IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y
LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo - 1 de junio de 2007
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

EXPANSÃO METROPOLITANA, EROSÃO DA ESFERA PÚBLICA

E NOVAS EXIGÊNCIAS SOCIAIS DE GOVERNABILIDADE[[1]]

 

Eveline Algebaile

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

eveline@prolink.com.br

 

 

Expansão metropolitana, erosão da esfera pública e novas exigências sociais de governabilidade (Resumo)

A expansão metropolitana no Brasil tem se realizado como processo de modernização seletiva, ancorado em usos instrumentais do arcaico e do precário que agravam as condições materiais de vida e a apartação social e política de grande parte da população. A existência de padrões assimétricos de urbanidade, por sua vez, reforça padrões de governabilidade que dispensam o empenho na reconstituição do público e reiteram o patrimonialismo. A produção de outra realidade requer a formulação de estratégias de ação via Estado e via sociedade civil, âmbitos indissociáveis que, porém, apresentam diferentes temporalidades e possibilidades de definição de ações e meios. Neste trabalho, discutimos formas de atuar na potencialização da sociedade civil, por meio da produção de canais não tutelares de agregação de ações, experiências, instituições, forças e recursos, com vistas à produção gradual de novas exigências sociais de governabilidade.

Palavras-chave: expansão metropolitana; esfera pública; participação social; governabilidade. 

 

Metropolitan expansion, erosion of the public sphere and new social requirements of governability (Abstract)

 

The metropolitan expansion in Brazil has been developed as a process of selective modernization, anchored in instrumental uses of the archaic and the precarious that worsen the material conditions of life and social and political detachment of a large portion of the population. The existence of anti-symmetrical urbanity standars, however, reinforces standards of governability that exempt the effort in the reconstitution of the public and reaffirm the patrimonialism. The production of another reality requires actions strategies formulation through the State and the civil society, two non-separable fields that present different temporality and possibilities of definition of actions and means. In this presentation, we discuss ways of aching in the reinforcement of the civil society, through the production of non tutelary canals of actions aggregation, experiences, institutions, forces and resources, aiming at a gradual production of new social requirements of governability.

 

Key-words: metropolitan expansion; public sphere; social participation; governability.

 

 

Modernização seletiva e erosão da esfera pública no Brasil

 

Os processos de modernização nos países de capitalismo dependente têm, como marca central, a tendência a conjugarem a incorporação de inovações científicas, tecnológicas e culturais com usos instrumentais do arcaico e do precário, em diferentes âmbitos da vida social: na produção de condições materiais de existência; na organização de atividades e relações econômicas, políticas e sociais; no delineamento de mecanismos e práticas de participação política; no estabelecimento de padrões de cidadania e urbanidade, dentre outros. Trata-se de uma forma particular de modernização que, longe de se opor ao “atraso”, dele se vale para maximizar a produção de excedentes e sua apropriação privada.

 

Falamos em excedentes, no plural, porque, como mostra Fernandes (1974), a respeito do caso latino-americano, não se trata apenas da apropriação do excedente econômico, mas da produção e apropriação de um excedente cultural e de poder político que garante o controle (por atenuação ou coerção) das forças que poderiam se contrapor mais incisivamente à perpetuação do padrão de apropriação instituído.

 

Nesse quadro, a reiteração de assimetrias brutais na produção do urbano está implicada com a consolidação de padrões igualmente assimétricos de urbanidade (Ribeiro, 1996), constituídos por formas particulares de relação com o trabalho, a cultura, a participação política e o exercício de direitos, conformes aos modos de viver, pensar e agir possibilitados no contexto urbano. É aí também que se dá a atualização de práticas políticas comumente identificadas com o “atraso”, como o patrimonialismo e seus desdobramentos – o clientelismo, o nepotismo e a corrupção sistêmica –  já que a própria ocupação do Estado pode se inscrever em uma lógica de uso instrumental de todos os recursos que garantam o padrão geral de apropriação de excedentes. O excedente de poder obtido pela forma patrimonialista de ocupação do Estado não se define, assim, apenas pelo uso do Estado como patrimônio material privado, mas também pelo uso sistemático do poder político para impedir a consolidação de qualquer movimentação que ponha em risco os propósitos das forças hegemônicas.

 

É nesse contexto que as fusões instrumentais entre as inovações e o arcaico não se dão simplesmente como programa econômico, em sentido estrito. Elas são tão mais eficientes nos seus propósitos econômicos, ou seja, produzem mais excedente econômico,  quanto mais se consolidam como programa político, assentando-se na desagregação das relações entre as forças sociais em formação, instituições, ações e experiências que teriam potência para propor referências e rumos diferentes dos instituídos. Assim é garantida a manutenção do padrão de apropriação de excedentes que interessa às forças hegemônicas.

 

Nesse quadro, o patrimonialismo, convertido, ainda que parcialmente, em recurso propiciatório da apropriação privada das inovações – da modernização como negócio, diria Florestan Fernandes (1975) – não pode ser compreendido como mera expressão do atraso. No novo circuito em que opera, cumpre funções orgânicas ao próprio projeto modernizador, constituindo, portanto, uma forma particular de modernização que, no Brasil, poderia ser chamada de modernização à brasileira, aproveitando-se o sentido do termo à brasileira cunhado por Vianna (1997) ao discutir a especificidade histórica da revolução passiva no Brasil[[2]].

