IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

ALÉM DA SOCIEDADE - OS DRAMAS E OS CONFLITOS DO ESPAÇO SOCIAL:

O EXEMPLO DAS MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS

 

Benhur Pinós da Costa

Departamento de Geografia

Universidade Federal do Amazonas

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Álvaro Luiz Heidrich

Departamento de Geografia

Programa de Pós-Graduação em Geografia

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 


Resumo: Entendemos o espaço social como condição da relação dialética entre ordem e desvio na modernidade. Em primeiro momento se produz e reproduz vinculado a condição alienada do “homem-partiuclar” (Heller, 1991) e dos atores sociais de Goffmann (1996), que representam uma “Geografia funcional dos papéis sociais”. Em segundo momento, é condição dos conflitos existentes entre o id e o superego de Freud (1974) e da emergência do sujeito de Touraine (1994). Essa relação dialética explica os sujeitos contemporâneos e implica em expressões territoriais que contém tanto elementos de repressão/ordem, assim como táticas desviacionistas (De Certeau, 1994). Procuramos entender as “microterritorializações urbanas” (COSTA, 2005) resultantes dessas relações enfocando a existência de agregados sociais vinculados aos desejos homoeróticos e a condição homossexual na cidade.

 

Palavras-chave: espaço social, território, territorialidade, modernidade, homoerotismo, homossexualidade, espaço urbano, cultura, identidade.

 


 

Abstract: We understand the space social as condition of the relation dialectic between order and shunting line in modernity. At first moment if it produces and it reproduces entailed the mentally ill condition of the “man-particular” (Heller, 1991) and of the social actors of Goffmann (1996), that they represent a “functional Geography of the social papers”. In according to moment, it is condition of the existing conflicts between id and superego of Freud (1974) and of the emergency of the citizen of Touraine (1994). This relation dialectic explains the citizens contemporaries and implies in territorial expressions that contain as many elements of repression/order, as well as desviacionistas tactics (De Certeau, 1994). We look for to understand the “urban microterritorializações” (Costa, 2005) resultant of these relations focusing social the aggregate existence tied with the homoerotics desires and the homosexual condition in the city.

 

Word-Keys: Social space, territory, territoriality, modernity, homoerotism, homossexuality, urban space, culture, identity.


 

Aquém do indivíduo, o homem-particular

 

Agnes Heller (1991) e Henri Lefebvre (1958) formulam em suas obras uma crítica essencial da vida cotidiana. Para HeHeller os fundamentos do cotidiano estão estabelecidos pelo conceito de “homem-particular”. Tal concepção modifica seriamente a noção de liberdade individual na sociedade moderna capitalista pós-Revolução Francesa. Para Heller talvez não exista o indivíduo, mas o “homem-particular”, como fragmento alienado da totalidade que o reproduz, subjugado a uma realidade pronta, naturalizada e normalizada. Daí da crítica a vida cotidiana. Mesmo participando de vários contextos interacionais, a particularização da vida representa o conjunto de pequenos fluxos, de pontos relacionais, das interações apreendidas, dos destinos manifestos e das ações esperadas e repetidas. Tal particularidade faz parte da complexa totalidade produzida por históricas ações humanas, nos fundamentos da sociedade, que organiza o microcosmo cotidiano como um conjunto de banalidades das coisas a se fazer e na normalidade dos modos que se faz. O cotidiano constitui-se, assim, como a realidade do conjunto de ações e objetos inerentes à vida do homem-particular. A realidade é a vida cotidiana. Ela é vivida pelo aprendizado do homem-particular em relação às coisas como elas são e sua busca por inserção ao que é dado, como pronto e regular. Além disso, ela também é a vaidade alienada do individualismo e o espírito de concorrência para melhor engajamento numa estrutura social hierarquizada. Tal individualismo já não se apresenta como espontaneidade, mas um desejo criado pelas próprias condições alienantes contidas na realidade do homem-particular.

 

Como apontou Freud (1974), a realidade é externa ao indivíduo, mais precisamente, isso determina a condição do homem-particular. A realidade é a naturalização e a normalidade das coisas, algo que pressiona a conduta do indivíduo. Isso transforma o indivíduo em homem-particular, ou seja, alienado nas particularidades que constituem a totalidade das redes sociais. A realidade, assim, é uma complexa abstração tornada “real” pelos procedimentos e condições não-criadas pelo homem-particular, mas que o abarcam e pelo qual ele organiza sua vida: são todas as coisas concretas por ele não criadas, é o conhecimento que adquire, as coisas a se fazer e o fazer como comprometimento a uma natureza dada.

 

Nesse sentido, o conceito de “homem-particular” nos apresenta o elo de relação entre o indivíduo e a sociedade e possibilita a compreensão sobre o ser social. O indivíduo transforma-se em “homem-particular” a partir dos processos de alienação e de sua condição particularizada em relação a complexidade da sociedade. Essa condição se estabelece, em primeiro lugar, pela realidade como construção histórica dos procedimentos sociais objetivados, conforme nos mostra Foucault (1993). A realidade cotidiana é a microfísca do poder. O microcosmo cotidiano representa um conjunto de objetivações, procedimentos, subjetivados pelo indivíduo que o pressionam a qualidade de “homem-particular”. As formas da realidade são inerentes aos procedimentos que movem essa realidade e que devem ser aceitos e abarcados pelo indivíduo como naturais e normais, como fatos do cotidiano. Nesse sentido, a subjetivação representa um caminho que faz o exterior transformar-se no que é interior, ou seja, produz as concepções e aspirações do homem-particular. A realidade, assim, é o que é de mais imediato e palpável, sendo materialidade e ação real, mas converge para um desconhecimento de suas origens, dado pela alienação e incapacidade de gerência das coisas do mundo. Dessa forma, tornamo-nos reprodutores de complexos de coisas que são externas a nos. Essa realidade apresenta-se estruturada em tudo que é concreto e em tudo que é vivido. A realidade é os procedimentos cotidianos legitimados como verdades nas relações normais de trabalho, pelas crenças religiosas, pelas concepções de Estado e de Nação, pela moralidade inserida nas relações sociais, pelas noções de justiça (direitos e deveres), pelos conhecimentos produzidos pela ciência, assim como pela filosofia e pelas artes.

 

Assim se organiza um sistema formal de normas, modelos, ações legais, crenças e conhecimentos que estruturam a realidade. Assim a realidade é uma abstração fundada no nível dos procedimentos cotidianos, tidos como concretos, além de outros níveis de maior abstração, que legitimam a dialética entre concreto e abstrato no nível cotidiano, ou seja, a lei, a religião, a ciência, o Estado, a Nação, o trabalho (a economia) e a política. Para Heller (1991) essa é a essência da vida cotidiana, ou seja, a realidade da alienação do homem-particular, que se estabelece na dialética entre concreto-abstrato do dia-a-dia e que se funda em outro nível de abstração referente às instituições sociais. Para além disso também ocorrem as abstrações ideológicas, fundadas na complexidade histórica das relações sociais, políticas e econômicas, que formam outro nível de abstração inerente ao cotidiano. Além dos procedimentos concretos e das instituições, as ideologias apresentam-se como o mais alto nível de abstração da realidade cotidiana local. Elas formam e mantém as instituições que fundam a realidade do dia-a-dia. Mesmo tomando o cotidiano como o concreto e as instituições e as ideologias como abstrações, todos esses níveis colaboram para produzir a invenção da sociedade como um conjunto de procedimentos objetivos externos ao indivíduo e que em sua história de vida o pressiona a condição alienante de “homem-particular”.

 

É nesse sentido que a condição do “homem-particular” é aquém a condição imaginada de indivíduo. Essa é a proposta fundamental de Heller (1991), desconstruindo a visão liberal de indivíduo e de liberdade pregada nas sociedades capitalistas. Segundo Freud (1974, p. 54), a liberdade não constitui um dom da civilização. Sociedades não “civilizadas” teriam sim maior propensão a liberdade. Para o autor, um dos fundamentos da civilização é castrar o indivíduo da liberdade, uma vez que essa liberdade poderia levar a corrupção e a destruição do outro. A vida em sociedade remete a civilidade contra a barbárie do indivíduo. Os sentidos do social emergem da preocupação das relações entre os homens na busca do equilíbrio e da contenção das pulsões de morte, ou seja, a liberdade individual de desejo quanto ao outro e a pulsão humana de destruição daquilo que é desejado.

 

A civilização, de acordo com Freud (1974), refere-se a um complexo moral que torna restrita a espontaneidade individual. A formação da sociedade como entidade genérica e a noção de totalidade, conforme Lefebvre (1958), é expressão da civilidade humana. De acordo com o autor, a totalidade se revela como práxis, ou seja, a produção material e a produção espiritual, a produção dos meios e dos fins, dos instrumentos, dos bens e dos desejos. A práxis remete a essência das práticas sociais. A práxis se constitui por múltiplos fragmentos de totalização, ou seja, particularidades integradas ao sentido da totalidade e da generalidade da sociedade. A produção da obra humana representaria a parcela individual em busca de totalização, engajada na práxis das relações sociais. A relação individual, assim, se daria pela imbricação do homem com a obra, pelo trabalho envolvido com a práxis social. A individualização remeteria a atividade humana conhecedora da totalidade que busca sua totalização por suas obras e pelo reconhecimento de si como parte integrante na práxis social. Nesse sentido, para Heller (1991) a individualização remete a possibilidade do particular elevar-se acima da particularidade, de elaborar uma relação consciente com a genericidade e chegar a ser um indivíduo.

 

No entanto, os homens, como argumentamos, se tornam “homens-particulares” pois não conseguem se elevar acima da particularidade, em virtude dos processos de alienação. Para Lefebvre (1958), a alienação torna-se fundamento da impossibilidade de grande parte das atividades humanas reconhecerem seus processos de totalização e essa incapacidade é gerada pela separação completa do trabalho e da obra humana, ou seja, o trabalho se transforma em labor à medida que é trocado por salário e à medida que as atividades humanas tendem a se envolver em fetiches econômicos e consumistas. O trabalho motivado somente pelo valor de troca aliena e produz o homem-particular. Contribui a isso a complexa divisão do trabalho na sociedade moderna. Pelo valor de troca o homem perde o sentido da obra humana e se desgarra da práxis social, tornando alienado em funções parcelares e repetitivas. É nesse sentido que o indivíduo se desgarra do sentido de realidade e a realidade torna-se algo externo a ele. Nesse processo o indivíduo se transforma em homem-particular, extremamente envolvido em uma particularidade que não entende completamente pois a tem somente a partir das relações de troca e do fetichismo do consumo. Produz em virtude de um valor de troca que basta a suas exigências fetichistas e, assim, desconhece sua relação com a práxis social. Relacionado a isso está o individualismo na sociedade capitalista e o sentido de concorrência pela ganância pelo dinheiro, ao contrário da concepção de individuação, que remeteria ao indivíduo envolvido em sua obra pelo trabalho comprometido com a práxis ou a totalidade social.

