IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

entre o transnacionalismo e a relocalizaÇÃo:
estratÉgias de integraÇÃo de imigrantes brasileiros na espanha#1

Amanda Regina Gonçalves
Departamento de Educação
UNESP, Campus de Rio Claro-SP
amandarg@rc.unesp.br

Entre o transnacionalismo e a relocalização: estratégias de integração de imigrantes brasileiros na Espanha (Resumo):

Investigar como o contexto territorial espanhol vem ou não permitindo a constituição da integração social dos imigrantes brasileiros na Espanha ajusta-se ao intenso debate político que o fenômeno da migração transnacional tem suscitado nas mais distintas instâncias públicas e privadas dos países europeus. A partir de abordagens quanti-qualitativas, estabelecemos um quadro da evolução crescente dos brasileiros que migram a este país e mapeamos a distribuição da população brasileira atualmente residente em território espanhol. Estratégias investigativas como a coleta de depoimentos e memórias de imigrantes brasileiros que atualmente vivem na Comunidade Valenciana, nos ofereceram uma aproximação à realidade social deste coletivo de imigrantes, o que oportunizou formular propostas de construção de referenciais adequados à elaboração de políticas de imigração que potencializem seus processos de integração, uma vez que são elas que impõem a legislação básica à que enfrentam todos os imigrantes.

Palavras-chave: migração internacional, territorialidade, geografia política, representações


Entre el transnacionalismo y la relocalización: estratégias de integración de inmigrantes brasileños en Espanha (Resumen):

Investigar como el contexto territorial español viene o no permitiendo la constitución de la integración social de los inmigrantes brasileños en España se ajusta al intenso debate político que el fenómeno de la migración transnacional tiene suscitado en las más distintas instancias públicas y privadas de los países europeos. Desde los abordajes cuanti-cualitativos, establecemos un cuadro da evolución creciente de los brasileños que migran a este país y mapeamos la distribución de la población brasileña actualmente residente en territorio español. Estrategias investigativas como a coleta de depoimentos y memórias de inmigrantes brasileños que actualmente viven en la Comunidad Valenciana, nos ofrecieran una aproximación a la realidad social de esto colectivo de inmigrantes, lo que oportunizó formular propuestas de construcción de referenciales adecuados a la elaboración de políticas de inmigración que potencializen sus procesos de integración, una vez que son ellas que imponen la legislación básica la cual enfrentan todos los inmigrantes.

Palabras-clave: migración internacional, territorialidad, geografía política, representación


Between the transnacionalism and the relocalization: integration estrategies of Brazilian imigrants in Spain (Abstract):

Investigate how the territorial context of Spain is allowing (or not) the constitution of the social integration of Brazilians immigrants in Spain follows the intense political discussion which the transnational migration phenomenon have provoked in the most public and private ambits in the European countries. By means of quantitative and qualitative approaches, we established a panorama of the increasing Brazilians migrations to Spain and mapped the Brazilians distribution that lives in Spain. Investigative strategies as interviews collection and Brazilians immigrant’s reminders that still live in the Valenciana Community gave us an approaching of the social reality of this immigrants group, which permitted to produce construction proposals of adequated orientations to the elaboration of immigration politics that valorize their integration processes, considering that these proposals impose the basic legislation which all the immigrants face.

Keywords: international migration, territoriality, political geography, social representations

 

O fenômeno da migração transnacional na atualidade tem produzido uma sociedade plural, caracterizada pela exclusão social, e provocado novas tensões e situações de discriminação e dominação; isto remete a questões relacionadas à cidadania e à integração social numa escala global.

A emigração dos brasileiros tornou-se uma questão relevante quando o que era um movimento esporádico para o exterior, nos anos 1970, transformou-se num fluxo migratório. Segundo Assis e Sasaki (2001, p. 621):

Em meados da década de 80, fomos surpreendidos por notícias de vários turistas brasileiros “barrados” pelos Serviços de Imigração, em aeroportos internacionais dos EUA e da Europa, pela suspeita de que poderiam vir a engrossar os contingentes de imigrantes ilegais nesses países.

