IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

POR UMA CARTOGRAFIA DA RECICLAGEM

DE PORTO ALEGRE,  BRASIL: ECONOMIA INFORMAL,

DIMENSÃO SOCIOAMBIENTAL E CULTURAL

 

Diego Coletto

Università degli Studi di Milano

diego.coletto@unimi.it

 

Rosa Maris Rosado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

rosadomar.geo@gmail.com

 


 

 Resumo:

As reflexões propostas neste artigo se referem às práticas cotidianas dos catadores de lixo de Porto Alegre, partindo da descrição e interpretação da microestrutura das relações econômicas informais e analisando as práticas sociais que dela emergem. Tal abordagem permitiu tanto evidenciar os processos através dos quais estes atores sociais tentam reconstruir suas vidas no trabalho cotidiano com lixo, quanto as suas táticas buscando resistir a processos excludentes. A partir da análise empírica, observa-se dispositivos que parecem ser um tipo de resistência, que por meio das maneiras de organizarem-se no trabalho de formas singulares, os catadores vão estabelecendo redes a partir de seus territórios cotidianos, valorizando não somente os materiais que trabalham, mas reciclando suas próprias existências. Estas práticas cotidianas geram possibilidades interessantes de dialogo entre os aspectos da economia informal, aspectos socioambientais e os aspectos culturais da reciclagem de lixo.

 

Palavras-chaves: economia informal, cotidiano, catadores de lixo, desenvolvimento local.

 

Abstract:

The present paper describes some of the daily actions done by the scrap materials’ collectors in Porto Alegre, explaining micro-foundations of the informal economic relationships that characterises this economic ambient and analysing the social practices that support the economic transitions. The study focuses on the concrete situations where social actors operate, on the effects of the interactions among them, and on the continuous mixing of formal and informal factors in the actions’ structures. This approach emphasises the processes through which the social actors try for constructing again their life, withstanding the social and economic exclusion. In particular, the empirical evidence shows how social practices – and, especially, some forms of grassroots organisations – contribute to improve the living and working conditions of the scrap materials’ collectors, favoring the creation of unexpected conditions of social and economic development.

 

Key words: Informal economy; social practices; scrap materials’ collectors; local development; embeddedness.



 

A expressão “economia informal” - utilizada, pela primeira vez, por Keith Hart, em uma pesquisa sobre atividades econômicas urbanas, desenvolvidas por uma específica tribo na cidade de Accra, em Ghana (HART, 1973) - começa a indicar, em variados contextos, um conjunto heterogêneo de processos de produção, trocas de bens e serviços, que tendem a se afastar do setor formal da economia, por uma ou mais peculiaridades, quais sejam as normas do direito fiscal comercial, do trabalho e, em alguns casos, as regras de mercado e os interesses pelo lucros (BAGNASCO, 1986). De uma maneira geral, as abordagens teóricas e empíricas sobre o tema se sucederam ao longo dos anos, tentando traçar limites da economia informal que fossem claros e válidos em contextos sociais, políticos e econômicos muito diferentes entre si[1]. Critérios de definição não se conciliavam com a heterogeneidade e a complexidade que, pouco a pouco, a medida que a pesquisa empírica prosseguia, distinguiam a economia informal; da mesma forma, definições excessivamente amplas acabavam perdendo toda a sua capacidade analítica, agrupando sob uma mesma etiqueta um conjunto excessivamente heterogêneo de fenômenos. As dificuldades, ou a impossibilidade, de traçar limites claros da informalidade têm, além disso, evidenciado que “o mercado existe condicionado por diversas combinações específicas de sociabilidade e a sua estrutura é mediada pela reconstrução de vínculos de cooperação e organização por parte das instituições locais” (MINGIONE, 1997, pp. 24-25).

 

A heterogeneidade da economia informal tem tornado cada vez mais difícil e superficial a sua própria explicação por parte de uma única disciplina, ou seja, da economia. De fato, nem o paradigma parcimonioso do indivíduo isolado, movido exclusivamente pelo interesse material, nem uma visão estrutural da economia informal, como segmento de reprodução do modelo hegemônico de sociedade, conseguiram fornecer uma explicação convincente para a informalidade.

 

Do ponto de vista teórico, as incertezas, que tomaram a teoria econômica no que concerne a sua capacidade de dar conta da economia informal, têm apontado à necessidade de um intercâmbio entre as áreas do conhecimento. Este esforço de cooperação se traduziu, essencialmente, no uso de múltiplos instrumentos interpretativos provenientes das outras ciências sociais, de onde parte a análise das redes sociais como mecanismos geradores situados no nível da ação e, sobretudo, a constante referência ao tema do embeddedness (POLANYI, 1957), ou seja, a flexibilização da economia na sociedade.

 

Indo além das fronteiras de uma única disciplina, a pesquisa da economia informal saiu certamente enriquecida, ainda que a análise indutiva de fenômenos específicos que se reproduzem em contextos particulares poucas vezes permitiu um sucesso no processo de relativização que inicia com a constatação de por meio de fatos singulares pode-se chegar a afirmações gerais. Centrar a atenção em situações concretas do cotidiano em contextos particulares pode induzir o pesquisador a concentrar a análise exclusivamente no comportamento dos indivíduos (no nivel “micro”), perdendo de vista aquilo que se quer realmente explicar, vale dizer, o fenômeno enquanto unidade (ao nivel “macro”), que não deriva somente da soma dos comportamentos individuais, mas também, e sobretudo, das praticas cotidianas estabelecidas em tal agregação.

