IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

TerritÓrio e neoliberalismo no Brasil: as parcerias publico-privado e o Uso corporativo do territÓrio

 

Mirlei Fachini Vicente Pereira
Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus Rio Claro
mirleipereira@yahoo.com.br.

 

Samira Peduti Kahil
Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento
UNESP, Campus Rio Claro

 


Território e neoliberalismo no Brasil: as parcerias público-privado e o uso corporativo do território (Resumo):

O trabalho visa compreender como o território brasileiro é transformado através das ações políticas de cunho neoliberal. Parte-se da idéia que dos anos setenta do século passado até a atualidade instala-se no Brasil uma série de políticas neoliberais que atuam de forma a tornar mais incisiva a acumulação dos agentes hegemônicos da economia. Destaca-se como exemplo as modernizações recentes do território através da adição de novas redes de infra-estruturas construídas por meio das chamadas “Parcerias Público-Privado”, com a intenção de demonstrar como estas ações acabam por tornar o território e a nação vulneráveis aos interesses hegemônicos internos e externos, tomando assim um caráter corporativo. Por fim, formulamos propostas de uso destas infra-estruturas territoriais, visando os interesses da sociedade como um todo.

 

Palavras-chave: neoliberalismo, redes, parcerias público-privado, uso do território.

 


 

Territory and neoliberalism in Brazil: public private partnerships and corporate territory use (Abstract):

This paper aims at understanding as the brazilian territory is transformed by the neoliberal policy actions. They come from the seventies of last century to nowadays and in Brazil there are many neoliberal policies which become more expressive accumulation of hegemonical agents of the economy. Are analyzed as example the recent modernizations of the territory, due to addition of new infrastructure networks built, they are called “Public Private Partnerships”, are intending to demonstrate as the territory and nation are vulnerable in relation to the internal and external hegemonical interests, become corporation. Finally, we formulated some proposals of infrastructure territory use, aiming to society interests.

 

Key words: neoliberalism, networks, public private partnerships, territory use.

 


 

 

Neste trabalho, procuramos demonstrar o modo pelo qual o território brasileiro tem sido transposto por políticas neoliberais; políticas estas que têm transformado por completo a natureza do uso do território. Estamos aqui entendendo o neoliberalismo, tal como propõe Moraes (2001, p.27), como uma ideologia, uma forma específica de ver e compreender o mundo social, uma corrente de pensamento que têm incorporado ao conjunto da sociedade a idéia paradoxal de que o poder público deve ser cada vez menos responsável pela administração daquilo que é público e voltado para a sociedade como um todo (serviços básicos como educação, saúde, transporte, etc.).

 

Francisco de Oliveira (1997) caracteriza o neoliberalismo também como a prevalência quase que exclusiva do mercado como única instituição autoreguladora tanto da alocação dos recursos econômicos como das relações sociais e da sociabilidade, o que se dá por meio de uma desvalorização de tudo aquilo que é público e pela emergência de um pensamento e de uma postura que se desloca, ao extremo, do público para o privado e do coletivo para o individual. É deste modo que também forma-se o “homem privado” contemporâneo, que, segundo Oliveira (1997, p.11), é a base social sobre o qual se sustenta o neoliberalismo, ou, em outras palavras, “Dir-se-á que, no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individualista, ou se desaparece” (SANTOS, 2000, p.67).    

 

Para empreender esta análise, partimos do final da década de setenta do século passado, entendendo este como o momento de transição e preparação do Brasil para a inserção da ideologia neoliberal (MÜLLER, 2003), e a partir de então analisamos o modo como esta se deu e as suas conseqüências para o território e a sociedade, movimento que se aprofundou no país concomitantemente com a chamada transição democrática.

 

Também com o propósito de demonstrar como a ideologia neoliberal tem avançado sobre as políticas públicas nacionais, materializando-se no conjunto do território brasileiro, utilizamos o exemplo recente dos investimentos firmados entre poder público e agentes privados para a instalação de novas infra-estruturas territoriais no país. Com esta pretensão, nossa análise residiu basicamente na investigação de um novo mecanismo normativo que surge no Brasil nesta virada do século para viabilizar a junção do poder público e dos agentes privados, principalmente no que diz respeito à instalação de novas infra-estruturas territoriais tidas como essenciais para o crescimento econômico do país – a Parceria Público-Privado (PPP). Este mecanismo surgido na Inglaterra da década de 80 (Public Private Partnerships) e agora regulamentado no Brasil, instala-se no território nacional como única saída para a viabilização dos novos sistemas de engenharia que equipam o território brasileiro hoje (rodovias, ferrovias, hidrovias, entre outras infra-estruturas, etc.).