Um dos principais países que passou a receber este fluxo foi a Espanha. Um período excepcional dos anais de estudos das migrações na Espanha evidencia o inédito crescimento da população de nacionalidade estrangeira neste país. Segundo Andreu Domingo e René Houle (2004, p. 1) de 1996 a 2003 triplicou-se a população com permissão de residência; excepcionalidade que traz consigo constantes mudanças nas legislações e regularizações dos imigrantes e implicações sociais na população estrangeira, principalmente aquela em situação irregular.

Neste trabalho, buscamos investigar como o contexto territorial espanhol vem permitindo ou não a constituição da integração social dos imigrantes, em especial através das representações de brasileiros que vivem em território alicantino (Espanha).

A investigação foi realizada através de uma abordagem qualitativa#2, utilizando-se procedimentos etnográficos, como observações “em ambiente natural”, ou seja, dos imigrantes brasileiros em território espanhol, e “entrevistas em profundidade”, coletando depoimentos e memórias de imigrantes, no que diz respeito às suas experiências e trajetórias de vida, o que permitiu a captação das mais variadas representações dos imigrantes.

As entrevistas foram realizadas de outubro a dezembro de 2004 na cidade mediterrânea de Alicante. Elas foram estruturadas de forma relativamente aberta, centrada em tópicos determinados e obtidas por meio da gravação direta, seguida de transcrição literal (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 136).

Destacamos neste texto fragmentos de entrevistas com cinco brasileiros, que possuem entre 26 e 35 anos de idade, provindos dos estados brasileiros de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Bahia, residentes atualmente em Alicante, por um período de um a seis anos#3.

Quanto à estrutura do texto, seguindo esta primeira parte introdutória, apresentamos o número e distribuição dos brasileiros no território espanhol e algumas relações entre estes dois países. Em seguida, realizamos uma breve discussão sobre a noção de território e buscamos investigar como o contexto territorial espanhol vem permitindo ou não a constituição da integração social dos imigrantes, em especial através das representações de brasileiros entrevistados que vivem em Alicante (Comunidade Autônoma Valenciana, Espanha). Na última parte do texto trazemos algumas considerações sobre as questões expostas ao longo do texto.


Os brasileiros na nova composição étnico-cultural espanhola

“E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade”
(Tom Zé)

Atualmente, 7.412 imigrantes brasileiros fazem parte legalmente da nova composição étnica da Espanha (INE, 2004), soma-se ainda outro grande número de brasileiros não legalizados. Destacamos que este é o caso de todos os entrevistados citados neste texto e de 80% dos entrevistados para esta pesquisa geral. Uma parcela que, como muitos outros indivíduos não procedentes de países integrantes da União Européia, têm suscitado um intenso debate político nas mais distintas instâncias públicas e privadas dos países europeus, já que sua influência na sociedade se reflete de formas múltiplas e diversas.

Ao falar sobre seu processo de decisão de saída do Brasil e escolha do país de destino, Luiz sai de uma pequena cidade de Minas Gerais e faz uma das trajetórias mais comuns aos imigrantes brasileiros, indicando que o processo de escolha do país envolve vários critérios, como: a estrutura econômica, a língua, a segurança, a cultura.

A minha vontade era de ficar no Brasil trabalhando. Eu tentei muito. Eu escolhi Espanha porque é um país de economia melhor que Portugal, porque a gente fala português, mas a vontade mesmo era de ir para a Inglaterra ou Bélgica, onde é mais rico, mas eu não falo inglês, então, notei que me adaptaria mais a língua espanhola. Vim pra Espanha. (Jair, 32, nascido em Monte Carmelo-MG, trabalha como cozinheiro de um restaurante em Alicante e divide um apartamento de dois quartos com seis brasileiros e um bebê).