 

Lucien Goldmann (1979), nos explica a emergência desse mundo social exterior ao indivíduo como conseqüência do modo de produção capitalista. O autor privilegia a análise marxista sobre o “valor” e desenvolve sua teoria sobre o social a partir dos conceitos de “fetichismo da mercadoria” de Marx ou “reificação” de Lukàcs. A respeito dessas idéias, verifica-se que há uma tendência a ausência de regulamentação da produção para o mercado e, nos fundamentos do liberalismo econômico, o mercado deve ter liberdade para firmar suas metas de reprodução do capital. Tais metas se tornam flexíveis e mutantes quanto aos seus objetivos e representam uma saga sobre as oportunidades de geração de lucro pela venda e geração da mais-valia. Nos fundamentos do capitalismo liberal as regras são obtidas pela oferta e procura, tornando as condições de reprodução econômica e de envolvimento social caóticas e imprevisíveis.

 

A economia mercantil, segundo Goldmann (1979, p. 112), é caracterizada por sua universalidade, por sua anarquia e pelo condicionamento das relações sociais ao valor de troca. Isso estabelece a rigidez do sistema e as condições de controle individual. As relações sociais de produção condicionadas pelo valor de troca, em substituição as relações centradas no valor de uso, em sociedades não-capitalistas, condiciona o indivíduo em um autômato que se envolve em relações sociais objetivadas pelo mundo econômico, totalmente abstratas a eles. Por essa razão, os homens perdem o sentido de solidariedade que envolvia comunidades pré-capitalistas e estabelece funções sociais envolvidas no egoísmo da necessidade de adquirir dinheiro. Como já dissemos, o trabalho se transforma em labor, ou seja, nas relações de produção as obras estão desvinculadas dos indivíduos devido à divisão excessiva do trabalho e do pagamento salarial (valor de troca). Nesse sentido, o homem não produz para o social, mas para si mesmo para suprir suas necessidades e seus anseios de consumo. O “homem-particular” se envolve num mundo abstrato, quantitativo e exterior a ele, portanto “naturalmente” incompreensível, e seus objetivos são abarcados pelos anseios de ascensão consumista. Com isso, o individuo, na qualidade de “homem-particular”, torna-se vítima das relações de poder para reprodução do capital monopolístico e processos de hierarquização social, tornando-se um ser alienado de suas condições e envolvendo-se num mundo que é exterior a ele, prático e racional, cuja afetividade e solidariedade vão sendo confinadas no mundo privado da família e das relações de amizade.

 

Na vida humana, então, o qualitativo é substituído pelo quantitativo e, em virtude do trabalho abstrato, o homem-particular sofre de forma passiva a ação das leis sociais que são exteriores a ele, envolvendo-se numa realidade abstrata tida como um conjunto de ordens, cenários e sistemas de ações tidas como previsíveis e “naturais”. A origem dessa condição se justifica pela complexa teia de mediações presentes e emaranhadas na história da formação das sociedades capitalistas modernas, que tornou o indivíduo um ponto inexpressivo e anônimo pela rede de homens-particulares que se anulam mutuamente. Dessa forma, os significados humanos são produtos da “natureza das coisas”, de acordo com Berger e Luckmann (1985, p. 123), e a reificação, então, é a apreensão do homem-particular dos fenômenos humanos como se fossem coisas em termos não-humanos ou super-humanos, fazendo-o esquecer da própria autoria do mundo e perdendo a consciência de suas obras. Dessa forma, o homem desempenha papéis como ações e situações inevitáveis, pois são possibilidades natas de inserir-se nas condições quantitativas do labor e do valor de troca que rege a sociedade. Nesse sentido, o indivíduo, digo aqui, o homem-particular, “executa ações objetivas, conhecidas, recorrentes e repetíveis por qualquer ator do tipo adequado” (idem, p. 101). A isso compete o papel, ou seja, um conjunto de tipificações válidas que torna o mundo real para os “homens-particulares” e que possibilita a inserção e a reprodução das condições da divisão do trabalho e das funções vinculadas às relações de troca.

 

Os papéis assim são institucionalizados, ou seja, são tipificados reciprocamente como ações habituais de atores sociais. As interações institucionalizadas convergem um conjunto de atores que desempenham papéis como padrões previamente definidos de condutas válidas, condicionadas pela abstração da realidade que envolve a reificação. De acordo com Berger e Luckmann (1985), as instituições, como conjunto de interações situacionais de atores desempenhando papéis sociais, são cristalizadas e experimentadas como existindo “por cima” do individuo, ou seja, representam justamente a perda da consciência da práxis social que dá qualidade a condição de homem-particular e que dificulta os processos de individuação. Isso, então, apresenta-se como fundamento da vida cotidiana, como se fosse o caminho inverso da sociedade produzindo o homem, ao invés da sociedade como produto humano. A sociedade é a realidade objetiva das formas e dos procedimentos panópticos de Foucault (1993), cuja relação entre essa sociedade e o indivíduo se dá, em primeiro momento, pela objetivação, ou seja, as coisas do mundo são fatos naturalizados, prontos e inevitáveis, e em segundo momento pela interiorização, ou subjetivação, ou seja, a conscientização da objetividade externa como realidade dada e naturalizada que condiciona o homem-particular ou ator social.

 

 

A ator social e a geografia dos papéis

 

Goffmann (1996) evidencia que as interações sociais são estabelecidas por “representações” que o individuo desempenha frente a um grupo de observadores. Essas representações são desempenhadas, então, em cenários específicos a interação. Esses cenários institucionalizam e são institucionalizados por representações que envolvem um conjunto de papéis sociais a serem desempenhados por atores, mediante a apropriação da fachada da representação.  O cenário é a geografia da representação dos papéis sociais avivados por atores. Os cenários tendem a se manter na mesma posição e configuram a institucionalidade das representações em relação aos papéis. O ator, então, é que se move de cenário em cenário e o cenário constitui-se de corpo material que abarca a invenção nominal da instituição. A instituição, abarcada pelo cenário, assim como também produzindo o cenário, é a fatalidade que fragmenta os papéis sociais a serem desempenhados. O ator, então, se movimenta entre os cenários das instituições e se apropria de um fragmento da interação, ou seja, uma representação condizente do conjunto de papeis pertencentes a instituição e materializados pelo cenário. As representações dos papéis sociais pelos atores são formadas por “aparências” e “maneiras”. A primeira informa o status social do ator, dessa forma mais rígido e condizente com um conjunto de maneiras esperadas que se referem determinado  status, assim atemporal a situação. As maneiras expressam a situação “aqui e agora” da interação e os caminhos possíveis de condutas condizentes a relação entre a aparência e a especificidade da interação.

 

Assim, Goffmann verifica que a sociedade se processa como um conjunto de cerimônias que rejuvenescem e reafirmam constantemente os valores morais dela mesma. O mundo social, assim, é um conjunto de sistemas de reuniões ritualizadas que fundam a condição do ator social, ao mesmo tempo abarcado pela exterioridade dos cenários e instituições sociais e cínico pelo desempenho frio de papeis naturalizados pelas relações mercantis do valor de troca. Além disso, Goffmann (1996) atenta a complexidade social verificando processos que denomina de “segregação de auditório”, que permite ao ator o envolvimento com várias representações em cenários diferenciados. Dessa forma, além da exterioridade naturalizada das instituições e cenários sociais, o homem-particular ou ator se fragmenta em atuações para diferentes auditórios que se apresentam segregados. A segregação, assim, torna possível e é inerente a divisão de trabalho em sociedades modernas capitalistas que mobiliza porções de atores ou homens-particulares ao desempenho de tarefas especializadas. O ator social se envolve em múltiplos cenários de interação que apresentam múltiplas exterioridades referentes a papéis sociais (múltiplas aparências e maneiras) que deve desempenhar. A intensa atividade do ator social expressa a pobreza de sua alienação o extremo processo de particularização que o afasta da práxis do social.

 

De acordo com Velho (2004b, p. 43), Goffmann preocupa-se com o “próprio processo de definição de situação e construção da própria interação”, assim dá corpo a micro-sociologia que se ocupa com as regras, as negociações, os encontros e desencontros inseridos nas situações banais do cotidiano. No entanto, a condição de banalidade guarda consigo o peso da dominação que pressiona o homem-particular. Para Goffmann (apud TEDESCO, 2003, p. 68) os “imponderáveis da vida real aparecem, estruturam-se e dinamizam-se na situação social, no ambiente recíproco, na ocasião social (evento que se localiza e se temporaliza) e no encontro social (ocasião de interação face a face)”. Assim, os cenários de interação são unidades temporais e espaciais que transcendem o “aqui e agora banal” (a situação banal cotidiana) e se constituem na complexidade da trama de poderes e formas sociais institucionalizadas que definem a sociedade como macroestrutura. Dessa forma, a realidade social se processa como microexperiências baseadas na condição de homem-particular e ator social e as estruturas sociais, na escala do cotidiano, transformam-se nas microestruturas da interação. Tais microestruturas de interação são condições naturais de interação que  apresentam regras que guiam o processo de representação do ator social. O ator preocupa-se constantemente com o decoro e apropria-se, pelo aprendizado, de condutas exteriores a ele, cumprindo o “script” situacional, sendo julgado pelos atos mínimos da platéia, desde expressões mínimas de estranhamento, até atos de violência em relação ao descumprimento do esperado na situação.