 

Por fim, demonstramos como a ideologia e políticas neoliberais, bem como os mecanismos normativos que as viabilizam no Brasil, acabam por dotar o território nacional de uma natureza ainda mais corporativa, onde se reafirma a viabilidade territorial para a ação da economia hegemônica. Desta forma, urge repensar o uso do território no Brasil de uma forma ampla, em que a sociedade como um todo possa ser contemplada por políticas que realmente mereçam ser denominadas como Públicas, ou seja, aquelas que verdadeiramente se façam pelo interesse da maioria da sociedade.    

 

 

O neoliberalismo no território brasileiro

 

O processo de inserção do neoliberalismo enquanto ideologia e corrente de pensamento para a condução das políticas e dos recursos públicos no território brasileiro se deu de forma lenta e gradual, num período que compreende quase três décadas, iniciado de modo discreto no final dos anos 70 e com declarada consolidação na década de 90.

 

Müller (2003) destaca que durante as décadas de 30 a 80 o país conhece cinqüenta anos de um processo de construção de um projeto de “Brasil nação”, pautado no desenvolvimentismo estatal, para, no final da década de setenta, sob a égide do governo militar, dar início a transição para um novo projeto, que ele denomina de “Brasil globalizado”. Ainda segundo o autor, “Essa transição foi conduzida pelos governos Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar e, principalmente, se consolidou com o governo Fernando Henrique Cardoso” (MÜLLER, 2003, p.23). Assim, é decididamente com a transferência do regime ditatorial para a democracia que o país foi imerso no processo de globalização da economia e nas políticas de natureza neoliberal (OLIVEIRA, 1997).

 

No período de ditadura militar (1964-1983) o território brasileiro conhece uma preparação que, ainda que possa parecer incipiente, mostrou-se importante para a inserção da postura neoliberal e para o triunfo do processo de globalização da economia, ambos consolidados nos anos 90. Com os governos militares, o Brasil, assim como outros países latino-americanos, acaba por tornar-se uma “área de criação de superávits para os EUA” (MÜLLER, 2003), e a idéia de criação de um “Brasil Potência” (BECKER; EGLER, 2003), com detenção de tecnologias modernas e uma série de obras de infra-estrutura voltadas para os interesses do capital internacional são realizados através de empréstimos arrecadados no exterior, gerando maior dependência financeira e política.  

 

O território nacional ganha notável modernização durante o período de ditadura militar, ainda que os resultados desta modernização não tenham sido distribuídos de forma igualitária no conjunto da sociedade, favorecendo setores e agentes específicos da economia, inclusive empresas e capitais estrangeiros que foram alocados no país. Um país urbano, industrial e com uma avançada integração do território nacional acaba por favorecer a ação de empresas estrangeiras, com fronteiras nacionais abertas para o capital produtivo externo (SANTOS; SILVEIRA, 2001), mantendo ao mesmo tempo os privilégios de uma elite nacional tecnocrática (civil e militar) que arquitetava os planos de entrega do território. Desta forma, o Brasil conhece um grande crescimento econômico no período de ditadura militar, ainda que se caracterizasse por um modelo fortemente concentrador de renda. Esta foi a formação prévia de um território que se prepara para a instalação, mais tarde, das políticas neoliberais que se materializariam no território com maior força.

 

Mas é durante o período de transição para a democracia que o processo de inserção da ideologia neoliberal se instala no governo e também se dissemina, através de seus desdobramentos nas políticas e projetos do poder público por todo o território nacional. Os anos 80 marcam definitivamente o esgotamento do modelo desenvolvimentista, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo nos é apresentado como a única saída para as crises financeiras, verdadeiro “antídoto para o Welfare State” (MÜLLER, 2003) que, diga-se de passagem, no Brasil nunca chegou a vigorar verdadeiramente (OLIVEIRA, 1997). Mas é na década seguinte que a globalização e o neoliberalismo atingem o território de forma mais incisiva:

 

Na década de 90 ganha mais força a aplicação do receituário neoliberal no Brasil: abertura indiscriminada ao capital internacional, paridade cambial, déficit na balança comercial e no balanço de pagamentos, privatização do patrimônio público, reformas constitucionais, enxugamento da máquina administrativa, implicando a redefinição do caráter de classe do próprio Estado (MÜLLER, 2003, 23).