Se nos atentarmos à fala de Jair e relacionarmos à distribuição espacial dos brasileiros que atualmente vivem na Espanha (como mostramos na Tabela 1 e na Figura 1), evidenciamos que o fenômeno migratório não se restringe a uma região ou localidade, tampouco faz-se um fenômeno que abrange o território espanhol universalmente, o que nos alerta sobre o fato de que estimar generalizações sobre as representações, formas de interação dos brasileiros na Europa ou mesmo na Espanha, nos levaria a reducionismos tanto da amplitude como das particularidades do fenômeno migratório. Tampouco podemos entendê-lo como eminentemente de origem ou destino aleatórios, pois ainda que para alguns não haja uma escolha à priori do país, região ou localidade, quando migrado já faz parte de si um processo de saída de um determinado local do país de origem e uma nova vida que passa acontecer num outro referenciado local.

Assim, estas duas constatações nos levam a ampliar as noções de fenômeno migratório e de território, de maneira que tanto com visões locais e egocêntricas, como globais e generalistas ficaríamos reduzidos a simplificações. As relações não se dão somente entre os países, nações ou estados, mas entre lugares, pessoas ou grupos específicos – que trazem um contexto espaço-temporal específico de cada lugar de origem a cada lugar de destino, contíguos aos respectivos contextos histórico, político, econômico e social, o que reafirma a noção de “território” não como uma área de controle político-administrativo, mas como onde é possível o sujeito construir suas práticas cotidianas, fundadas em múltiplas experiências espaço-temporais materiais e simbólicas.

Tais ponderações nos conduzem a pensar que as redes sociais serão potencializadas não como estratégias transnacionais, ou seja, para além dos espaços territoriais, mas sim no desenvolvimento de uma série de estratégias e de práticas pontuais, não resumidas à lealdade do cidadão aos Estados, nem ao exercício restrito às manifestações juridicialmente fundamentadas, mas pautadas na participação ativa do cidadão no conjunto de processos decisórios que dizem respeito à sua vida cotidiana, relocalizada em novos espaços-tempos que passam a fazer parte das atividades cotidianas dos imigrantes.

Por isso, potencializar processos de integração dos imigrantes tem a ver mais com políticas pontuais de relocalização das atividades dos sujeitos do que com debates supranacionais, que na maioria das vezes pode até chegar a tangir aspectos de acordos político-econômicos entre as estruturas de poderes dos países, mas pouco interferem na construção da territorialidade dos sujeitos. Constatamos nas investigações com os imigrantes entrevistados que são nas iniciativas pontuais de relozalização que eles encontram respaldo para melhorar suas condições de vida, uma vez que as possibilidades formais de integração (documentações legais) lhes fornecem poucas aberturas jurídicas e, quando existem, conduzem o sujeito à desconsiderar suas referências sócio-espaciais anteriores na produção de suas novas identidades.

É elucidativo a respeito desta visão do fenômeno migratório o depoimento de Milene, que expõe os contextos dos lugares de procedência e de destino, dando sentido à rede de relações entre determinados lugares e grupos sociais:

Eu nasci numa cidadezinha no interior da Bahia, como lá não tem muitas condições então eu fui pra Vitória da Conquista, depois Salvador. (...) Bem, meu namorado tem um tio que já vivia aqui (em Alicante) há um tempo e ele dá aula de aeróbica. Só que daí ele começou a trabalhar com capoeira. E como meu namorado e eu também, a gente fazia capoeira lá, ele (o tio) ofereceu essa oportunidade pro meu namorado dar aula aqui, que é costa mediterrânea. Depois eu vim. (Milene, 26, de Vitória da Conquista-BA, graduada em odontologia em universidade pública brasileira. Atualmente trabalha como garçonete e professora de samba em Alicante).

