IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y
LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo - 1 de junio de 2007
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

ParticipaçÃo social, gestão urbana e contribuições da Geografia: 

em busca do humanismo concreto

 

 Catia Antonia da Silva[1]

catia.antonia@gmail.com

 Désirée Guichard Freire[2]

desireeguichard@yahoo.com.br

Faculdade de Formação de Professores

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

Participação social, gestão urbana e contribuições da geografia: em busca do humanismo concreto (Resumo):

 Com a Constituição de 1988, o país consolida um processo de redemocratização política que altera o quadro referente à gestão das cidades e à política urbana nacional. Reiniciam-se propostas de política urbana que têm no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor referências importantes para a gestão democrática das cidades. Somam-se a isso consórcios, fóruns e conselhos de gestão de política pública,  passando, então, fazerem parte do cenário social e político brasileiro. A participação social é a referência mais importante relacionada à relação societal, mas, ao mesmo tempo, é um paradoxo porque na vida coletiva nota-se a pouca visibilidade dessa política no território. Muitas pessoas nem sabem das possibilidades  e das exigências legais do Estatuto das Cidades . Neste contexto, torna-se fundamental uma reflexão no âmbito das ciências sociais, sobretudo da Geografia, sob a produção do pensamento crítico, que realizou vários avanços teóricos metodológicos referentes à análise da produção do espaço, mas que, ao mesmo tempo abandonou a prática propositiva junto ao poder público e aos movimentos sociais urbanos, perdendo, com isso, a possibilidade de contribuir na intervenção efetiva na realidade social que estes fóruns permitem. Como solução, o presente trabalho propõe-se realizar reflexão teórico-conceitual sobre a contribuição da Geografia, no seu diálogo com o pensamento social crítico, a respeito da participação social, gestão da cidade e consciência coletiva como condições de implementação de um humanismo concreto, isto é, ações portadoras de conhecimentos e intenções a partir de diversos agentes, onde os agentes governamentais reconheçam a alteridade dos moradores, dos idosos e dos jovens, dos trabalhadores, dos movimentos sociais que têm experiências, saberes e territorialidades construídos a partir do cotidiano dos lugares.  

 

Palavras-chave: Geografia, política urbana, humanismo concreto, participação social

 

 

Social participation, urban management and geography contributions: searching the concrete humanism (Abstract):

 

The 1988´s Brazilian Constitution consolidates a re-democratization process that alters the scenario in cities management and national urban policies. Restart urban policy proposals based on Brazilian City Statute and managing plan that are main references to cities democratic management. In addition to this, management and public policy consortiums, forums and councils take part in the Brazilian social and political scenario. The social participation is the main reference in societal relationship but it is a paradox too as long as, in collective life, there is low visibility of this policy in the territory. Some people have no idea about possibilities and legal requirements related with Brazilian city statute. In this context, a consideration in the scope of social science, especially geography, become primordial to produce a critical thought, which accomplished many theoretical and methodological advances concerning to space production analysis but abandoned the propositional experience with government and urban social organizations, losing the opportunity to help effectively the social reality allowed by these forums.  This article's purpose is present a theoretic-conceptual reflection about geography contribution, in this social critical thought, related to social participation, city management and collective conscience as concrete humanism implementation conditions, i.e., knowledge and intentness carrier actions based on several agents, where the governmental agents recognize the alteridade (quality relating to the other) of dwellers, old-aged and youth persons, workers and social organizations, which have experiences, knowledge and territoriality derived from the own place quotidian.

 

Key words: Geography, urban policies, concrete humanism, social participation.

 

 

 

Nos anos 2000, no Brasil, vem consolidando-se o processo de redemocratização, que dá início com o fim da ditadura com a constituinte e a Constituição de 1988. Debates oriundos do movimento de reforma urbana, com apoio das ciências  sociais, de concepções filosóficas sobre o direito à cidade, tornam-se fundamentais nas relações societais e nas conquistas por meio do Estado de Direito – na letra da lei – as possibilidades de justiça social e acesso a terra. Neste movimento destacam-se as ações da Sociologia, do Direito, do Urbanismo, que tanto realizam a crítica quanto elaboram proposições junto aos movimentos sociais. Como a Geografia pode contribuir nesse processo de redemocratização?