 

Levando em conta, os limites e os riscos deste tipo de análise, nos últimos anos, tem se utilizado um método de pesquisa empírica que desfruta plenamente de instrumentos provenientes das diversas disciplinas que tem aprofundado, ainda que parcialmente, o processo de conhecimento, deste fenômeno complexo que vai além do ponto de vista econômico e social. A evidência empírica fez emergir as contradições e a processualidade que caracterizam e diferenciam os múltiplos tipos de economia informal, abrindo a análise às potencialidades, normalmente inesperadas, que podem emergir da sua prática. A atenção, em particular, esteve freqüentemente, centrada nos recursos empregados pelos atores sociais nos diversos tipos de economia informal e nos modos diferentes com os quais utilizam recursos que são (ou podem ser) empregados para promover sua subsistência. No entanto, estas situações reforçam a existência de formas difusas de organização dos excluídos do circuito formal da economia, a formação de cooperativas e de associações e a importância das redes de relação na constituição destas formas organizacionais.

 

O emprego de trocas simbólicas (não econômicas) levanta novas questões relativas à interação em rede de relações em que se inserem os atores sociais e a possibilidade destes modificarem as suas estruturas, favorecendo novos efeitos emergentes. Isto nos permite dar ênfase a múltiplos caminhos para o desenvolvimento local. Portanto, seguindo este importante e promissor campo de pesquisa, buscamos aprofundar o conhecimento de um fenômeno singular da chamada economia informal - a atividade da catação de lixo[2] reciclável desenvolvida pelos catadores[3], em um contexto espacial especifico do Sul da América Latina, mais precisamente na realidade urbana de Porto Alegre/RS/Brasil.

 

Sustentabilidade: o contexto da reciclagem

 

A sustentabilidade, mesmo com todas as dificuldades de definição teórica e de atuação prática, parece ser o principal desafio da contemporaneidade, relativo às condições em responder uma pergunta ainda sem resposta: como sustentar a vida no nosso planeta? Um maior número de informações cientificas pertinentes em relação ao estado atual da Terra tem sido difundidas por fontes confiáveis: a maioria alerta a opinião pública e aos gestores públicos sobre os efeitos negativos derivados principalmente da assídua e cada vez mais difundida busca por um crescimento econômico ilimitado e incentivo ao consumo exacerbado. Atualmente, os dados mais alarmantes se referem ao aquecimento global e exaustão dos recursos energéticos utilizados que muitos especialistas prevêem possa ocorrer em poucas décadas, se o atual modo de consumo continuar manifestando-se[4].

 

Estes problemas e questionamentos que, até poucos anos atrás, diziam respeito a um número reduzido de pessoas mais sensibilizadas para as questões ecológicas e ativamente empenhadas no respeito às mesmas. Hoje, ao contrário, estas questões são preocupações ligadas, inclusive, ao desenvolvimento econômico, e a questão da sustentabilidade ambiental parece ter adquirido maior eco junto à opinião pública no nível global, tornando-se objeto de debate e escalando as posições mais altas nas agendas políticas dos mais importantes atores da governança global e nacional.

 

A difusão mais ampla – e mais fácil - da informação, no chamado por Santos de “meio técnico-cientifico informacional”, parece ter gerado uma profunda inquietação nos entendimentos, crenças e convicções sobre o estado da Terra. Este fato pode alterar o contexto econômico e social, mas de qualquer forma ainda é difícil avaliar até que ponto as novas e mais numerosas informações poderão influenciar as ações dos atores individuais e coletivos, favorecendo uma mudança na visão custo-benefício de cada ator, de forma que reforce a luta pela sustentabilidade planetária. Embora saiba-se que há necessidade de mudança é urgente, esta ainda parece ser uma estrada longa e difícil para a definição e aplicação de mecanismos em condições de reduzir as chamadas externalidades[5] sobre o ambiente, derivadas das ações individuais e coletivas.

 

A maior circulação da informação tem produzido, de certa forma, algumas ações concretas direcionadas à conciliação entre desenvolvimento econômico com a sustentabilidade planetária. Entre as medidas, a prática da reciclagem de lixo tem assumido grande relevância nos países industrialmente avançados, assim como nos ditos em fase inicial de industralização. O sonho ecologista dos objetos que renascem das suas próprias cinzas parece agora estar impulsionado também por interesses econômicos que crescem à medida que aumentam os custos das matérias primas em função da exaustão dos bens naturais. A introdução de novas tecnologias tem facilitado, e tornado economicamente sustentável, a possibilidade de reciclar uma gama cada vez maior de materiais.

 

A reciclagem de lixo tem, portanto assumido, nos últimos anos, dimensões muito diferentes de um contexto para o outro, fazendo emergir na sua atuação também alguns paradoxos. Por exemplo, é interessante observar como a política que promove a reciclagem do lixo tem recentemente recebido novo impulso por parte de muitos governos dos países industrializados. Neste sentido, a União Européia parece intencionada a assumir um papel de líder neste campo, assim como com relação ao tema do clima, promovendo intervenções inspiradas na idéia de promover o lixo a uma “mina de matérias primas”. Ainda que com diferenças notáveis entre os países no que diz respeito à promoção e difusão da coleta seletiva de lixo, registra-se uma tendência geral à prática de soluções inovadoras para o reuso e a reciclagem dos chamados materiais pós-consumo. Embora os discursos em prol do ambiente, muitos dos esforços parecem orientar-se ao reforço do interesse econômico pela reciclagem do nosso lixo. Exemplos pontuais são inúmeros e difusos, e fazem da coleta seletiva e da reciclagem de lixo uma das intervenções mais avançadas em termos de sustentabilidade e de aplicação de novas tecnologias para a “preservação do ambiente”.