Nos últimos anos, o aumento da rigidez do regime de vistos para os Estados Unidos também contribuiu para um aumento da imigração latino-americana a destinos europeus#4. A Tabela 1 mostra de maneira mais específica a materialização do fenômeno imigratório, visto que delimita-se uma escala mais específica dos territórios receptores - as Comunidades Autônomas espanholas; através da qual podemos observar que a imigração provinda do continente americano representa significativa importância no quadro populacional espanhol.

Tabela 1. Presença de imigrantes provindos do Brasil em relação aos provindos do Continente Americano nas Comunidades Autônomas espanholas (2003)

Comunidades Autônomas (Espanha)

Imigrantes provindos do Continente Americano

Imigrantes brasileiros

% de brasileiros

em relação aos imigrantes provindos

do Cont. Americano

Andaluzia

17286

787

4,5

Aragón

1107

67

6

Asturias

2818

304

11

Baleares

3898

143

3,6

Canarias

9720

220

2,2

Cantábria

858

53

6,2

Castilla-La Mancha

4884

116

2,4

Castilla e León

3724

340

9,1

Cataluña

23708

886

4

Com. Valenciana

21661

747

3,4

Extremadura

1016

215

21

Galicia

6445

835

13

Madri

70271

1890

2,7

Múrcia

11880

183

1,5

Navarra

779

36

4,6

País Basco

5542

524

9,4

La Rioja

1562

66

4,2

Ceuta

0

0

0

Melilla

3

0

0

Total

187.162

7.412

4

Fonte: Instituto Nacional de Estatística da Espanha (2004)

Destaca-se também a presença da população brasileira, que soma um total de 7.412 brasileiros em território espanhol, e sua porcentagem em relação aos imigrantes provindos do continente americano, quando podemos comprovar que, embora representem uma taxa pouco expressiva frente aos demais imigrantes indicados, sua concentração (ver Figura 1) é um fato que requer maior reflexão.

Como por exemplo, ressaltamos sua concentração nas Comunidades Autônomas de Madri, Catalúnia, Galícia, Andaluzia e Comunidade Valenciana, das quais exceto as de Madri (onde se localiza a capital do país) e Galícia (a qual faz fronteira com Portugal), são territórios localizados na costa mediterrânea espanhola, região com alta atividade turística e demanda de serviços temporários e de baixa qualificação. Esta distribuição pode ser melhor observada no mapa abaixo. É necessário deixar claro que estes dados incluem somente os imigrantes em situação legal no país.

 Figura 1: Distribuição dos imigrantes brasileiros nas Comunidades Autônomas espanholas (2003)

      

    Fonte: Instituto Nacional de Estatísticas da Espanha (2004)

Alicante, onde a pesquisa foi realizada, é uma província que pertence à Comunidade Valenciana, situa-se na costa mediterrânea espanhola, denominada “Costa Blanca”. Em 1994, esta era a província com maior número de imigrantes empregados no setor de serviços, com 77,3% e a província que possui maior percentual de mulher empregada (MATEO PÉREZ, 2002). Atualmente Alicante possui 316.178 habitantes, dos quais 31.542 são imigrantes regulamentados. Dentre estes últimos, os brasileiros somam um total de 303, sendo que 211 destes brasileiros (70%) são do sexo feminino (Prefeitura de Alicante, 2004).


A territorialidade dos imigrantes brasileiros tecida em suas representações sócio-espaciais cotidianas

Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadoura que a produção (...). Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação (SANTOS, 1997, p. 262-263).

No período atual, que conhece recentes e constantes mutações, se acumulam novos eventos e experiências espaço-temporais, para a qual necessitamos construir referenciais analíticos adequados para pensar os processos de imigração e as interações interculturais, que considerem as mais distintas dimensões tangidas pelo fenômeno migratório.

Com esta a intenção, buscamos aprofundar o entendimento do papel do território na relocalização e na integração do imigrante em seu novo espaço de ação e relação com os sujeitos autóctones e vice-versa, a fim de um melhor entendimento do processo de criação da territorialidade, que está intrinsecamente relacionado com a geração de identidade, de cidadania e solidariedade entre diferentes e em espaços distintos.

