IX Coloquio Internacional de Geocrítica 

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo - 1 de junio de 2007. 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 

DA GEOGRAFIA AO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO: AS LIÇÕES DE UM PERCURSO

Jorge Gaspar


Estou feliz por estar aqui, hoje, em Porto Alegre, no seio de uma das comunidades  mais prestigiadas e exemplares de geógrafos, que através das suas práticas científicas, pedagógicas ou de profissionais do planeamento do território, têm prestado muitos e relevantes serviços à Comunidade. Para mim, a Rede Geocrítica representa uma referência em vários âmbitos da minha actividade como geógrafo e o seu fundador e impulsionador, Horácio Capel, tem sido, ao longo de quatro décadas de diálogos, simultaneamente um Mestre, um Companheiro e um Amigo.

Este Prémio Internacional Geocrítica, as palavras da acta do júri e agora, aqui, a presença de todos vós, representam para mim não só uma honra, como um grande conforto, decerto um estímulo e, sobretudo, a presunção de que segui um dos caminhos possíveis para quem quis ser Geógrafo e, na estreiteza da sua condição, pôde dar um contributo à Comunidade.

COMO CHEGUEI À GEOGRAFIA

Verdadeiramente determinante na minha vida profissional foi a opção muito precoce pela Geografia. Ainda antes de entrar na escola primária, o que aconteceu aos 6 anos de idade, em Outubro de 1948, já tinha o gosto pelo conhecimento do meio que me envolvia: do imediato – a quinta onde nasci, a cidade que estava ali ao lado, (figura 1) ao menos imediato - o que se passava no mundo e, nas noites de luar ou de estrelas, a observação do firmamento onde desde cedo aprendi as principais referências do mapa dos céus.

Figura 1
Campo Grande e Alvalade: as setas assinalam a casa onde nasci e o Colégio Moderno

Além de gostar de acompanhar o meu pai nas suas curtas deslocações de negócios, tinha 3 ou 4 destinos que representavam o zoom na minha aprendizagem geográfica: a Costa da Caparica, onde ia de férias, a banhos, no Verão; as terras dos meus pais onde geralmente nos deslocávamos na Páscoa: Braga e a sua periferia rural imediata, Coimbra e o Campo do Mondego; por último, e talvez a mais importante porque mais rica em informações e fascinante na riqueza social e cultural, o Centro de Lisboa, com múltiplas referências: o Cais do Sodré, com o mercado da Ribeira, os barcos para Cacilhas e a alfaiataria no Largo de S. Paulo, o Rossio com o seu bulício, que mais tarde me chamaria com mais assiduidade e autonomia, mas que então era marcado pela chapelaria Azevedo Rua e pela Camisaria Moderna e por aquela rua fascinante – a primeira pedonal de Lisboa - a rua Barros Queirós - que nos levava à Mouraria (em demolição nessa altura) e ao Teatro Apolo, ali, na Rua da Palma; próxima ficava também a Praça da Figueira, o melhor mercado para flores, que frequentávamos pelos Santos e Finados, e, mais acima, o complemento dos lazeres - o Coliseu (o mais fascinante), os cinemas e, subindo a Avenida, o Parque Mayer.

Do Campo Grande ao Cais do Sodré, um mapa mais aberto e linear, marcado pelo percurso do Carro eléctrico e do autocarro. Este, inaugurado em 1946, ia só até aos Restauradores e, de início, era mais caro e de menor frequência. Ao longo desse eixo, cedo conheci o Mercado Geral de Gados em Entrecampos, o Matadouro no Saldanha e a Feira Popular nas Avenidas Novas. Mas esse percurso era sobretudo marcado pela beleza e imponência dos edifícios e dos monumentos - Heróis da Guerra Peninsular, Marquês de Saldanha, Marquês de Pombal, Restauradores - e os néon que, no Rossio, atingiam o clímax.

Creio que esta geografia da minha primeira infância me marcou para sempre a atracção pela cidade e pelo campo – quase harmoniosamente (naturalmente) associados, pelo menos na minha mente.

O “resto do País”, de dramas e pequenas epopeias, um País não estático onde as pessoas se movimentavam na luta pela sobrevivência, sobretudo os mais pobres, era-me revelado através das conversas que partilhava ou que escutava aos trabalhadores da quinta, homens e mulheres, na sua esmagadora maioria do centro do país, das aldeias do Baixo Mondego e das serras calcárias de Pombal a Alvaiázere, noutros sítios conhecidos por Caramelos e Gaibéus. Uns vinham por conhecimentos, através de famílias que trabalhavam na quinta, outros, os sazonais, eram contratados na “Feira dos Homens” (praça de jornas) que todos os Domingos tinha lugar no topo Norte do Campo Grande…

E foi também nestas conversas que o Brasil chegou até mim porque todos ou quase todos aqui tinham familiares, a começar pelo meu pai.

Assim começou também a minha formação de base em Geografia da População/Antropologia/Sociologia: de onde vinham as pessoas – curiosidade quase mórbida que continuo a cultivar. Porquê? Quanta história e histórias da vida chegaram até mim pelos contactos pessoais e eu aprendi assim, desde muito criança, os dramas de um Portugal muito pobre, atrasado, sem perspectivas… mas porque não conheciam o Mundo e eram jovens, mantinham a alegria ou, pelo menos, é a memória que guardo.

Quando entrei para a Escola - o Colégio Moderno - mesmo ao lado de casa e onde os meus pais tinham trabalhado, já sabia a tabuada, fazia as quatro operações e aprendera a ler pela Cartilha Maternal do João de Deus. O meu Pai tinha uma verdadeira vocação de pedagogo. Assim, na 1ª classe, dei logo nas vistas pela aritmética mas, a breve trecho, também pela História e pela Geografia. (figura 2).

Figura 2
O Colégio Moderno e um dos mapas da sala de aulas

As salas de aula da 3ª e 4ª classe tinham muitos mapas murais, Planisférios, mapas da Europa e vários sobre Portugal. Um fascínio! Nos intervalos, entretinha-me a decorar estes mapas e rapidamente aprendi nomes de rios, montanhas, concelhos, linhas de caminho de ferro… e tudo o mais que eles me permitiam.

Recordo-me que muito cedo, seguramente antes dos 10 anos, queria ser engenheiro -  sem saber bem o que era, talvez um misto da admiração do meu Pai pelo Engº Duarte Pacheco (em pleno auge do. do seu trajecto “Messiânico”), com a afirmação da profissão no País e decerto com o gosto por mapas e pelo território.

