IX Coloquio Internacional de Geocrítica

 

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE
LA GEOGRAFÍA
Y
LAS CIENCIAS SOCIALES

 

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Estratégias alternativas de re-apropriação da natureza:

autogestão territorial em áreas protegidas

 

Dilermando Cattaneo

Programa de Pós-graduação em Geografia

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

dilercat@ig.com.br

 


 

Estratégias alternativas de re-apropriação da natureza: autogestão territorial em áreas protegidas (Resumo)

Este trabalho se baseia na premissa de que as áreas naturais protegidas não resolvem os problemas aos quais se destinam solucionar. Em que pese suas diferentes categorias e objetivos, muitas vezes acabam criando uma série de outros problemas, visto que na maioria dos casos suas políticas de planejamento e gestão prevêem uma série de restrições e até mesmo a retirada dos habitantes presentes na área. Além disso, as teorias que fundamentam a idéia de áreas protegidas estão alicerçadas em bases epistêmicas que pressupõem a dicotomia homem x meio, construindo um olhar disjuntivo das relações entre sociedade e natureza. O trabalho se propõe, então, a refletir sobre estratégias de apropriação da natureza fundamentadas em olhares menos cartesianos, que, ao mesmo tempo em que evoquem uma desconstrução do racionalismo cartesiano objetivo e disjuntivo, promovam uma participação ativa e direta da população. Esta desconstrução (no campo teórico-conceitual), e a participação direta (no campo político-democrático), podem tomar forma com as idéias de autonomia e autogestão, analisadas a partir de olhares não puramente economicistas e tecnicistas, mas sim sob uma ótica política e territorial.

Palavras-chave: re-apropriação da natureza, autogestão territorial, áreas protegidas.


 

Alternative strategies of re-appropriation of the nature: territorial self-management in protected areas (Abstract)

This work has bases on the premise of that the protected natural areas do not decide the problems which destine to solve. Notwithstanding its different categories and objectives, many times creates a train of other problems, whereas in the most of the occasions its policy of planning and management presume a series of restrictions and not once or twice the withdrawal of the inhabitants residents in the area. Moreover, the theories that bases the idea of protected areas are constructed in epistemic bases that presume the dichotomy “man x environment”, constructing a disjunctive look of the relations between society and nature. The work propose to reflect upon strategies of appropriation of the nature based on less cartesian looks, that, at the same time where they evoke a disconstruction of the objective and disjunctive cartesian rationalism, promote an active and direct participation of the population. This disconstruction (in the theoretician-conceptual field), and the direct participation (in the politician-democratic field), can take place with the autonomy and self-management ideas, analyzed from not purely economicist and technicist looks, but under a territorial and politics view.

Key-words: re-appropriation of the nature, territorial self-management, protected areas.


 

O presente trabalho representa parte do projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS. Tal pesquisa pretende ser um passo adiante em relação aos estudos efetuados durante nossa passagem pelo mestrado, descritos na dissertação intitulada "Identidade territorial em Unidades de Conservação: ponto de apoio para uma análise epistemológica da questão ambiental". O trabalho de investigação ali realizado buscou analisar, a partir de críticas ao modelo de preservação da natureza baseado em unidades de conservação, as epistèmes inscritas nos discursos e práticas de vários atores envolvidos na questão ambiental. Para isso, utilizou-se como subsídio a problemática da presença humana neste tipo de áreas protegidas. A idéia, nesta nova pesquisa, é ir além do caráter analítico, buscando um aprofundamento teórico e, acima de tudo, um ideal mais propositivo, caracterizando, de fato, uma tese para doutoramento.

 

Uma das premissas da pesquisa que estamos desenvolvendo é que as áreas naturais protegidas - que no Brasil se expressam sobretudo sob o nome de “unidades de conservação” - não resolvem os problemas aos quais se destinam solucionar. Em que pese suas diferentes categorias e objetivos, acabam criando uma série de outros problemas, dentre os quais destacamos os conflitos gerados com as populações ocupantes do interior e do entorno das unidades, visto que muitas vezes suas políticas de planejamento e gestão prevêem uma série de restrições e até mesmo a retirada dos habitantes, sejam eles considerados tradicionais ou não.