 

A vertente do pensamento crítico na Geografia está fazendo cerca de 30 anos. Sem dúvida, esta vertente marcou a Geografia como ciência social, ou conforme diz Milton Santos (1996), corresponde à compreensão da Geografia Social. A Geografia avança conforme orientações epistemológicas e filosóficas e conforme as novas conjunturas político-social. Do ponto de vista da produção científica  a Geografia pode contribuir com importantes reflexões teórico-conceituais sobre o sentido da ação dos movimento sociais junto à política urbana, a partir da reflexão de conceitos geográficos à luz da teoria social crítica. Tais como: espaço e totalidade, lugar, território e territorialidade, formação socio-espacial. Esta reflexão permitida pela Geografia articulados aos princípios de alteridade, do reconhecimento das saberes múltiplos, contribuirão para a realização do humanismo concreto, ou seja, conjunto de idéias e projetos, valores e conhecimentos compartilhados, oriundos de diversos saberes.

 

O presente artigo tem como finalidade trazer algumas contribuições para a compreensão dos contextos político-sociais da conjuntura brasileira referente às formas de participação social e aos instrumentos de gestão urbana e identificando o papel da Geografia na socialização do conhecimento sobre estes instrumentos e na alteração da relação entre sujeito-objeto na realização do planejamento territorial.  Neste sentido, divide-se em três seções: a primeira objetiva a apresentação dos instrumentos de Gestão urbana: Plano diretor, Estatuto das cidades e conselhos municipais e regionais de gestão; o segundo busca identificar os limites destes instrumentos devidos sua dificuldade de ação ampla junto a participação popular; a terceira seção intenciona  trazer para o debate algumas contribuições geográficas na reflexão sobre a política urbana.

 

 

Participação social e democratização brasileira

 

A presente seção tem a intenção de contextualizar sobre a problemática da participação social ao contexto do processo de redemocratização política no Brasil, averiguando novos formatos legais e participativos. Destacaremos três para a análise deste breve texto: o Estatuto das Cidades, Plano Diretor e os Conselhos Municipais e regionais.

 

a) Plano Diretor e Estatuto das Cidades: breve visão de seu conteúdo social e político

 

A luta pela reforma urbana emergida durante os anos 1960-1980, atravessando inclusive período de ditadura militar (1964-1982) e  fez parte do momento de colisão política durante a constituinte – em que movimentos sociais reivindicaram fortemente sobre a implementação da política urbana - e teve sua consolidação na promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988 e  do Estatuto da Cidade (2001).

 

Pela primeira vez na história do país, a Constituição brasileira exprime processos de lutas políticas a respeito da terra e do direito à cidade. Está no capítulo II da política urbana – artigos 182 e 183, que estabelecem instrumentos para a garantia no âmbito de cada município, do direito à cidade, do cumprimento da função social da cidade e da propriedade.

 

O Estatuto da Cidade, inscrito como Lei Federal número 1.0257 de 10 de julho de 2001, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, definindo parâmetros e diretrizes da política urbana no Brasil, oferecendo meios para que o município possa intervir nos processos de planejamento e gestão urbana e territorial e garantir a realização do acesso e do direito à cidade.

 

A obrigatoriedade do Plano Diretor, segundo o Estatuto da Cidade, é para os municípios com o seguinte perfil:

 

- Com mais de 20 mil habitantes

- Integrantes de regiões metropolitanas

- Com áreas de especial interesse turístico

- Situados em áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental na região ou no país.

 

Vale ressaltar que o Estatuto da Cidade oferece mais de trinta instrumentos municipais para a gestão urbana, além dos instrumentos tradicionais, novos instrumentos de planejamento territorial são apresentados de natureza normativas, buscando o desenvolvimento municipal, economicamente e socialmente. Do ponto de vista social, a inclusão social e espacial da população marginalizada e a gestão democrática da cidade são referências fundamentais que devem se amplamente divulgadas junto à população para permitir divulgação dos instrumentos de direito à cidade.