 

As políticas públicas, expressão das práticas, movimentações e tensões constitutivas desse quadro, são, portanto, também atingidas por tendências à fragmentação e à incomunicabilidade entre instituições, ações, projetos, profissionais, usuários, bem como pela tendência a sua organização conforme padrões desiguais de direitos e parâmetros de realização que reproduzem ou instauram diferentes formas de segregação espacial e social. Isso se dá de tal maneira que as ações que chegam aos espaços de fronteira de inserção social –  espaços cuja precariedade das condições materiais de vida corresponde a formas graves de destituição política e cultural – tendem a ser fortemente corrompidas, nos seus conteúdos de direitos, por usos instrumentais à lógica de apropriação privada do poder e dos recursos do Estado.

 

Nesse contexto, aquilo a que chamamos de “erosão da esfera pública” (Telles, 2001) se dá por meio de um conjunto variado de ocorrências que afetam as condições de exercício de direitos, no que diz respeito ao acesso e usufruto de bens e serviços, às possibilidades de disputa pública de sua definição e seu alcance e aos horizontes e expectativas aí implicados. São ocorrências que podem abarcar, por exemplo, o fechamento, a interdição ou privatização de espaços e serviços públicos;  a reconfiguração de instituições, com efeitos graves em termos de redução da esfera pública; a restrição das formas concretas de exercício de direitos que, na sua formulação jurídica, já haviam obtido escopo mais amplo; o desmanche de prerrogativas democráticas contidas na formulação de mecanismos de debate e gestão de políticas, em suma, um conjunto de ocorrências que, entre outros efeitos, desorganiza referências e desagrega forças e sujeitos coletivos em formação, atenuando sua potência irruptiva (Heckert, 2004) e produzindo formas de comportamento, em termos da disputa de direitos e do sentido de público, comumente interpretadas como denotativas de “baixas exigências sociais”.

 

A esse padrão de apropriação de excedentes, portanto, corresponde um padrão de governabilidade, segundo o qual a legitimação de uma determinada força política no poder não envolve maiores exigências sociais a respeito da reconstituição do público, sob a forma de recriação e garantia de espaços de debate, de noções de direitos, de mecanismos para seu asseguramento e de qualidade para sua realização como tal, como direitos. Portanto, um padrão de governabilidade cuja modificação envolve, certamente, a própria atuação por dentro do Estado, mas também, e fundamentalmente, mudanças na sociedade civil, terreno de ação muito mais impreciso e menos afeito a intervenções, especialmente quando se trata da potencialização de sujeitos, e não de seu controle. Essa é a problematização na qual se inscrevem os desafios e os inevitáveis limites propositivos deste artigo.

 

A expansão metropolitana como processo representativo da modernização à brasileira

 

No Brasil, os vínculos entre modernização seletiva e apropriação privada do público marcam toda uma história de produção do território, compreendendo-se, aí, a instauração e modificação das atividades e relações econômicas e políticas, bem como a formação societária correspondente. Nas metrópoles, porém, tais vínculos adquirem formas particulares de realização de grande interesse analítico, já que ali se delineiam contundentes contrastes entre as mais avançadas inovações e as mais aviltantes condições de vida.

 

Isso faz da escala metropolitana, como já assinalou Ribeiro (1997), uma escala fundamental para o reconhecimento de desigualdades econômicas e culturais e de limites históricos das políticas públicas representativos de aspectos da problemática urbana e social enfrentada por um leque bem mais amplo de cidades. Destaca-se, aqui, o paradoxo de que as metrópoles brasileiras, espaço das inovações, sejam também o lugar de formas ímpares de contrastes e aparentes desajustes entre padrões de modernização da vida social e formas de exercício do poder. A persistência do patrimonialismo em espaços que mobilizam alguns dos mais avançados processos de modernização constitui um vigoroso enigma que, enfrentado, deve propiciar importantes contribuições para a compreensão do problema em outras escalas.

 

A respeito  da expansão metropolitana contemporânea no capitalismo dependente, cabe assinalar que se trata de um processo de expansão que envolve duas dimensões de grande importância. Primeiro, sua expansão territorial, que se realiza pela incorporação, ao tecido metropolitano, de áreas urbanas que ainda não eram propriamente metropolitanas, pela ocupação urbana integrada de faixas de terra em que não predominava essa forma de ocupação e pela ampliação da área sob influência direta da metrópole. Segundo, sua atualização e robustecimento: algo assim como dizer que “as metrópoles se tornam mais metrópole”, atualizando-se como tal quando modernizam suas estruturas material e funcional a ponto de renovarem, simultaneamente, suas condições de sustentação das relações externas que caracterizam uma metrópole enquanto tal, na hierarquia das cidades. A manutenção de posições privilegiadas – de dianteira na apropriação de recursos, de porta de entrada e ponto de operação de relações políticas, econômicas e culturais, dentre outras – é, nesse sentido, ao mesmo tempo, resultado e condição essencial na sustentação dessa atualização permanente. 