 

Voltando o olhar pra a América Latina, mas especificamente para o Brasil, percebemos que a reciclagem[6] de lixo aparece em muitas realidades urbanas[7]. Entendendo a vida na Terra e seus limites, a “solução” a princípio seria fomentar a reciclagem, mas, no entanto, não se incentiva a redução da geração dos resíduos sólidos e a mudança nos hábitos de consumo. Observa-se neste contexto uma maior preocupação com coleta, tratamento e destinação final do lixo, o que possibilitou a criação de nichos de trabalho e de geração de renda para os setores mais pobres da população urbana, excluídos do mercado formal de trabalho. Este processo é relativamente recente no país, mas vem crescendo vertiginosamente nos últimos anos, entretanto, não somente na esteira do discurso do desenvolvimento sustentável, mas, sobretudo como forma local de adequação a globalização[8]. Entretanto, deve-se apontar que a reciclagem industrial por si só não reverte o quadro da degradação ambiental, bem como, o da desigualdade social os quais temos visualizado atualmente.

 

Observando um pouco mais de perto este contexto, damo-nos por conta de que tal prática freqüentemente está associada a aspectos econômicos e sociais contraditórios, entrecruzando objetivos ligados à questão ambiental, políticas sociais, formas de aproveitamento econômico, práticas econômicas de adequação a situações extremas decorrentes de processos excludentes.

 

 

Traçando o caminho: princípios metodológicos

 

Neste artigo sintetizamos alguns aspectos que emergiram da experiência de observação empírica, do tipo participante, por meio de narrativas. A observação participante é definida por Schwartz e Schwartz (1955 apud MINAYO, 1998) como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está em relação face a face com os observados, e ao participar da vida deles no seu cenário cultural, colhe dados. Assim o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por ele. Na observação participante dos locais selecionados concentrou-se o interesse não só na relação entre processo de trabalho dessas comunidades e alguns atores envolvidos neste processo, mas também as representações e significados atribuídos a estes vivenciados no cotidiano de trabalho com o lixo.

 

Como se origina o fenômeno da catação de material reciclável no Sul da América Latina? Quais são os processos que geram este entrelaçamento entre as dimensões econômica, sociambiental e cultural que, no seu aspecto unitário torna-se de difícil compreensão e avaliação? Para tentar responder, ainda que parcialmente, tais questões decidimos voltar o olhar à microfundação do próprio fenômeno, aos processos interativos que o geram e permitem a sua reprodução, assim como, as suas sementes de mudança. Conforme referimos anteriormente, a nossa atenção voltou-se principalmente aos atores sociais que operam em um contexto limitado no espaço urbano. Tecendo a análise, então, no nível “micro”, surgem indagações mais específicas que orientam o nosso percurso de pesquisa: Quais são as práticas cotidianas dos trabalhadores informais que sobrevivem “catando” lixo? Que as relações sociais tais atores estabelecem no seu dia a dia de trabalho com o lixo? Que significado assume as trocas econômicas informais cotidianas para quem as efetua? Mas sobretudo: quando, e de que forma, os recursos deste tipo de economia informal podem ser mobilizados para favorecer caminhos de desenvolvimento local e de emancipação social?

 

O ponto de vista dos atores sociais tornou-se, então, o tema central principalmente através da narração de casos específicos, de fatos miúdos, pequenos, geralmente “invisíveis” a primeira vista, mas densamente entrelaçados, buscando as singularidades e tentando captar a essência humana da reciclagem. O objetivo desta pesquisa empírica é não somente a descrição do fenômeno dos catadores em Porto Alegre, mas a busca por compreender a relevância e a combinação de vários fatores que vão formar a lógica da situação: a formação do habitus catador (BOURDIEU, 2000)- e o papel da interação social - a sociabilidade- no qual estão submersos os atores, assim como as táticas empregadas para resistir aos processos excludentes e que influenciam seu comportamento individual e coletivo.

 

No entanto, alertamos que não há qualquer ambição aqui no que diz respeito à construção de um paradigma interpretativo aplicável a qualquer contexto de catação de lixo, mas a tentativa de narrar este fenômeno complexo a partir da interação com seus protagonistas - os catadores. Há, então, uma clara renuncia a produção de uma teoria geral da informalidade, do ponto de vista econômico e social, mas há um objetivo mais modesto de trazer contribuições para compreensão de formas de economia informal em determinados contextos cotidianos da cidades.

 

Decidimos analisar tais fatores seguindo um esquema que prevê primeiro a introdução da figura do catador que, em modalidades diferentes, desenvolve o próprio trabalho individualmente; em um segundo momento, serão revelados alguns fatores que determinam a ação coletiva dos atores sociais que se organizam em formas associativas; enfim, na última parte, proporemos uma reflexão partindo de elementos emergentes da pesquisa empírica, focalizando a atenção nas relações entre economia informal, desenvolvimento econômico e aspectos socioambientais e culturais.