 

As relações entre indivíduo e sociedade, assim, apresentam-se por essa complexidade de situações de interação que banalizam os condicionantes históricos da rede de poderes que constituíram a própria sociedade e que oprimem o indivíduo, impedindo-o seu processo de individuação e o condicionando a ator social. Para Goffmann, a dominação da sociedade sobre o indivíduo apresenta-se pelo “controle escalonado” (BECKER, 2004, p. 104) como evidencia das relações de poder sendo exercidas no ato da interação, cujos atores anulam mutuamente ações que escapem a condição de existência institucionalizada da interação. Por meio da condição desigual de status dos papéis, as maneiras desviantes acabam sendo propensas a sanções, pela ação de um micro-poder que faz cumprir o estatuto interacional. Assim, de acordo com Gastaldo (2004), a sociedade apresenta-se como um conjunto de “enquadramentos” que se referem a contextos interacionais que abarcam um conjunto de atores sociais desempenhando papéis que instituem regras a serem seguidas. Os contextos interacionais dos “enquadramentos” (idem, 2004, p. 112), são células no qual pululam micropoderes que condicionam minimamente os homens em sociedade: pelas regras dos papeis, pelos procedimentos da interação, pelas formas dos cenários e pelo conjunto de possíveis sanções estabelecidas mutuamente. O controle escalonado que define os enquadramentos é situacional no tempo e no espaço, constituindo cenários específicos e que segregam auditórios nos quais o ator deve se apresentar e representar.

 

A relação entre as noções que Goffmann propõe, como o complexo da situação formado pelo controle escalonado, pelos enquadramentos, pelas instituições, pelos papéis sociais e pelos atores, dá corpo a idéia da sociedade constituída por múltiplos e complexos microterritórios de interação, também chamado por Gluckmann de pockets of social relations (GLUCKMANN apud VELHO, 2004), como bolsos de relações sociais que tendem a um fechamento ou segregação entre diferentes formas e encontros interacionais (diferentes cenários institucionalizados ou diferentes enquadramentos). A sociedade assim, se constitui de múltiplas microterritorializações de interação social. Essa idéia adquire mais sentido quando lembramos que as interações são temporais e espacialmente estabelecidas e definem-se por relações de poder externas e internas a ela: internas pelas funções desiguais de representação dos atores no ato da interação, que culminam em sanções para que aconteça o fluxo normal das atividades e interesses relacionais, e externas pela condição existencial do encontro dos atores em interação, como instantâneo ponto localizado regido por sentidos que constituem a amplidão da sociedade e as redes de poderes que a constitui.

 

Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, cada instituição tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, descobrimos que algumas são mais fechadas do que outras. Seu “fechamento” ou caráter total é simbolizado pela barreira a relação social com o mundo externo e proibições de saída, que muitas vezes estão incluídas no sistema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. (GOFFMANN apud BECKER, 2004, p. 107)

 

A sociedade assim, além das condições macroestruturais, pode ser explicada pela objetividade panóptica de micropoderes que produz e reproduz a realidade concreta dos atores sociais. O poder se circunscreve, de acordo com Foucault (1993), nas pequenas áreas de interação que abarcam a produção do material, do corpo do ator, de suas ações e de suas concepções. Esses micropoderes constituem as formas heterogêneas e dispares da realidade das interações sociais e se transformam nas próprias práticas sociais nos contextos relacionais. A sociedade nada mais é que um conjunto de formas e conteúdos que disciplinam os encontros humanos mediante interesses complexos. A sociedade disciplinar, constituída desses micropoderes interacionais, organiza o espaço, distribui os homens-particulares, classifica-os, combina-os e os hierarquiza, tornando-os capazes de exercer funções abstratas e exteriores a suas subjetividades. Mais ainda acaba produzindo suas próprias subjetividades. O ator, assim, somente reproduz, estando isolado na restrição das microparticularidades de interação, por onde fluem os micropoderes que os torna incapazes que apreender a totalidade ou a práxis social. O ator assim é a condição do indivíduo alienado e incapaz de atingir a individuação como possibilidade de erguer-se em relação às particularidades que o oprime e que possibilitam a manutenção do status quo dos interesses que se reproduzem historicamente. 

 

 

A emergência do eu: os sujeitos

 

Podemos entender a sociedade como uma grande estrutura mecânica no qual os indivíduos tornam-se meras peças a desempenhar racionalmente funções múltiplas. Mas qual a origem fundamental disso? Digamos que a origem é justamente o controle sobre a liberdade de prazeres dos indivíduos que formou uma complexa espiral histórica de regulação das relações dos homens pelos próprios homens, no qual, sobre o propósito de conter o instinto de pulsão de morte (a degradação do outro sobre o princípio do prazer), se estrutura um conjunto de instituições e normas que fundam a ética dos relacionamentos humanos. É por isso que a sociedade se estabelece como algo além do indivíduo, superior, que regulamenta suas ações em prol da coletividade. O discurso de sociedade além da consumação da “vontade geral” de Rousseau, aparece como inerente ao princípio de “civilização” que se opõe a “selvageria” das relações entre os homens, baseadas na égide do prazer individual.

 

De acordo com Freud (1974) o poder do indivíduo substituído pelo poder da comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Para o autor (idem, p. 53), a vida humana em comum só é possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado. O poder dessa comunidade é, então, estabelecido como direito, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta. Nesse sentido, a essência está no fato que os membros da comunidade se restringem em suas possibilidades de satisfação. O fato que nos interessa é que o desenvolvimento da sociedade significa, em primeiro momento, a contenção dos instintos individuais e um aprisionamento do individuo sobre a ética do viver em comunidade. A esse significado encontra-se a discussão da dialética entre a contenção do indivíduo sobre propósitos positivos de regulação dos instintos destrutivos do prazer e/ou a emergência do prazer dos mais fortes contendo as forças brutas selvagens que pudessem lhes estirpar seus poderes, sobre a condição do funcionamento da sociedade. Daí têm, assim, a realidade como condição da relação dialética entre indivíduo e sociedade, que fundamenta grande parte da sociologia e da psicanálise, e que aqui propomos tratar sobre a ótica da Geografia.

 

Como contradição à visão que estabelecemos sobre uma sociedade racional e mecânica, cuja ordem é o fundamento principal, Freud (1974) argumenta que o principal propósito da vida animal é o princípio do prazer. A ordem aparece como o diferencial entre o animal do homem e se transforma numa compulsão repetitiva para decidir onde e como as coisas devem ser efetuadas. Ela aparece como elemento fundamental à regulação do prazer de dominação dos mais fortes sobre os mais fracos, pela necessidade de racionalização econômica desse prazer a fim reter no tempo as condições de subordinação e reprodução das riquezas oriundas dessa dominação. Prazer e ordem aparecem como compulsões humanas dialéticas na obra de Freud, no entanto, o que origina a compulsão da ordem é a compulsão primeira do prazer. A ordem, de acordo com o autor, regula a propensão nata do prazer da destruição. A ordem nunca ocupou as relações humanas sem obstáculos uma vez que os “seres humanos revelam uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade” (1974, p. 51).

 

A felicidade humana para Freud provém do princípio de prazer e os prazeres provêm da satisfação repentina com manifestação episódica, ou seja, advém de um estado de espontaneidade que movimenta corpo e mente a sua satisfação. Nesse sentido só podemos derivar prazer intenso de um contraste e não de um Estado de coisas. O prazer é a espontaneidade da ação humana em experimento, no ato da descoberta e tem pouco haver com o “estado das coisas”. Assim, segundo a ordem das coisas do mundo civilizado, as possibilidades de felicidade (a satisfação do prazer) são sempre restringidas. Na visão negativa de Freud o homem civilizado é pouco propenso ao prazer, e muito mais a infelicidade. O homem é infeliz pela decadência do próprio corpo ao longo do tempo, pelo mundo externo (civilizado), que se volta contra ele, extirpando seus desejos e estabelecendo as regras de acordo com a ordem das coisas, e, finalmente, pelo relacionamento com os outros homens, que impossibilita a espontaneidade momentânea do prazer pelo próprio choque relacional e/ou pela ordem que regra essas relações. Dessa forma a história humana talvez seja a história de contenção da felicidade que se transformou na história da realidade.

 

A realidade, pelo que argumentamos, se transforma em algo externo as necessidades espontâneas do prazer humano. As obrigações da sociedade organizada são naturezas independentes do interior do “indivíduo desejante”. Sua vida é condicionada pela dialética de participação a essa ordem externa e uma pressão interna de satisfação de desejos que, muitas vezes, não são condizentes com a vida em sociedade. Para Freud o que ocorre, na maioria das vezes, é uma discrepância entre o pensamento das pessoas e suas ações, movimentadas de acordo com as ordens sociais. Ocorre, assim, a coersão dos indivíduos a estabelecerem ações inseridas nas necessidades do movimento e da ordem da sociedade, o que se aproxima muito da idéia de homem-particular, na visão do cotidiano marxista, ou ator social, na visão interacionista. O “ego”, assim, inclui tudo: desejos internos e mundo externo. Em primeiro momento, o ego se volta para si, para o interior do indivíduo: são seus pensamentos separados das ações convenientes ao mundo externo, próximo aos reais sentimentos desejantes que estão contidos no id. Pelo Ego o indivíduo separa de si mesmo um mundo externo (superego), assim como o ego se transforma num vínculo íntimo entre indivíduo e mundo externo.

 

Por outro lado, o ego se expande para o mundo externo buscando veículos de satisfação imediata do prazer. Isso culmina na criação de mundos próprios, com melhores condições de sensibilidade, que, muitas vezes, pode levar a condições “patológicas” ao social. Por outro lado, ele pode expandir-se canalizando seus estímulos desejantes a brechas que encontra ao social, como a dedicação ao trabalho e emergência da criatividade ou a manifestação de egos desejantes em possibilidades de relações informais no espaço social, como fundamento da formação de agregados urbanos desviantes e guetificados nas cidades.

 

Tomaremos como conceito de ego a palavra “eu”. Freud, pensando no eu como entidade que expressa a dialética entre prazer e ordem (bastante conflituosa no interior pessoal), coloca em questão a relação do homem com a sociedade e rompe com o simplismo da estrutura social mecânica. O prazer não pode ser totalmente contido para o cumprimento dos papéis ou pela alienação prático-econômica do homem-particular. Em algum momento o ego deverá abrir-se ao exterior e deixar fluir o núcleo individual que consiste o id. Por outro lado, o ego pode ser sublimado a partir de tarefas possíveis a sociedade e que o indivíduo exerce com toda a dedicação. Lefebvre (1958, p. 220) observa que a espontaneidade não pode ser vista como não-social, ela é condição do social. Na vida cotidiana, para o autor, a espontaneidade como veiculo do prazer propriamente individual inexiste. A espontaneidade existe como elemento arraigado às possibilidades contidas no social. Isso equivale à espontaneidade do ator a cumprir um papel e por ele esse ator canalize sua energia selvagem contida no id.  No entanto, a sublimação não sacia o desejo que é inerente ao homem, o homem mantém uma irresistibilidade pelos “instintos perversos” e uma atração às coisas proibidas. A contenção do id pelo trabalho ou pelo comprometimento com o social é continuo e desestimulante. Para se manter revigorado o trabalho deve conter sucessivos choques de inovação, mutação das tarefas e das metas, eventos que possibilitem novas condições de sublimação. Em relação às condições sociais do trabalho e a tendência às tarefas rotineiras, isso se torna quase impossível, mesmo no atual momento da flexibilidade econômica. Em todos os momentos, a ordem social é incondizente com o princípio de prazer individual. Para isso, o homem não se contém e burla o social, criando possibilidades desejantes instáveis e mutantes. Essas possibilidades desejantes acarretam a emergência do estilo individual, da criatividade e da personalidade forte que inova nos círculos sociais subliminares. Também inferem na formação de outros círculos sociais desejantes desviantes dos inúmeros existentes nos intermeios, nas brechas e nas obscuridades subterrâneas do espaço social. Por outro lado, no caso extremo, o homem-desejante pode se desvincular totalmente de sua particularidade, se isola patologicamente e cria uma condição de perversão extrema e totalmente aquém das condições sociais: torna-se um louco ou um psicopata.

