafas ou aquelas como a nossa que produzem imagens em profusão[7].

Notas

[1] Texto derivado das reflexões de minha tese de doutoramento intitulada O Estrangeiro no mundo da Geografia. Tese (Doutorado em Geografia) − Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

[2] Em um concerto clássico, a volta de todos os instrumentos da orquestra após um solo instrumental.

[3] De maneira bem simplória, são as noções de espaço que se referem, respectivamente, à métrica, às distâncias e extensões e às projeções, perspectivas.

[4] Termo usado por Pankow (1988, p. 185).

[5] Os primeiros livros impressos foram feitos por chineses e japoneses no século VI. No século XV, o ourives alemão Johannes Gutenberg criou a imprensa de tipo móvel, método de impressão que permitia imprimir grandes quantidades de páginas a baixo custo, em um menor tempo. (BENDER, 1994: 26-27). Observa-se já no período em questão, o emprego da lógica do capital: produzir mais, a custos cada vez mais baixos em menor tempo.

[6] Sobre esse assunto ver Alpers (1999).

[7] Dada as limitações do formato do presente trabalho não aprofundamos esta questão. Sobre este assunto ver Burke (2004) e Katuta (2004).


Bibliografia

ALPERS, Svletana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999.

BENDER, Lionel. A era da Imprensa. In: BENDER, Lionel. Invenções. São Paulo: Globo, 1994, p. 26-27. 

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

DREYER-EIMBCKE, Oswald. O descobrimento da Terra: história e histórias da aventura cartográfica. São Paulo: Melhoramentos, Edusp, 1992.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.   

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1995, (16. ed.)

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

HARLEY, John Brian; WOODWARD, David. (Ed.). The History of Cartography: Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.

HARLEY, John Brian; WOODWARD, David. (Ed.). The History of Cartography: Cartography in the traditional east and southeast Asian societies. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.

KATUTA, Ângela Massumi. O Estrangeiro no mundo da, Geografia. Tese (Doutorado em Geografia), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

KIMBLE, George H. T. A geografia na Idade Média. Londrina: UEL, 2000.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: Análises Literárias. Campinas: Papirus, 1988.

SILVA, Armando Corrêa da. De quem é o pedaço? Espaço e Cultura. São Paulo: Hucitec, 1986.

WERTHEIM, Margaret. Uma história do Espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.  


Referencia bibliográfica

Katuta, Ângela Massimo. Imagens: testemunhas oculares das simbologias toponímicas, das racionalidades humanas e do modo de produção. Diez años de cambios en el mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/339.htm>

Volver al programa provisional