 

Além disso, as teorias que fundamentam a idéia de áreas protegidas estão alicerçadas em bases epistêmicas que pressupõem a dicotomia homem x meio, construindo um olhar disjuntivo das relações entre sociedade e natureza. Na verdade, fundamentam-se em um pensamento disciplinar, simplificador e unitário que, como nos diz Enrique Leff, tendem a ajustar-se a “racionalidades totalitárias”, que remetem a uma vontade de unidade, homogeneidade e globalização (2000). Assim sendo, as áreas naturais protegidas não são capazes de promover uma relação mais harmoniosa entre sociedade e natureza, já que, nas suas concepções balizadoras, há a noção de que o social é algo externo ao natural, e tudo que é próprio do humano é necessariamente prejudicial à natureza.

 

Nossa proposta, então, é refletir sobre estratégias de apropriação da natureza fundamentadas em olhares menos cartesianos, que, ao mesmo tempo em que evoquem uma desconstrução do racionalismo cartesiano objetivo e disjuntivo, promovam uma participação ativa e direta da população, em uma ou em várias das esferas políticas reguladoras das áreas protegidas em que estão inseridas. Esta desconstrução - no campo teórico-conceitual -, e a participação direta - no campo político-democrático -, podem tomar forma com a idéia de autonomia – analisada sob o enfoque de Cornelius Castoriadis (1983, 1987, 1990) - e, mais especificamente, com a idéia de autogestão, analisada a partir de olhares não puramente economicistas e tecnicistas, mas sim sob uma ótica política e territorial.

 

A idéia de autogestão territorial, obviamente a ser construída e praticada pelos ocupantes de áreas protegidas, pretende ser uma proposta que englobe tanto a democracia direta na gestão territorial destas áreas, quanto uma alternativa ao conjunto epistêmico edificador da racionalidade ocidental moderna, unificador e simplificador de saberes e balizador de práticas científicas pretensamente neutras e de políticas dominatórias para com povos tidos como “inferiores” ou “primitivos”. Isto porque nossa proposta exclui de seu campo de ação a tecnocracia ambientalista que, ao se apropriar do agir ambiental, se apropriou também dos conceitos relativos ao ambiente e à natureza, fazendo uma apropriação teórica aliada a uma apropriação política da questão ambiental. É neste contexto que uma série de conflitos e contradições se inscrevem na gestão das áreas protegidas, e que, no entanto, são relegadas pelos planejadores e gestores “oficiais” das mesmas. Assim, a idéia de autonomia e autogestão territorial, efetivada pelos moradores de áreas protegidas, poderia abrir caminho para uma re-apropriação da natureza, no sentido político-concreto de (re)tomar para si o controle sobre um território condensador de identidades e saberes, e também no sentido filosófico-epistêmico, ao vislumbrar uma desconstrução da ordem dicotômica e uniformizadora da tecno-ciência moderna, já que tal re-apropriação estaria baseada na multiplicidade e no diálogo de saberes, no reconhecimento da diversidade como princípio organizativo das territorialidades, e na complexidade como paradigma de um conhecimento menos “totalitário” e mais aberto às incertezas.

 

Para que nossa proposta seja aprimorada, é necessário analisar diversas experiências em que estratégias parecidas com as que colocamos, de re-apropriação e autogestão de áreas com algum tipo de restrição, foram ao menos tentadas, para não dizer as que ainda estão em prática. Estas análises se baseiam em um levantamento que envolve tanto os exemplos brasileiros como os que acontecem (ou aconteceram) em outros países, notadamente os subdesenvolvidos, como é o caso da Índia, da Colômbia e do México, só para citar os que temos algum conhecimento prévio.

 

A partir destas análises, de experiências alternativas de gestão territorial e ambiental em áreas protegidas ou com restrições impostas pelo Estado, um dos nossos objetivos é fazer propostas específicas para a autogestão territorial de áreas protegidas, baseadas na autonomia dos povos ocupantes e na reconstrução e valorização de suas identidades e saberes.

 

Para uma maior elucidação em termos de referenciais teóricos que estão sendo utilizados na pesquisa de doutorado, resolvemos expor aqui algumas idéias e conceitos-chave no nosso trabalho. No entanto, como nossa proposta de pesquisa envolve uma gama de referências nem sempre cabíveis numa seqüência linear e conjunta de textos, decidimos por agrupá-las em eixos, para melhor compreensão.