A noção de território foi introduzida nas ciências naturais, a partir da zoologia que se preocupava com a territorialidade dos animais, e depois foi deixada aos estudos sobre ordenamento estatal e políticas de planejamento, que caracterizaram a Geografia política clássica do alemão Friedrich Ratzel, em fins do século XIX.

De acordo com Raffestin (1993) a delimitação de territórios inclui mais que uma simples relação com área, pois esta é mediatizada pelas relações entre os homens e suas relações de poder. Fazendo uma leitura deste autor, Machado (1997) diz que nestas relações estão incluídos “elementos culturais tais como a lingüística, a moral, a ética, a religião, enfim, o conjunto complexo de padrões de comportamento, dado pelas crenças, instituições e valores espirituais e materiais que são transmitidos coletivamente e que caracterizam uma dada sociedade”.

Como afirma Raffestin (1993, p.143), “espaço e território não são termos equivalentes. O espaço é anterior ao território”. O território se forma a partir do espaço, é resultado de uma ação conduzida por um ator que projetou ou realizou um projeto em qualquer nível. Portanto, podemos entender que ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço#5.

Produzir uma representação de um espaço, mesmo se no limite de um dado conhecimento, é uma aproximação de sua apropriação. Qualquer projeto num espaço que é expresso por meio de uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de possíveis ações e tessituras.

Vejamos nas memórias dos entrevistados, alguns exemplos da complexidade dos imigrantes a processos de apropriação de territórios espanhóis.

¿Lo que pensaba yo sobre los países europeos? Yo no podía pensar porque yo no tenía conocimiento. Yo no sabía. Y yo creo que muchos de los brasileños que no van a una universidad, que no tiene un colegio, no lo sabes. Yo pienso, con mi experiencia, que un brasileño piensa que mientras aquí es día, allí es noche, y cuando aquí es noche allí es día. No se puede distinguir nada. Hoy si, puedo pensar. Después que va comprendiendo el mundo... porque he corrido el mundo, porque he salido de Brasil en el año 98, y estamos casi en 2005 (Roselaine, 28, nascida em Duque de Caxias-RJ, empregada doméstica em Alicante e que já não se “articula em português”).

Eu vim com destino a Barcelona, mas a pessoa que ia me receber me deixou na mão. Então vim para Alicante junto com um outro brasileiro que conheci no avião. Mas nunca imaginei, nunca tinha visto falar em Alicante quando estava no Brasil (Jair).

Tanto a carência de uma formação escolar denunciada por Roselaine, a falta de informações, de planejamento, quanto a obrigatória condição de ilegalidade os submeteram à insegurança, ao risco e à ocultação; elementos que passam a fazer parte de suas formas de territorialização. Assim, para o imigrante esta apropriação é mais difícil, pois todo projeto é sustentado por um conhecimento e uma prática, isto é, por ações, comportamentos, que supõem a posse de códigos, de sistemas simbólicos, portanto os limites do espaço são mais penosos a estes sujeitos, visto que os limites são o sistema de signos (pouco ou nada conhecido pelos imigrantes) mobilizado para representá-lo.

O sistema de signos ou sêmico, como chama o autor - ou de representações, que é para nós - é marcado por toda uma infra-estrutura e pelas relações de produção. Podemos dizer que uma das concretizações deste fato está na atuação dos Estados e empresas, que modulam suas políticas e atuam na construção de um espaço, o qual comunica suas intenções e a realidade material por intermédio de um sistema de representações.