 

Os princípios que norteiam o Plano Diretor estão no Estatuto da Cidade, valorizando a orientação na política de desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana do município. Desse modo, o Estatuto delega ao Plano Diretor a função de definir as condições a que a propriedade deve conformar-se, para que cumpra sua função social. A proposta de Plano Diretor não é uma proposta pronta acabada, mas um princípio para a reflexão a ser compartilhada desde o início por todos os cidadãos, representantes da sociedade civil e da sociedade política (legislativo e executivo).

 

O Plano Diretor deve respeitar, portanto, as especificidades locais, regionais e culturais. Os temas propostos pelo documento têm como princípio a reflexão a ser feita pela sociedade daquele município. Os temas são: Desenvolvimento urbano, Instrumentos e metodologia de participação no Plano Diretor, reabilitação de áreas centrais e sítios históricos, análise de zonas rurais no município para proposta de política agrária, análise de pequenos municípios: limites e possibilidades de desenvolvimento, política habitacional, política de regularização fundiária, política de transporte, mobilidade e saneamento básico ambiental, estudo sobre impacto de vizinhança, instrumentos tributário e de indução de desenvolvimento e desenvolvimento regional (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005).

 

Do ponto de vista metodológico, o Plano Diretor orienta a formação de uma equipe de técnicos da prefeitura que inicie a organização do diagnóstico municipal a partir desses princípios e de temas propostos. A contratação de empresa ou equipe externa seja apenas para auxiliar, desse modo se propõe a necessidade de processo permanente de capacitação técnica (planejadores urbanistas, geógrafos, sociólogos, engenheiros, etc.) para o desenvolvimento permanente de infra-estrutura para o monitoramento do território municipal saindo, portanto, daquela proposta de comprar planos sem continuidade de diagnóstico territorial ao longo do tempo.

 

Dentre a proposta de diagnóstico vale apenas ressaltar a importância da participação popular nesta elaboração, valorizando o uso de diferentes dinâmicas e materiais para construir mapas temáticos do município, com elementos oferecidos pelos participantes (mapas sobre o território, mapa de riscos para a ocupação urbana, mapa para a preservação cultural, mapas da estrutura fundiária, mapa da histórica da cidade e do território municipal, mapa da inserção regional do município, mapa dos indicadores de mobilidade e circulação (população e seus movimentos, segundo caracterização e distribuição), mapa de uso do solo, mapas de infra-estrutura urbana, mapas das atividades econômicas do município. E ainda identificar as dinâmicas imobiliárias, refletir sobre as legislações municipais, estadual e federal vigentes sobre instrumentos urbanísticos e ambiental: leis de uso do solo, parcelamento, códigos de obras, posturas ambiental e patrimonial. Deve-se, também, levantar planos, estatutos e projetos existentes sobre o município, reavaliando-os junto as audiências públicas. Deve-se identificar no coletivo os problemas locais e regionais integrados sociais, econômico, demográficos e ambientais reconhecer potencialidades e vocação do município frente seu papel regional, estadual e/ou nacional. Vale ainda confrontar visões e leituras  postas pelos técnicos e pelos atores políticos com representação de comunidades de base.

 

A elaboração de um documento com diagnóstico e do prognóstico feito pela comunidade, técnicos e gestores é fundamental porque desde o inicio é posto a mesa o confronto, o conflito e os pactos, definindo e redefinindo prognósticos e os instrumentos de planejamento e política urbana (e rural, se for o caso). Se não houver a participação das comunidades de base desde o início  do Plano Diretor, estas podem frear e impedir a promulgação deste plano no Legislativo, até o estabelecimento de julgamento do prefeito por improbidade administrativa (Art. 52 – Estatuto das Cidades).