 

Catadores: estes agentes ambientais urbanos

 

Os catadores de materiais recicláveis, conscientes ou não, tem papel fundamental na re-inserção de materiais pós-consumo à cadeia de produção, realimentando-a, mas também contribuindo para a economia de energia e evitando a extração de bens naturais, sabidamente cada vez mais raros. Mas estes agentes ambientais urbanos seriam excluídos? A exclusão é um termo polissêmico e atualmente de uso muito polêmico no âmbito acadêmico, afinal pode referir-se a um conjunto muito diversificado de situações. Martins (1997) considera exclusão uma categoria imprecisa que pode levar a uma visão reducionista do problema, substituindo a idéia sociológica do processo de exclusão. Para este autor; “rigorosamente falando, não existe exclusão, existem contradições, vítimas de processos sociais, políticos, econômicos excludentes, existe, sim, o conflito no qual a vítima dos processos excludentes proclama seu inconformismo e seu mal-estar. As políticas atuais implicam na inclusão precária, instável e margina” (p.14).

 

Pensamos que não é possível considerar estes atores sociais como pessoas excluídas, já que desempenham um trabalho incorporado ao mercado e fazendo parte de uma cadeia produtiva em franca expansão-a da reciclagem de materiais pós-consumo, constituindo-se no elo mais frágil, estando, paradoxalmente, situado na base desta.

 

É pelas mãos dos catadores que, contraditoriamente, uma infinidade de materiais deixam de ser considerados lixo, e retornam ao ciclo de produção como matéria-prima, reduzindo os gastos das industrias, que, indiretamente, aumentam seus lucros. Através do trabalho destes homens e destas mulheres que estes materiais deixam de ser enterrados, aumentando a vida útil das áreas de destinação final (aterros sanitários) e, ainda, reduzindo a necessidade da extração de bens naturais não renováveis. O reconhecimento deste trabalho vem crescendo no Brasil nos últimos anos. Temos observado que os processos de organização dos catadores têm contribuído para este reconhecimento, garantindo-lhes espaços de participação em fóruns e debates sobre a temática dos resíduos sólidos, o que têm fortalecido a sue auto-estima. De acordo com a estimativa feita pelo próprio Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)[9], no Brasil, há cerca de dois milhões de catadores de materiais recicláveis atuando nas ruas, nos lixões e organizados em associações e cooperativas. Este novo movimento social urbano, formado no final da década de 90, organiza a luta pelos direitos desta categoria e tem conquistado cada vez mais espaço no cenário nacional.

 

Carrinheiros e carroceiros

 

O fenômeno da catação de lixo é cada vez mais visível, para quem tiver olhos para ver, em muitas grandes cidades da América Latina e do Brasil, entre as quais Porto Alegre, a cidade dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, não é exceção. Estima-se a existência de cerca de 7 mil catadores avulsos[10] que atuam nas ruas da cidade e, ainda, cerca de 700 catadores organizados em associações.

 

Ao longo de suas estreitas e onduladas vias públicas os catadores conduzem os seus carrinhos, recuperando material reciclável nos fundos dos estabelecimentos comerciais ou nas portarias dos grandes edifícios ou, ainda, nas calçadas, onde a população deposita sacos de plástico contendo lixo. As ruas são percorridas - desde as primeiras luzes da manhã até o final da noite - pelos carrinheiros (catadores que, com a própria força, puxam os carinhos, normalmente de metal no qual transportam os resíduos coletados), mas também por carroceiros (catadores que usam carroças movidas a cavalo).

 

Os primeiros momentos de observação evidenciaram, por exemplo, como na capital do Rio Grande do Sul os carrinheiros ocupam as ruas do centro praticamente durante todo o dia, enquanto os carroceiros estão presentes nas primeiras horas da manhã e no final do dia (a partir das 19 horas). Cotidianamente, ao longo da ponte do Guaíba, é fácil encontrar verdadeiras procissões de carroças: aquelas cheias de materiais que se dirigem lentamente até as ilhas, enquanto aquelas vazias, mais ágeis, voltam ao centro da cidade. Os meios utilizados pelos catadores podem ser variados: os carrinhos são, normalmente, muito similares entre eles, enquanto as carroças variam muito. Algumas destas, de fato, são construídas completamente em madeira, outras em ferro, outras ainda têm a parte traseira subdividida em diversos compartimentos onde podem ser colocados os diferentes tipos de materiais; muitas, ainda, têm uma série de ganchos que permitem aos condutores pendurar muitos sacos plásticos nos seus lados, de forma que aumente a capacidade de carga, muitas vezes negligenciando a segurança da condução do veículo na via pública.

 

Após a observação seguiram-se contatos mais diretos com os catadores ocorridos, inicialmente, através da intermediação de organizações e assessores técnicos que operam no contexto urbano, freqüentemente, em âmbitos diferentes e algumas vezes não ligados estritamente à atividade de reciclagem de lixo urbano. As entrevistas com os papeleiros se repetiram, assumindo formas distintas: encontros repetidos com as mesmas pessoas se alternaram com conversas mais breves, desenvolvidas durante a atividade ou “roubadas” durante as paradas para descanso. De tal forma, com o transcorrer dos dias, emergiram sempre mais elementos relativos às condições de vida e de trabalho dos catadores de lixo, aos suas histórias profissionais e às convenções sociais que influem nas suas práticas cotidianas, prestando particular atenção às relações sociais as quais participam.