Alguns exemplos seriam as políticas de imigração que impõem a legislação básica à que enfrentam todos os imigrantes. Citamos aqui o constante aumento de restrições no que se referem aos vistos e às normas para regularização dos mesmos. As grandes empresas (que assumem papéis antes deferidos ao poder público, tendendo à prevalência dos interesses corporativos sobre os interesses públicos), fomentam a economia informal e de baixa qualificação através das subcontratações de trabalhadores não documentados, “despossuídos” dos direitos legais de cidadão. Então, podemos considerar como fator chave gerador de exclusão social, tanto o contexto político das sociedades de destino que recebe o imigrante e as políticas sociais regressivas e não universalistas (MATEO PÉREZ, 2002), como as necessidades básicas da humanidade, como a autonomia do migrante.

Um argumento nesse sentido, parte de Almeida que, embora seja pós-graduado no Brasil, encontra-se como um imigrante sem documentação na Espanha. Um dos exemplos que mantém o aspecto paradoxal do sistema econômico, historicamente marcado por uma divisão territorial do trabalho, que não reconhece os direitos cidadãos dos imigrantes, os quais têm que se manter na irregularidade, mas, ao mesmo tempo, emprega essa mão-de-obra barata, porque de baixa qualificação e informal.

Pra gente começar aqui sem papéis a gente tem que viver de um subemprego, não de um camelô, porque até de camelô aqui você tem que ter uma licença especial da prefeitura, e pra isso você precisa ter a documentação. Então, existem alguns empregos aqui, que eu considero como subempregos, que você não tem seguridade social, não tem carteira, você não tem nada, você não tem as garantias que a lei prevê para o trabalhador. (Almeida, 32, de Goiânia-GO. Mestre em História em universidade pública brasileira. Atualmente trabalha como enfermeiro particular de idosos e músico no período noturno em Alicante e Benidorm).

A partir de Raffestin (1993) podemos pensar a mobilidade humana como sendo o fato de indivíduos ou grupos se distribuírem e ocuparem pontos no espaço de acordo com a “distância” e a “acessibilidade”. No caso de nosso estudo, estas duas prerrogativas estão direcionadas ao Brasil e à Espanha e, mais que isso, suas regiões e localidades específicas de onde e para onde migram os sujeitos, assim, “a distância se refere à interação entre os diferentes locais. Pode ser uma interação política, econômica, social e cultural que resulta de jogos de oferta e de procura, que provém dos indivíduos e/ou dos grupos” (RAFFESTIN, 1993, p.150).

Isso conduz a um sistema de malhas e redes, organizadas hierarquicamente, que permitem assegurar o controle sobre aquilo que pode ou não ser distribuído, possuído ou construído; permitindo ainda manter determinadas ordens, ou seja, permitem realizar ou não a integração e a coesão dos territórios#6. Tais tessituras podem ser constituídas em vários níveis que podem ter por objetivo, por exemplo, assegurar para a população imigrante o funcionamento no nível ótimo de um conjunto de atividades, ou não. São as tessituras que exprimem as áreas de exercício ou de capacidade dos poderes.

Há tipos distintos de tessituras, destacamos aqui aquelas que o autor chama de “desejadas” e as “suportadas” pelo grupo. Desejadas, como as que permitem Milene aspirar ao exercício de sua profissão na Espanha e, suportadas, como as que roubam as opções reais de realização do sujeito, restando sujeitar-se aos tipos e condições de empregos oferecidos pelo mercado informal aos imigrantes não regularizados:

As pessoas se aproveitam da história do papel, porque se você não tem o papel, te pagam como quer, da forma que quer e quando quer. E você está sujeita àquilo (Roberto Carlos, 28, de Uberlândia-MG, ex-pequeno empresário no Brasil. Atualmente trabalha como pedreiro em Benidorm e mora no mesmo apartamento que Jair).