 

Sob o capitalismo dependente, essas duas dimensões são absolutamente associadas e interdependentes. Primeiro, porque se trata de uma forma de modernização ancorada na renovação instrumental de formas arcaicas de trabalho que alimentam a maximização da produção de excedentes, envolvendo a manutenção de redes hierarquizadas de trabalho que interligam as mais inovadoras às mais provincianas formas e relações, os mais altos aos mais baixos padrões de remuneração, no próprio contexto metropolitano. Segundo, porque a modernização dos núcleos mais avançados de vida metropolitana requer também uma apropriação desigual do excedente que financia a própria produção urbana, implicando, portanto, a produção, manutenção e incorporação, às relações metropolitanas, de espaços sem o mesmo padrão de urbanização e de urbanidade, espaços que sustentam duplamente – pela baixa remuneração do trabalho e pelo baixo custo de urbanização – um padrão de produção de excedente e a lógica de apropriação que lhe é inerente. Por isso, a expansão metropolitana nos países de capitalismo dependente – especialmente no atual contexto de reestruturação econômica e política mundial, que envolve a reestruturação do Estado e, nessa linha, mudança para menos nas definições e efetivações de direitos sociais – é uma expansão desigual de tudo o que possa ser considerado metropolitano.

 

Partindo dessas referências, o estudo que empreendemos sobre as implicações entre expansão escolar e gestão da pobreza (Algebaile, Pinto e Santos, 2007), em um contexto específico de expansão metropolitana, permite importantes aproximações das formas particulares de realização da conjugação instrumental entre incorporação de inovações e reiteração das formas precárias de vida. Tal estudo, que entrecruza informações econômicas, sociais, educacionais e institucionais (neste último caso, informações sobre a composição funcional das administrações municipais, considerando-se a organização setorial das políticas públicas, suas ações e vínculos, o perfil dos seus gestores e alguns aspectos de gestão) dos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tem propiciado a apreensão de algumas regularidades e traços comuns que nos parecem muito significativos para o debate pretendido.

 

É importante destacar, inicialmente, alguns aspectos relativos aos vínculos entre dinâmicas econômicas e dinâmicas sócio-espaciais. Confirmando tendências já apontadas por Oliveira (2003 e 2006), o cruzamento de dados econômicos e populacionais evidencia que, na última década, os maiores índices de crescimento populacional, na região, têm se dado em municípios de menor crescimento econômico. Como nesses municípios também cresce o percentual de população pobre, fica evidente que se trata de lugares de nova concentração da pobreza metropolitana, com impactos inevitáveis no que diz respeito às necessidades de políticas públicas e ao seu perfil.

 

Quanto às políticas públicas, no que se refere à sua realização, às suas respostas a essa dinâmica, é importante registrar, em primeiro lugar, a observação de que a escola é o equipamento público que chega, praticamente “em tempo real”, aos novos espaços de destituição, seja sob a forma da instalação concreta de um novo estabelecimento, seja (o que tem sido bem freqüente) sob a forma de novas interligações entre as áreas ocupadas ou adensadas e os equipamentos escolares disponíveis, muitas vezes submetidos a manipulações do tempo e do espaço escolar que permitem a criação, em tempos recordes, de novas vagas.

 

Evidentemente, essa escola que “chega praticamente em tempo real” é apenas a escola fundamental, especialmente nas suas séries iniciais, já que os demais níveis e etapas de ensino não têm mostrado propensão à expansão no mesmo ritmo. Poderíamos, ainda assim, interpretar positivamente essa quase simultaneidade entre expansão urbana e expansão escolar, caso não saltasse aos olhos, igualmente, a não manutenção do mesmo ritmo de expansão também no caso das outras políticas setoriais básicas, especialmente saúde, saneamento e habitação.

 

A única exceção, nesse caso, apenas confirma a regra: o setor de assistência social – na forma de secretarias de assistência, ação ou desenvolvimento social, mas também na forma de uma infinidade de ações pulverizadas por outras pastas – visivelmente cresce, mas em termos, essencialmente, de projetos e programas aos quais não necessariamente corresponde nova estrutura e aparato institucional e funcional especializado. Há, na verdade, uma tendência instalada à sublocação de estruturas materiais, administrativas e funcionais de outros setores governamentais, incluindo seus recursos financeiros diretos e indiretos, para a realização desses programas fortemente caracterizados pela focalização do público-alvo e do próprio perfil da ação, tratando-se de uma exceção que confirma a regra especialmente porque seu modo de realização permite apreender uma forma particular de redução da esfera pública que está em andamento, uma “ampliação para menos”, como diria o poeta Manoel de Barros, em que as supostas ampliações de um setor são feitas a custa de graves perdas em outro.