 

Com as II Conferências das Cidades foi possível maior divulgação do Plano Diretor. No entanto, são as audiências públicas as orientações obrigatórias no processo de discussão para a aprovação do Plano Diretor na Câmara Municipal, sendo condição para validação da lei municipal que institui o plano. Em alguns municípios, a Lei Orgânica Municipal determina a quantidade de audiências, que devem aprovar de acordo com a população e as propostas de participação popular.

 

Cabe à prefeitura dar ampla divulgação e facilitar o acesso aos documentos e informações produzidos durante todo o processo participativo de elaboração do Plano Diretor. Esta divulgação e a possibilidade de conhecer documentos e informações são indispensáveis para que parcela significativa da população participe efetivamente dos debates até a aprovação final do Plano Diretor (PD). Criado o plano Diretor na forma de lei, este deve estabelecer a estrutura e o processo participativo de planejamento para implementação e monitoramento  da política urbana municipal.

 

Durante esses dez anos, monitoramento e a implementação do Plano devem ser feitos compreendendo em avaliações, atualizações e ajustes permanentes que definidos na lei. O Plano Diretor deve definir as instâncias de discussões e de decisão de acompanhamento, por meio dos conselhos, sua composição e suas atribuições, o que significa o permanente por parte da população local, viabilizando, desse modo a plena participação social.

 

As formas de gestão e de planejamento devem ser monitorados para garantir o controle social, o que depende do pacto construído  na elaboração do PD e deve estar coerente com a capacidade de gestão e intervenção do município, através de conselho da cidade, gestão e planejamento do município. Trata-se da necessidade de existência das secretarias de planejamento urbano e ambiental e estruturas assemelhadas, que atualizem, permanentemente, os dados quantitativos e qualitativos sobre o território municipal. A conclusão do PD não se encerra no processo de implementação do planejamento. Ajustes devem ser feitos.

 

Recomenda-se que o PD determine os meios e a sistemática para a sua revisão, conforme orienta o Estatuto da Cidade, a lei que institui o Plano Diretor e determina que deve ser revisado a cada 10 anos. A revisão e os ajustes deverão ser discutidos e acordados de forma integrada com ampla participação popular, com demais fóruns de discussão atuantes no município, consolidados em conferências municipais e articulados com as demais ações aplicadas pelos diferentes níveis de governo.

 

b) Participação social e os Conselhos

 

Os conselhos gestores de política urbana são definidos pelo Estado da seguinte forma :

 

Os conselhos são espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Os conselhos são o principal canal de participação popular encontrada nas três instâncias de governo (federal, estadual e municipal).

 

Os conselhos devem ser compostos por um número par de conselheiros, sendo que, para cada conselheiro representante do Estado, haverá um representante da sociedade civil Mas há exceções à regra da paridade dos conselhos, tais como na saúde e na segurança alimentar. Os conselhos de saúde, por exemplo, são compostos por 25% de representantes de entidades governamentais, 25% de representantes de entidades não-governamentais e 50% de usuários dos serviços de saúde do SUS (Controladoria Geral da União, 2007).

 

 

Alguns exemplos de conselhos são o Conselho Municipal de Saúde, o Conselho de Alimentação Escolar, o Conselho de Controle Social do Bolsa Família, o Conselho do Fundef  (gestão de recursos para o ensino fundamental), o Conselho de Assistência Social, o Conselho gestor de Bacia hidrográfica  e o Conselho Municipal de Política urbana.

 

A análise dos conselhos gestores de políticas públicas, enquanto espaços de relação Estado-sociedade é um campo de estudo consolidado nas ciências sociais, sobretudo na sociologia e no planejamento urbano. O Instituto Polis, a Fase e a Fiocruz são as instituições de referência neste tema. O conselho de saúde foi o primeiro a ser implementado, tornando-se o modelo para os demais.

 

A Geografia tem contribuído de forma mais efetiva na participação, enquanto membros dos conselhos, do que no campo de reflexão. Os geógrafos integram, sobretudo, os conselhos na área ambiental, tanto como representantes da sociedade civil como membro do governo.