 

As novas regras da globalização econômica conjugadas com as práticas neoliberais, ambos os modelos importados dos países ditos desenvolvidos e impostos por instituições internacionais legitimadas para tal, acabam por se materializarem como normas rígidas para o cotidiano dos territórios dos países pobres, onde, por “opção” dos governos nacionais, e o Brasil da virada do século é exemplo nítido, abdicam de tudo o que se refere ao “social” em nome da estabilidade da economia. Aliás, no Brasil dos governos Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1999-2002) as políticas de interesse social, ou seja, aquelas que pretendem subsidiar condições mínimas de dignidade da sociedade, foram vistas, na maioria das vezes, como irrealizáveis, tão distantes que estavam da agenda do governo.  

 

Ocorre a partir de então uma redução do Estado a tudo o que diz respeito à esfera social, aos serviços de interesse coletivo, aos bens públicos. Mais do que isso, ocorre o que Francisco de Oliveira (1997) aponta como sendo um processo de racionalização privada de toda a esfera pública, a confusão mesmo dos espíritos público e privado que no Brasil se aprofunda na década de 90. Nas palavras do autor,

 

Essa proposta reducionista é o conteúdo das reformas do Estado em curso: o Estado deve ter a mesma ‘rationale’ da empresa privada; retraindo seus efetivos quando a crise ordena; aplicando os mesmos critérios aos negócios (licitação de bens públicos, p.ex.), que uma empresa privada. Desnecessário dizer que tais tipos de propostas provém não apenas da empresa privada, mas da tradição norteamericana de indiferença entre a função pública e a função privada (...) (OLIVEIRA, 1997, p.13).

 

Nesse caminho, tudo o que é público e tudo o que diz respeito ao interesse da coletividade social é prejudicado, ao menos deixado em segundo plano. Valeria a pena dizer que, agora, são os interesses privados que ditam as regras, e estas se impõem ao patrimônio público e mesmo orientam as responsabilidades governamentais sobre a sociedade e o território. 

 

É assim que no Brasil, sobretudo a partir dos anos 90, o poder público em suas distintas esferas tem concedido ou privatizado uma série de serviços e de empresas fundamentais à nação como um todo (energia elétrica, telefonia, bancos, rodovias, etc), tornando o território usado vulnerável aos interesses de grandes grupos empresariais, no mais das vezes grandes grupos econômicos estrangeiros. A ideologia neoliberal funda uma verdadeira gestão neoliberal do território (PEREIRA, 2007), sendo o mesmo gerido/administrado tal como uma grande empresa, onde o lucro é seu objetivo primo. Desta forma, podemos pensar que o processo de privatização dos bens públicos, que na verdade é a dilapidação do patrimônio nacional, ocorre como a própria dissolução e total redução da esfera pública aos interesses privados (OLIVEIRA, 1997, p.3).

 

 

Operacionalização das políticas neoliberais no território: o exemplo recente dos mecanismos de Parceria Público-Privado

 

Como a ideologia neoliberal se transforma de intenção à ação? E para nós, numa análise que se pretende geográfica, como a ideologia e as políticas neoliberalistas tomam forma no espaço, como se materializam no território?

 

Francisco de Oliveira (1997) ensaia compreender como o neoliberalismo ao mesmo tempo se realiza na sociedade e transforma as suas práticas, induzindo a uma outra sociabilidade que, nos parece, reside sobretudo na valorização do indivíduo frente ao coletivo, do privado frente ao público e da razão do mercado frente à razão do Estado. O resultado desta sociabilidade agora forjada pela ideologia neoliberal e sua extensão a todos os campos da vida social já se apresenta através de indícios trágicos – um Estado que se volta para os interesses do mercado, a expansão da corrupção nos governos e na polícia, a fragmentação das grandes cidades em espaços seletivos e para grupos sociais específicos, a expansão da segurança privada, entre outros (OLIVEIRA, 1997).