 

Essa percepção é fortalecida pela generalização da tendência à utilização sistemática da escola elementar para realização encurtada de ações que, em princípio, caberiam a outras políticas. Como já discutido em trabalho anterior (Algebaile, 2004a), não se trata de uma tendência nova no Brasil, já que permeia toda a lenta saga de expansão da escola elementar brasileira, ao longo de todo o século XX, estando presente em projetos vinculados a questões de saúde, de assistência, de trabalho, dentre outras. Mas é inegável sua intensificação na década de 1990, quando, especialmente a partir de programas federais – como o Bolsa Escola, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e, simultaneamente, o Cadastramento Único para programas sociais, primeiro amplo cadastramento dos pobres em território nacional –, consolidaram-se práticas sistemáticas de aproveitamento da infraestrutura administrativa no setor educacional, como um todo (instituições, profissionais, equipamentos, recursos financeiros das secretarias de educação), e do aparato escolar, em particular (o equipamento escolar como uma espécie de posto avançado do Estado), para a realização de um sem números de ações e programas pontuais, administrados por diferentes esferas governamentais.

 

A gravidade do problema, vale esclarecer, não está, de nosso ponto de vista, na utilização da escola, em si, mas na forma instrumental como isso se dá: “economizando” ações no campo social, subordinando o setor educativo escolar a propósitos econômicos que lhe são externos (Frigotto, 2001), esvaziando a própria ação educacional,  e desviando empenhos e recursos para ações que pouco ou nada adensam o processo educativo. Nesse sentido, não só nosso estudo, mas outros, como os de Scheinvar (2004), Peregrino (2006) e Fonseca (2006), têm apresentado dados que corroboram a percepção de que a baixíssima implicação entre a escola e os programas que para ela convergem parece ser um efeito inevitável da forma instrumental e utilitária que rege a multiplicação e pulverização de programas sociais via escola.

 

Quanto às administrações públicas, no seu delineamento mais geral, o primeiro aspecto a destacar é que a reiteração de tendências patrimonialistas nos municípios metropolitanos periféricos é também praticamente uma regra. O simples levantamento dos ocupantes de cargos de primeiro e segundo escalão das prefeituras confirma a tendência, já indicada por Ribeiro e Barreto (2001), de forte presença de redes familiares na composição das gestões, redes não só referidas aos chefes do executivo, mas também a vereadores e deputados das bases governistas, confirmando o nepotismo como modo privilegiado de controle da operação do Estado. A predominância de critérios políticos particularistas na escolha dos gestores de políticas pode, também, ser deduzida da baixa aderência entre a formação e experiência profissional desses gestores e as pastas que ocupam, o que, por sua vez, indica não apenas um desprezo pelo sentido de público, mas uma despreocupação, tanto com os acúmulos locais, construídos pelos movimentos de usuários e de profissionais das diferentes políticas setoriais, quanto com os eventuais impactos políticos dos questionamentos e interpelações por eles propiciados.

 

Essa perspectiva particularista de exercício do poder encontra também correspondência no padrão de publicização das informações referentes à gestão pública, nitidamente orientado por uma perspectiva conservadora. A análise dos sites das prefeituras propicia a observação, nesse aspecto, de uma das mais bizarras conjugações entre inovações tecnológicas e formas arcaicas de exercício do poder, já que modernos recursos midiáticos são postos a serviço de um tipo de informação mais identificado com formas autoritárias e populistas de comunicação política. Sobrepondo-se a princípios básicos de publicização democrática, a perspectiva propagandística deforma a informação, apresentando as exceções como regras, os projetos modelares pontuais como políticas. As informações técnicas, que poderiam permitir a análise do alcance real das ações empreendidas – dados estatísticos e orçamentários, por exemplo – estão muitas vezes presentes, mas cumprindo apenas funções de legitimação, já que, com freqüência, os dados disponíveis são divulgados em forma quase bruta ou segundo complexas organizações e categorizações herméticas, o que dificulta sua apropriação por parte dos usuários e contribui para ampliar o afastamento da sociedade em relação à política (Ribeiro, 1998). Também com freqüência as sínteses não mostram rigor e fidedignidade aos dados, apresentando, muitas vezes, manipulação das informações e didatismos apenas ilustrativos. Observa-se, ainda, que há poucas informações que contribuam para uma melhor compreensão do usuário a respeito de seus direitos e formas de seu exercício, confirmando a percepção de que os instrumentos de comunicação disponíveis são vistos e usados, pelos gestores públicos, como um recurso privado e, nesse sentido, predominantemente como um mecanismo de reforço do poder, e não como uma prerrogativa e uma condição da participação cidadã.

 

Essa forma de exercício do poder e de manejo de seus meios repercute fortemente na atenuação das ações, posições e mecanismos que poderiam expandir e consolidar os acúmulos sociais a respeito dos sentidos de público. A ocupação nepotista e clientelista de postos na administração pública constrange o exercício profissional comprometido com tais acúmulos. Em fóruns participativos diversos na região, é freqüente a denúncia às práticas de intimidação, dissolução, desagregação e desqualificação de profissionais de diferentes áreas que tentam levar para o exercício de suas funções princípios e saberes que, por si, sendo empregados, atingiriam de algum modo as tendências instituídas. De outro lado, há também inúmeros relatos de ocorrências de sentido diverso, casos em que a agregação de um certo número de profissionais não comprometidos com as redes patrimonialistas representou um constrangimento às práticas tradicionais. Há uma importante lição a se tirar daqui: as possibilidades de mudança “via Estado”,  do quadro geral aqui traçado, não são apenas aquelas que dependem da ocupação de postos de comando ou orientação (consultorias, assessorias, projetos terceirizados) da administração pública, mas também as que propiciam suporte e sustentação à atuação profissional “subordinada”. Voltaremos adiante a este ponto.