 

Em geral, a atividade desenvolvida por estes atores sociais parece distinguir-se por um alto nível de incerteza, ligado, sobretudo, às precárias condições de trabalho e de vida dos sujeitos, além das peculiaridades características do mercado flexível de lixo reciclável (essencialmente, alta fragmentação e competitividade entre quem recolhe o lixo; alta concentração e menor competição entre quem compra e recicla o lixo). A situação de precariedade econômica e social dos catadores parece estar acompanhada por um estado de forte segregação social, no qual a insegurança do “dia de amanhã” chega ser permanente.

 

Um elemento comum a muitos destes atores é, acima de tudo, a extrema heterogeneidade dos seus históricos profissionais. Os catadores que desenvolvem desde muito tempo esta atividade não são muitos: é mais freqüente escutar histórias de percursos profissionais fragmentados, caracterizadas pela passagem, quase frenética, de uma atividade a outra. Trata-se, acima de tudo, de trabalhos que não requererem uma formação profissional especifica, pertencentes, sobretudo à esfera da informalidade, mas também, em alguns casos, à esfera da economia formal.

 

Entre estes atores sociais, traços comuns se alternam com as diferenças, também significativas, que, freqüentemente, dizem respeito a diversas esferas da vida, como, por exemplo, o modo de organizar a atividade econômica e as condições de vida e de trabalho dos catadores: carrinheiros e carroceiros. Para estes últimos, o uso da locomoção animal parece ser um elemento importante na determinação da organização do trabalho e, pelo menos parcialmente, os resultados, sendo visto como uma forma de “ascensão social” dentro da categoria.

 

Os carroceiros têm condições de fazer várias viagens durante o dia e então recolher uma quantidade maior de material em relação aos carrinheiros. Aproveitando a força do cavalo, estes trabalhadores informais podem trazer mais lixo para a sua própria casa que se transforma em um depósito no qual realiza-se a triagem do reciclável recolhido. Podem realizar a atividade de separação em um segundo momento (geralmente durante o dia sucessivo) e, conseqüentemente, podem recolher também o lixo não separado na origem, no entanto este apresenta, em geral, menor valor na venda. Geralmente, quanto maior quantidade de material recolhido, quase sempre, maior será a renda obtida: ainda que a variabilidade distingue os ganhos diários, tanto dos carrinheiros, quanto dos carroceiros. Os ganhos dos carroceiros parecem ser significativamente superiores. Um carrinheiro, em média, ganha mensalmente aproximadamente R$ 240,00 enquanto um carroceiro chega perto dos R$ 600,00. Há comparativamente um maior ganho econômico dos carroceiros, porém, há maiores custos, que correspondem, sobretudo ligados aos cuidados com o cavalo.

 

O gerador

 

Todos os carroceiros e carrinheiros com os quais conversamos afirmam visitar habitualmente fornecedores muito restritos, que podem ser tanto residências privadas, quanto estabelecimentos comerciais ou zeladores e faxineiros de escritórios e grandes condomínios. A criação de uma rede de relações interpessoais não muito ampla e “fiel” permite aos papeleiros utilizar, de maneira mais rentável, os seus próprios recursos, reduzindo o risco de chegar no final do dia sem ter recolhido lixo reciclável suficiente para seu sustento e de sua família. As singularidades das redes de fornecedores de lixo reciclável parecem influir significativamente também no ganho dos catadores.

 

Os catadores contribuem para a fidelidade dos fornecedores buscando adequar o mais possível o serviço de coleta às exigências do “cliente”. Normalmente, quem fornece o material reciclável estabelece o dia e a hora da retirada e, muitas vezes, não faz uma triagem do lixo, delegando-a aos carroceiros que, como já foi dito, têm maiores possibilidades em relação aos carrinheiros de usar a sua própria casa para separar o lixo recolhido (no entanto o fato pode acarretar problemas ambientais em função da disposição inadequada de resíduos orgânicos, que trazem para junto de suas casas vetores de doenças). A possibilidade de recolher maiores quantidades de material nem sempre, porém, incentiva uma segregação mais cuidadosa do lixo, nem mesmo por parte dos carroceiros, de forma que o material reciclável com menor valor é também abandonado prejudicando a eficácia e eficiência da gestão de resíduos.

 

Para adequar o itinerário de recolhimento os catadores levam em conta as exigências dos próprios fornecedores, evidenciando, de certa forma, uma significativa adaptabilidade do serviço fornecido pelos trabalhadores e trabalhadoras informais. Tal adaptabilidade contrasta, em muitos aspectos, com a não adaptabilidade do serviço de coleta seletiva oferecido pelo Departamento de Limpeza Urbana do município de Porto Alegre (DMLU): para este é o gerador quem de fato deve se adequar às exigências - ditadas pelo órgão principalmente em termos da sua sustentação econômica. De uma maneira geral, os acordos informais que ligam catadores a geradores de lixo reciclável contribuem com a constituição de uma contra-ordem social, ainda que parcial e instável, na qual os catadores de lixo desenvolvem, com maiores garantias, as suas atividades, favorecendo sua ocorrência na contra-mão da coleta institucionalizada e regulamentada pelo poder público local. As relações de confiança que limitam o elevado grau de incerteza da atividade informal dos catadores não se acabam, porém na relação entre catadores e geradores de lixo.