Enquanto o meu Pai gostava muito que eu seguisse a carreira militar, começando pelo Colégio Militar, onde estive quase a entrar aos 10 anos, o que eu definitivamente queria era a Geografia, embora desconhecendo ainda o que era o geógrafo!

E acabei, afinal, por andar à volta das “engenharias”, ao longo de toda a vida: um geógrafo muito activo no território, um “engenheiro”; um serviço militar de 2 anos como cartógrafo na “Arma de Engenharia”; e, mais tarde, até professor catedrático convidado do Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico, durante uma dezena de anos.

O Liceu, apesar de uma certa desqualificação da Geografia, não esfriou em mim a vontade de vir a ser geógrafo e viajante. Aos 15 anos fiz com o meu irmão Vítor a primeira aventura à boleia em Portugal, mais de um mês a acampar pelo Algarve, quando povoações como Armação de Pêra não tinham ainda água canalizada ou electricidade. Um largo convívio com pescadores e utentes das estradas, consolidava, então, a vocação da Geografia.

A decisão definitiva assumi-a no 3º ciclo ao escolher a alínea C, a única que dava acesso à licenciatura em Geografia, traçando assim, conscientemente, o caminho de Geógrafo. Tudo se consolidou no ano seguinte, com uma viagem, em auto stop e algum comboio, pela Europa, de meados de Junho até inícios de Outubro. Confirmei a vocação e assumi a identidade europeia.

Quando finalmente me inscrevi no curso de Geografia da Universidade de Lisboa, após uma nova “exploração” europeia, tinha reforçado as minhas convicções de cidadania e sentia que os humanos são seres eminentemente geográficos e que a prática da Geografia implica a assumpção de valores éticos e políticos. Claro que estes princípios só mais tarde viriam a ser verbalizados.

COMO ME TORNEI UN GEÓGRAFO APLICADO

Ao longo da licenciatura prevaleceu sempre a vontade de me tornar um geógrafo profissional e não a de seguir a habitual carreira de professor de Liceu.

Em 1965 concluí a licenciatura em Geografia na Universidade de Lisboa. Um grau de 5 anos que hoje poderíamos definir como tendo um major (60%) em Geografia (Humana + Física + Regional) e dois minors, um em História (20%) e outro em Ciências Naturais (20%).

Tanto os conteúdos como os métodos de ensino inseriam-se na chamada Escola Francesa e a maior parte da bibliografia era disso testemunho. No corpo docente existia uma certa tensão, entre os que defendiam uma orientação no sentido da geografia aplicada e outros que defendiam um “purismo” científico, significasse isso o que significasse.

Fiz uma dissertação equivalente a mestrado em Geografia Económica, sobre as Feiras de Gado na Beira Litoral, sob a orientação de Orlando Ribeiro, onde tive como preocupação, a relação entre as feiras e o desenvolvimento urbano dos lugares: a base económica, a funcionalidade, a morfologia urbana.

Figura 3
Orlando Ribeiro

Embora com uma excelente preparação de base, estava consciente de que teria dificuldades em trabalhar no planeamento territorial, como gostaria. Só mais tarde vim a compreender como aquela preparação básica, “tradicional”, fora de grande utilidade para o sucesso da minha carreira como “Geógrafo Aplicado”. Hoje, mais do que nunca, é essa a minha convicção.

Uma série de acasos levaram-me à geografia profissional, ao planeamento e ao urbanismo.

Em primeiro lugar, o facto de ter sido contratado como assistente para o curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes de Lisboa, iniciando assim um diálogo com profissionais com quem sempre senti muitas afinidades.

Cheguei a Arquitectura quatro meses depois de ter obtido o grau e após um estágio de campo de 2 meses, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, em que procurei combinar o estudo da vinha e do vinho do Porto com o levantamento geológico de um graben atravessado por um afluente do Rio Douro (!). No Curso de Arquitectura tinha a meu cargo o ensino “teórico e prático” da Geografia (Física e Humana), respectivamente no 4º e 5º ano de uma licenciatura em 6 anos. Eu tinha 23 anos e a maioria dos alunos, a mesma idade. Na realidade, tratava-se de ensinar a aplicar conhecimentos de geografia, na prática da Arquitectura e do Urbanismo.

Valeu-me o Professor Ilídio do Amaral, meu professor de Geografia Física e de Geografia das Regiões Tropicais, e que me antecedera no cargo. Auxiliou-me na preparação do programa e “passou-me” bibliografia fundamental, em inglês, de Patrick Abercrombie a Lewis Mumford, de Glenn Trewartha a Victor Olgyay, autor de uma obra que se mostrou muito importante na formação dos jovens arquitectos: Design with Climate. Ajudou-me bastante a prática que eu adquirira em trabalho de campo e que foi muito útil, não só para transmitir aos alunos, como para a “cruzar” com os meus colegas de outras disciplinas – “Materiais e Edificações”, “Desenho Urbano”, “Composição de Arquitectura”, “Higiene e Equipamento”, “Urbanologia”. Foi, de facto, a minha iniciação como “geógrafo aplicado”.

Figura 4
Ilídio do Amaral

Em segundo lugar a oportunidade de estudar na Universidade de Lund, na Suécia, com Torsten Hägerstrand e ter conhecido aí um fantástico conjunto de geógrafos, de todas as gerações e de diferentes partes do Mundo. A estadia no Departamento de Geografia daquela Universidade, nos anos lectivos de 1966-1967 e 1967-1968, foi muito importante na minha preparação como geógrafo, em três dimensões fundamentais: o acesso a novas metodologias e técnicas, nomeadamente as que faziam parte da “Nova Geografia”, em plena fase de afirmação e difusão; o robustecimento dos fundamentos teóricos da Geografia Humana, com a descoberta e o estudo de Walter Christaller, a leitura de William Bruge que acabara de publicar a sua Theoretical Geography na série Lund Studies in Geography, a digestão do recente Locational Analysis in Human Geography, de Peter Haggett, com quem estabeleci uma troca de correspondência e, obviamente, com Torsten Hägerstrand, cujos seminários e sessões tutoriais foram verdadeiramente iluminantes. Neste contexto, relevo ainda a participação em várias excursões e sessões de campo, não só no âmbito da minha área central de estudo -Geografia Humana, Social e Económica –, mas também nos domínios da História Urbana, da Geomorfologia e da Geologia do Quaternário.