 

Outro problema é a tendência ao desvirtuamento de canais, mecanismos e espaços participativos que, criados a partir das movimentações e lutas sociais, vêm sendo capturados para outros fins, atenuando-se exatamente as possibilidades de dissonância, disputas de sentidos e afirmação de valores, práticas e rumos que, por si, imporiam alguns limites às práticas de corrupção, clientelismo, nepotismo e apropriação privada dos fundos e do aparato público. O caso dos conselhos de gestão ou acompanhamento de políticas e programas é exemplar (Algebaile, 2004b e 2007 e Souza, 2007), tendo em vista sua despotencialização pelos mais diferentes meios – nomeação sistemática dos gestores das políticas para a direção dos conselhos, cooptação de membros, excessiva burocratização, dentre outros –, que podem transformar as tentativas de participação da sociedade civil em verdadeiros pesadelos.

 

Por fim, cabe ainda destacar um problema de difícil delineamento, mas de necessária discussão. A análise dos relatórios de auditorias de municípios brasileiros feitas pela Controladoria Geral da União (CGU) permite perceber a utilização de consultorias técnicas, como nos setores de política social, urbana e de desenvolvimento, dentre outros, para a realização de estratégias de remanejamento de verbas entre pastas e ações, um problema que não seria tão grave se essa prática não se desdobrasse em estratégias diversas de “lavagem de recursos”: a super-remuneração do trabalho técnico terceirizado, por diferentes vias, viabilizando o remanejamento de recursos dos cofres particulares para o cofre privado dos próprios gestores de políticas. Um dos problemas é que o fortalecimento de práticas patrimonialistas aí operado tem se dado, muitas vezes, por meio da captura e adesão de projetos vinculados a instituições das quais se espera uma atuação na contra-corrente.

 

Gostaríamos, nesse momento, de nos referir mais especificamente a algo que nos toca de perto: o uso da chancela das universidades para legitimar projetos que funcionam como recurso adicional de operação patrimonialista do Estado. Trata-se de um problema de difícil delineamento porque é constituído por práticas que se revestem da confiabilidade conferida pelo campo técnico-científico, em especial por uma de suas mais respeitadas instituições, a universidade. É necessário, nesse caso, cuidado com as generalizações que põem sob suspeita todo e qualquer projeto de cooperação entre instituições científicas e administração pública. Esse cuidado, porém, não deve impedir a percepção de que não se trata de fatos isolados, mas de formas de ação que têm alguma regularidade e que, nas suas variações, vêm constituindo desde formas questionáveis de empresariamento do saber científico e da ação social, até formas ilegais de ação que alimentam o circuito de corrupção da administração pública, realizando uma das mais dramáticas formas de fusão entre inovações e  práticas arcaicas.

 

Insistimos no caráter dramático desse problema, em primeiro lugar, por ele envolver, exatamente, um tipo de instituição de importância fundamental para a discussão crítica dos problemas aqui abordados, para a produção de conhecimentos que subsidiem seus enfrentamentos e para a produção de novas condições de agregação de lutas e projetos que concorram para a alteração das relações de forças vigentes no manejo da “coisa pública”. Não queremos dizer, com isso, que a universidade não atue nesse sentido, mas evidenciar que tal atuação está, também, atenuada, tendo em vista o alcance de suas capturas, por dentro, para projetos que reforçam a lógica privatista e patrimonialista.

 

Em segundo lugar, por não se tratar de um problema simples que, circunscrito a um quadro moral, consistiria na existência, no interior das universidades, de condutas opostas, portadoras do bem ou do mal. Trata-se, a rigor, de um problema inscrito no próprio modo de organização e funcionamento contemporâneo das instituições científicas e por ele, de algumas maneiras, reforçado. Há critérios que regem os processos atuais de validação, reconhecimento e premiação do trabalho em instituições científicas que praticamente induzem a práticas particularistas de graves efeitos sobre o próprio conhecimento e ação aí produzidos. A compreensão quantitativista da produção docente, sua ênfase na produção editorial e a prevalência desses aspectos na disputa de recursos adicionais aos salários docentes estão mobilizando estratégias relacionais que sustentem a manutenção de um escore de produções capaz de garantir boas condições de competição pelas novas prerrogativas acadêmicas. Um dos efeitos disso é a tendência à constituição de grupos auto-regulados que acabam por constituir nichos privados cujo funcionamento assemelha-se ao de verdadeiros bunkers, no interior das instituições, tendo em vista seus êxitos em termos de domínio de espaços, equipamentos e recursos e sua simultânea capacidade de competir por mais recursos.

 

Outro efeito é a competição acirrada entre grupos de uma mesma área de atuação, mas de instituições distintas, pelo quase monopólio de objetos de intervenção. Parte importante dos recursos hoje disputáveis, incluídas aí fatias memoráveis do fundo público operado por diferentes níveis governamentais, alimentam sistematicamente formas de ação implicadas com a constituição desses nichos privados, nos quais o conhecimento produzido pela pesquisa acaba se tornando apenas instrumental à consolidação de uma fatia de mercado de trabalho que confere formas particulares de prestígio e renda diferenciada.