 

O atravessador

 

Ligações de confiança, às vezes, de difícil compreensão, unem os catadores também aos, assim chamados, atravessadores. Do ponto de vista empírico, estes pequenos empreendedores, na maior parte informais, compram o material reciclável dos catadores (tanto os trabalhadores individuais, quanto os grupos organizados em associações, como veremos mais adiante), usam uma tecnologia de base para realizar as operações de peso e redução de volume (prensando o material e dando-lhe a forma fardos). Alcançada uma determinada quantidade, revendem o material aos intermediários maiores que vendem diretamente às indústrias que o transformam e o utilizam nos seus processos produtivos. As indústrias de reciclagem presentes no Estado do Rio Grande do Sul não são muitas e, na maior parte dos casos, tratam-se de empresas de média e grandes dimensões regularmente registradas[11].

 

Nesta cadeia de produção, o intermediário desenvolve o importante papel de ligação entre a informalidade e o setor formal da economia, quase como uma interface entre os dois tipos de economia, mas é ao mesmo tempo permeável à estas duas dimensões. Nesta interface o material adquire um maior valor econômico, tornando-se, para o próprio  intermediário, não somente fonte de subsistência, mas seguidamente também fonte de significativos ganhos econômicos. O atravessador compra o material dos catadores em dinheiro, enquanto, normalmente, antes de vendê-lo, espera armazenar uma quantidade considerável de lixo reciclável, de forma que possa ter maior poder de barganha nas transações com intermediários maiores. Para obter sucesso com tal estratégia, o atravessador deve ter uma certa disponibilidade de recursos financeiros, além de grandes espaços cobertos onde possa armazenar o material[12] e equipamentos, entre os quais prensas e balanças, para poder efetuar com um mínimo de eficácia as operações de estocagem.

 

Para recuperar a maior quantidade possível de resíduos sólidos urbanos e para reduzir os custos de controle da qualidade do material, os atravessadores podem contar com a força de trabalho de um significativo número de carrinheiros, aos quais emprestam os carrinhos, e normalmente pedem em contrapartida a certeza de que o material não seja vendido a outros. Tal relação de dependência econômica é reforçada pelo fato que, freqüentemente, o atravessador dá crédito aos catadores em dificuldade e, em alguns casos, fornece a eles um lugar (barraco) no qual possam separar o lixo recolhido, consertar o próprio carrinho e também pernoitar. Para muitos catadores de lixo vindos do interior do Estado e jogados a própria sorte nas grandes cidades pela miséria e pela necessidade de encontrar um trabalho, o atravessador transforma-se em uma espécie de “empregador” do qual dependem não apenas economicamente. Em certos casos, a esta relação parece se transformar em uma “armadilha” difícil de escapar para a parte mais frágil, isto é, os catadores. Os traços negativos que caracterizam as trocas entre atravessadores e catadores são claramente percebidos por estes últimos, ainda que, nas suas representações, perceba-se, em muitos casos, os aspectos contraditórios. Muitos dos carrinheiros e carroceiros reconhecem o excessivo poder contratual de que dispõem os atravessadores; por outro lado, porém, este representa para eles a única pessoa disposta a intervir, de maneira imediata e eficaz, para remediar as situações precárias e difíceis que, não raramente, se apresentam no seu cotidiano.

 

O alto grau de dependência que se estabelece é certamente favorecido pela posição desvantajosa que os catadores, mas também pela desagregação social que parece caracterizar sua vida. Com laços sociais precários e, em geral, com um forte sentimento de desconfiança em relação ao outro, que trabalham individualmente, argumentando preservar suas “liberdades”. A condição de privação e as reduzidas possibilidades de escolha que os afetam cotidianamente a ação destes catadores não parecem ter reduzido o valor por eles dado a tal sentimento de “liberdade”. Em muitos casos, a corajosa defesa da própria independência se traduz na preferência em relação ao agir individual, alimentando a competição entre os catadores que atuam individualmente e os que atuam em associações vinculadas a coleta seletiva formal.

 

A realidade associativa

 

Em Porto Alegre, além dos carroceiros e carrinheiros que trabalham individualmente, há associações de catadores, que são entidades “autônomas”, com constituição histórica diversa, sendo que cada associação constitui um universo à parte, com características próprias e especificidades. Seu desenvolvimento como comunidade organizada também apresenta diferenças bem acentuadas e, portanto, diferentes trajetórias de crescimento enquanto organização autônoma e em termos de sustentabilidade do empreendimento coletivo. As primeiras se formaram vinculadas ao Programa Municipal de Coleta Seletiva se constituíram a partir da organização de grupos de catadores do Antigo Lixão da Zona Norte. Neste local havia centenas de catadores sobrevivendo, em condições subumanas, dos resíduos dispostos inadequadamente. O Programa de Coleta Seletiva dos resíduos sólidos domiciliares foi implantado na cidade em 1990, através do DMLU. Iniciando no bairro Bonfim, e depois se expandindo para os demais bairros da cidade, o programa já chegou a recolher diariamente cerca de 70 toneladas de resíduos recicláveis. Atualmente, a Coleta Seletiva encaminha materiais as 13 associações distribuídas nas diferentes regiões da cidade, reduzindo o volume de resíduos destinados aos aterros sanitários.