Figura 5
Torsten Hägerstrand

Com Hägerstrand aprendi a importância da reflexão teórica e do método dedutivo, sem excluir as várias heranças da Geografia Humana. O mestre sueco proporcionou-me ainda o acesso personalizado a um conjunto de geógrafos que muito contribuíram para a minha formação básica: Walter Christaller, de quem ainda ouvi uma conferência em 1967, Edgar Kant – um nome injustamente esquecido, cuja influência em Lund foi grande, Peter Haggett, Alan Pred, Peter Gould, Georges Chabot, Sven Godlund, Gunnar Törnkvist , Gerd Enequist, entre outros.

Foram igualmente relevantes na minha formação as “conversas” de fim de tarde com o Prof. Edgar Kant, o grande geógrafo Estoniano, obrigado a abandonar a sua Universidade de Tartu na sequência dos eventos políticos que se seguiram à 2ª Grande Guerra. Edgar Kant tinha uma imensa cultura geográfica e a formação de um humanista, na intercepção de quatro escolas dos saberes geográficos, a Alemã, a Francesa, a Anglo-Saxónica e a Nórdica, o que conseguira não só pela sua formação de base, como pelo facto de dominar várias línguas na perfeição. Falávamos em Francês, a minha 2ª língua, e para ele uma das várias 2ªs línguas, entre o alemão, o inglês, o sueco e o finlandês, já que em todas escrevia e falava fluentemente. Edgar Kant, um percursor da teoria dos lugares centrais, interessava-se particularmente pelas questões da cidade na sua relação com o território – áreas de influência, movimentos pendulares, sistemas de funções e de lugares centrais. Este convívio, não só me foi muito útil para a elaboração da dissertação de doutoramento que entretanto evoluíra do estudo da cidade de Évora, para uma abordagem na perspectiva da teoria dos lugares centrais, como consolidou a minha identidade de europeu e a crença numa Europa Unida, na sua magnífica e estimulante diversidade.

Em terceiro lugar, quando de regresso a Lisboa, em 1968, o ter sido convidado por Tomás Taveira, ainda meu aluno de 5º ano do Curso de Arquitectura, para colaborador do Atelier Conceição Silva, o único grande atelier de Arquitectura e Urbanismo. Foi uma excelente “escola”, que me colocou definitivamente no campo da “Geografia Aplicada” e foi a partir daí que se me abriram as portas para múltiplas actividades. Integrado em equipas pluridisciplinares, em que tive oportunidade de “introduzir” geógrafos juniores, alguns dos quais viriam a ocupar lugares destacados tanto no sector privado como na administração pública, desenvolvi trabalho em domínios variados: estudos locais e sub-regionais, planos de ordenamento municipal, master plans para cidades de pequena e média dimensão, projectos de desenvolvimento urbano e de reabilitação urbana.

Neste contexto, tive a oportunidade de introduzir em Portugal, em 1970, a cartografia por computador e o que pode ser considerado a primeira experiência de GIS, com o apoio da IBM.

Figura 6
Inquérito à população do concelho de Loures: cartão para leitura óptica

Concluída a dissertação de doutoramento em 1971 e defendida em 1972, abriram-se-me novas oportunidades no âmbito da consultadoria, tanto no sector privado como no público, que consegui dosear de modo a manter como actividades principais o ensino e a investigação.

Nesta fase e ainda antes de ser chamado ao serviço militar obrigatório, tive um convite irrecusável – integrar a equipa inicial de um projecto integrado de desenvolvimento urbano-industrial-portuário: Sines. Para o efeito, foi criada uma Agência directamente dependente da Presidência do Conselho de Ministros, com grande autonomia de recrutamento, de gestão e de remuneração salarial – o Gabinete da Área de Sines (GAS). O GAS constituiu uma verdadeira escola de quadros, num período historicamente designado como a “Primavera Marcelista” que correspondeu aos últimos anos da Ditadura do Estado Novo. Dos seus quadros vieram a sair, após a “Revolução” e instauração da Democracia, vários ministros e secretários de estado e, inclusive, um primeiro-ministro…

No GAS, sempre em colaboração estreita com o Arqº. G. Câncio Martins, membro da Direcção, trabalhei em vários domínios: Plano Geral, Master-Plan da cidade nova e, como coordenador, na montagem de um SIG, agora de forma consolidada. Também aqui foi possível criar postos permanentes para jovens geógrafos.

Figura 7

Em 1974, com a restauração do regime democrático em Portugal, muitas outras oportunidades surgiram, também para um geógrafo aplicado: logo, pela participação numa comissão encarregada de apresentar ao Ministério da Administração Interna uma proposta de organização territorial, articulando planeamento, gestão e administração, aos níveis regional, sub-regional e municipal, ao que se seguiu a promoção de estudos eleitorais e criação de uma equipa de sondagens eleitorais. Enfim, a promoção da geografia aplicada em vários domínios.

Até hoje, nestes quarenta anos de actividades na aplicação da Geografia, não deixaram de se alargar as oportunidades e os campos de intervenção, nem tão pouco o empenho e o entusiasmo de encetar novos projectos. Apenas em escassos quatro anos dedicados a tarefas da administração universitária (não conto aqui vários anos de director do Centro de Estudos Geográficos e de Presidente do Departamento de Geografia), reduzi o ritmo, isto se não considerar que, em boa medida, a Geografia também foi de muita utilidade para o exercício das funções de Director da Faculdade ou de Vice-Reitor da Universidade de Lisboa.

Finalmente uma maior maturidade e uma conjuntura nacional mais favorável, permitiram-me dar mais um passo: a criação de uma empresa de consultadoria de planeamento regional e urbano, que teria nos geógrafos aplicados o seu núcleo duro. Esta empresa, CEDRU, completou 20 anos em 2006 e é uma referência em Portugal, neste domínio. A quase totalidade dos seus técnicos tem formação de base em Geografia, incluindo o seu Director Técnico. Constitui talvez o projecto com mais alcance social de todos em que participei e, devo confessar, a experiência empresarial tem sido também de enorme importância na minha formação de geógrafo aplicado.

Figura 8


(www.cedru.com)
APRENDER COM OS PROJECTOS BEM SUCEDIDOS

Como o trabalho pedagógico e o trabalho científico, também a actividade eminentemente técnica do planeamento territorial constitui um processo de aprendizagem e tanto aprendemos com os projectos bem sucedidos, como com os de mais difícil avaliação ou mesmo com aqueles onde verificamos a falência das nossas propostas.

Claro que a avaliação do sucesso de um projecto pode ser feita segundo diferentes perspectivas e parâmetros. A mais óbvia e justificada é a que remete para a satisfação do cliente. Para quem está no mercado, é fundamental que os serviços que oferece correspondam às expectativas de quem os adquire, quer seja entidade privada, pública ou mista.