 

Fora as questões morais que podem ser inferidas a partir de algumas formas – não todas, certamente – de manejo dos recursos disponíveis para projetos de pesquisa e intervenção, porém, a situação geral de acesso e apropriação de recursos contém, em si, um outro problema: no interior da própria universidade e demais instituições vinculadas à produção científica, opera-se hoje, sem que haja um projeto deliberado com esse fim, uma forma peculiar de esvaziamento de formas de ação que, em um país de capitalismo dependente, como o Brasil, seriam cruciais à superação das desigualdades e das relações patrimonialistas que estão na sua base. A flagrante assimetria entre extensão e pesquisa, no quadro do prestígio acadêmico e das prerrogativas aí implicadas, é uma das formas de manifestação disso.

 

De forma alguma as implicações das universidades brasileiras com a atuação concreta se resumem ao empresariamento científico e social. Há resistências. Por exemplo, persistem inúmeras práticas de extensão, vinculadas à formação complementar de profissionais que atuam em processos implicados com a questão social; ao assessoramento de movimentos sociais; à participação em conselhos e fóruns de discussão, formulação e acompanhamento de políticas públicas;  à cooperação técnica em projetos ambientais, educacionais, urbanísticos e econômicos de alto alcance social. São, porém, práticas desestimuladas, ainda que indiretamente, não simplesmente porque não mobilizam recursos extras ou porque mobilizem poucos recursos, mas porque podem conferir lugar secundário até mesmo na repartição dos recursos básicos do trabalho acadêmico: espaço, tempo, equipamentos, financiamento docente e discente.

 

Tudo isso repercute como um incentivo à gestão liberal da carreira e do trabalho docente, com conseqüentes desdobramentos sobre a formação profissional empreendida pela universidade, concorrendo para o esvaziamento da perspectiva pública que deveria presidir a formação para funções direta ou indiretamente vinculadas ao campo social e jogando, no âmbito da administração pública, profissionais com poucos recursos individuais e coletivos capazes de alimentar o enfrentamento do estado de coisas encontrado.

 

Esse inventário de problemas parece levar ao descrédito em qualquer possibilidade de modificação da realidade discutida. Não podemos esquecer, porém, que a realidade analisada não é fruto de ações unidirecionais, mas de relações de força, o que quer dizer que o terreno até aqui discutido também foi e é o lugar de acúmulos históricos de movimentações e ações de sentido diverso, de resistências e de experiências que podem vir a alimentar novas agregações e enfrentamentos. No caso da metrópole, focalizada aqui como escala de análise e de ação, cabe atenção especial às possibilidades de acúmulo e agregação, inclusive porque, por sua posição nas relações entre cidades, as metrópoles podem ser um lugar de produção de experiências de agregação que tenham razoável poder de difusão.

 

 

O “caminho de volta”

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Ítalo Calvino – Cidades invisíveis.

 

 

Há uma postura de Gramsci de especial significado para as questões abordadas neste trabalho: a atenção persistente aos nexos possíveis entre a análise da realidade e a ação transformadora. Para Gramsci, o “pessimismo da inteligência” era condição fundamental para uma apreensão profunda dos processos de produção da realidade social. Mas o desdobramento do conhecimento aí propiciado não poderia ser o descrédito na ação e, na sua esteira, a apartação em relação aos problemas desvendados, o imobilismo. A vontade, segundo Gramsci, teria que ser otimista, valer-se da compreensão profunda dos problemas, e das relações de força que atuam na sua produção, como fundamentação de programas de ação dirigidos ao seu enfrentamento.

 

Para quem pesquisa políticas públicas, essa formulação representa, mais que um convite, uma convocação, alertando para a necessidade de investigações que perfurem a superfície das práticas e projetos instituídos, rastreando as relações que os produzem, sustentam e pervertem, mas chamando atenção também para a necessidade de se fazer “o caminho de volta”, fomentando o uso de tal análise como fundamento de elaborações referenciadas na necessidade de enfrentamento dos problemas identificados.

 

Mas o desafio de pensar ações de possível resposta aos problemas apresentados implica alguns cuidados, especialmente com propostas imediatistas, que desconsideram as forças concretas capazes de sustentá-las, e, de outro lado, com o referenciamento das propostas nas utopias distantes, no delineamento de sociedades igualitárias e democráticas como ponto de chegada. Parece ser suficiente e prudente, em termos de referenciais amplos para a ação e de compromissos sociais que a fundamentem, trabalhar com um horizonte intermediário: uma sociedade em que a igualdade possa ser postulada por segmentos mais amplos e que, a partir dessa situação, sustente projetos de maior fôlego; um contexto social e político em que novos requisitos de governabilidade passam a ser pautados por uma sociedade civil mais potente, robusta, como diria Gramsci. Isso, por si, pode trazer repercussões insubstituíveis, em termos da redução do patrimonialismo, da corrupção, do clientelismo, permitindo a impressão de novas orientações para ações dirigidas à produção de políticas públicas e, na sua esteira, à consolidação das condições para o exercício amplo de direitos e da participação política.