Eu tenho vontade de trabalhar como dentista aqui, mas eu vi que tá tão difícil, tanta complicação de papel, que me cansa. A questão de documentação é o pior. Aqui, pra uma pessoa jovem, apresentável, tem muita opção de trabalhar na noite. E quando você é brasileira, que todo mundo aqui pensa que você sabe dançar, não sei o que. Então tem muita opção de você trabalhar em discotecas, dançando, tem muita coisa assim, que no Brasil eu não vivia isso nem de longe. Se é uma coisa boa?! Pelo menos é uma coisa que você pode estar trabalhando sem documentação. Porque quando você não tem documentação você não tem muitas opções, e que geralmente eles te pagam negro, como eles falam, porque você não tem contrato. E dá pra viver com o salário (Milene).

A territorialidade de um sujeito autóctone (no caso, os espanhóis) é constituída, por exemplo, pelo conjunto de tessituras, signos e daquilo que ele viveu e vive cotidianamente nos lugares e ritmos que ele acompanha com suas bagagens histórias, suas relações com o trabalho, com o não-trabalho, com suas idéias e valorações de família, de gênero, de lazer, política, economia etc. Idéias e princípios estes que, de súbito, passam a fazer parte do cotidiano do imigrante, que ora se contrapõem ora se radicalizam no exercício da territorialidade.

Uma importante contribuição trazida por Santos (1997, p. 264) está em entender não como desvantagem - como deseja acreditar o pensamento atualmente hegemônico - mas como uma vantagem o indivíduo que, perante este constante estado de alerta e disposição, quanto menos estiver inserido (pobre, minoritário, migrante), “mais facilmente o choque da novidade o atinge e a descoberta de um novo saber é mais fácil”, isto por que, a “reinserção ativa, isto é, consciente, no quadro de vida, local ou global, depende cada vez menos da experiência e cada vez mais da descoberta”.

Embora as relações mantidas com o país de procedência (que por meio das “relações virtuais”, marcam uma forma de presença na sociedade de procedência) possam mediatizar a atuação do imigrante, são nas relações cotidianas que ele e a sociedade se reproduzem, onde as possibilidades dos deslocamentos e as alusões e imagens a lugares e a coisas distantes revelam no ser humano, “o corpo como uma certeza materialmente sensível”, diante de um universo difícil de apreender (SANTOS, 1997).

Realçamos o papel da interação na produção dos sistemas sociais, opondo uma interação mediada por uma racionalidade instrumental, marcada por relações de discriminação, exclusão e dominação e uma mediada por uma pequena margem que é deixada para a diversidade, a criatividade, a espontaneidade e para as “contra-racionalidades, a que, equivocadamente e do ponto de vista da racionalidade dominante, se chamam ‘irracionalidades’” (SANTOS, 2000, p. 115). Nesta última, na qual se incorpora o “sistema sêmico”, ressaltam-se processos de interlocução e de interação que criam laços sociais e a sociabilidade entre os indivíduos e grupos sociais, que são alimentados através das relações de reciprocidade que, por sua vez, facilita aos sujeitos a construção da territorialidade.

É por isso que o espaço encontra-se cada vez mais fragmentado e desigual, pois está submetido às ações hegemônicas, muitas vezes desprovida de sentido e criadora da desordem local, ou seja, as das ações desterritorializadas, que marginalizam os que não detém seus códigos, como a maioria dos imigrantes.

Nesta descoberta o espaço é um dado fundamental, por que é nele que também se dão as relações de contigüidade e solidariedade, onde uma ordem espacial é permanentemente recriada. Este encontro de uma lógica e um sentido próprio localmente construído constitui a configuração da territorialidade. Acreditamos ser esta territorialidade a que Santos (1997) se refere ao dizer que o imigrante tem maior facilidade em construí-la e orientar-se ao se deparar com novidades espaciais, do que aos que pouco são tangidos por este choque da descoberta.