A Operação Integrada de Desenvolvimento da Península de Setúbal

O estudo preparatório para a realização da OID/PS foi aprovado pela Comissão Europeia em Dezembro de 1987, mas o respectivo programa operacional só teve a aprovação final em 8 de Agosto de 1989, após um período de morosas negociações e reformulações. A sua realização foi prevista para o período de 1989/93.

Ficou como um marco de Planeamento participado em Portugal, com forte envolvimento dos municípios, quase todos de maioria do Partido Comunista, dos sindicatos dos trabalhadores, a maioria próximos do PCP, das associações empresariais, de grandes empresas, nacionais e estrangeiras, de pequenas e médias empresas, da Universidade, de escolas secundárias, de várias entidades públicas.

A OID/PS abrangeu os nove municípios da NUTE III da Península de Setúbal, tendo como objectivos os seguintes i) aproveitamento pleno e valorização das potencialidades e dos recursos endógenos, nomeadamente dos sectores agrícola, florestal, pecuário, da aquicultura das águas interiores e do turismo; ii) modernização, reconversão e diversificação do tecido produtivo existente e apoio à instalação de empresas em actividades alternativas; iii) redução do desemprego e do sub-emprego e criação de novos empregos; iv) correcção dos actuais desequilíbrios demográficos; v) melhoria das infra-estruturas de apoio à base produtiva e à população; vi) combate à degradação ambiental.

Em termos operativos, a OID/PS propõe a criação de uma Sociedade de Desenvolvimento Regional para a Península de Setúbal (tendo como áreas prioritárias de actuação: a financeira, a assessoria, a promoção empresarial, e a recuperação de empresas) e um conjunto de 11 programas sectoriais de intervenção: i) Agricultura, pecuária e silvicultura; ii) Pesca e aquicultura; iii) Indústria transformadora; iv) Comércio e serviços; v) Turismo; vi) Emprego e pequenas iniciativas empresariais; vii) Ordenamento do território; viii) Infra-estruturas de saneamento básico; ix) Incremento das acessibilidades inter e intra-regionais; x) Infra-estruturas sociais de valor estratégico; xi) Recursos naturais e protecção ambiental.

O custo total da OID/PS foi da ordem dos 100 milhões de contos, envolvendo um financiamento comunitário de 49 milhões de contos, dos quais 71,4% provenientes do FEDER.

VALIS

Em finais da década de oitenta, os eurodeputados Lucas Pires e Coimbra Martins alertaram a Comissão das Comunidades Europeias para o adiantado estado de degradação do património edificado da capital. Como consequência, a Comissão, através da Direcção-Geral de Políticas Regionais (DGXVI), decidiu convidar-me para, no âmbito do CEDRU, elaborar um estudo estratégico de recuperação e de valorização patrimonial de Lisboa. Nascia assim o VALIS – Valorização Arquitectónica e Urbana de Lisboa, estudo desenvolvido por uma equipa técnica multidisplinar, onde predominavam, todavia, geógrafos e arquitectos.

O estudo tem assim a particularidade de, embora dirigido para o nível municipal, ter sido promovido pela Comunidade, antecipando o próprio exercício de planeamento estratégico que a Câmara Municipal só viria a encetar algum tempo depois. De resto, quando surgiu o primeiro documento do VALIS (Junho de 1990), cuja apresentação pública realizada nas instalações do MPAT – Ministério do Planeamento e Administração do Território, no Terreiro do Paço, traria a Portugal o responsável pela DGXVI, a imprensa diária deu grande destaque ao trabalho, designando-o mesmo de Plano Estratégico de Lisboa” (“Lisboa já tem plano Estratégico”, noticiaria o jornal diário o Público de 30 de Setembro de 1990, na sua primeira página).

Os trabalhos desenvolveram-se em três fases, que decorreram entre 1990 e 1992. No decurso da primeira fase (concluída em Junho de 1990), seria realizado um levantamento sistemático do património em Lisboa, agrupado em cinco tipologias: militar, habitação, equipamento, espaço público, religioso e industrial, e configurada uma estratégia de valorização patrimonial e funcional do corredor ribeirinho e dos três principais vales que recortam a cidade de Lisboa: Av. da Liberdade, Chelas e Alcântara. No essencial, a Equipa defendia que os vales de Chelas e de Alcântara, face às novas acessibilidades que se desenhavam, poderiam tornar-se em duas novas centralidades terciárias da capital – as “Duas Novas Baixas para Lisboa”.

Figura 9
VALIS :7 portas para Lisboa

Uma estratégia para uma cidade de pequena dimensão: Castelo Branco 2020

A cidade de Castelo Branco, com uma história de quase oito séculos, tem, com a sua envolvente urbana, uns escassos 30000 habitantes. Ao longo dos séculos a cidade tem mostrado capacidade de adaptação, respondendo aos desafios de cada tempo.

O último quartel do século 20 constituiu um ciclo de satisfação das necessidades de emprego e de infra-estruturação, daí a necessidade sentida pela Câmara Municipal de intervir de forma mais voluntariosa na valorização do edificado, mormente dos espaços públicos: “podemos ter estimulantes e correctos instrumentos de planeamento, podem os políticos tomar as melhores decisões estratégicas, mas se o resultado tangível não der origem a um ambiente urbano agradável, se os edifícios, os largos, as ruas, os passeios, os jardins não constituírem um quadro atraente para a população, não estamos perante uma intervenção bem sucedida”.

Apontámos cinco caminhos para a valorização de Castelo Branco: i) valorizar a memória: intervir no centro histórico; ii) recuperar a urbanidade: intervir no tecido urbano consolidado; iii) recentrar a cidade: do novo centro cívico ao centro intermodal; iv) recuperar a identidade: as «portas da cidade»; v) qualificar a cidade exterior: intervir nas periferias.

Outra linha de intervenção com grande força foi a da re - criação do centro cívico e cultural de Castelo Branco, aproveitando para o efeito quer a recuperação das antigas instalações do antigo e desactivado Quartel de Cavalaria (propondo-se para aí a instalação de diversos equipamentos e serviços de âmbito cultural, como um centro de arte contemporânea, um centro de congressos e uma biblioteca), quer o arranjo paisagístico e funcional do Largo da Devesa. Mais tarde, os projectos pertinentes a esta linha de intervenção, desenvolvidos pelo arquitecto espanhol Josep Lluis Mateo, seriam enquadrados no Programa POLIS.