 

Há duas vias de grande importância para se pensar a produção dessa realidade desejada: por dentro da sociedade política, o Estado, em sentido estrito, e por dentro da sociedade civil. As duas são igualmente importantes, em muitos casos, indissociáveis, mas são vias que apresentam temporalidades diferentes e possibilidades diversas de definição de ações e meios.

 

A primeira, sob inúmeros aspectos, é mais referenciada nas possibilidades concretas de ocupação de postos de gestão ou de atuação orgânica na sua orientação, por meio de convênios e cooperações, por exemplo, bem como por meio de inserção formal em espaços participativos, como conselhos de políticas.

 

A segunda, inevitavelmente mais difusa e situada na média e longa duração, deve, ao nosso ver, orientar-se mais para a potencialização das possibilidades difusas ou já consolidadas de participação direta ou indireta nos rumos da ação do Estado: ações que ajudem a aprofundar o “movimento já iniciado nas coisas”, para lembrar uma formulação essencial de Gramsci (2002); a preservar e abrir espaço ao que, no inferno, não é inferno, para lembrarmos a formulação de Calvino. Trata-se, de fato, nesse caso, da formação – no sentido pleno dado por Thompson (1999), de “fazer-se” – e potencialização de sujeitos coletivos, e isso só se realiza dentro de parâmetros democráticos se forem resguardadas condições essenciais de autonomia, já que não há sociedade civil tutelada que seja potente para o tipo de transformações aqui indicado.

 

Parte fundamental dos desafios propositivos implicados com os problemas até aqui discutidos, portanto, está em pensar formas de atuar na potencialização da sociedade civil, no seu robustecimento, sem se lançar mão de propostas tutelares. Pensar formas, canais e espaços de agregação de ações, experiências, instituições, forças, noções e recursos, cuja dispersão pode representar sua anulação “numa poeira impotente” (Gramsci, 2000). Formas de ampliação da esfera pública que pressupõem, portanto, a produção de instâncias participativas diferenciadas, constitutivas de uma parte fluída, difusa e múltipla do espaço público que, exatamente por sua fluidez e, conseqüentemente, sua possibilidade de infiltração e de expansão não tutelada de valores, princípios e acordos orientadores da ação, torna-se potente para reconfigurar a “outra parte”, mais precisa institucionalmente e, de certo modo, mais garantida ou esvaziada pela ação sistemática do Estado: as instâncias participativas reguladas.

 

Trata-se, portanto, de pensar ações que, no limite, produzam modificações moleculares, constituindo-se como “matrizes de novas modificações” (Gramsci, 2000 e 2002), tornando-se “formativas” de sujeitos coletivos não apenas no que diz respeito a sua capacidade organizativa, mas também quanto à produção de valores e referências que alterem as disposições do agir social em diversos âmbitos e aspectos: nas formas de uso de bens e serviços, nas formas de intervenção no seu debate público, nos modos de participação nas práticas formais da democracia representativa, nas posturas assumidas na atuação profissional no campo das políticas públicas.

 

Gostaríamos de nos deter nesse último caso – a atuação profissional no campo das políticas públicas – por entendermos que ele deve ocupar um lugar de destaque na discussão de ações possíveis para o enfrentamento dos problemas aqui discutidos. O que está em jogo, nesse caso, é que a formação de “profissionais públicos” pode propiciar, por diferentes meios, no interior do próprio Estado, novas condições de disputa do sentido de público que rege a proposição e realização de políticas e práticas, possibilitando novas condições de enfrentamento do patrimonialismo e de seus recursos.

 

Cabe esclarecer que, com o termo “profissionais públicos”, pretendemos fazer referência aos profissionais de diversas áreas que definam o objeto de sua ação a partir da inscrição desse objeto no campo público, extraindo dessa inscrição as principais referências para sua atuação prática. Isso tem implicações importantes no que diz respeito a sua “formação”, já que a produção da perspectiva pública de sua atuação profissional envolve tanto os conteúdos e práticas de sua formação regular, realizada sistematicamente por instituições especializadas, quanto uma grande diversidade de experiências e relações menos reguladas, mas fundamentais para a produção de acúmulos, conhecimentos e compromissos socialmente compartilhados que constituirão não apenas referências, mas sustentação social para a ação.

 

Um primeiro desafio de ação nesse sentido relaciona-se à necessidade de maior proximidade entre movimentos profissionais e movimentos de usuários. No Brasil, o processo de erosão das formulações de direitos, ocorrido na década de 1990, atingiu não apenas a constituição interna dos movimentos sociais, mas também as possibilidades de agregações entre movimentos, que vinham sendo produzidas historicamente sob a forma de acúmulos coletivos a respeito de elementos comuns que interligavam as lutas sociais. Inúmeras mudanças societárias inscritas nesse processo também concorreram para o distanciamento entre esses movimentos, especialmente no caso dos profissionais e dos usuários de serviços da área social. A intensificação da pobreza e da apartação dos pobres, em relação às práticas de direitos consolidadas nos núcleos mais avançados da vida social, bem como a deterioração das relações e condições de trabalho em diferentes setores das políticas sociais, produziram estranhamentos entre profissionais e usuários e o conseqüente enfraquecimento das lutas por direitos vinculados a esses setores. Parte desse estranhamento, como mostram, entre outros, os estudos de Valla (1994), vem assumindo a forma de não-reconhecimento, por parte dos próprios profissionais do campo social, da legitimidade e capacidade dos usuários em disporem sobre as ações que lhes afetam. As lutas por direitos são, aí, duplamente fragilizadas, já que a atuação fragmentada das forças que deveriam atuar em torno de objetivos precisos representa a fragmentação dos próprios objetivos e das experiências relacionadas à sua formulação e a sua disputa pública.