 

Como vimos, o eu encontra a sociedade e já não é mais eu e sim “mim” (MEAD apud HOLLAND, 1979) e por esse “mim” cumpre papeis que, além de suas atitudes, estabelece inclusive suas formas de pensar. De acordo como o autor, a condição do mim advém do trabalho de interação do eu com o “outro generalizado”, ou seja, os determinantes institucionais da sociedade. Porém, em substituição ao outro generalizado, Mills (apud HOLLAND, 1979, p. 113) propõe a noção de “outros significativos”, que se aproxima da idéia de círculos sociais (KELLY apud HOLLAND, 1979, p. 130), que acaba tornando mais fluida a analise das ações sociais pela estrutura em substituição a analise interacional da situação, assim como perturbações existentes nela. Nosso interesse aqui são essas perturbações. A analise dos papéis sociais de Goffmann (1986) prevê essas perturbações a partir da idéia de decoro. O decoro é a falha no desempenho dos papeis sociais, porém é mais do que isso, é a evidencia da tendência humana a imprecisão e a irregularidade. O próprio Goffmann (HOLLAND, 1979, p. 115) prevê um distanciamento do papel no ato da interação, ou seja, a evidencia de um estilo pessoal que acaba abarcando a complexidade de papéis que o homem exerce. Não podemos nos distanciar da complexidade que somos, tornando puro o desempenho dos papéis. Somos repletos de papéis a desenvolver quanto as exigências do social, assim como somos também munidos de instrumentos desejantes internos que acabam sendo canalizados para o desempenho desses papéis. Assim a criatividade individual emerge nas interações sociais.

 

Holland (1979) chama atenção ao processo de socialização que consiste num caminho que transcende o id, o ego, passando do mim e as exigências sociais que constituem o superego. Nesse caminho podemos ver o individuo abarcado por todas essas instâncias que transcendem o papel racional. Na situação, ao mesmo tempo, o individuo é id, ego, mim e superego. Kelly (apud HOLLAND, 1979, p. 103) verifica que a teoria do papel social encontra três principais perspectivas: a perspectiva econômica, centrado nos outros para desenvolvimento do trabalho, a perspectiva da representação, de cunho ideológico e da norma institucional, e a perspectiva da reunião de homens empáticos e questionadores que buscam a compreensão do social. A primeira já denota uma instabilidade pois os fenômenos econômicos capitalistas já são condicionados a flexibilidade na busca de geração do lucro, mas a terceira abre inúmeras possibilidades de questionamento e de contestação as condições naturalizadas das situações sociais. Nesse sentido, também está presente na teoria do papel social a relação entre potenciais criativos humanos e as exigências da sociedade que procura sua reprodução. A essa crítica se abrem fluxos de possibilidades de interações informais e ilícitas ao social, que torna emergente o indivíduo desejante e a canalização dos prazeres do id. Tais “formas-conteúdo” de interação social amenizam o sentimento de culpa daqueles que não encontram no social suas possibilidades de felicidades plenas e, em reunião mutua, formam micro-realidades nos quais a espontaneidade e os desejos íntimos podem ser expressos.

 

Assim sendo, o eu (ego) apresenta-se pela condição dialética entre desejo/espontaneidade e ordem/função/moral representativas, respectivamente, do id e do superego freudiano. Na visão psicanalítica, devido às pressões sociais exercidas no indivíduo, desde a infância, o ego, esse misto de desejo e determinantes sociais, é interiorizado, sendo sobrepujado pelas condições que fundam o ator social. O ego interiorizado representa grande parte dos problemas individuais e a luta por sua expressão apresenta-se como a maior batalha do homem desde os fundamentos da modernidade. No entanto, uma das grandes contribuições de Freud, apesar do negativismo psicanalítico, é justamente verificar a existência dessa batalha e explicitar que a civilização e que a modernidade talvez constituam um dos grandes problemas da humanidade. Os fundamentos conceituais freudianos produzem a idéia de um ego oprimido que busca sua emancipação.

 

Tal busca pode implicar em patologias psicológicas e desvios sociais ou então nos diversos mecanismos de sublimação das energias humanas, cujas tramas sociais, principalmente de ordem econômica, aproveitam esses benefícios instintivos e criativos e os canalizam como novas formas de trabalho e reprodução do capital. A própria “evolução” da sociedade está imbricada a essa dinâmica. Talvez o ego nunca tenha sido totalmente interiorizado. Sabemos da existência das figuras dos loucos, dos pervertidos, dos mal-feitores, dos ladrões, dos degradados, dos corruptos, entre outras figuras repugnadas pela sociedade, cujas formas de exteriorização do ego, em contradição a ordem social, ocasionou as necessárias formas de patologias sociais. Dizemos necessárias pois se constituíram como discursos de “identidades” negativas que oportunizaram exemplos explícitos nos quais corrompiam a ordem social e a integridade de todos: o feio, o louco, a bruxa, a prostituta, entre outros. Dessa forma, foram necessárias para identificarem o que estava/era “errado” e indigno aos benefícios de se viver em sociedade. Por outro lado, muitos desses loucos e pervertidos uniram-se em outras tramas que impunham obstáculos as rígidas condições sociais e possibilitaram a emergência de outras condições de interação que se aproximam-se a diversidade de afetividades humanas. A partir daí, diferentes processos de sublimação das identidades desviantes foram se organizando para fazerem canalizar energias transformadoras mais proveitosas aos interesses de poderes políticos e econômicos que instituíram o social. Talvez isso seja um dos fundamentos da dinâmica da sociedade e evidencia de fluidez. Daí a expressão de inúmeras figuras transformadoras do social, como escritores, filósofos, educadores, lideres locais, artistas, entre outros que não somente canalizaram suas energias vitais a formação de novas concepções, mas abarcaram os anseios de inúmeros outros anônimos a rigidez social. Assim apresenta-se a condição da sociedade, como dialética entre rigidez e fluidez, como “magma” que ao mesmo tempo em que “escorre” vai cristalizando-se parcialmente, por suas bordas, por seu meio, até que se transforma em rocha. Então vem a erosão que acaba tornando fluida a rocha, que em algum momento forma outra, e assim por diante...

 

Os egos, então, seja pela patologia, seja pela sublimação, seja por outras condições diversas, emergem e acabam transformando o social. Assim surgem os sujeitos, conforme Touraine (1994), como aquele que não se comporta conforme os papéis sociais rígidos do ator social, mas que questiona e modifica a sociedade, mesmo que num pequeno ato inexpressivo do cotidiano, até a figura de um grande autor e uma grande obra que se dissemina por toda a parte.

 

O sujeito é condição do ego exteriorizado que questiona a sociedade como natureza naturalizada e externa a si. Tentando compreende-la age e produz obras que fazem emergir sua individualidade. O sujeito canaliza um processo de individuação que se sobrepõe à condição de homem-particular, mas nunca consegue se estabelecer totalmente na condição de indivíduo, isso por que está presente em sua condição a própria pressão e rigidez da sociedade que o abarca. Podemos falar em sujeitos sociais, no plural, que não são entidades fixas da dialética do ego exteriorizado - uma imbricação entre desejo e papéis sociais -, mas condições individuais e coletivas fluidas diversas, que não representam um “meio” do que é social e do que não é social (expressão dos desejos intimistas e das energias instintivas humanas), mas talvez vários “patamares” ou “posições” instáveis no processo de individuação. Essas posições variadas são condições múltiplas, como lemos em Latour (1994), e não estáticas dos pólos natureza e sociedade.  Daí a própria crítica ao conceito de sujeito. Os sujeitos são múltiplos e não são condições “meio” entre natureza (desejos humanos) e sociedade (racionalização das identidades corretas dos papeis sociais), mas diversidades fluidas de indivíduos e/ou coletividades que buscam suas individuações e travam - com ora muitos ganhos, ora muitas perdas - cotidianas lutas para fazerem valer suas falas.

 

 

O sujeito homossexual e sua insuficiência teórica

 

As idéias que abordamos nesse capítulo servem para traçar o caminho de entendimento do que seria o “sujeito homossexual”. Como já vimos, o termo homossexual, assim como o heterossexual, foi proposto no século XIX para designar um pólo sexual desviante a ética sexual da burguesia emergente. Neste mesmo século, conforme COSTA, B. P. (2002), a sexualidade da família burguesa heterossexual passava por mudanças que representavam a passagem dos casamentos mediante puros interesses econômicos a ideais do amor romântico e do amor confluente.