Igualmente estruturantes e arrojadas são as propostas desenvolvidas pelo arquitecto Manuel Vicente no sentido de tornar a área da estação de caminho de ferro numa nova centralidade da cidade, as quais pressupunham rebaixamento da linha de comboio, construção de complexo comercial e de escritórios e centro coordenador de transportes, tudo envolto numa elipse rodoviária suspensa circundante aos edifícios, através da qual se estabeleceria a conexão com uma nova avenida, física e imageticamente na continuação da actual Avenida Nuno Álvares.

Referência também para as múltiplas propostas de valorização paisagística, abarcando quer intervenções de carácter cirúrgico em largos e ruas de referência no quotidiano dos albicastrenses e/ou com interesse patrimonial/turístico, quer a criação de novos parques de lazer urbano.

APRENDER COM OS FRACASSOS

Trabalhar em planeamento regional e em ordenamento do território pode ser muito frustrante, quer por nunca se chegar a ver as nossas propostas implementadas, situação que se traduz numa frase ouvida com muita frequência - “mais um plano para a gaveta”- quer porque os resultados se afastam ou pervertem o que constituía os nossos objectivos.

Um exercício importante e necessário, quer para o planeador, quer para os destinatários das suas propostas, é o da avaliação ex-ante, ex-post e ongoing. Estas avaliações constituem hoje um domínio relevante na actividade de muitos geógrafos.

Mas há uma avaliação reservada ao planeador e que lhe servirá fundamentalmente para novas intervenções. Vou partilhar aqui convosco alguns casos de insucesso ou de sucesso incompleto, que constituíram para mim fonte de aprendizagem.

Começo pelo primeiro trabalho que me foi solicitado, ainda em 1968: tratava-se de um relatório síntese sobre as potencialidades turísticas de um empreendimento a sul de Lisboa e tinha como finalidade captar parceiros institucionais estrangeiros da área financeira.

O meu relatório saiu muito desequilibrado, concentrando-se muito mais nos valores naturais (morfológicos, fauna, flora, paisagem) que nos valores mais relevantes de um grande desenvolvimento turístico – acessibilidades, proximidade de serviços de apoio, complementaridades…O relatório teve que ser refeito. Foi a 1ª lição!

Alguns fracassos em projectos de grande vulto ficaram a dever-se ao facto de, frequentemente, existirem interesses privados em jogo que encontraram diferentes “respostas” no interior das entidades públicas, quer do Governo, quer entre o Governo e uma autarquia, nomeadamente quando a maioria pertence a partidos diferentes.

O Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa.

O processo de elaboração do PROTAML- Plano Regional de Ordenamento da Área Metropolitana de Lisboa iniciou-se ainda ao abrigo da legislação de 1988. A Resolução do Conselho de Ministros que aprovou a sua elaboração, data de Março de 1989.

A equipa de consultores encarregue da missão de elaborar o PROTAML[1], trabalhou uma primeira versão, entre 1990 e 1992, que seria apresentada à Comissão Consultiva do Plano onde alcançou um razoável consenso técnico e político.

Figura 10
Plano Regional de Ordenamento da Área Metropolitana de Lisboa

Entretanto, dificuldades sucessivas na concertação governamental das propostas, impediriam a aprovação formal do que designaremos por PROTAML 90/95. Os trabalhos de elaboração de um PROT para a Área Metropolitana de Lisboa seriam contudo retomados na viragem do Milénio, desta feita já ao abrigo da legislação de 1999.

O ANDAR ANTES DO TEMPO

Muitos dos fracassos no planeamento territorial estratégico e no planeamento em geral, bem como no ordenamento do território, decorrem da falta de adequação ao tempo: são as propostas extemporâneas. Nuns casos, porque vêm cedo de mais, noutros, porque perderam a oportunidade.

Conheci as duas experiências, com diferentes graus de responsabilidade. Além disso somei, como muitos outros, um certo número de oportunidades perdidas por falta de “audições” entre os responsáveis ou tão só porque não terei tido suficiente veemência. Por vezes vale a pena acreditarmos mais nas nossas ideias e não as deixarmos passar, nem que seja necessário lançar uma “cruzada”. Por temperamento e porque penso que há sempre outras coisas para fazer, quando não me ouviram parti para outra. Muitas vezes, alguns anos depois, dou comigo a confirmar que tinha razão e a interrogar-me porque “perdemos” tanto tempo.

Sines, o ambicioso projecto do início dos anos 70 a que já me referi, é o caso exemplar de uma chegada tardia. Do ponto de vista do planeamento económico estratégico, a visão estava correcta mas deveria ter sido implementada 10 anos antes, no mínimo, 5. Do ponto de vista urbanístico e de ordenamento do território, o “atraso” aconteceu, por um lado, por arrastamento do primeiro e, depois, pela alteração das circunstâncias políticas e sociais.

Se a crise do petróleo de 1973 pôs em causa, no curto / médio prazo, a pertinência do projecto global, a queda da ditadura e o período imediato de afirmação do poder popular e da emergência do poder autárquico - municipal, vieram, naturalmente, pôr em causa, o modelo de intervenção sobre o território: nacionalização de uma extensa área, de modo a que as mais valias fossem internalizadas e não ocorressem fenómenos especulativos, pelo menos nas áreas mais próximas do novo porto e da cidade nova.

Seguiu-se um período de desmantelamento do projecto global e de progressivo aniquilamento do organismo gestor, o Gabinete da Área de Sines, até à sua completa extinção. Tudo acompanhado pelas habituais histórias pícaras, em que oportunismo e corrupção são termos que emergem com frequência.

Passado quase meio século veio a reconhecer-se a bondade do projecto de Sines que constitui hoje uma das peças fundamentais na estratégia de desenvolvimento para o País, com um elevado potencial de regeneração da Região Alentejo, a mais despovoada e deprimida das regiões portuguesas.

E muitos dos que criticaram à exaustão o projecto, ao longo dos anos 70 e 80, são agora seus defensores, não existindo hoje, praticamente, vozes discordantes.

Casos como este levantam outra questão que tem aparecido nalguns debates - como compaginar planeamento e ordenamento do território com Democracia?

Ainda, e brevemente, dois exemplos do que podemos chamar de anacronismo por antecipação.

O primeiro diz respeito a uma pequena região do Centro Interior de Portugal, a Cova da Beira, que ao longo dos séculos tem evidenciado uma elevada capacidade de acompanhar o tempo, aproveitando as oportunidades, o que se tem reflectido em sucessivas vagas de inovação na indústria, na agricultura e no comércio.