 

Mas em se tratando de uma análise do espaço geográfico, a ideologia neoliberal torna-se conteúdo do território sobretudo a partir de uma série de novas normatizações que estabelecem, por exemplo, novos mecanismos de “parceria” entre o poder público e o capital privado para a implantação de novas infraestruturas territoriais de extrema importância para a sociedade brasileira. Um exemplo bastante expressivo é a denominada Parceria Público-Privado (PPP), que consiste em elemento normativo regulamentado pelo governo brasileiro que permite às empresas privadas, em conjunto com os governos estaduais e governo federal, empreenderem projetos de infra-estrutura ou o oferecimento de serviços coletivos no território nacional. Segundo Alberto Mawakdiye,

 

Tanto no âmbito federal quanto no estadual, o objetivo das PPPs é o mesmo: atrair a iniciativa privada para obras principalmente na área de transporte geral e metropolitano, segurança, educação, saúde, saneamento básico e habitação, para as quais não há recursos públicos disponíveis nem interesse de particulares em executá-las dentro do tradicional sistema de concessão. Uma modalidade híbrida de obra pública e concessão à iniciativa privada criada na Inglaterra de Margaret Thatcher, nos anos 1980 (...) (MAWAKDIYE, 2004, p.4).

 

Vale a pena destacar que, atualmente, boa parte das redes de infra-estrutura (rodovias, ferrovias, hidrovias, transporte coletivo, etc.), tanto as que já se encontram em implantação quanto as que constam dos planos plurianuais de investimentos dos governos de vários estados do Brasil e também do governo federal, estão sendo realizadas a partir de parcerias entre o capital público e o da iniciativa privada (vide Figura 1). 

 

 

 

 

No Brasil, o estado de Mato Grosso, na região Centro-Oeste, pode ser considerado o berço das parcerias público-privado. É no Mato Grosso do governador Blairo Maggi, cuja família é proprietária do maior grupo nacional voltado para a produção e comercialização de soja, que teve início em 2003 o chamado Consórcio Rodoviário, uma parceira público-privado que ainda não recebia este nome, visando a implantação de cerca de 400 km de rodovias pavimentadas e a recuperação de cerca de 8 mil km de estradas de terra (MAWAKDIYE, 2004, p.4), voltados essencialmente para a produção de soja e algodão que avançam a fronteira agrícola neste estado e que, em boa parte, atendem quase que exclusivamente aos interesses do Grupo Maggi.

 

É assim que a rede rodoviária moderna instalada no Estado do Mato Grosso é fruto, sobretudo, da demanda por uma fluidez no território requerida quase que exclusivamente pelos grandes produtores e empresas comercializadoras desta commodity de exportação. Boa parte das novas redes logísticas do território brasileiro voltadas para a exportação da soja produzida nas modernas fazendas do Brasil Central também são fruto de parcerias público-privado. Um exemplo é o caso da hidrovia Madeira-Amazonas, que transporta a soja produzida na Chapada dos Parecis (oeste do Mato Grosso e sul de Rondônia), dos terminais de Porto Velho (via BR-364 “Cuiabá – Porto Velho”) até Itacoatiara, no Amazonas, de onde as cargas são destinadas aos mercados europeu e asiático.

 

Assim, a viabilização da hidrovia do Madeira é exemplo típico de infra-estrutura que, apesar de constituída através de investimentos públicos e da iniciativa privada, o que num primeiro momento parece ser vantajoso para a nação, na verdade trata-se de uma vantagem que reside apenas para a acumulação de agentes muito específicos, não prestando aos interesses da economia e da sociedade como um todo no território.   “Regido por interesses de grandes grupos econômicos estrangeiros, como é o caso da Bunge, da Cargil e da ADM, e principalmente pelo grupo nacional André Maggi, o Estado brasileiro viabiliza a expansão da produção de soja para o mercado externo através da instalação de um sistema de engenharia moderno” (PEREIRA; KAHIL, 2006). Como não poderia deixar de ser, hoje, quem controla a logística das cargas na hidrovia Madeira-Amazonas é a Hermasa, mais uma das empresas do Grupo Maggi que atua na produção e comercialização da soja no país.

 

Atuando principalmente em obras novas, que atendem aos novos pólos e regiões da moderna produção, os investidores privados tornam-se potencialmente os novos exploradores comerciais destas infra-estruturas, sejam elas de interesse setorial ou para atender a demanda da sociedade como um todo. Aliás, as redes de infra-estruturas modernas de transporte (ferrovias, hidrovias, rodovias), implantadas através de investimentos público-privados, surgem, sobretudo, com o traçado de suas redes voltado para estas demandas da produção moderna, principalmente de commodities de exportação (soja), e na maioria das vezes o uso destas novas vias não contempla, por exemplo, o transporte de passageiros ou de cargas diferenciadas, ganhando estas novas infra-estruturas um caráter mono funcional, fato esse já demonstrado por Frederico (2004).  