 

O movimento romântico discursou muito sobre os amores entre homens e mulheres e fundou a ética da lindeza e da solidez da afetividade heterossexual como projeto ideal à felicidade individual. A partir desse amor romântico ideal, incluindo também o novo papel de esposa amante - não somente de esposa-mãe, do momento anterior - instaurou-se a fortaleza da família heterossexual monogâmica. Isso vai se adequar aos ideais burgueses de reprodução e monopolização do capital a partir da família e seus projetos de ordenação social, como vínculos a filosofia de progresso e expansão econômica sob ótica moderna. Sutilmente funda-se uma ética afetiva que acaba contaminando todo o tecido social. Casamentos não mais eram somente para procriação e vinculados a valores econômicos, mas o casamento começa a representar a beleza do amor entre um homem e uma mulher e a fortaleza do casal proporciona a ascensão social. Aos poucos se faziam calar qualquer outra possibilidade erótica e afetiva que fugisse a beleza do amor entre um pai e uma mãe de família. A tudo que fugisse desses propósitos começa a ser aprisionado pelos estudos científicos e pelas obras literárias. Por um lado funda-se a identidade de gênero no sistema familiar romântico heterossexual, por outro, discursos médicos e literários aprisionam outras expressões a identificações desviantes, dando sentidos sociais a expressões de prazeres diversos fora do projeto familiar. O principal pólo desviante foi, e é, até então, a homossexualidade. Na passagem do século XVIII para o XIX, então, a ética sexual chegava inerente a idéia de conjugalidade entre os sexos opostos, tornando esse modelo norma frente as demais práticas sexuais

 

Segundo Costa, J. F. (1992), sexualidades emergem a partir do século XIX como constructos teóricos nascidos da racionalidade científica ou com pretensões a ela. Segundo o autor, Kraft-Ebing em seu livro “Psychopathia sexualis” desenvolve, envolvido com o evolucionismo e como o positivismo naturalista do século XIX, noções de ordem e desvio naturais, classificando todas as aberrações e anormalidades sexuais. Também estabeleceu os normais, que copulam com pessoas do mesmo sexo, e os perversos que somente se excitavam com partes do corpo de pessoas em que não tinham compromisso de reprodução. Entre essas duas classificações identificou os “invertidos” que só sentiam desejos por pessoas do mesmo sexo. Mas a homossexualidade, como construção teórica, que acabou impregnando-se no tecido social, identificando de forma simplória a diversidade de atrações homoeróticas, como pólo contrário à heterossexualidade, emerge, por incrível que pareça, conforme o Costa, J. F., como instrumento de denúncia social.

 

A literatura de escritores homossexuais da época procurava encontrar saídas que amenizassem a idéia do homossexual invertido e perverso, no entanto fundam a síntese dos traços comuns que identificassem o “homossexual” e, da mesma forma, acabaram classificando e polarizando as diferentes subjetividades e expressões sexuais humanas. Escritos de Balsac, Proust e Wilde procuram denunciar a hipocrisia dos costumes emergentes da burguesia moderna industrial e dos padrões e representações da sociedade urbana emergente. Para esses autores, o “homossexual é um “outsider” cuja preferência amorosa desfaz o silêncio tecido pela sociedade em torno de sua origem e funcionamento escusos” (COSTA, J. F., 1992, p. 45). Porém, ao denunciar a sociedade hipócrita, a literatura sobre a homossexualidade acaba criando um ser homossexual e, assim, acaba contribuindo a polarização da sexualidade e organização das expressões vinculadas a ela.

 

Dessa forma, mesmo como críticos a sociedade, tais autores acabam contribuindo com a ordem ascendente. Segundo o autor (pp. 50-55) os discursos são:

 

1) Balsac: defesa do homossexual como um marginal ou como um rebelde romântico. O homossexual seria uma espécie de bom selvagem em meio à selva parisiense do século XIX. Um homem apto a subverter moralmente a sociedade;

 

2) Adolfo Caminha em “O bom-crioulo”: a transgressão homossexual como mera submissão aos mandamentos do instinto. Homossexualismo como sexo animal, sem freios, vergonhoso e imoral;

 

3) Proust: homossexualismo relacionado às leis da evolução de Darwin. O Homossexual é um exemplar da natureza, mas de natureza especial, a natureza depois da queda, depois de banida do Éden pelo castigo dos deuses. Homossexual como descendente da raça de Sodoma, dos que escaparam a ira de Deus. O homossexual, assim é a transfiguração do infame. Os sodomitas se encontram e se atraem, porém o encontro inevitável não leva a reprodução biológica. O produto desse acasalamento é a fecundidade espiritual, uma fertilidade superior, que gera o belo, o artístico, o amor pelo elevado. O homossexual, assim, teria uma refinada sensibilidade. A imagem do homossexual depravado, perverso e corruptor de menores, ele opunha o retrato do sodomita aureolado de flores, polens, insetos e delicados aromas;

 

4) Gide: homossexual como ser em conflito. O homoerotismo é um caso particular da luta entre o bem e o mal, o pecado e a virtude, a falta e a reparação, a carne e o espírito, a razão e a emoção, o hedonismo e o ascetismo. É um ser dilacerado, um exemplo da divisão infeliz e da divisão ontológica do sujeito.

 

5) Outras correntes:

 

a) Relações homoeróticas como latência perversa que todos possuímos. Homoerotismo como etapa da vida (pertencente a infância) que deve ser meticulosamente vigiada e punida para ser controlada e esquecida. Se persistir se degenera em atrocidades inconcebíveis. Costa, J. F. cita autores como Raul Pompéia, Musil, Forster, Stephen Spender e Gide que desenvolveram essa idéia.

 

b) Do homossexualismo de escola passa-se ao homossexualismo de quartel. Novelas como “O Bom Crioulo” de Caminha, “O oficial prussiano” de Lawrence e o “Golpe de misericórida” de Yourcenar. O sono da repressão produz monstros. Em ambientes inflexíveis e rígidos militares homoeroticamente inclinados entregam-se em verdadeiras orgias de brutalidade contra as vítimas de suas aspirações sexuais. O desejo amoroso torna-se uma descida aos infernos.

 

c) Homossexual moderno e sua matriz exótica, cumprindo três funções básicas:

 

i. Superioridade do burguês branco, civilizado, metropolitano e colonizador: Gide em “O grão não morre” e “O imoralista” desloca o homoerotismo para a África do Norte e em meio às dunas, areias escaldantes, absinto, danças do ventre e peles escuras qualquer desvario sexual justificava-se. Todo imoralismo torna-se parte da aventura colonizadora. Pecado e falta fazem parte de terras cristãs e civilizadas. Junto aos fracos e infiéis tudo é permitido ao forte;

 

ii. Proust: O homossexualismo está relacionado à face  decadente e fantasmática da aristocracia, sendo contraface da saudável sociedade burguesa. Para Gide o homossexual era o exótico submisso e atrasado, para Proust era o arcaico, o pano de fundo pálido, onde desfilavam a vitalidade, o progresso e o expansionismo do imperialismo burguês.

 

iii. Foster e Gide: homossexual como trasfuga de classe. Não podendo exercitar sua perversão entre pares, recorre a dissimetria social e faz-se aceitar por aqueles que não possuem a moral do verdadeiro cidadão (burguês).

 

Costa, J. F. (1992) procura mostrar que, a partir da literatura e da medicina, desde a passagem do século XVIII para o século XIX, funda-se a idéia identitária do “homossexual” como atributo lingüístico importante da cultura moderna, que irá encaixar as pessoas orientadas para o mesmo sexo. As caixas da identidade forçam a diversidade humana se orientar para alguma evidencia teórica classificadora e isso é um dos principais fundamentos da sociedade moderna organizadora, de acordo com Giddens (2002).

 

Dessa forma, os próprios desejos humanos referentes ao sexo, ou seja, o erotismo, tornam-se encaixados em descrições lingüísticas (PARKER apud COSTA, J. F., 1992, p. 44). Nesse sentido, a homossexualidade representa um conjunto identificatório, desviante e contraditório ao normal heterossexual, que torna convergente uma infinidade de desejos sexuais orientados entre pessoas do mesmo sexo. Esses sistemas de classificações lingüísticas representam a qualidade do sistema cultural supra-orgânico moderno que pressiona os indivíduos à auto-identificarem-se (Giddens, 2002). Os sistemas classificatórios modernos apresentam-se por sua racionalidade positivista binária, que legitimam pólos aceitos e não-aceitos pelos poderes que impregnam e constroem o social: o feio e o bonito, o certo e o errado, o desenvolvido e o subdesenvolvido, o selvagem e o civilizado, o heterossexual e o homossexual.

 

Em relação a sexualidade, segundo Foucault (1988), a modernidade do século XIX, e seus estudos com pretensões racionais e científicas, que esforçavam-se para explicar a realidade, acabaram por produzir discursos identitários que vão fazer convergir espontaneidades de praticas individuais a determinados padrões possíveis. Os indivíduos abarcados por desejos homoeróticos acabam, assim, se auto-identificando pela identidade homossexual, que carrega todo um conjunto de atributos lingüísticos de anormalidade e de desvio social. Os processos que produzem esses sintomas, tornando o indivíduo identificável, remetem a um sistema complexo e tênue de micropoderes imbricados as relações sociais face a face.

 

Confluente a idéia de Foucault (1993), os discursos e os procedimentos objetivos cotidianos carregam interesses de macropoderes (pretensões ideológicas imbricadas a interesses políticos e econômicos da totalidade social) que se exercem nas micro-relações entre atores sociais. Os sistemas de vigilância que instauram os atores sociais os forçam a exercer seus papéis, bem nos moldes de Goffmann. Esses sistemas estão tão impregnados nas platéias inseridas nos cenários sociais que, nos atos mais banais de interação, forçam o indivíduo a convergir aos interesses do conjunto. Em relação às falhas interacionais, estão dispostos sistemas de identificação desviantes que pressionam subjetivamente o ator. A qualquer expressão tida como instintiva e desviante existirá um discurso para identifica-la e um conjunto de evidências classificatórias de comportamento. Assim se normatizam as relações humanas em sociedade, desde a infância. Assim gera-se, de acordo com Costa, J. F. (1992, p. 100) o homossexualismo como camisa de força as práticas homoeróticas e o conflito entre ser ou não-ser homossexual, como ser ou não-ser religioso, ser ou não-ser herege, ser ou não-ser corrupto, ser ou não-ser revolucionário.

 

Embora vinculado a anormalidade e ao desvio, a identidade homossexual vai culminar na formação do sujeito homossexual. A evidencia disso vai já ser seu atributo de contestação à sociedade, como vimos em Proust, Gide, Caminha e Balsac. Nesse sentido irá se instaurar a dialética do sujeito homossexual, como outros tantos existentes no espaço social: na relação entre ordem e desvios sociais e na relação entre pressão ordenativa de controle dos desejos e a emergência dos sujeitos desejantes, procurando o reconhecimento sobre si próprio e da sociedade que os cerca. As identidades dos sujeitos se apresentam, ao mesmo tempo, como forças de controle social de uma modernidade que torna catalogável todas as expressões humanas, estabelecendo linhas corretas e incorretas, por outro lado são também evidencias da incapacidade de controle das espontaneidades humanas. O sujeito homossexual talvez se apresente como amarras que oprime e separa uma sexualidade desviante, tornando-a controlada com vistas a cura, pressionando o individuo a um sentimento de culpa e de conflito interno.