Quando no âmbito da CCR Centro, iniciámos aí estudos no sentido de propor novas estratégias de desenvolvimento, convidámos Peter Gould como consultor, para nos ajudar a definir o que designámos por estrutura de inovações, recorrendo, para tanto, à Q. analysis que então lhe era muito cara e que nos permitiu (e tem permitido em múltiplas abordagens), chegar a conclusões interessantes, quer sobre o sistema de inovações na agricultura (técnicas, equipamentos, produtos, comercialização), quer sobre os mecanismos da difusão.

A partir daqui fizemos algumas sugestões de política, tendo em conta que estava em curso a construção de um projecto de irrigação que poderia ser a base para a modernização da estrutura produtiva regional. Não se pode dizer que houve grande eco das nossas propostas. Mas hoje, passados tantos anos, aparecem iniciativas privadas que poderiam ter sido “antecipadas” e “aprofundadas”.

Figura 11
Cova da Beira e estrutura de inovações: Peter Gould e Chris Jensen-Butler

 
Uma das propostas deu origem a uma série de estudos, em que participou outro colega da “diáspora” e grande amigo, Chris Jensen-Butler: o papel que as telecomunicações poderiam ter na aceleração do processo de desenvolvimento de áreas periféricas, como é o caso da Cova da Beira. Com o apoio da CCDR e da Fundação Luso-Americana, como no caso anterior, actualizamos o conhecimento estratégico sobre o papel das telecomunicações numa área com as características da Cova da Beira. Foram-nos particularmente úteis projectos implementados na Dinamarca e na Suécia, em domínios como a informação aos agricultores, a telemedicina, o teletrabalho.

Algumas propostas foram veiculadas pela CCDR Centro, mas a sua implementação, já em contextos tecnológicos e empresariais muito diferentes, só ocorreu, nalguns casos, em pleno século XXI.

Resta-nos sempre a consolação de termos “cheirado” o futuro, mas por outro lado, incomoda saber que esse futuro nos passou ao lado. Além disso, fica a lição que no Planeamento Territorial, é sempre bom recordá-lo, não se pode separar espaço e tempo, e se tal é fácil no que respeita a retrospectiva (será mesmo fácil…?) é sempre mais inquietante relativamente aos “futuros”.

ALGUMAS LIÇÕES DE UMA LONGA APRENDIZAGEM

 O Trabalho em equipa: coordenar e ser coordenado

Salvo em temas ou problemas muito específicos e bem delimitados, hoje não é possível pensar no trabalho de planeamento territorial, a qualquer escala, sem o recurso a uma equipa multidisciplinar.

Uma das primeiras questões que se levantam nesta abordagem é a da coordenação. Esta tanto pode competir a uma pessoa, como ser colectiva. Temos a experiência das duas situações e entendemos que as vantagens ou desvantagens variam segundo cada situação concreta. Em qualquer caso, entendemos que deve existir um responsável do projecto, alguém que fale em nome da equipa, inclusive, se existir um núcleo coordenador.

A coordenação implica o estímulo à participação “cruzada” de todos os membros da equipa. De facto, o planeamento participado deve começar no seio da equipa. Num bem sucedido trabalho em equipa multidisciplinar, uma boa parte das questões que se levantarão em futuras sessões de participação alargada, são antecipadas (simuladas) no seio da equipa.

Desenvolvimento sustentável e estrutura de oportunidades

Mas convosco gostaria de ir um pouco mais longe, partilhando algumas preocupações em relação ao papel do geógrafo e do planeador do território, face aos grandes desafios que implicam a procura do desenvolvimento sustentável.

Existe hoje um consenso mundial sobre a necessidade de qualquer processo de desenvolvimento não se limitar apenas ao crescimento económico, mas acautelar também princípios de equidade e de respeito pelo ambiente.

O desenvolvimento sustentável (DS) é um processo dinâmico e encerra uma forte componente cultural. Esta assenta, por sua vez, em três pilares, que resumem as condições para que o desenvolvimento possa ocorrer: o da inovação, o da tradição e o do risco.

Define-se assim, para cada situação, a estrutura de oportunidades em presença, avaliando criteriosamente, numa perspectiva temporal e espacial, as várias dimensões do desenvolvimento sustentável.

Muitas vezes é urgente responder a carências imediatas. Claro que a resposta deve ser sustentável, o mais sustentável possível, já que a sustentabilidade no desenvolvimento não é algo de absoluto.

Figura 12
A estrutura de oportunidades

Mais ainda, a sustentabilidade não é qualidade natural de um território, de um lugar, de uma edificação, resultando antes de um equilíbrio adequado entre as “heranças” (o que o homem/o herdeiro recebe) e o esforço continuado para as manter, adaptar ou reciclar.

Como escreveu Orlando Ribeiro, “O Mediterrâneo é um lugar de esforço sustentado, onde uma vitória só se alcança com luta e se mantém com ininterrupta vigilância”.

Esta reflexão deverá alertar-nos para a frequente perspectiva fixista de sustentabilidade, que se traduz amiúde num preservacionismo retrógrado e com resultados contraditórios.

A sustentabilidade, ao contrário de estagnação, implica inovação continuada nos processos, nos usos, nos produtos, tendo, porém, como ponto de partida a avaliação das heranças, não se limitando elas ao que desde há algum tempo se passou a designar por património histórico/cultural, (heritage).

Mas não há desenvolvimento sem risco; podemos falar da importância da cultura do risco no desenvolvimento de algumas regiões, o que em determinados contextos americanos se designou por espírito de fronteira e que hoje tem por vezes tradução no termo audácia: uma palavra que está a emergir no léxico das políticas (policy and politics) de desenvolvimento e de ordenamento do território.

Em cada lugar e em cada momento, é a partir da análise dos elementos, que definem uma estrutura de oportunidades, que devem ser equacionadas as estratégias de desenvolvimento. Todavia, não se pode esquecer que o sucesso só é conseguido com pertinácia, através desse esforço continuado, de que nos fala Orlando Ribeiro.

Hoje ninguém põe em causa a sustentabilidade dos vinhedos do Vale do Douro, no sentido em que se harmonizam as três dimensões do D.S., porém, tal só foi possível pela continuada afirmação de uma cultura em que convergem os valores da tradição, da inovação e do risco. Poderemos afirmar que o Douro é também “um lugar de esforço sustentado”.