 

No estado de São Paulo, “porção core” da região concentrada do território brasileiro (SANTOS; SILVEIRA, 2001), onde há maior densidade não só da população, mas da indústria e dos serviços modernos no território nacional (e também de boa parte dos investimentos externos que o Brasil tem recebido atualmente), é onde a lógica das Parceiras Público-Privado têm tomado maior expressão. Ainda que os investimentos de capital de origem público-privado no território brasileiro estejam distribuídos por todas as unidades da federação (vide Figura 1), o estado de São Paulo é o que mais concentra este tipo de investimento no país.

 

Também chama a atenção o grande número de investimentos público-privados no estado de São Paulo voltados para a infra-estrutura ferroviária. Dos doze investimentos público-privados que se encontravam em implantação ou então previstos até o ano de 2006, (Anuário Exame, 2006), nove são voltados para a infra-estrutura ferroviária (Figura 2). Este volume de investimentos de origem público-privado nas ferrovias no estado de São Paulo é maior do que o total dos demais investimentos de mesma natureza distribuídos pelo restante do país.

 

 

 

 

 

Um detalhe importante a ser lembrado é que, desde que a malha rodoviária federal foi privatizada no país, não existe no estado de São Paulo (que detém a maior parte da rede ferroviária brasileira) trens para o transporte de passageiros, alegando que este tipo de transporte é inviável por falta de arrecadação com o serviço. Boa parte dos rendimentos da América Latina Logística (ALL), atual operadora da malha ferroviária paulista, reside no transporte de grãos até o litoral paulista, de onde são embarcados para exportação.

 

Estas obras que agora se encontram em curso na rede ferroviária paulista são, em sua maioria, voltadas para a adequação deste sistema de engenharia às necessidades também da exportação de soja, no transporte de parte da produção que ocorre no Brasil central para o porto de Santos, litoral de São Paulo. A rede ferroviária que alcança a porção sul da região Centro-Oeste encontra dificuldades no escoamento da produção quando adentra o território paulista, justamente pela grande demanda do transporte de soja até o terminal de exportação em Santos. Por isso, parte da produção chega a ser escoada por vias fluviais que alcançam o rio Tietê, no interior de São Paulo, e também por meio do transporte rodoviário até Santos, sendo este último o tipo mais encarecedor dos fretes. Daí a necessidade de adequação da rede ferroviária em São Paulo para uma maior rapidez do escoamento da soja produzida na região Centro-Oeste, o que tem despertado o interesse dos investidores privados e também requerido atenção e investimento do poder público.

 

Tal como ocorre com a chamada “guerra fiscal”, em que estados e municípios promovem uma verdadeira corrida para isentar empresas do pagamento de impostos através de mecanismos normativos, em alguns casos extremamente elaborados, é importante pensarmos que através desta nova norma (as PPPs) também haverá certo acirramento entre as unidades da federação em elaborar os mecanismos que tornem diferentemente atrativo a alocação de investimentos em projetos realizados por meio de Parceiras Público-Privado. É também em São Paulo que uma diferenciação desta norma que estabelece as parcerias se deu de modo mais rápido. O Estado de São Paulo oferece maior viabilidade e mesmo a garantia de retorno dos investimentos realizados por meio destas parcerias em seu território, através da “Companhia Paulista de Parcerias”, tornando assim o território paulista mais atrativo para este tipo de investimento[1].   

 

É deste modo que o papel das normas é de extrema importância para a compreensão dos processos de operacionalização do projeto neoliberal no território brasileiro hoje – “A dimensão territorial da ideologia neoliberal deve ser compreendida, sobretudo, através da proliferação de normas territoriais que pretendem tornar as ações e compromissos do Estado cada vez mais ‘flexíveis’, ao mesmo tempo em que é (re)criada e facilitada a viabilidade da ação das empresas. Assim, as normas pautadas na ideologia neoliberal acabam por tornar rígidas as ações da sociedade no território, induzindo, concomitantemente, à constituição de um território cada vez mais orientado por interesses de mercado” (PEREIRA, 2007).

 

As novas redes de infra-estrutura tomam um traçado que responde apenas aos interesses da grande produção, do mercado externo e das empresas nacionais e estrangeiras que ditam o ritmo e as lógicas da produção agrícola moderna (veja-se o exemplo das ferrovias e hidrovias recentemente instaladas no Norte e Centro-Oeste do país), ainda que muitas destas obras sejam em boa parte financiadas pelo dinheiro público.