 

Por outro lado, ela vai permitir canalizar fugas as condições opressoras que vão pulular o social. A homossexualidade na modernidade torna identificável o indentificável, uma vez que os desejos sexuais são múltiplos e imprevisíveis no tempo. Dessa forma, oprime e condiciona os sujeitos desejantes a angústia do ego interiorizado (de Freud). Isso acaba, no decorrer histórico do século XX, principalmente na segunda metade, culminando em formações culturais que canalizam possibilidades de expressão dos desejos homoeróticos. Advém daí, formas de comunitarização homossexuais subterrâneas ao social, conforme nos mostram os estudos de Maffesoli (2002), ao analisar as “tribos urbanas”, ou a emergência de “comunidades-cabides” de Baumann (2003), cujos desejos oprimidos pela sociedade “normal” encontram “linhas de fuga” (COSTA, B. P., 2002) para serem expressos em micro-comunidades escondidas na normalidade do espaço social.

 

De acordo com Perlongher (1987), o homossexual será um indivíduo carregado de culpa e que não consegue conter seus desejos. Fugindo da normalidade dos papéis sociais, ele acaba promovendo fugas e deriva pelo espaço social buscando os prazeres homoeróticos. As “derivas”, desde a invenção da homossexualidade, já lá no século XIX, acabam produzindo “comunidades-cabides”, territorializadas no meio urbano moderno. Micro-territórios de encontros homoeróticos se produzem e por eles se estabelece uma série de práticas coletivas que originam culturas homossexuais. Dessa forma, dos territórios lingüísticos instaurados pela modernidade ordenadora, microterritorios culturais se produzem pela força desejante de sujeitos excluídos do cenário social. Assim se produzem os sistemas culturais complexos na sociedade urbana moderna: pelo incrível poder moderno de produzir tipificações e identificações dos comportamentos humanos (normais ou desviantes) formas comunitárias múltiplas emergem e se territorializam no tecido social (incluindo todas consideradas normais e principalmente as desviantes). Assim, no contexto urbano, a cultura torna-se um território (GEERTZ, 1989): primeiramente em relação às abstrações dos “territórios lingüísticos” (discursos sobre o fechamento identitário) e, em segundo lugar, em relação aos microterritorios de práticas sociais que envolvem indivíduos concretos envolvidos subjetivamente com aqueles territórios lingüísticos.

 

Costa, J. F. (1992) identifica três respostas homossexuais a cultura da privação, que marginaliza condutas homoeróticas em prol a conjugalidade heterossexual:

 

1) subcultura camp: o autor nos mostra que camp é a gíria americana para designar o comportamento exagerado, escandaloso e efeminado de homossexuais e círculos de convivência homossexual. Essa reação procura romper com condutas morais e escandalizar o preconceito. No Brasil chama-se “fechação” (MACRAE apud COSTA, J. F., 1992, p. 94). A fechação é a exacerbação do estereótipo. COSTA, B. P. (2002) observa que a fechação representa o propósito explicito de um comportamento imoral, que marca e exterioriza, de forma indignada,  exatamente os atributos de uma identidade estigmatizada. Tal estigma, de acordo com Goffmann (1988), pode ser apropriado pelo indivíduo e por grupos como reação violenta à repressão. O indivíduo encarna o estereótipo e extravasa ele para o social. Assim surge a figura da “bicha-louca” freqüente em meios gays. O preconceito é levado pelo sarcasmo e possibilita atacar moralmente o opositor preconceituoso. A fechação abarca o preconceito e torna-o visível, marcando a cultura pelo estereótipo. Por um lado representa uma radical reação a discriminação, por outro abarca elementos que mantém o homossexual discriminado (efeminamento, estética transgênero exacerbada, acidez lingüística, entre outros).

 

2) Cultura clandestina do gueto: esse processo encontra-se como eminentemente territorial e apresentam-se como circuitos geográficos de pontos e fluxos urbanos de encontros exclusivos homossexuais. Ao gueto encontramos a dialética entre repressão e liberdade restrita: por um lado possibilita a territorialização da expressão do desejo homoerótico, por outro lado o confinamento em locais de expressão gay, de liberdade vigiada e concedida. Do território lingüístico da identidade desviante e estigmatizada produz realidades de práticas culturais territorializadas da cultura gay. Muitos dos aspectos da cultura camp formam as relações inseridas nessas microterritorializações urbanas gays, sejam em bares, boates, em lugares de uma praça e em um ponto da areia de praia. Em primeiro momento esses lugares formam-se pelo objetivo de encontrar-se um parceiro sexual (uma “transa”), porém as unidades de convivência abarcam afetividades de grupos de amigos, que em seus discursos formam as características da cultura gay. Como elementos da cultura gay, difundida como transnacionalização de uma cultura gay global, desde a reação de Stonewall Inn[1], em 1969, temos, de acordo com Pollak (1983, pp. 67-73) e Macrae (1983, pp. 57-60), os seguintes aspectos (também discutidos por COSTA, B. P., 2002):

 

a.  clandestinidade;

b. gírias gays que representam a paquera, o sexo, o amor, mas também a timidez, a angustia e o cinismo agressivo;

c.  efeminamento e humorização do estereótipo como construção da identidade;

d. masculinização também exacerbada tipo “machão” e superviril (cawboy, motorista de caminhão, esportista, entre outras figuras viris);

e.  culto a discoteca e música dançante. A dança e a iluminação frenéticas apresentam-se expressão emergencial da libertação restrita e momentânea;

f.   revalorização dos estereótipos e de palavras como “bicha” como fundamento de auto-afirmação a partir do preconceito;

g.  repetição dos papéis de gênero e expressões dicotômicas entre ativo e passivo, encarnados nas figuras de “bofe” (excesso de masculinidade) e bicha (efeminada), respectivamente;

h.  tendência à promiscuidade e a busca frenética por parceiros sexuais;

i.    separação de sexo e afeto, ocasionando produção de espaços singulares para sexo rápido em certos lugares (saunas, salas de vídeo pornô, cinemas, dark roons nas boates);

j.   busca de aventura ao desconhecido são elementos prezados na transa, assim como experiências interclasses (principalmente de “bichas” de classe média que paqueram bofes de status social mais baixos).

 

3) o estilo de vida de ansiedade e de depressão crônica: muitos indivíduos propensos a prazeres homoeróticos recusam a cultura camp e a vida no gueto e entregam-se representações do ideário do gênero masculino heterossexual, mantendo vidas duplas e incursos esporádicas em guetos ou em lugares no qual seja possível efetivar uma experiência homoerótica. Muitas vezes vivem cercados de sentimentos de culpa e de conflitos interiores.

 

Essas três condições, que nos fala COSTA, J. F. (1992), produzem a condição do sujeito homossexual ora como evidencia de um ego mais exteriorizado, relacionado a participação a cultura gay, ora mais interiorizado, pelo exercício dos papéis sociais corretos, como é o caso do item três. Porém os diversos tipos de expressões que transitam além ou aquém dessas evidencias sofrem da castração do desejo homoerótico pelas condições sociais predominantes. A reprodução do estereótipo na cultura gay e sua condição subterrânea e guetificada no espaço social - que representa a restrição e a territorialização da liberdade -, não deixa de ser um instrumento de sublimação e canalização controlada dos desejos, mantendo intacto o “status quo” “heteronormativo”. Por outro lado, a partir do gueto gay emerge a “causa gay” como expressão política da alteridade que busca seus direitos, conforme TREVISAN (2000), PARKER (2002) e COSTA (2002).

 

O sujeito homossexual talvez não esteja mais tanto nos subterrâneos da sociedade e agora se apresenta mediante ações concretas para sua inserção, como, por exemplo, as ações dos grupos e ONG´s gays organizadas que se mobilizam para pressionarem as legislações e legalizarem medidas antipreconceitos. Assim sendo, o meio social está infestado de ações homoeróticas que contradizem a estabilização das normativas heterossexuais. Mesmo sutis, como os atos sexuais em banheiros públicos, ou paqueras em meio à multidão, são forças que burlam as regras e fazem emergir outras forças como potências contraditórias à repressão.

 

Em primeiro momento, a formação do sujeito homossexual representa esse conflito entre id e superego, condicionando a emergência de um ego sublimado pela classificação identitária de desvio sexual. Em segundo momento se desdobra em contextos culturais tidos como desviantes, mas que emergem em formações reinvidicatórias diversas, desde os movimentos políticos organizados, ate simples ações de contestação e assunção da identidade em meios públicos e institucionais “normais” (como família, trabalho, círculos de amizades, etc). Em terceiro momento, a sujeitificação homossexual é insuficiente para abarcar os diferentes desejos homoeróticos e suas especificidades múltiplas, que transitam entre e além das três reações propostas por COSTA, J. F. (1992). Como vimos no capítulo dois, há diferentes  interpenetrações a respeito do que seria o sujeito homossexual, que tem suas origens, por um lado, na castração da satisfação homoerótica, por outro, na liberdade restrita dos guetos e da cultura gay, além das influencias mercadológicas produzindo nichos de convivência vinculado ao consumo. O mercado gay será importante para a emergência do sujeito homossexual, juntamente com os movimentos de grupos organizados e suas ações políticas. Em virtude das múltiplas interpenetrações que verificamos, torna-se improvável definir precisamente a identidade do sujeito homossexual pois são várias as expressões que envolvem tais indivíduos, assim como são vários os desejos sexuais que acabam lingüisticamente culminam para a polarização homossexual. Tudo que se destina à atração para o mesmo sexo é abarcado pelo termo homossexual, produzindo a própria noção de identidade do indivíduo. O conceito determina o sujeito e está carregado de uma história de repressão da sexualidade, no entanto, empiricamente, são múltiplas as práticas sexuais, os desejos, as expressões individuais e coletivas que envolvem a homossexualidade. Costa, J. F. (1992) nega esse conceito e propõe o termo homoerotismo de Ferenczi (1970), se referindo as múltiplas possibilidades de certos sujeitos sentirem atração erótica para o mesmo sexo e se relacionarem de diversas maneiras para com o mesmo.