As dificuldades de resposta no quadro do D.S. aumentam quando nos confrontamos com situações difíceis no plano dos recursos naturais, como no caso de Cabo Verde, um país que nos está tão próximo. Uma análise da “estrutura de oportunidades” porá decerto em causa algumas iniciativas que as autoridades caboverdianas têm levado por diante. Mas quais as alternativas face aos recursos disponíveis e ao enquadramento macro regional e global? Assim, importa proceder a avaliações multivariadas de custos e benefícios e modelos alternativos de desenvolvimento.

A história recente de sucessos e insucessos no âmbito do desenvolvimento dos territórios, mostra-nos situações muito diversas, que dificultam a construção não já de uma teoria, mas pelo menos de um conjunto coerente de boas práticas que se possam considerar definitivas relativamente ao desenvolvimento sustentável.

Uma visão estreita tende a favorecer um ou outro “pilar” do D.S. Nos últimos anos, nos países mais desenvolvidos, tem-se procurado um equilíbrio de forças, ainda assim com prevalência do pilar ambiental. Em Portugal existem alguns potenciais casos de estudo que merecem atenção, como por exemplo, a decisão política de parar a construção de uma importante barragem no rio Côa para deixar acessível um importante conjunto de pinturas rupestres; neste caso foi nítida a prevalência do valor do património histórico (herança/tradição), em detrimento das dimensões económica e social, sendo que a dimensão ambiental será mais difícil de avaliar (biodiversidade versus reforço das energias renováveis). Em todas essas situações é ainda necessário introduzir a dimensão tempo, definitiva relativamente à oportunidade. Nesta perspectiva, um caso interessante, que levanta também questões de difícil opção de política, é o do processo de desenvolvimento turístico de Porto Santo, situação que tem paralelos noutras ilhas Atlânticas, como nas Canárias ou em Cabo Verde.

O caso do Aeroporto de Macau

Macau é, na sua totalidade espaço/temporal, um caso de estudo fascinante relativamente à questão do desenvolvimento sustentável. Os portugueses chegaram e instalaram-se por volta de 1545 e ao longo de quase cinco séculos de História, aí permaneceram. Autorizados pelo mandarim regional, os portugueses ofereciam os seus serviços na protecção da população contra os piratas, podendo, em troca, dedicar-se ao comércio.

Nos primeiros tempos Macau desempenhou um papel importante no apoio ás relações entre Portugal (via Malaca) e o Japão. Pouco a pouco, longe de Lisboa e até de Malaca e de Goa, de quem o território dependeu, a comunidade “portuguesa” foi-se adaptando às circunstâncias locais e globais, procurando oportunidades – comércio das sedas e das porcelanas, drogas medicinais e não só, constituindo-se Macau como local de espairecimento e lazer para comerciantes de Cantão mas também europeus e outros, de negócio dos coolies  - primeiro o ópio, depois a entrada de ouro na China Maoísta e, por fim, o jogo, os casinos e o turismo. Entretanto, desenvolveram-se algumas oportunidades na indústria têxtil, promovidas por capitais expatriados de Xangai em 1949.

Hoje Macau tem um papel importante na área do turismo, desenvolvendo, a partir do jogo de casino, e de outras áreas, como o turismo cultural e o turismo de congressos, que além de diversificarem a base económica, gerando importantes sinergias com outras actividades dos serviços, contribuíram de forma muito positiva para a recuperação e a valorização do património histórico/cultural, edificado e não edificado, ao mesmo tempo que permitiram a promoção da arquitectura moderna de grande qualidade e que já hoje faz parte do património cultural relevante de Macau.

Tudo isto se passa num pequeno território, que no início dos anos 1970 não ia além dos 16 km2 e que hoje atingiu os 28km2, mercê de um esforço de conquista de terras por aterros, consequência de uma milenar prática histórica. Aqui, numa minúscula península e duas pequenas ilhas, Taipa e Coloane, labutam hoje meio milhão de pessoas, inseridas num espaço regional cada vez mais urbano e desenvolvido: o Delta do Rio das Pérolas - 40.000 Km2 e perto de 70 milhões de habitantes, com várias cidades acima do milhão de habitantes: Hong Kong, Shenzen, Cantão, Dongsho, Foshan, Zuhoi.

O sucesso actual de Macau mede-se por vários indicadores, do PIB/capita (US$28000) aos investimentos estrangeiros em que avulta o da hotelaria, passando por grandes progressos na educação e nos serviços de saúde.

Uma tal evolução implica boas acessibilidades externas e estas constituíram um handicap de Macau, que até 1995 era servida apenas pelo aeroporto de Hong Kong e o jetfoil  que ligava os dois territórios, além de ligações de ferry a Hong Kong e a Cantão.

Quando o Governo de Macau, em finais dos anos 80, decidiu construir um aeroporto, literalmente na água (na altura o território ainda não atingira os 20 km2, pouco mais do que o necessário para uma boa infraestrutura aeroportuária…), muitos consideraram uma loucura, um despesismo para secar os cofres públicos antes do fim da administração portuguesa. Inaugurado em 1995, o Aeroporto de Macau, logo em 2006 movimentou cerca de 5 milhões de passageiros, transformando-se num importante hub regional e está hoje em vias de ser expandido.

A experiência que tive ao trabalhar no planeamento urbano de Macau ao longo de quase 20 anos enriqueceu bastante a minha reflexão (que prossegue) sobre a complexidade do desenvolvimento sustentável.

Ordenamento Do Território, Participação, Democracia, Eficiência e Competitividade

 O actual paradigma dominante do planeamento participativo, embora saudado como o que providencia a afirmação da plena cidadania, contribuindo para melhorar a qualidade global das propostas, tem sido, por outro lado, posto em causa, directa ou indirectamente, pelo elevado consumo de tempo e origem da perda de oportunidades.

Em recente relatório do International McKinsey Institute, sobre a economia portuguesa, indicava-se o ordenamento do território (o processo), como o 3º principal factor da baixa produtividade da economia portuguesa. Especificando, apontavam-se as demoras na apreciação de planos e projectos e a burocracia, como os factores determinantes para o mau desempenho do sistema de planeamento e de ordenamento do território.

Nós próprios escrevemos no relatório final de proposta do Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território, que um dos principais problemas com que se defronta, na prática, o ordenamento do território em Portugal, é a “Complexidade, rigidez, centralismo e opacidade da legislação e dos procedimentos de planeamento e gestão territorial, afectando a sua eficiência e aceitação social”, situação que só por grande esforço de simplificação se pode designar por “burocracia”. De facto, a questão tem que ver, como também fizemos notar, com a “Dificuldade de coordenação entre os principais actores institucionais, públicos e privados, responsáveis por políticas e intervenções com impacte territorial”, e, em última análise, em vez de se pôr em causa a bondade do incremento da participação dos cidadãos no planeamento e ordenamento do território, propugnando recentemente mecanismos de excepção, impõem-se acções que levem à emergência de “uma cultura cívica valorizadora do ordenamento do território, baseada no conhecimento rigoroso dos problemas, na participação dos cidadãos e na capacitação técnica das instituições e dos agentes mais directamente envolvidos” (Relatório do Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território, Março de 2006).