 

Estas políticas denunciam a natureza classista e a forma privilegiada das decisões do Estado na condução das políticas de instalação das grandes infraestruturas territoriais, muito pautadas no caráter falacioso da ‘flexibilidade’ que atestam isto sim, uma entrega facilitada do poder de regulação e do uso do território aos agentes hegemônicos da economia (PEREIRA; KAHIL, 2006).

 

Tal como pensado por Milton Santos, estas novas redes de infra-estrutura viabilizam usos do território brasileiro que na verdade o transformam num “território nacional da economia internacional”, visto que seus interesses não são aqueles da nação como um todo (SANTOS, 1997).

 

 

Uma lógica corporativa do uso do território no Brasil

 

Pensada como uma verdadeira “salvação”, quer seja para dotar com maior rapidez o território das infra-estruturas necessárias à produção moderna, ou mesmo para viabilizar a manutenção das grandes construtoras e empreiteiras “ociosas”, as chamadas Parcerias Público-Privado são mais uma manifestação do “pensamento único” (SANTOS, 2000) que se instala no território e na política dos países pobres neste período de dissolução da política endereçada ao social, ao coletivo e a tudo o que é público. Aliás, numa inversão dos valores, a própria lógica do mercado se metamorfoseia em política (SILVEIRA, 2002, p.16).

 

Um problema maior à nação é quando suas infra-estruturas territoriais realizam-se apenas em função dos interesses de determinados agentes, tal como parece ser o caso das novas obras que resultam dos investimentos público-privados no Brasil atual – o equipamento do território realiza-se apenas sob a lógica do lucro e do interesse de agentes seletos da economia hegemônica.

 

Um exemplo recente é o conteúdo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2007-2010, anunciado pelo Governo Federal brasileiro em janeiro de 2007, sobretudo no que diz respeito aos planos de expansão da infra-estrutura logística no território[2]. Ainda que o Programa atenda de forma louvável as regiões mais pobres do país (Norte e Nordeste), com maior destinação de recursos para estas regiões, a presença da Parceria Público-Privada, e mesmo da iniciativa privada através de concessionários, ainda imperam no Programa. Os incentivos às novas infra-estruturas de transportes delineados nos planos governamentais até 2010 estão pautados no fortalecimento de normas que regulam e ampliam as possibilidade de parcerias, concessões e PPPs. Ainda que a presença da iniciativa privada seja marcante, as obras serão, sobretudo, financiadas em boa parte com dinheiro público. Assim, os recursos públicos são voltados para o aumento da eficiência produtiva de áreas consolidadas e em vias de consolidação onde são explorados principalmente produtos agrícolas e minerais, mais uma vez atestando o caráter corporativo que toma o território brasileiro e as ações do poder público[3].

 

Resta-nos pensar quem atenderá às demais demandas da sociedade, sobretudo aquelas requeridas pela parcela mais pobre, que são fruto das ações produtivas que aparecem como residuais aos olhos do poder público, mas que ao mesmo tempo atuam como subsistência e amparo à grande parte da sociedade brasileira, tal como é o caso da produção agrícola e industrial não modernas, pouco intensas em capital, mas que empregam boa parte da mão-de-obra no país. Assim,

 

“As práticas claramente neoliberais, transcritas nos projetos de parcerias público-privado que os governos têm adotado, aderem ao território através da instalação dos sistemas de engenharia, dotando-o de fluidez e dando maior competitividade à produção com vistas ao mercado externo, mas contraditoriamente, acabam por constituir duras normas para o conjunto das ações” (PEREIRA; KAHIL, 2006).

 

A ideologia neoliberal e suas práticas correlatas de ação no próprio poder público desenham um território que a cada dia se torna mais corporativo e também fragmentado[4]. Corporativo porque voltado quase que exclusivamente para o uso e interesses particulares de seletos agentes privados. Fragmentado porque não permite uma integração vantajosa para a sociedade nacional. Embora o território brasileiro já tenha pontos interligados em todo o país, as lógicas das novas redes de infra-estrutura são extrovertidas, ou seja, com vistas ao mercado externo. Estas redes funcionam mais para os mercados que consomem nossas exportações do que para atender ao mercado interno, muitas vezes desarticulado.