 

Parker (2002) identifica também uma variabilidade de “homossexualidades” ao invés de uma homossexualidade única e unificada, porém argumenta que todas acabam estando inseridas em campos complexos de poder e de dominação. Embora a evidencia da diversidade dos desejos homoeróticos, eles acabam sendo peneirados pela “sujeitificação” homossexual que se abre a uma multiplicidade de expressões no mundo contemporâneo, mas todas carregadas de estigma e sujeitas à discriminação. O mundo urbano impessoal, segundo o autor, possibilitou diversos tipos de encontros vinculados a experiências homoeróticas tornando, assim, essa experiência “mais espacial que psicológica” (PARKER, 2002, p. 73). Em primeiro momento, as práticas homoeróticas acabam encontrando abrigos seguros em meio ao espaço público e invade praças, parques, banheiros e banhos públicos, se apresentando transgressora a normalidade do espaço público urbano. Em segundo momento, formam-se uma série de estabelecimentos comerciais que abrigam uma série de possibilidades para organização das interações de mesmo sexo. A confluência entre lugares públicos que abrigam práticas homoeróticas transgressoras e a ação do mercado, que funda espaços específicos de consumo de um público homoerótico que busca afetividade e prazer, faz crescer um conjunto de culturas homossexuais sobrepostas ligadas às dinâmicas da vida e da cultura urbana em constante transformação.

 

Costa, B. P. (2002) nos possibilita observar a relação estreita entre espaço e expressões de afetividades homoeróticas. Os desejos homoeróticos acabam sendo camuflados nas identidades reais (privadas) dos homens orientados para o mesmo sexo. De acordo com Goffmann (1988), a identidade real é mais ampla que as condições existências da identidade virtual, que abarca os papéis convenientes a vida em sociedade. Aspectos da identidade real só poderão ser desencobertos em específicas redes de relações que se apresentam em lugares específicos do tecido espacial urbano. No jogo entre desejo e cumprimento dos papéis social, como no conflito entre id e superego, o sujeito organiza geografias possíveis a emergência do ego subjetivado. Geografias privadas para encontros homoeróticos agregam sujeitos em busca da satisfação sexual, seja em brechas seguras em meio ao espaço público, seja em lugares produzidos por estratégias de comerciários sábios das necessidades relacionais eróticas entre pessoas do mesmo sexo.

 

Nesse sentido, o homem-particular, assim, vive os fragmentos do espaço social: atividades, identidades e relações específicas de cada lugar. Dessa forma, apresenta-se como um ser dividido em múltiplos fragmentos desconectados e alienado da totalidade da realidade do sistema. Por isso, vive a rotina cotidiana, pensa e age pelo e como aprendeu em suas experiências de interação social. As técnicas do cotidiano fluem e levam a massa de homens particulares, colocando todos em seus devidos lugares. Mas será que é só isso? Será que podemos conceber uma sociedade tão mecânica assim? E a espontaneidade do dia-a-dia? O mundo é a realidade dessa mecânica, podemos observar claramente isso na construção material, na burocracia, nos costumes e na moral social. Porém o mundo também é o desejo, a afetividade, o acaso, o emotivo e o calor humano. O homem particular, por mais pressionado que seja, guarda uma intensa energia emotiva que busca, burlando regras e determinações, no “aqui” e “agora”, as emoções e as sensações humanas de contato, de pele.

 

A energia sexual, o partilhamento de necessidades originadas dos conflitos do ego, os desejos reprimidos e os sofrimentos originados da coerção social, acumulam uma força emocional que extravasa do ser particular e transcende outro na busca da emoção partilhada. Embora toda mecânica do social, que produz a abstração das formas e das normas, inserindo o homem particular num todo abstrato (cidade, nação e mundo), e a imediatização de suas atividades, na busca do consumo e da ascensão social, inserindo-o em um individualismo exagerado, ainda um sentimento comunitário, afetivo, de auto-ajuda e de compartilhamento de emoções borbulha no espaço social. É a energia sexual, o “somente estar-junto” e a estética dos grupos que se divertem nas ruas, nas esquinas, nas praças e em qualquer lugar que escapa da moral, da previsão das atividades e dos códigos de condutas da rotina do cotidiano. Outros cotidianos existem, não o do dia-a-dia, mas cotidianos do “aqui e agora”, da grande força afetiva, que está nos subterrâneos das determinações da sociedade, que representam válvulas de escape aos sofrimentos que a máquina produz.

 

De Certeau (2004) observa que os fracos movimentam-se espontaneamente no espaço dos fortes e das grandes estratégias de organização da vida social. O autor entende que o cotidiano se produz entre as estratégias que definem o lugar, como parcela da totalidade da sociedade, que se caracteriza pela abstração de plano global e se refere à universalização das práticas e produções dos sistemas de objetos e de valores que constituem o capitalismo. Por outro lado, táticas de “maneiras de saber fazer” e tipos de operações individuais ou coletivas, localizada e em grande escala, manipulam e alteram o uso e a utilidade desses lugares. Linguagens, comportamentos, maneiras de habitar, práticas culturais, interesses de interação podem transgredir os esquemas do sistema ao lugar, causar uma interferência nas estratégias, levando-a a sempre dinamizar suas regulações. Novamente, voltamos na proposta de Foucault (1988) sobre o fracasso constante dos poderes e sua constante necessidade de recomeço. O que ocorre são jogos que permeiam as estratégias do espaço, burlam os campos de relações e instalam uma esquizofrenia das normas das práticas sociais. A partir dos desejos individuais, relacionado aos conflitos do ego, que são conseqüências prováveis a pressão das normas cotidiana, é estabelecida jogos de interações micro-coletivas que transpõem a moral e as regras de condutas, fazendo surgir possibilidades simbólicas, comportamentos e novos usos do espaço do social.

 

Sobre o conceito de tática, Foucault (1988), observa que as táticas representam o próprio exercício do poder, ou o poder com “p” minúsculo de Raffestin (1993), que se exerce na escala ou no campo das relações cotidianas, nos fatos mínimos das rotinas do dia-a-dia. A relação entre estratégia e tática, pelo sentido do poder, é escalar. A primeira representa como produtora de táticas cotidianas, são as rotinas, as técnicas, as leis informais e as regras de condutas apreendidas que normalizam o social. Por outro lado, as estratégias produzem o social pela moral, pela burocracia e jurisdição, pela produção de saberes e verdades absolutas e pelo planejamento tecnocrático e ação do Estado. No cotidiano elas representam rotinas, condutas e valores corretos que regram as interações, transformado-se em táticas do poder imanente no momento da relação. No entanto, essa imanência apresenta níveis diferenciados de sucesso quanto à efetivação das necessidades estratégicas do sistema. Podemos perceber, nos momentos das interações, conflitos entre “táticas dos poderes” e “táticas da espontaneidade”. De Certeau (2004), observa com mais atenção às táticas como “táticas da espontaneidade”, que segue as emoções e a imprevisibilidade humana, produzindo relações outras que as das imposições descontextualizadas e abstratas que produzem as regras do espaço social.

 

Em relação às práticas cotidianas existe um outro nível que escapa as determinações dos papéis e das funções que regem as relações sociais. Relações do “aqui e agora”, espontaneidades de comportamento, expressões de sexualidade são construções de poderes que formam o sujeito, mas também se inserem num campo de conflito da emergência dos instintos, dos desejos e das sensações que não são totalmente explicáveis pelas identidades e regimentos de comportamento. A espontaneidade, expressões dos desejos contidos no íntimo do eu, representa ações que transcendem indivíduos e buscam o estar-junto comunitário, informal, motivado pela busca de relações quentes e da liberdade e imprevisibilidade dos comportamentos sem restrições. A essa busca encaminham-se “derivas” e pontos de possíveis agregações. “Eus” que afloram em objetividade buscam o calor dos contatos espontâneos e imprevisíveis que marquem algum aspecto reprimido na intimidade. Em constantes derivas, as intimidades procuram transcender a prisão individual e definem “micro-pré-comunidades” efêmeras, que se materializam no campo objetivo e determinado do espaço social, representando outras pequenas apropriações contraditórias àquelas marcadas pela funcionalidade e a normalidade das relações.

 

Desejos e relações espontâneas do “aqui e agora” se movimentam no campo das estratégias e constituem táticas de usos diferenciados de partes do espaço que, em primeiro momento, foram produzidas e constituem aspectos das lógicas da produção da cidade em sua totalidade, pertencendo à organização complexa dos poderes hegemônicos. Micro-coletividades se formam buscando outras experiências relacionais, diferentes da normalidade do sistema de papéis sociais, e acabam motivando o próprio sistema a encontrar fundamentos identitários, explicativos e espaciais a esses fenômenos que borbulham.

 

As “táticas desviacionistas” (DE CERTEAU, 2004, p. 92) podem representar contatos humanos muito efêmeros, escondidos na confusão e no excessivo intimismo do espaço público cidade, no qual indivíduos derivam e acabam por encontrarem “brechas” para expressão do íntimo reprimido. Isso acontece em relação ao jogo, a sexualidade, ao comércio informal e ilícito. Por exemplo, homens que procuram experiências sexuais com outros homens acabam derivando anônimos por entre as brechas do espaço público e encontram possibilidades inesperadas em lugares no qual, muitas vezes, essas práticas são reprimidas. Por outro lado, trajetos e certas localizações, como banheiros públicos, por exemplo, são lugares propensos ao encontro com aqueles que buscam o mesmo. Tais práticas sexuais, ao indivíduo, podem ser constantes ou eventuais, e representam um desejo da complexa rede de possibilidades sexuais humanas. Muitos indivíduos, que buscam espaços para práticas sexuais, o encontram no próprio espaço público, tornando modificável o uso e a funcionalidade de parte dele através de jogos e táticas relacionais – como é o caso dos banheiros públicos que acabam sendo utilizados para práticas sexuais e não para outras necessidades fisiológicas prováveis. Contatos rápidos, às vezes somente sexuais, no caso que estamos explorando, podem levar a outras redes de afetividade que burlam a própria condição de conjunto de papéis sociais do indivíduo, podendo inseri-lo a micro-comunidades de práticas culturais e sexuais homoeróticas da cidade.