 

A observação em profundidade evidenciou como a mesma atividade pode trazer na sua prática cotidiana diferenças bem marcantes que contribuem para tornar mais complexa a descrição da realidade dos catadores na cidade de Porto Alegre. Aspectos distintos podem ser encontrados na organização do trabalho das diversas associações observadas, entretanto há algumas similaridades. A maior parte das horas trabalhadas se desenvolvem dentro do galpão da associação, já que a maioria das associações firma acordo com o DMLU com relação ao número de cargas a receber diariamente, parte do material reciclável recolhido pelo serviço oficial de coleta seletiva gerido pelo município. Em cada associação os horários e a organização do trabalho, incluída a distribuição das tarefas, são decididos durante reuniões que ocorrem geralmente durante horário de trabalho. O processo de decisão é de tipo “participativo”, ainda que, na prática, há enorme influencia da necessidade da logística da coleta seletiva nas decisões do grupo. O material triado é vendido, geralmente,  a cada 15 dias e o valor arrecadado pela venda é dividido de forma eqüitativa entre todos os catadores e catadoras que trabalharam naquele período. Os comportamentos no interior das associações são regulados por uma série de astúcias que se baseiam no princípio da reciprocidade: essencialmente, quem não manifesta uma propensão ao “trabalho coletivo e solidário” não é aceito na associação.

 

De uma maneira geral, a “solidariedade”, de diferentes formas, parece ser um elemento comum nas narrativas dos catadores visando construir uma determinada ordem social no interior de cada associação. Tal solidariedade é promovida e construída através de práticas cotidianas e estratégias de ação que podem ser ainda muito diferentes entre si. Por exemplo, o fator coesão em algumas associações é construído “de baixo” e a sua forma parece decididamente mutável e de contornos pouco definidos; em outras, ao contrário, tal “solidariedade” assume esta uma forma inspirada em uma ideologia bem precisa, entretanto é essencialmente concebida e efetivada “de cima”.Em geral, parece de qualquer forma prevalecer o respeito às escolhas e aos interesses individuais, ainda quando estes possam representar obstáculos ou mesmo afetar a produção coletiva.

 

Quando há dois turnos o trabalho de oito horas cada um, em cada área trabalha em grupo. Em geral, realizam  reuniões, com periodicidades diversas, para discutir os eventuais problemas surgidos e para buscar a melhoraria alguns dos processos, de forma que ocorra o aumento da produtividade. As entradas derivadas da venda do material reciclável ao intermediário são pagas mensalmente, de forma igualitária entre os associados, respeitando a proporção das horas trabalhadas. Em um dos casos, há um diferencial maior a quem desenvolve as atividades de coordenação, o que provoca certa polêmica com relação às demais associações.

 

Múltiplas dimensões da catação nas associações

 

Os interesses e motivações que levaram estes catadores a agir coletivamente, ao invés de individualmente, parecem ser múltiplos e variados, ainda no interior de um mesmo grupo. O interesse econômico - entendido exclusivamente como interesse para geração de renda para sua subsistência e de sua família - não é a única dimensão que influi nas escolhas destes atores sociais e, mesmo presente, esta dimensão não aparece isolada e preponderante sobre as outras dimensões. Se, por um lado, trabalhar em uma associação parece garantir melhores condições de trabalho do que o trabalho realizado individualmente, por outro lado, o montante das quotas individuais, distribuído aos membros das diferentes associações observadas, é em média inferior aos rendimentos registrados por quem trabalha sozinho. As diferenças econômicas são variáveis de acordo com o período e a forma como cada associação se organiza, as entradas mensais variam de R$ 120 a 500. Entretanto, como notamos anteriormente, também os rendimentos médios dos carrinheiros e carroceiros se caracterizam por uma notável variabilidade, mas tendem a oscilar entre valores médios maiores (vão de R$ 600 mensais, expressão do rendimento máximo obtido por um carroceiro, aos R$ 130-150 mensais de um carrinheiro). A maior ou menor propensão ao risco não parece, porém explicar de maneira satisfatória as escolhas dos catadores ao trabalho individualizado ou coletivo. Neste específico âmbito da economia informal, são de fato muitos os aspectos que intervém tanto na determinação das escolhas, como no sucesso das transações por eles empreendidas.

 

Muitos dos catadores, empenhados nas associações visitadas, expressaram contentamento no que tange os benefícios materiais e imateriais que derivam das suas práticas cotidianas de trabalho com o lixo fazendo parte de um grupo. Tais benefícios parecem reduzir a incerteza e os riscos ligados ao trabalho e a vida de catador.

 

A renúncia da independência e da “liberdade” que proporcionam o trabalho por conta própria é, freqüentemente, trocada por benefícios[13] materiais que, em certos grupos, podem assumir dimensões e continuidades relevantes, por o contexto de pobreza e da sazonalidade do consumo. Os bens simbólicos ligados ao pertencimento a um grupo não são todos quantificáveis, sendo alguns deles imateriais. O pertencimento a uma associação para muitos catadores, cuja existência é marcada pela pobreza e extrema exclusão social, torna-se o primeiro passo de um processo de reconstrução tanto da confiança em si mesmo, quanto no outro. As formas de ajuda recíproca que nascem e se consolidam no interior destes grupos de atores sociais favorecem um processo de articulação em redes de relações sociais cada vez mais amplas e estabelecidas entre sujeitos cuja existência parecia, em certos casos, estar caracterizada de modo permanente pela ruptura das relações sociais.

 

Tal processo não é de qualquer forma linear e os avanços e recuos ocorrem: muitos são os fatores internos e externos que podem influenciar as práticas cotidianas dos catadores e o êxito de suas estratégias de ação. O estudo do cotidiano destes catadores evidencia bem o estado ainda frágil e instável das garantias ligadas ao pertencimento a um determinado grupo. As experiências de vida com freqüência carregam eventos trágicos do passado, que continuam a ter um peso importante na definição dos percursos de ação individual e coletiva, alimentam, no caso de muitos catadores, um forte sentido de desconfiança em si mesmos e em relação aos outros o que torna ainda mais difícil a criação de formas alternativas de relacionar-se.