 

Este tipo de participação merece uma atenção especial, pois os conselhos são fóruns de debate e luta, quando bem direcionados, permitem a gestão compartilhada das políticas públicas, tornando-se, portanto, instrumentos efetivos de mudança da realidade, a partir do momento delega poder à sociedade civil organizada, colaborando, assim, para uma distribuição mais igualitária dos recursos públicos. Desta forma, faz-se necessário compreender a natureza da contribuição da Geografia neste cenário e, sobretudo, uma reflexão da Geografia Crítica sobre as possibilidades e limites das ações nos conselhos gestores. Pois estes fóruns gestores permitem estabelecer mudanças nas relações de decisão, isto é , relações de poder, com repercussão efetiva sobre as normas e, consequentemente, sobre  a sociedade e o território.

 

O desafio está posto, como colaborar para a ocupação deste espaço político, que exige uma ação reflexiva e propositiva para exercer a gestão do território ?

 

Existe um denominador comum nas ciências sociais que os conselhos gestores são resultados das lutas dos movimentos sociais dos anos setenta e oitenta (CARVALHO, 1998). Estes buscavam a abertura de canais de participação efetiva frente ao poder público, diante de um forte processo de fechamento dos fóruns representativos durante a ditadura militar. A coroação deste processo foi a constituição de 1988, que inclui a participação da sociedade civil na gestão de políticas públicas.

 

Porém, o funcionamento destes conselhos é pautado sobre uma legislação própria (urbanística, ambiental, de saúde, de recursos hídricos, etc), com uma linguagem técnica rebuscada, hermética  e pouco conhecida. Os conteúdos destas leis não são tratados no âmbito do ensino escolar, da graduação ou em cursos de extensão, somente na pós-graduação. Assim os representantes da sociedade civil ficam em situação desvantajosa frente aos técnicos do governo.

 

Outra contradição deste quadro é percebida pelo fato que  movimentos sociais conquistaram este espaço de participação em questão e, ao mesmo tempo, apresentaram uma retração nas sua atividades durante os anos noventa. Desta forma, muitos conselhos funcionam sem que os membros da sociedade civil sejam representantes de uma sociedade mobilizada. 

 

c) Limites da realização plena do Plano Diretor participativo e dos conselhos municipais e regionais

 

Nesta seção busca-se debater e refletir sobre o exercício prático junto a política urbana. Para iniciar o debate, é necessário reconhecer que as dificuldades do exercício pleno da democracia no Brasil, deve-se a forma como, desde o início da República houve a separação entre sociedade e Estado. A mediação, em geral, era feita por meio das relações entre as elites locais e regionais e o uso da máquina pública para a implementação de leis permissoras de seus interesses. Mesmo na época de implantação da industrialização do País, as classes médias e os empresários de grande porte foram e são os mais privilegiados na sua relação com o Estado. A relação entre Sociedade e Estado, no encontro com base popular, aparece mediada por políticas clientelistas e populistas impedidoras de uma reflexão mais profunda acerca do projeto de país que se deseja e os projetos que estão sendo disputados. Em geral, a população de baixa renda, que é a maioria e vive desprovida dos direitos fundamentais (educação, moradia, emprego, saúde) pouco ou nada sabem sobre os novos instrumentos de gestão urbana. Poucos sabem sobre o Estatuto da Cidade e da proposta de Plano Diretor e de outros instrumentos de defesa da cidadania em contextos urbanos, a não ser aquelas pessoas envolvidas diretamente com os movimentos sociais urbanos. Nos depoimentos ouvidos durante nossa participação na II Conferência municipal da cidade de São Gonçalo (RJ) e na II Conferências das Cidades do Leste Metropolitano do Rio de Janeiro (RJ), em 2005, ficou notório a curiosidade das pessoas que participavam desses dois eventos, representantes de entidades em saber com mais detalhes sobre os instrumentos de gestão urbana e de direito à cidade. Uma das maiores dificuldades na leitura dos documentos se dá pela linguagem hermética que existem nestes textos documentais, em geral linguagens técnicas da área do direito que envolvem interpretações afinadas. Se a linguagem dos documentos complicar a sua compreensão para a população escolarizada, torna-se mais complicada sua compreensão para as parcelas da população analfabetas ou semi-analfabetas.