 

Re-apropriação da natureza: saber, racionalidade e complexidade ambiental

 

O primeiro grande referencial é a noção de re-apropriação da natureza, que trouxemos a partir da leitura dos textos de Enrique Leff. Para este autor, o que comumente se chama de crise ambiental é sobretudo um problema do conhecimento (Leff, 2000, p. 1). Assim, ele constrói uma série de concepções, expressas em vários livros e artigos, em que o ambiente se torna um saber, mais do que um objeto, e por isso se abre em uma série de possibilidades, como a epistemologia ambiental, a racionalidade ambiental e a complexidade ambiental, que consiste em “uma nova compreensão do mundo a partir do limite do conhecimento e da incompletude do ser” (ibidem, p 3)[1]. Além disso, ela implica “a reconstituição de identidades através do saber, entranha uma re-apropriação [grifo nosso] do mundo desde o ser e no ser, um re-aprender mais profundo e radical que a aprendizagem das “ciências ambientais” que buscam internalizar a complexidade ambiental dentro dos paradigmas dominantes do conhecimento” (ibidem, p. 2). O saber ambiental, por sua vez, “implica um processo de “desconstrução” do pensado para pensar o ainda não pensado, para desentranhar o mais entranhável de nossos saberes e para dar curso ao inédito” [grifo nosso] (ibidem, p. 4).

 

Analisando a interação entre o conceito de dialética, sob uma perspectiva idealista, e a noção de complexidade ambiental, este mesmo autor faz uma ressalva à importância de um pensamento dialético vinculado a um conhecimento crítico, para construir uma racionalidade ambiental e o que ele chama de sociedade eco-comunitária (ibidem, p. 6). Este termo se torna relevante para nossa análise, já que remete à questão da diversidade de interesses em uma comunidade e do jogo de forças presente quando se fala em apropriação da natureza:

 

Se a sociedade deve reorganizar-se como um sistema de eco-comunidades descentralizadas, internalizando as condições ecológicas de sustentabilidade, terá que pensar crítica e estrategicamente a transição para uma nova ordem social. Enquanto dentro da ordem econômica insustentável dominante se busca estabelecer uma política de consenso capaz de agrupar os interesses de diferentes atores sociais e orientá-los para um “futuro comum” (WCED, 1987), as lutas ambientalistas revelam a oposição de forças e interesses diversos na apropriação social da natureza [grifo nosso] (idem).

 

Embora estas análises estejam intimamente ligadas com a noção de re-apropriação da natureza que o autor nos traz, é com os conceitos de identidade e diversidade que ele vai a fundo nesta perspectiva, pois tais conceitos fundamentam uma lógica não formal de resistência ao pensamento externo, globalizante, unificador e autoritário. Assim, reconhece que “a configuração das identidades e do ser na complexidade ambiental se dá como o posicionamento do indivíduo e de um povo no mundo; na construção de um saber que orienta estratégias de apropriação da natureza [grifo nosso] e da construção de mundos de vida diversos” (ibidem, p. 11). Esta perspectiva abre espaço para a noção de diálogo de saberes, que vai além do conceito de interdisciplinaridade, pois, ao abrir caminho para a construção de um saber não forjado dentro da lógica disciplinar, abre caminho também para a validação do discurso construído a partir deste saber.

 

Cabe lembrar, também, que a noção de identidade aqui colocada, a partir da complexidade ambiental, dissolve o seu caráter de “identidade como igualdade do pensamento formal” e da “identificação do sujeito baseada no seu “eu” subjetivo” (idem). Esta identidade teria que

 

pensar o ser além de sua condição existencial geral para penetrar no sentido das identidades coletivas, que se constituem sempre a partir da diversidade cultural e da diferença, mobilizando os atores sociais para a construção de estratégias alternativas de reapropriação da natureza, frente aos sentidos antagônicos da sustentabilidade [grifos nossos] (ibidem, p. 12).

 

Fica demonstrado, então, como a idéia de re-apropriação da natureza perpassa por uma complexa rede de atributos ontológicos e epistemológicos, que a tornam passível de análise e utilização tanto no campo político-prático como no campo teórico-filosófico.