 

Tais movimentos, porém, não estão completamente solapados, e nos parece que uma ação essencial no sentido da constituição de novos nexos diz respeito à produção de possibilidades de interlocução que permitam a reconstrução de objetivos públicos como elementos norteadores de suas ações. A universidade tem papel fundamental a cumprir nesse processo, não apenas por dispor de infraestrutura e recursos que podem dar sustentação a projetos nesse sentido, mas por dispor de conhecimentos sobre demandas sociais e políticas públicas que podem e devem alimentar a reconstrução de um saber compartilhado capaz de orientar as lutas sociais, em seu sentido geral e em suas práticas específicas.

 

Já há diversas ações desse tipo que podem fornecer referências a uma atuação mais sistemática das próprias universidades nesse sentido. Cursos de extensão sobre políticas públicas, voltados à formação integrada de profissionais e usuários; convênios de cooperação com movimentos organizados; fóruns de discussão com vistas à orientação mútua dos diferentes segmentos participantes de conselhos gestores de políticas são alguns exemplos de ações cujos principais traços em comum são exatamente o respeito e a tentativa de aprofundamento do movimento “já iniciado nas coisas”, com o propósito de alimentar a restituição de lutas pelo público, e não por prerrogativas privadas e corporativas.

 

É fundamental a discussão pública dessas experiências e de suas possíveis aproximações, mas os êxitos nessa empreitada envolvem, de antemão, a observação atenta dos desafios aí contidos. A concentração de instituições universitárias nas áreas metropolitanas, e a conseqüente concentração de recursos aí implicada – financeiros, funcionais etc. –, precisa ser computada a favor de ações que se oponham à fragmentação das forças capazes de sustentar projetos de sentido diverso do instituído. Isso implica, inevitavelmente, alguma disposição em se discutir e enfrentar a tendência, hoje intensificada, das universidades (os projetos a elas vinculados) atuarem corporativa e concorrencialmente. Implica, igualmente, disposição para debater os nexos entre práticas de particularização do trabalho docente e práticas formativas que concorrem largamente para a consolidação de experiências de formação profissional de caráter liberalizante: a formação profissional nos mais diversos campos vivida como capital privado, mesmo no caso daqueles profissionais cuja área de atuação vincula-se diretamente ao campo social.

 

A produção de novas condições de encontro e troca que permitam acúmulos compartilhados, capazes de municiar uma mais intensa manifestação de exigências sociais em relação à gestão pública, bem como a formação de quadros profissionais que façam repercutir, no interior, da administração pública, esses acúmulos sociais, podem e devem se valer de redes mais potentes de sustentação das lutas sociais e da ação profissional comprometida com o público. É preciso agregar, para tanto, instituições, projetos e recursos que possam contribuir com a produção de bases mais sólidas para a produção e difusão desses acúmulos. As universidades, especialmente as localizadas nas áreas metropolitanas, e, dentro delas, os projetos identificados com perspectivas críticas, apresentam condições especiais de atuação nesse sentido. É preciso que nos interpelemos sobre nossas disposições a respeito.

 

Nesse sentido, as chamadas para a discussão da ação vinculada ao conhecimento crítico constituem uma oportunidade, de alcance inusitado, de formulação sobre o público. Porque promovem a reflexão sobre os desafios práticos que tal conhecimento precisa enfrentar e sobre a constituição dos sujeitos, das condições e das práticas necessários para se viabilizar os quadros de ação que se tenta traçar como horizonte. Mas também porque permite que o campo acadêmico se interrogue a respeito de seus possíveis papéis nesse processo.

 

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Notas:

 

[[1]] Artigo preparado pela autora em colaboração com Gabriela Angelo Pinto e Carlos Danilo dos Santos, Bolsistas PIBIC CNPQ e UERJ no Projeto de Pesquisa Expansão Escolar e Gestão da Pobreza na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

 

[[2]] Gramsci utiliza o conceito de “revolução passiva” em referência a diversos processos de mudança política, econômica e social que ocorrem sob o controle de objetivos de conservação ou restauração de forças políticas que já ocupavam o poder, daí também o uso, pelo autor, dos termos, “revolução-restauração” ou “revolução sem revolução”. A formulação de Vianna (1997) sobre a revolução passiva à brasileira referencia-se na constatação de que a revolução burguesa autocrática, no Brasil, teria se realizado em um processo de longa duração, no qual orientações políticas, em princípio, distintas e vistas comumente como portadoras de ideais até mesmo contrapostos, teriam realizado uma complexa fusão.

 

 

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