 

Limite da participação na construção e na implementação do Plano Diretor deve-se, portanto:

 

1.                      as dificuldades de acesso à informação sobre os instrumentos de gestão. É muito pouco divulgado na mídia, nas escolas os instrumentos de gestão urbana, dentre elas o Plano Diretor e as Conferências Municipais, Regionais, Estaduais e Nacionais das Cidades;

2.                      já fazendo parte da estrutura jurídica e normatizadora, a linguagem  das leis, dos estatutos, dos decretos e de outros instrumentos legais são geralmente herméticos, ou seja, de difícil compreensão e interpretação; e

3.                      os limites postos pela exclusão social é sentida no acesso da população pouco escolarizada à linguagem escrita.

 

Para a reconstrução das bases para o exercício da participação social nos instrumentos de gestão urbana é fundamental a superação dos limites do acesso social a informação e comunicação. Junto ao processo de construção e de implementação Plano Diretor é fundamental:

 

1.                        divulgação ampla na mídia (televisão, rádio, jornais e revistas) sobre o andamento da construção e da implementação, bem como veiculação das datas e das pautas das audiências públicas com antecedência para que a população possa se organiza e propor  novas idéias e soluções;

2.                        criação de um processo dinâmico e educativo sobre os instrumentos de gestão urbana que permita a criação desde o ensino fundamental construindo visão educativa da  cidade. Daí  a importância de se repensar o ensino de Geografia, incluindo a compreensão da participação social e da política urbana nas reformas  curriculares, o que implica nas disciplinas das ciências humanas a alteração de seus conteúdos generalistas que impedem, na maioria das vezes, a consciência de seu próprio território. Trata-se da necessidade urgente de debate acadêmico e de reestruturação contéudo programático que contribua, de fato, para a formação plena da cidadania;

3.                        maiores investimentos no ensino público para jovens e adultos. Apesar do aumento do número de matrículas e do número de escolas no Brasil. É  grande o número de adultos e jovens semi-analfabetos; e

4.                        na luta política urbana, as entidades devem capacitar a sua base com cursos de gestão urbana e instrumentos de direito à cidade,  servindo para esclarecimentos da comunidade em relação aos instrumentos de gestão e as dinâmicas sociais, econômicas e ambientais do espaço onde elas vivem e trabalham. Deve-se, nesta ação política de luta envolver escolas, igrejas, universidades, associações científicas dentre outras instituições  sociais que contribua na construção da rede social.

 

 

Pensamento crítico  e Geografia na  re-construção  das  ações sobre o  urbano

   

O conhecimento do urbano, nos níveis básico e médio do ensino brasileiro, trata das questões contemporâneas de forma muito genérica, jornalística e difusa, muitas vezes valorizando as notícias da mídia, que são efêmeras e fugídias. Questões fundamentais pertinentes à maturidade compreensiva sobre a cidadania possível com a cidade e às informações e ações que garantam o acesso ao conhecimento do seu espaço vivido, e às questões básicas ligadas aos problemas sociais, urbanos e rurais e aos instrumentos legais possíveis não são trabalhados em sala de aula. A escolha conceitual fundante da cada disciplina expõe o sentido da existência daquela ciência que deveria somar na busca de soluções colocadas pelo seu tempo social e pela vida coletiva. Trata-se da necessidade de ser reconhecido o papel político e acadêmico da ciência (MORIN,1993). Partindo dos pressupostos de que os conceitos são históricos e dinâmicos dialogando com os contextos experimentados e vividos como ensina Sartre (1978), Lefebvre (2004) e Santos (1991), torna-se fundamental o diálogo educativo que contribua filosoficamente e na práxis com a formação da cidadania plena. Tal formação não pode ser genérica e distante do cotidiano, como muito bem ensina  Paulo Freire sobre a necessidade prática da pedagogia na formulação plena do ser, a partir do conhecimento e interagir como saberes populares, realizando de fato o reconhecimento do outro e do cotidiano.