 

Homem e natureza: igualdade e diferença

 

Um outro referencial que pretendemos estabelecer para a pesquisa de doutorado é a adoção de uma concepção - quase um paradigma -, trabalhada em nossa dissertação de mestrado, onde homem e natureza sejam iguais, mas diferentes. Explicamos: quando falamos em igualdade, estamos atentando para a necessária horizontalização da relação entre ambos, onde os elementos naturais não sejam apenas recursos e objetos de dominação humana, mas também não ganhem uma importância exagerada que chega a excluir qualquer possibilidade de intervenção e interação com as sociedades (Cattaneo, 2004, p. 99). Na verdade, esta igualdade é uma tentativa de ir além dos princípios de "externalização da natureza" (ibidem, p. 91), aludidos naquele trabalho como um dos principais elementos de fundamentação epistêmica das áreas protegidas. Mas é também, e ao mesmo tempo, uma busca para ir além da "externalização do homem" (ibidem, p. 94), e da noção de que qualquer atuação deste homem sobre o meio natural é necessariamente prejudicial. Colocados em um mesmo patamar, homem e natureza são elementos que se complementam e se inscrevem um no outro, uma vez que a espécie humana faz parte do conjunto de espécies da natureza, e a noção de natureza é construída socialmente pelo homem, a partir de matizes políticos, econômicos, simbólicos, míticos, etc. Esta não-verticalização busca, no fundo, a superação da visão dicotômica que se sagrou com a ciência moderna, através dos métodos positivistas, neopositivistas e até materialistas históricos. Busca, enfim, ir além das concepções naturalistas e culturalistas que ainda hoje polarizam o debate presente na questão ambiental. Homem e natureza são, neste caso, iguais (Cattaneo, 2004, p. 99).

 

A diferença à qual estamos falando, refere-se à heterogeneidade e diversidade inerentes tanto aos elementos naturais quanto aos humanos. Se for verdade que estes elementos são iguais em sua importância, até porque se interpenetram e constituem um a base do outro, é verdade também que as diferenças entre eles não são apenas perceptíveis, mas necessárias para romper com dimensões deterministas, naturalistas, culturalistas, tecnicistas e todas as que constituem a matriz racionalista que orienta as sociedades ocidentais modernas. O homem é também natureza, mas possui, entre outras particularidades, a de produzir cultura e ter consciência de si e de sua existência. Isto abre a ele infinitas possibilidades de organizar-se, de produzir, de pensar, de entender-se no mundo. Enfim, há inúmeras possibilidades do ser-humano realmente ser humano.

 

Esta multiplicidade de culturas e de leituras não só o diferencia da natureza, como também o diferencia de si mesmo. Essas diferenças todas produzem diferentes sociedades, diferentes etnias e diferentes geo-grafias. Tudo isso compõe um quadro de complexidade e diversidade que não pode ser esquecido quando se insere o elemento humano na análise ambiental. Homem e natureza são, neste caso, diferentes (ibidem, p. 100).

 

Em relação às áreas protegidas, constatamos naquele trabalho que as políticas e paradigmas que as orientam parecem não partilhar desta noção de "igualdade-diferença" a que nos referimos. Daí a necessidade, como estamos propondo neste anteprojeto, da formulação de um paradigma que supere a razão cartesiana, a fim de apreender a igualdade e diversidade que compõem a complexidade do mundo e do saber, para assim forjar espaços livres de dominação, seja ela política ou epistêmica (ibidem, p. 101). Conforme colocamos na dissertação:

 

Homens, naturezas, mundos e saberes são diversos e diversas devem ser as formas de compreendê-los, para que se possa, desta forma, pensar a questão ambiental e tudo que ela envolve a partir de baixo e de diversos pontos. Assim, caberia aos povos historicamente oprimidos, inclusive os habitantes das UC’s [tipo de área protegida], não mais um papel secundário ou simplesmente assistencialista no que se refere à sua inserção na temática ambiental. Ao invés de um “ambiental” feito para os “de baixo”, teríamos um “ambiental” feitos pelos “de baixo” (idem).

 

Autogestão e autonomia

 