O processo de planeamento deve ser participativo. Esta é uma certeza adquirida e consolidada, mas também aqui se deparam muitas vezes dificuldades operativas que, entre outras determinantes, decorrem de não se avaliar devidamente a que escala ou para que escala estamos a trabalhar. Não menos decisivo é o momento, ou os momentos, em que deverão ser mais aprofundados os processos de participação – partindo do princípio que ao longo de todo o processo não deixou de se verificar uma interacção entre diferentes agentes envolvidos.

Em qualquer caso, a preocupação com o aprofundamento da participação e da interacção deverá ocorrer no seio da equipa ou das equipas. Só assim estarão em condições de abordar os agentes “exteriores”, quer estes sejam as populações residentes ou as activas, no caso de um plano de pormenor, ou os agentes das administrações superiores, públicas ou privadas, no caso de outras escalas de inserção.

Entretanto, com a generalização do recurso à NTI e nomeadamente à Internet, existem hoje condições excepcionais para responder a algumas destas questões e algumas experiências já evidenciaram que este caminho é necessário.

Em qualquer tipo de “plano”, desde o início, deve ser feita a difusão de toda a informação pertinente, de molde a promover uma participação mais alargada e mais informada, que permite ganhos de eficácia nas fases finais de consulta pública.

 A Geografia Conta

 GEOGRAPHY MATTERS é um título muito bem achado e, neste caso, com a vantagem de ser verdadeiro. Aproveito-o também para render homenagem a uma grande geógrafa: Doreen Massey.

Figura 13
Doreen Massey

 
Esta afirmação cai muito bem entre os geógrafos, na medida em que a relevância social e económica da Geografia constitui uma preocupação de longa data.

Verificou-se ao longo de muitos anos uma atitude de algum acabrunhamento e de auto-comiseração, ao mesmo tempo que se enfatizava a necessidade de mostrar ao Mundo que o geógrafo podia fazer muitas coisas úteis, que não apenas ensinar Geografia. Esta atitude observou-se em quase todos os países e sobretudo naqueles onde a Geografia tem ou teve um lugar de relevo no ensino básico e secundário.

Os melhores exemplos de publicações atestando este posicionamento encontram-se na produção francesa a partir dos anos 50, com iniciativas como as de Jean Tricart, Michel Philliponeau, Jean Labasse….

Jean Tricart criou, logo em 1956, o seu Centre de Geographie Appliquée. Na sua pedagogia, um pouco como era hábito entre os geógrafos que ensinavam Geografia Aplicada, Tricart dedica uma parte significativa da sua obra a mostrar exemplos de erros de O.T. que teriam sido evitados com o saber dos geógrafos.

Philliponeau, na sua Geographie et Action, procurou mostrar que o geógrafo estaria habilitado a fazer “tudo”, incluindo o exercício de cargos políticos. E assim o tentou provar pessoalmente, envolvendo-se na política da sua Bretanha, tendo sido adjunto do Maire de Rennes.

O primeiro lamento, e talvez dos mais intensos, pertenceu a Raoul Blanchard, em 1953, por ocasião do 50º aniversário do seminário de geografia da Universidade de Liège e dele nos dá conta M. Philipponneau: «Vous avez de la chance: votre gouvernement vous apprécie et vous emploie. Je suis jaloux parce qu’on ne nous demande rien de pareil en France, où gouvernement et administration nous ignore. Le géographe est considéré comme un amuseur, au même titre que le philosophe.».

Na Bélgica, sobretudo a partir de Liége, com O. Tulippe e mais tarde Spok, a aplicação da geografia ao ordenamento do território é um facto desde os anos 50. Em 1960, no Congresso de Estocolmo, a UGI cria a Comissão de Geografia Aplicada, de que Omer Tullippe viria a ser nomeado presidente, em 1964, no Congresso de Londres.

Que extenso e amplo caminho se percorreu desde então.

Venho agora de uma reunião … em La Serena, Chile, onde a partir do Grosvernor Center da University of Texas San Marcos (Educational Geography) me pediram para expor a minha experiência como “Geógrafo Aplicado” e fazer algumas recomendações relativas à formação.

Conclui o meu depoimento com estas palavras:

São assim, mais coisa menos coisa, quatro décadas de intensa actividade na Geografia Aplicada, com uma ou outra frustração, mas do que faço um balanço global muito positivo, em boa medida porque ao longo deste período me foi possível ir sempre actualizando e aprofundando a minha formação. E esta é sem dúvida a principal lição que eu retiro da minha experiência, acrescentando apenas alguns aspectos, que poderia designar como recomendações para os que queiram seguir uma carreira de geógrafo aplicado:

Obter uma formação de base o mais abrangente e equilibrada possível, valorizando componentes dos vários campos científicos

Praticar sempre a interdisciplinaridade;

Valorizar o mais possível na formação e na prática profissional, o trabalho de campo;

Procurar manter uma ligação da prática profissional à investigação científica e, se possível, não perder o contacto com o ensino, com os jovens;

Nunca assumir a Geografia nem como o centro dos saberes, nem como uma disciplina periférica.

Mas a Geografia é importante por muito mais razões do que apenas pelo papel que o Geógrafo pode ter no ordenamento do território.

A primeira função da Geografia é contribuir para a formação cívica dos cidadãos num contexto multiescalar: do cidadão local ao cidadão global. Por variadas razões, mas desde logo pela própria essência do humano, um ser eminentemente geográfico, para usar a expressão de David Sack.

Num mundo cada dia mais global, mas também por isso mais regional e mais local, o papel activo da geografia é um imperativo para todos os geógrafos. Como escutá-los é uma obrigação de todos os políticos.

Os artistas e os poetas, que melhor que ninguém sabem sondar os futuros, sempre recorreram à geografia e às suas metáforas para os conteúdos das suas mensagens. E no tempo que vivemos podemos observar um incremento dessa aproximação entre a criação artística e os múltiplos conceitos e instrumentos dos geógrafos: paisagem, mapa, lugar, espaço habitado…

Ouçamos, aqui e agora, a voz de Mário Quintana:

O MAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Desde já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…


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