 

A natureza das chamadas parcerias público-privado, por exemplo, denuncia mais uma vez o desvio de função do Estado brasileiro, que, voltado para os interesses da economia dominante, mantém o país numa divisão do trabalho historicamente caracterizada pela função de exportador de commodities, fato este que não se reverte em benefícios que sejam igualmente distribuídos à nação.

 

Como pensar propostas outras de uso do território através destas novas infra-estruturas territoriais visando garantir os interesses da sociedade como um todo? Se há interesse de empresas em dotar o território de infra-estruturas próprias à realização de suas atividades, utilizando-se de recursos públicos, por que a sociedade não pode fazer uso destas mesmas infra-estruturas em outras atividades? Há que se pensar, de forma conjunta, já que os investimentos são híbridos (públicos e privados), certa flexibilidade para o objetivo, construção e uso destes novos equipamentos territoriais.  

           

 

Considerações finais

 

Quais as conseqüências do neoliberalismo que ao longo de mais de trinta anos se instala no território brasileiro? Quais são as suas faces geográficas, sua materialização no território? Nosso trabalho teve a intenção de alertar para os aspectos geográficos que têm resultado desta lógica neoliberal de governo, sobretudo pelo exemplo das chamadas Parcerias Público-Privado no Brasil contemporâneo. 

 

À primeira vista, as Parcerias Público-Privado podem parecer vantajosas para o país e para os governos – maior rapidez e agilidade na construção das infra-estruturas, visto que ocorrem com a racionalidade e o modo de fazer do mercado; adequação do território à produção moderna, muitas vezes em regiões onde a densidade técnica do território é extremamente rarefeita ou mesmo nula; e uma economia de gastos para o poder público, já que os custos da obra serão em parte arcados pela iniciativa privada.

 

No entanto, se observarmos o mesmo fenômeno por outras lentes, constatamos que o Estado vai aos poucos entregando/repassando as suas funções ao mercado, e também funcionando a partir das suas lógicas, visto que as infra-estruturas territoriais fruto destas parcerias atendem somente aos interesses de grupos privados, sendo estes os principais interessados nestas obras, e o que aparenta ser economia para o poder público na verdade é recurso público gasto com interesses corporativos, que não atendem a sociedade como um todo. 

 

Se o poder público (em diferentes escalas) também é sócio ou “parceiro” destes empreendimentos, é justo que a sociedade como um todo possa fazer uso destas infra-estruturas para razões outras que não sejam àquelas endereçadas à lógica das empresas “Parceiras” no empreendimento. Estes outros usos devem ser previstos já dos contratos, podendo as sociedades locais discutirem, quando do início dos projetos, as alternativas de uso, a topologia dos traçados dessas novas redes de infra-estruturas e as possibilidades que elas possam trazer para uma integração do território que também seja pautada nos interesses da economia não hegemônica. Assim, os novos sistemas de engenharia fruto de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada teriam de “dialogar” com diferentes matrizes de uso do território, atendendo de forma mais plena a sociedade em suas múltiplas racionalidades, sem custos adicionais para as atividades econômicas de menor escala de abrangência e menos capitalizadas.

 

Como adverte Milton Santos,

 

A política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto. Ela apenas se realiza quando existe a consideração de todos e de tudo (2000, p.67).

 

Assim, este reforço de reconhecer as necessidades e a ação dos “outros” no território, ainda que esses não tenham o mesmo poder econômico das grandes empresas, se dará a partir do exercício pleno da política[5]. Aliás, a sociedade deveria ser ouvida, ao menos nas regiões que diretamente são afetadas por estes projetos, fazendo assim com que o lugar também tenha voz ativa nos planos de definição de seu próprio futuro[6].

 

O trabalho de conscientização e de esclarecimento da nação frente a estas novas normas e mecanismos elaborados para a manutenção do lucro e da acumulação pelos grandes agentes da economia se faz necessário, para que a nação se anime a pensar de forma democrática as novas políticas públicas que devam reger o país, as infra-estruturas territoriais necessárias ao desenvolvimento e à integração do território como um todo, etc. – enfim, um novo projeto nacional de que o Brasil tanto carece. Mais do que um problema, reverter o quadro do neoliberalismo no Brasil e nos países latino-americanos constitui o grande desafio que a sociedade terá de enfrentar neste início de século.

 

 

Referências:

 

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BECKER, Bertha; EGLER, Claudio. Brasil: uma nova potência regional na economia- mundo. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 267 p.