O conceito de autogestão vem sendo sistematicamente adotado para designar, no campo econômico, um método de gestão de empresas, e no campo político, uma forma de democracia direta (Viana, 2005, p. 1). Entretanto, tal conceito pode ser entendido de maneira mais ampla, se analisado sob diferentes enfoques. De um ponto de vista comunista-libertário, por exemplo, a autogestão é "uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social" (ibidem, p. 4), o que significa dizer que "os próprios “produtores associados” dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão social do trabalho. Conseqüentemente, abole-se a divisão entre “economia”, “política”, etc" (idem). No entanto, para não cairmos em posicionamentos mais dogmáticos e/ou vinculados a uma estrutura fragmentada e sectária de concepção política, podemos entender a autogestão como uma idéia mais ampla, onde os processos decisórios de qualquer esfera da vida podem ser tomados de "baixo para cima" ou mesmo horizontalmente, invertendo a lógica predominante, sobretudo em nosso cotidiano social e político, em que a gestão ou gerência de vários aspectos deste cotidiano se dá por meio de relações de poder verticalizadas. Assim, quando falamos em autogestão, estamos nos referindo, de algum modo, a uma tentativa de socialização do poder, com o intuito, mais profundo, de gerir-se a si mesmo(s). Inúmeras tentativas nesse sentido foram postuladas e colocadas em prática. No entanto, a grande maioria capitulou frente a sistemas estatais-capitalistas. O interessante é que este caráter de efemeridade das experiências autogestionárias já foi, além de analisado, até mesmo proposto como estratégia de transformação da atual ordem social, em nível global, como o fez Hakim Bey ao sugerir a proliferação de TAZ (sigla de Zonas Autônomas Temporárias), enclaves independentes com experiências comunitárias descentralizadas, espalhados pelo mundo e ligados em rede (2001, p. 12).

 

No campo ambiental, a idéia de autogestão toma força com o pressuposto da racionalidade ambiental preconizado por Enrique Leff (2004), que coloca como um pressuposto para a re-apropriação da natureza, pelas comunidades, o sentido de uma autogestão produtiva e dos recursos naturais. Para este autor "os povos e as comunidades estão re-significando o discurso da democracia e da sustentabilidade para reconfigurar seus estilos de etno-eco-desenvolvimento, desencadeando movimentos inéditos pela re-apropriação e autogestão produtiva da biodiversidade" (p. 434). No entanto, faz uma ressalva ao papel que caberia aos outros atores comprometidos com esta causa, colocando que "é necessário legitimar os direitos das comunidades e fortalecê-las politicamente, dotando-as ao mesmo tempo de uma maior capacidade técnica, científica, administrativa e financeira, para a autogestão de seus recursos produtivos" (ibidem, p. 445). Ainda é interessante trazer ao debate a noção de gestão participativa, que para Leff pode desencadear a autogestão:

 

O princípio de gestão participativa dos recursos ambientais implica uma democracia direta, em que a ação cidadã não se restringe ao consenso social que pode se alcançar através dos mecanismos de mediação e representação dos altos níveis da tomada de decisões. Esta democracia desde as bases [grifo nosso] estabelece uma via direta de apropriação dos recursos produtivos, para o manejo coletivo dos bens comuns da humanidade e dos serviços ecológicos da natureza. Frente ao domínio dos "tomadores de decisões" e "fazedores do mundo", eleitos "democraticamente", hoje em dia emergem as identidades e autonomias dos povos, regenerando suas capacidades de autogestão dos processos produtivos para eliminar a pobreza, melhorar sua qualidade de vida e construir comunidades sustentáveis (ibidem, p. 420).

 

Em que pesem estes diferentes olhares sobre a idéia e o próprio conceito de autogestão, salientamos que a concebemos como uma estratégia que vai além do campo político e econômico, até porque está demonstrada a sua relevância no campo ambiental, ainda que este interpenetre nas esferas sociais, políticas, econômicas, etc. No entanto, o que queremos ressaltar é a necessária articulação filosófica deste conceito, uma vez que, para pensar o ambiente como um saber complexo, é imprescindível atentar para a racionalidade ambiental forjada em uma outra relação sociedade-natureza. Assim, a autogestão nos serve também como uma estratégia epistêmica, pois, a partir dela, se desconstróem as bases do pensamento herdado alicerçado na visão dicotômica de homem x meio, e conseqüentemente se semeiam conhecimentos próximos da noção de "igualdade-diferença" que está descrita no item anterior.

 

A autonomia é outra concepção muito presente em nosso projeto de trabalho. Cornelius Castoriadis nos traz uma contribuição muito própria para os objetivos da pesquisa, quando afirma que "a autonomia não é a clausura, mas a abertura", uma abertura ontológica que possibilita aos seres constituírem seu mundo e a si próprios segundo diferentes leis (1987, p. 434). Este autor vai além faz uma singela, porém contundente, relação da autonomia com a pólis grega e o sentido de liberdade:

 

A liberdade numa sociedade autônoma exprime-se por estas duas leis fundamentais: sem participação igualitária na tomada de decisões não haverá execução; sem participação igualitária no estabelecimento da lei, não haverá lei. Uma coletividade autônoma tem por divisa e por auto-definição: nós somos aqueles cuja lei é dar a nós mesmos as nossas próprias leis (Castoriadis, 1983, apud Souza, 2003, p. 105).