 

No que se refere à política urbana, significa compreender as legislações criadas e as possibilidades da realização do humanismo concreto (SILVA, 2005), ou seja ensinar o que os instrumentos de gestão possibilitam na democratização da cidade e, ao mesmo tempo, aprender e apreender com os saberes populares. Tal proposta parece utópica. Não obstante, estamos propondo um humanismo concreto, o que seja possível a partir das trocas culturais com nossa gente e, ao mesmo tempo, fornecendo acesso comunicacional (conhecimento científico), ou seja, aquilo que é facilmente e historicamente acessado pelas elites, pelos capitalistas e pelas classes médias e altas no Brasil. Na Argentina, segundo Poggiese (2006), é histórico na construção dos movimentos sociais e nos instrumentos de luta política social urbana o compartilhamento dos problemas sociais junto com as crianças e os adolescentes. Além disso, as questões e legislações sobre a política urbana são ensinadas nas escolas, o que contribuir na realização do exercício de uma cidadania plena. Porque o exercício da cidadania não ocorre apenas por causa da existência dos textos da lei, mas nas formas de interpretação e de ação política a partir delas, o que representa confrontos, acordos, conflitos, pactos e cisões no pleno exercício do fazer é que se faz a consciência e a sala de aula deveria se, neste sentido, torna-se um dos fóruns do exercício da democratização da informação e do debate as questões centrais que envolvem a vida coletiva contemporânea.

 

Neste sentido, há muito por ser feito para o exercício pleno da participação social junto aos instrumentos de gestão territorial municipal e estadual. É necessário romper processos seculares de separação entre parcelas da sociedade civil, classes populares e o Estado, para que essas classes também construam a história urbana dos seus lugares. Isto significa também a ruptura da relação entre sujeito-objeto no fazer científico e a implementação de metodologia da ciência que reconheça a relação sujeito-sujeito (MORIN, 1993), ou seja, a importante interação entre saberes múltiplos, fundamentados sob o princípio de alteridade e de respeito à história e ao cotidiano vivido e experimentado. Projetos compartilhados contribuirão para solucionar problemas que até agora gestores e cientistas sozinhos não resolveram. 

 

 

Contribuições geográficas: algumas considerações reflexivas

 

Nos limites  dessas páginas, pode-se dizer que as contribuições da Geografia, como ciência, inicia-se com sua abordagem teórico-conceitual e metodológica para pensar os fenômenos sociais. Conceitos tais como espaço, lugar, território, territorialidade, formação sócio-espacial são fundantes na construção de interpretações e de idéias que permitam a construção do sentido das ações que fundamental o pensamento crítico e humanismo concreto, conforme ensina por Ana Clara Torres Ribeiro (SILVA, 2005) no seu diálogo com Milton Santos, apontando para a capacidade do tecido social em interagir com conhecimentos científicos e conhecimentos criados a partir do social, e de sua relação com o espaço,  as lutas  e  as experiências coletivas.

 

Desse modo, a Geografia pode realizar reflexão mais aprofundada do sentido da ação da participação social – sua articulação nas esferas da vida coletiva: estudante-professor, técnico-sociedade civil. Esta reflexão seria aquela que  se orientasse pela compreensão do espaço como espaço banal – espaço de todos, espaço vivido – um pertencimento que deseja ser  considerado e reconhecido como produto de lutas sociais (SANTOS, 1987). A formação sócio-espacial, por sua vez, é conceito que interage com o lugar construído.  Faz referência à compreensão da história da sociedade e da economia e da política. Homens e mulheres nas suas ações, por meio da cultura e do cotidiano, contribuem na construção do espaço (SANTOS, 2005). Ao fazerem isso refletem sobre suas ações e podem contribuir para a solução a partir da história do cotidiano e das experiências vivenciadas, por isso técnicos e professores devem reconhecer  e interagir com conhecimentos acumulados, permitindo assim a alteridade, o compartilhamento de idéias, de problemas e soluções.