 

Como vimos, inseridos na dinâmica das relações sociais estão processos identitários que estão imersos nas práticas avaliativas dos poderes imanentes, que criam saberes sobre às possibilidades individuais e identificam normalidades e desvios. O poder imanente nas práticas sociais, que está sempre fadado ao fracasso e obrigado a recomeçar, não pode impedir a espontaneidade das táticas individuais e coletivas, mas procura as organizar e estabelecer identidades que se transformam em estereótipos passíveis de avaliações, reconhecendo as expressões emergentes, mas simplificando sua explicação pela simples condição de desvio frente a normalidade. Assim funciona a organização dos seres no espaço. Saberes (identidades, preconceitos, etc) estereotipados impregnam as rotinas avaliativas do cotidiano e causam conflitos íntimos ao “eu individual”. Pressões a assunção de papéis sociais “normais”, atividades e expressões de afetividades aceitas, impregnam as relações e impossibilitam a livre expressão do que é considerado desvio. Os estereótipos reduzem a complexidade do ser e das próprias possibilidades humanas, que são diversas, evidenciando que tudo que escapa a identidade dos papéis sociais fica  fadado a exclusão. É por esse processo que, no caso que estávamos falando anteriormente, identidades e termos que expressam práticas homoeróticas (“homossexual”, “gay”, “bicha”, entre outros) são produzidos (embora os três termos tenham sentidos e contextos culturais bem diferentes, como observa Costa, B. P., 2002) e servem para marcar uma dicotomia ou um pólo desviante em relação ao aceito, ou a heterossexualidade e os comportamentos de gênero pré-estabelecidos. Em virtude de pressões, que aplicam identificações desviantes, alguns indivíduos tendem a não estabelecer boas “performances” sociais, devido seus conflitos de ego. Desejos homoeróticos, que significam espontaneidades sexuais, acabam procurando táticas para se efetivarem, fazendo com que o “eu desejante” “derive” pelo social, na procura de sensações e possibilidades imersas na complexidade normativa do espaço urbano, material e sensivelmente funcional e regrado. Socialmente, conceitos formais e estereótipos, que definem comportamentos de homens que fazem sexo com outros homens, acabam por produzindo possibilidades identitárias (comportamentos, estéticas, gostos, etc, do homossexual, ou do “gay”, ou da “bicha”), que se vinculam a práticas culturais de micro-coletividades desviantes. Elas existem há muito tempo e são construídas por complexos conflitos históricos que se inserem nas determinações dos papéis, das estéticas e dos comportamentos de gênero heterossexual. Micro-coletividades desviantes, separadas em microterritórios de convivência momentânea, transcendem, tornam possíveis expressões de intimidades em conflito (relação de conflito entre pressões e determinações sociais e desejos íntimos) e produzem práticas relacionais que abarcam coletivamente essas expressões, transformando-as em culturas localizadas.

 

O interessante nesse processo é sua característica global. As “heteronormatividades” (BRITZMANN, 1999), que representam as determinações quanto a papéis de gêneros sexuais, inserem-se em todos os territórios regrados pelo cristianismo e pelos sistemas de valores, objetos e técnicas da história da civilização moderna ocidental. Relações entre ordem e desvio sexuais devem ser analisadas contextualmente, mas suas práticas culturais representam complexas teias de conflitos interlocais, uma vez que tais relações são inerentes às determinações e regramentos quanto à produção da sexualidade cristã, branca, burguesa, ocidental e moderna. Táticas homoeróticas, que burlam os valores e a materialidade do espaço social, são tomadas em todos os lugares da civilização ocidental, uma vez que se referem a regras sexuais que tomaram o formato global e estão inseridas em processos de dominação territorial de centros de poderes hegemônicos. Pela escala global do fenômeno, os regramentos necessários à organização da sexualidade também tomaram escala global e produziram uma identidade (a homossexual) e uma cultura (a cultura gay).

 

A sexualidade homo se refere a um conjunto de estudos sobre sexualidade que emergiram principalmente do século XIX até os dias de hoje. Tais estudos estão relacionados a medidas sanitarista e de regramento da saúde e dos comportamentos da cidade, todos eles acompanhando a evolução da medicina e das técnicas de diagnóstico. Foulcault (1988) argumenta que o sexo foi administrado a partir do século XVIII e que, na verdade, não se calou sobre sexualidade, mas produziram-se infinidades de discursos e técnicas avaliativas para produzirem-se “saberes” sobre o sexo. Tais saberes tornar-se-iam verdades absolutas e impregnariam o tecido social, formando identificações e imbricando-se aos conflitos íntimos do “ser social”. Por outro lado, manifestações da cultura gay se relacionam a formação de comunidades homossexuais nos Estados Unidos, que pelo processo organização da diversidade sociocultural que permeia a sociedade americana, estabelecendo rígidas segregações e formação de guetos, que se ampliam a bairros inteiros na cidade. Tal diferença tornou-se uma cultura que nasceu do desvio e que atinge hoje seus direitos e sua colocação social e que, pelo uso de equipamentos inseridos na globalização da comunicação, organizaram-se como nicho de consumo e ampliaram suas práticas além das fronteiras dos EUA.

 

O interessante nesse processo é sua historicidade, pois, impregnadas ao regramento da sexualidade, práticas homoeróticas produzem táticas que se movimentam silenciosas e alteram, sem a percepção dos outros homens comuns, os usos do espaço público moderno. Tais táticas são abarcadas pela medicina que as explicam e produzem conceitos e caracterizações que abarcam a complexidade homoerótica no pólo desviante da homossexualidade. Conflitos íntimos inseridos nos projetos do “ser social” são abarcados pelas determinações sexuais do poder imanente e transformam táticas espontâneas, que antes burlavam o sistema, em sintomas conhecidos e catalogados, impregnados de estereótipos rotineiros e discriminantes no cotidiano. Para poderem expressar desejos contidos e não serem discriminados na normalidade do cotidiano, indivíduos transcendem suas intimidades em espaços localizados possíveis de liberdade restrita, formando os chamados guetos (parques, ruas específicas, boates, saunas, etc). No gueto, a cultura gay emerge e se produz pela relação com a exterioridade heteronormativa, reproduzindo aspectos dos regramentos de gênero e exercendo as características possíveis do pólo desviante homossexual. Em uma sociedade de contradições como a dos EUA, onde liberdade e constrangimentos convivem mutuamente, o gueto transforma-se em movimento de inserção social (formal e informal) que leva a determinação de uma alteridade parte da sociedade.

 

O regramento se conduz pela afirmação da alteridade, que pode maquiar a complexidade dos desejos sexuais humanos e manter a organização das possibilidades do social e que é atingido pelas práticas de consumo capitalistas, que baseiam-se na consolidação de estereótipos, divulgados e consolidados pela cultura de consumo (comunicação, itens, acessórios, material publicitários, etc). Na eficiência das trocas culturais do capitalismo, o processo se transnacionaliza pela música, moda, estilo e publicidade e acaba produzindo uma cultura gay que se mundializa, escapando das possibilidades táticas, de realmente romper com os regramentos sociais, e formando uma diferença cultural catalogada, que restringe o entendimento da complexidade sensível humana. Toda sensibilidade homoerótica acaba sendo regrada pelos pólos identitários culturais da homossexualidade e da cultura gay.

 

Por outro lado existem realidades diferenciadas quanto às experiências homoeróticas e os lugares onde acontecem. Muitas delas são sensíveis em trajetos e pontos do espaço público que não se definem pela especificidade e catalogação das convivências, já outros lugares (como boates, ruas, saunas e bares) já se tornam específicos às convivências inseridas na cultura gay e, quase sempre, representam estratégias de consumo e lucratividade de empresários que se ocupam com serviços específicos a esse público. Em bares e boates, por exemplo, serviços específicos remetem a itens culturais que compõe a “comunidade gay” que se transnacionalizou, ou seja, remetem a uma cultura gay ou a uma especificidade de práticas, símbolos, comportamentos e estéticas.

 

Defendemos que as especificidades da cultura e da identidade gays apresentam-se como estratégia global à catalogação das experiências e expressões humanas, na qual, pelas estratégias de poderes imanentes das relações sociais, se nomeia, se criam singularidades, se apresentam estereótipos, possibilidades tanto de aceitação como de negação, se isola, se organiza e constrói-se saberes explicativos e reducionistas. Por outro lado, expressões e experiências homoeróticas, que burlam convivências previsíveis no espaço público (expressas fora do gueto e efetivadas com forte astúcia individual, por onde se travam fortes conflitos íntimos), que prezam “o aqui e o agora” e a imbricação às brechas da movimentação social, realmente são forças táticas que vão contra o social e as suas determinações identitárias (ser gay) e espaciais. O gueto gay (saunas, boates, bares), representa a formação de um “mercado gay” (PARKER, 2002), no qual se consolida a diferença cultural e identitária, se organiza o sistema sexual desviante a heteronormatividade, se territorializa espaços de convivência, isolando do todo social, e, principalmente, se reproduz o capital pela especificidade cultural e de consumo.

 

No espaço social global (interurbano, interregional e internacional), o desenvolvimento de uma cultural gay, a formação de um mercado e a territorialização formal, por estabelecimentos de serviços culturais que permitem o desenvolvimento da convivência e da afirmação da própria cultura, apresenta-se estruturado de forma desigual. Isso visualiza níveis diferenciados de ações táticas de estratégias de poderes de normatização da sexualidade. Em alguns lugares (cidades ou bairros), o que efetiva as práticas sexuais homoeróticas são as táticas inseridas no próprio espaço público, dispersas nele, que burlam e transformam espontaneamente suas micro-partes. Outras cidades já apresentam micro-territórios formalizados (bares, boates e saunas), que permitem expressões homoeróticas e a inserção de itens culturais singulares da cultura gay transnacional (especificidades musicais, de vestuário e acessórios, discursos e linguagens, determinados saberes necessários e padronização de desejos e de gostos).

 

Verificamos que táticas homoeróticas espontâneas, que burlam a normalidade do espaço social heteronormativo (em parques, praças, banheiros públicos ou em qualquer lugar que, em primeiro plano, despreza tais práticas), representam o início do conflito entre tática e estratégia, entre espontaneidades e poderes de imanência complexa que procuram padronizar o social. São táticas pois burlam as práticas cotidianas e fogem as determinações dos lugares. A partir desse conflito, táticas de poderes imanentes nas relações sociais, influenciados pela transnacionalização identitária e de práticas culturais da cultura gay, estabelecem a transição entre práticas marginais inseridas no espaço público e o mercado gay. Assim se reproduzem as especificidades de uma diferença social, catalogada, que contribui a organização dos sistemas desviantes, a inserção da reprodução do capital e a redução da complexidade sexual humana num sistema racional de identidades e diferenças polarizadas. O processo se estabelece da espontaneidade homoerótica, que deriva em trajetos e pontos do espaço público, ao conjunto de microterritórios inseridos no mercado cultural gay.

 

 

 



Notas:

 

[1] Bar Nova Iorquino cujos homossexuais resistiram com violência a repressão policial contra uso de bebidas alcoólicas, proibidas ao consumo de homossexuais por considera-los insanos. (COSTA, B. P., 2002, p. 25)

 

 

 

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