 

No que concerne à autonomia e sua inserção na racionalidade ambiental, retomamos novamente o ponto de vista de Leff, principalmente quando este autor coloca que a autonomia "vem a questionar o princípio da representação da democracia política que unifica a cidadania mas não responde a seus interesses. O princípio de autonomia [...] rechaça a toda estrutura hierárquica e autoritária e as formas estabelecidas de exercício do poder" (2004, p. 413). Em outro texto, vai além desta análise e a insere na perspectiva do espaço, do lugar e do tempo:

 

[...] A autonomia das pessoas não pode ser concebida como o "empoderamento desde cima" dos oprimidos. A autonomia cultural não pode ser graciosamente outorgada aos que ficaram marginalizados e excluídos das razões que têm organizado e legitimado o mundo atual, ainda nesta era de democracia, cidadania e direitos humanos. O direito à autonomia é a reivindicação das "localidades" oprimidas: culturas locais, conhecimento local, gente local. [...] É através da reconstrução do ser que a autonomia pode dirigir-se para a autogestão das condições de vida das pessoas (Leff, 2000b, p. 64).

 

Território e gestão territorial

 

O território, conceito criado a partir da dimensão política da Geografia para designar o espaço dos estados nacionais, é hoje um conceito largamente utilizado em várias esferas do conhecimento. Na própria Geografia, a noção de "espaço apropriado" e "espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder" (Souza, 2003, p. 96) se dilui com a evolução de conceitos como territorialidade (Souza, 2003, p. 99; Mesquita, 1995, p. 85) e consciência territorial (Mesquita, 1995, p. 85). Além disso, o território passa a não mais ser visto somente a partir de um viés objetivo e material. A apropriação dos espaços pode se dar também como uma manifestação da subjetividade e do imaginário, criando territórios permeados pelo simbólico e geradores de uma identidade social definida e expressa através do espaço: a identidade territorial (Haesbaert, 1999).

 

Todas estas definições são de suma importância para nosso trabalho, uma vez que implicam uma análise onde o espaço das áreas protegidas é visto como um território, ao mesmo tempo rico de recursos e construtor/aglutinador de identidades e territorialidades - muitas vezes conflitivas. Daí a importância de entendermos a gestão territorial como o processo em que se dá o gerenciamento, onde se definem as políticas e as ações que são postas ou não em prática, num certo espaço apropriado material e/ou simbolicamente; onde, em síntese, ocorre a "geo-grafia"[2] do território. A gestão territorial se torna relevante para os atores envolvidos na problemática das áreas protegidas, principalmente para as comunidades que as ocupam, pois "em todos os casos os atores se verão confrontados com necessidades que passam pela defesa de um território, enquanto expressão da manutenção de um modo de vida, de recursos vitais para a sobrevivência do grupo, de uma identidade ou de liberdade de ação" (Souza, 2003, p. 109-110). Esta concepção de gestão territorial, por sua vez, pode ser analisada e pensada a partir das lógicas da autonomia e da autogestão. A respeito da autonomia e sua relação com o território, Souza (2003), faz algumas observações interessantes, baseado em uma leitura "castoriadisiana" do conceito de autonomia:

 

Uma sociedade autônoma é aquela que logra defender e gerir livremente seu território, catalisador de uma identidade cultural e ao mesmo tempo continente de recursos, recursos cuja acessibilidade se dá, potencialmente, de maneira igual para todos. Uma sociedade autônoma não é uma sociedade sem poder. [...] No entanto, indubitavelmente, a plena autonomia é incompatível com a existência de um "Estado" enquanto instância de poder centralizadora e separada do restante da sociedade (Castoriadis, 1990) (p. 106).

 

[...] em uma coletividade autônoma, radicalmente democrática, o exercício do poder não é concebível sem territorialidade (Souza, 2003, p. 107).