 

O conceito de lugar torna-se fundamental nesta reflexão porque permite o reconhecimento da identidade e da cultura como elementos importantes no sentido do lugar como símbolo e pertencimento. O planejamento ao intervir no território dever reconhecer projetos, questões e experiências daquele lugar. Trata-se, portanto, da relação sujeito-sujeito na produção dos projetos.

 

A análise geográfica e seus métodos como a escala, podem fornecer elementos importantes de entendimento de fenômenos, contribuindo, assim, para interferir  na ação dos movimentos sociais, ensinando sobre a magnitude dos problemas urbanos, econômicos, políticos e sociais, porque determinados problemas não poderão serem resolvidos na escala municipal, mas na escala metropolitana, regional ou nacional. As escalas são elementos importantes para fortalecimento das ações dos movimentos sociais.

 

A possibilidade de ensinar e trocar experiências de representação espacial  (mapas, cartas, mapas mentais) entre técnicos e população, a decodificação da linguagem técnica, legal e científica aprofunda, assim, a possibilidade do compartilhamento dos múltiplos saberes, contribuindo para ao aprofundamento de reflexões que se  constituam  em princípios para pensar a ação social na formação de lideranças e de multiplicadores junto às suas comunidades.

 

A noção de território contribui para a idéia de produção de espaço a  partir dos sujeitos – conflitos, relações de poder  e de significados exercidos por meio de ações portadoras de sentidos (territorialidades)[3]. Território e territorialidade são outras possibilidades para a compreensão da importância da participação social, participação esta que não é conceder, mas  conquistar. Conquista  esta  a ser ensinada e trabalhada junto às novas gerações .

 

A Geografia como ciência social  assume papel importante junto às outras ciências do social ao demonstrar o espaço e o território como a materialização das desigualdades sociais que se rebatem como desigualdades espaciais. Demonstra, por conseguinte, que a participação social e a cidadania não podem ou não devem ser compreendidas apenas nas formas das leis, mas no exercício, na sua aplicação efetiva, alterando as condições territoriais.

 

Para finalizar, a problemática experimentada e sua relação com as questões sociais colocadas no nosso tempo social, em diferentes contextos espaciais não podem ser vistas unicamente como mais um objeto de pesquisa ou como ações isoladas de alguns poucos geógrafos. È necessário maior participação e comprometimento das universidades, dos programas de pós-graduação e das associações de geógrafos no sentido de aprofundara reflexões sobre a política urbana e o sentido da participação social nos fóruns de decisão. Estas reflexões são tão fundamentais para o avanço da ciência quanto para a busca coletiva por soluções que amenizem o quadro de desigualdades sociais não marcante no Brasil, e em outros países da América Latina, África e Ásia.

 

Referências Bibliográficas

 

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LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana. Belo Horizonte: 2004 (1a . Ed. 1970, França)

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Documentos:

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Ministério das Cidades. Plano Diretor Participativo: Guia para elaboração pelos municípios e cidadãos. 2ª Edição/Coordenação Geral Raquel Rolnik e Otilie Macedo Pinheiro. Brasília: Ministério das Cidades, Confeas, 2005, 160p.

Reguralização da Terra. Câmara de Deputados: Brasília: CAIXA, 2001.

Participação e Controle Social – Conselhos municipais e controle social [on line] Brasília, Controladoria Geral da União http://www.portaltransparencia.gov.br/PortalTransparenciaConselhosmunicipaiseControleSocial.asp. [15 de março de 2007]

                                                                                                                                                      



Notas

 

[1] Professora do Programa de Pós-Graduação em História Social (área de concentração: História Social do Território) e do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade  do Estado do  Rio de Janeiro - UERJ.

[2] Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

[3] Haesbaert tem feito discussão aprofundada sobre a problemática dos conceitos território, territorialidade e o mito da desterritorialização. Ver Haesbaert, 2006.

 

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