 

FREDERICO, Samuel. Sistemas de movimento no território brasileiro: os novos circuitos espaciais produtivos da soja. (Dissertação de Mestrado em Geografia). IG, UNICAMP. Campinas, 2004.

 

MAWAKDIYE, Alberto. Procuram-se parceiros: governo aposta nas PPPs para alavancar desenvolvimento. Problemas brasileiros. São Paulo, 2004, p.4-9.

 

MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo. De onde vem, para onde vai?. São Paulo: Editora Senac, 2001. 151 p.

 

MÜLLER, Mauro Marques. A transição ideológica para o neoliberalismo no Brasil contemporâneo (1979-1994). Revista do Centro de Ciências Humanas e Sociais. 2003. Santa Maria, V.16, n°1. p.21-32.

 

OLIVEIRA, Francisco. Formação do neoliberalismo no Brasil: a hegemonia e o totalitarismo. (Projeto de Pesquisa) 1997. (mimeo). 28 p.

 

PEREIRA, Mirlei Fachini Vicente. A Gestão neoliberal do território: normas e viabilidade territorial nas concessões do sistema rodoviário paulista. Geografia. 2007, Rio Claro (no prelo).

 

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SANTOS, Milton. Metrópole Corporativa Fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo/ Nobel, 1990. 157 p.

 

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 308 p.

 

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 174 p.

 

SANTOS, Milton; SILVEIRA, María Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. 471 p.

 

SILVEIRA, María Laura. Globalização, trabalho, cidades médias. GeoUERJ. Rio de Janeiro, n°11, 2002, p.11-17.  

 



Notas:

 

[1] “É de São Paulo que vem a principal novidade gerencial surgida até aqui nessa modalidade de parceria. O Estado, para garantir ao setor privado o retorno do capital aplicado, criou a Companhia Paulista de Parcerias (CPP), que irá gerir os recursos estatais reunidos para essa finalidade. ‘A CPP vai permitir a utilização de instrumentos mais variados de garantia, como a emissão de debêntures’, explica Andréa Calabi, secretário de Planejamento do Estado. ‘São Paulo será, por isso, uma das unidades da federação mais atrativas para as empresas que quiserem investir nessa modalidade de parceria’” (MAWAKDIYE, 2004, p.9). 

[2] No denominado PAC, estão previstos a instalação e adequações de infra-estruturas logísticas que contemplam mais de 45 mil km de rodovias, 2,5 mil km de ferrovias, 12 portos, 67 terminais hidroviários e 20 aeroportos (BRASIL, 2007). 

[3] Um projeto integrante do PAC exemplifica bem a lógica corporativa que norteia grande parte dos projetos constantes no Plano. Trata-se do novo contorno ferroviário em Araraquara, interior do estado de São Paulo, que prevê a substituição dos trilhos que cortam a área urbana da cidade e a instalação de um Terminal Intermodal que funcionará como um “Porto Seco”, sobretudo para facilitar o transporte da soja proveniente do Centro-Oeste, no novo corredor de exportação ferroviário entre Araraquara-Santos que então se delineia. As obras ficarão por conta da América Latina Logística (ALL), concessionária privada que explora a rede ferroviária, mas serão integralmente financiadas pelo governo federal. Uma empresa privada já foi designada para administrar o novo terminal e a prefeitura municipal já desapropriou uma área de 220 mil metros quadrados no município que foi doada para a construção do mesmo. 

[4] Milton Santos (1990) já utilizara os termos corporativo e fragmentado para designar a atual natureza do espaço na metrópole de São Paulo. 

[5] “Política no sentido já definido: a da reivindicação da parcela dos que não tem parcela, a da reivindicação da fala, que é, portanto, dissenso em relação aos que tem direito às parcelas, que é portanto, desentendimento em relação a como se reparte o todo, entre os que tem parcelas ou partes do todo e os que não tem nada” (OLIVEIRA, 1997, p.5). 

[6] “No México, as PPPs implantadas a partir de 1994 nas áreas de saúde, armazenamento, energia, transportes e saneamento receberam, de início, a aprovação de 60 por cento da população. No último levantamento, feito em 2001, o índice de satisfação havia caído para apenas 20 por cento (MAWAKDIYE, 2004, p.9). Ainda no México, os serviços públicos oferecidos a partir de infra-estruturas fruto de investimentos das parcerias público-privado acabaram em alguns casos por ocasionar piora da qualidade e também a monopolização da oferta de determinados serviços públicos por conglomerados transnacionais (MAWAKDIYE, 2004, p.9).  

 


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