 

Com relação à autogestão territorial, idéia-chave em nossa pesquisa, basta colocar que agregamos à noção de autogestão, debatida anteriormente, os preceitos do que vem ser uma gestão territorial, ou seja, a concebemos como um processo decisório - sobre o território (e tudo que este conceito traz consigo) - construído e posto em prática a partir de baixo e/ou horizontalmente, de forma livre e autônoma. Retomando novamente Souza (2003, p. 112), "para uma dada coletividade, gerir autonomamente o seu território e autogerir-se são apenas os dois lados de uma mesma moeda, e representam ambos uma conditio sine qua non para uma gestão socialmente justa dos recursos contidos no território". Nossa coletividade, no caso, seriam as populações e comunidades habitantes de áreas protegidas.

 

Cabe lembrar ainda, ademais das colocações expostas até aqui, a importância do território na questão ambiental, principalmente para aqueles que ainda acreditam numa dicotomia e distanciamento entre a dimensão territorial e a dimensão ambiental da vida, da política e do pensamento científico. Se pensarmos que o território implica apropriação, e que boa parte dos problemas ambientais advém da apropriação da natureza por grupos supra-nacionais para fins próprios, portanto não comuns, haveremos de perceber que "o controle do território coloca-se como fundamental para garantir o suprimento da demanda sempre em ascensão por recursos naturais. [...] a natureza com suas qualidades é o que se oferece à apropriação [grifo do autor] da espécie humana, o que se dá por meio da cultura e da política" (Gonçalves, 2004, p. 65).

 

Aqui, levantamos esta questão para ressaltar a importância de haver estratégias alternativas de apropriação da natureza, que sejam forjadas de baixo e com fins coletivos, para fazer frente a outras maneiras de apropriação muito mais degradatórias e que visam basicamente o aumento de produção.

 

Áreas protegidas

 

Não poderíamos deixar de referenciar aqui um conceito balizador com enfoque mais técnico, embora não menos importante, da nossa pesquisa: o conceito de áreas protegidas. No Brasil, segundo o Ministério do Meio Ambiente, "áreas protegidas são áreas de terra e/ou mar especialmente dedicadas à proteção e manutenção da diversidade biológica, e de seus recursos naturais e culturais associados, manejadas por meio de instrumentos legais ou outros meios efetivos" (MMA, 2005). Há ainda um outro conceito, menos utilizado, que diz que "áreas protegidas são áreas criadas para garantir a sobrevivência de todas as espécies de animais e plantas, a chamada biodiversidade, e também para proteger locais de grande beleza cênica, como montanhas, serras, cachoeiras, canyons, rios ou lagos" (APREMAVI, 2005).

 

A opção pelo uso do conceito de "áreas protegidas" neste trabalho, em detrimento de outros relacionados ao mesmo tema, deve-se basicamente pelo fato de haver conceitos similares em outros países. No México, por exemplo, vigora o conceito de Áreas Naturais Protegidas, que são:

 

[...] porciones terrestres o acuáticas del territorio nacional representativas de los diversos ecosistemas, en donde el ambiente original no ha sido esencialmente alterado y que producen beneficios ecológicos cada vez más reconocidos y valorados. Se crean mediante un decreto presidencial y las actividades que pueden llevarse a cabo en ellas se establecen de acuerdo con la Ley General del Equilibrio Ecológico y Protección al Ambiente, su reglamento, el programa de manejo y los programas de ordenamiento ecológico.  Están sujetas a regímenes especiales de protección, conservación, restauración y desarrollo, según categorías establecidas en la Ley (CONANP, 2005).

 

Além disso, as áreas protegidas são um conceito mais amplo, pois englobam uma série de outras categorias. No Brasil, algumas destas categorias são as Unidades de Conservação (UC´s), estas divididas em sub-categorias de proteção integral e de uso sustentável, as Áreas de Preservação Permanente (APP´s) e as áreas de Reserva Legal (RL), estas duas definidas segundo os preceitos do Código Florestal.

 

Para este trabalho, será dada mais atenção àquelas áreas protegidas que contenham moradores em seu interior (mesmo que isto não seja previsto) ou que apresentem um conflito com a comunidade do seu entorno, devido à maneira como se dá a gestão da área.

 

Referências bibliográficas

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Notas

 

[1] Todas as citações de Enrique Leff transcritas neste trabalho foram traduzidas livremente da obra original em espanhol.

[2] Neste caso, empregamos o sentido etimológico da palavra, o ato de geografar, grafar a terra, deixar marcas no espaço.


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