O território é, portanto, a grande mediação entre o mundo e a sociedade nacional e local, não se limitando a territorialidade em identificar e classificar lugares, regiões, mas num entendimento do território como um espaço definido e limitado pelas representações e relações de poder, gerador (e ao mesmo tempo desarticulador) de raízes e de identidade em um grupo social, pois novamente verificamos que a eficácia das ações está estreitamente relacionada com sua localização como, por exemplo, pudemos observar nas falas sobre as motivações das decisões de migrar, o valor da mão-de-obra e o reconhecimento de documentos e direitos humanos dependerem da localização e não da condição de cidadão.


Considerações Finais

Buscando sintetizar alguns aspectos expostos no texto, ressaltamos que quando a racionalidade técnica-instrumental hegemônica desconsidera o direito da mobilidade humana e universaliza práticas particulares de migração, ela mesma radicaliza as conseqüências que o aumento da presença de estrangeiros tem trazido à sociedade espanhola nos últimos anos, tais como novos e constantes desafios que envolvem dimensões sócio-econômica, política e cultural.

Pudemos constatar através das entrevistas que o fluxo migratório brasileiro à Espanha, assim como outros, é tangido pelo atual processo de fragmentação do território e da sociedade, que produz lugares e relações desiguais, exclui aqueles que não dominam os códigos da modernidade e utilizam-se dos meios de comunicação segundo seus interesses, influenciando até mesmo os desejos, destinos e imaginários do homem.

A construção da territorialidade pelos sujeitos, ou seja, uma integração social, se dá a partir do encontro de uma lógica e um sentido próprios localmente construídos, fatores que dizem respeito, segundo Raffestin (1993), ao conjunto das relações mantidas com o território.

Portanto, acreditamos ser a partir de um (re)conhecimento das (re)criações e tessituras dos laços sócio-espaciais construídos nos novos espaços cotidianos dos imigrantes, que os sujeitos podem contribuir para transformações sócio-espaciais, ao mesmo tempo em que as sóciodiversificam a partir de suas representações multiterritoriais. Isto nos parece proeminente, uma vez que, as maneiras como se dão as construções de territorialidade dos migrantes e, conseqüentemente, do seu espaço de atuação, estão amarradas às condições, oportunidades e direitos proporcionadas a eles, assim como a qualquer outro sujeito.

 



Notas:

[1] Este trabalho foi possível graças ao estágio científico desenvolvido junto ao Departamento de Sociologia II, da Universidade de Alicante (Espanha), como Bolsista do Programa Europa AID-Alfa, Projeto “Rede para Investigação Transnacional e Transdisciplinar das Migrações”.

[2] Bogdan e Biklen (1994) apresentam cinco características básicas que configuram pesquisas do tipo qualitativas, as quais acreditamos terem sido norteadoras de nossa pesquisa, sendo elas: ter como fonte direta dos dados o ambiente natural do fenômeno investigado; ser de caráter descritivo; interessar-se mais pelo processo que pelos resultados e produtos; tender a analisar os dados de forma indutiva; o significado é de importância vital na abordagem qualitativa.

[3] Usamos pseudônimos para identificar os entrevistados, a fim de preservar a identidade dos mesmos, visto que a maioria não possui os documentos exigidos para residirem no país. Cabe esclarecimento que os imigrantes se referem ao visto de imigrante e documentação para fins de legalização no país como “papéis”.

[4] Sobre pesquisas realizadas com imigrantes brasileiros nos Estados Unidos ver Teresa Sales (1999).

[5] Citamos alguns mecanismos que transformam o espaço em território: produção do espaço físico, banalizado, transformado pelas redes, circuitos, fluxos que aí se instalam: rodovias, circuitos comerciais, bancários, de pessoas, de idéias.

[6] Neste atual processo de racionalização do espaço geográfico, viabilizado pelos avanços das técnicas, da ciência e da informação, são produzidos espaços da racionalidade, que constituem o suporte das principais ações globalizadas. Processo que não atua igualmente e em todos os espaços ao mesmo tempo, já que não há um tempo, nem um espaço único, mas “espaços da globalização, espaços mundializados reunidos por redes” (SANTOS, 1997, p. 268).


Bibliografia

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