 

Apesar das incertezas e dificuldades ainda presentes nas distintas realidades das associações dos catadores de Porto Alegre, os efeitos emergentes, derivados das práticas cotidianas de tais grupos parecem favorecer alguns processos de mudança que podem ir além das realidades associativas. Mesmo conservando um grau elevado de heterogeneidade, as associações de catadores de lixo conseguiram lançar mão de uma base comum sobre a qual podem construir uma forma mais ampla de representação dos seus interesses, isto é, a Federação das Associações dos Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul (FARRGS). Esta federação procura facilitar a troca de informações e o conhecimento entre as diversas associações que aderem à mesma, favorecendo uma maior difusão da confiança interpessoal presente no interior de cada grupo e a realização de relações de cooperação que vão além de simples agregados de catadores. Apesar dos obstáculos, a FARRGS, durante certos períodos, conseguiu dar maior visibilidade às associações, promovendo um processo de legitimação que, combinado a outros fatores (quais sejam, uma maior atenção à questão ambiental), parece ter sido favorecida em um determinado período por uma abordagem diferenciada do poder político local a esta particular forma de economia informal, em certos aspectos fora do padrão geral[14].

 

Este tipo de interação entre as partes promoveu a atuação de novas formas de “colaboração”, que com todas as suas contradições, representou avanços nas organizações dos catadores. Os fatores mais favoráveis à mudança parecem nas práticas cotidianas das organizações de catadores, que buscam ir além da mera sobrevivência. De tal forma, a ação das associações dos catadores contribuiu para dissociar a imagem do catador de lixo daquele sobrevive graças às políticas assistencialistas. As associações dos catadores tornaram-se vozes junto as autoridades políticas locais que em determinados períodos, mesmo com todas as dificuldades, iniciou um diálogo com estes atores sociais que trabalham neste âmbito da informalidade. O catador de fardo e perigo para a sociedade e para a ordem socialmente dominante parece tornar-se, com barreiras a serem superadas, um ator que pode participar de forma ativa tanto para a melhora das próprias condições de vida, quanto para repensar uma política de coleta seletiva de resíduos urbanos que concilie de maneira mais eficaz, as suas múltiplas dimensões, econômica, socioambiental e cultural.

 

Alguns pontos a serem aprofundados

 

Observar participando e interagindo face a face com os catadores de Porto Alegre, fez emergir a reflexão sobre realidade social que contem no seu interior uma grande heterogeneidade. A análise deste tipo de economia informal, de um lado, confirmou a existência de fatores que contribuem para a construção de uma imagem unidimensional e estereotipada do catador, que se torna símbolo de uma condição de desagregação social, exclusão e marginalização. Por outro lado, nos permitiu desvelar as estratégias de ação adotadas pelos catadores para resistir, além de sua desvantagem econômica, simultaneamente, na luta pela própria subsistência e pelos direitos cidadãos. Mas, a respeito das suas práticas cotidianas, trouxe também a tona as singularidades e espeficidades de combinações de estratégias de ação e fatores externos que levam a surpreendentes possibilidades de luta contra os processos excludentes.

 

Em geral, a estrutura do mercado de reciclagem não parece colocar nenhuma condição favorável ao desenvolvimento econômico local, nem a integração dos catadores. Neste contexto econômico, situações de exclusão e de insegurança se perpetuam, acentuando o status de “náufragos do desenvolvimento” (LATOUCHE, 1993) que coloca estes protagonistas do “circuito inferior” da economia (SANTOS, 1975). Mesmo quando o mercado parece prevalecer como forma de regulação, estes atores sociais não agem como indivíduos isolados, mas, ao contrário, articulam frágeis redes de relações, um fator determinante para limitar a incerteza no que diz respeito a atividade da catação.

 

É necessário o aprofundamento de pesquisa sobre estas relações sociais que envolvem os catadores, sobre aspectos demonstrados nos quais baseiam-se tais relações e o significado que essas assumem para as pessoas que delas participam, as funções e o grau de fruição das mesmas. Destas análises, os elementos mais interessantes e, por vários aspectos, mais “promissores” emergem das formas de associativismo vivenciadas pelos catadores no contexto urbano. A participação em associações não é explicada somente por razões “econômicas”, mas também por razões múltiplas: através dos grupos organizados, de fato, os “informais” tiveram acesso a uma série de benefícios que lhes asseguram no mínimo o “estar junto”, apesar da baixa renda. Fazer parte de uma realidade associativa parece reduzir o risco “de cair mais e mais para baixo”, concedendo aos catadores de lixo uma série de “proteções próximas” (CASTEL, 2004) e aquela estabilidade, ainda que mínima, que parece faltar aos quando trabalham individualmente. Esta participação inicialmente impulsionada por uma necessidade de “reconhecimento interno”, em certos casos, redefiniu-se para outros tipos de reivindicações entre as quais a necessidade de um “reconhecimento externo” (PIZZORNO, 2001).

 

Estes grupos organizados desenvolveram, de tal modo, uma capacidade mais concretas de voz coletiva (HIRSCHMAN, 1970), o que contribuiu para avançar, no restante da população, uma atitude de menos ceticismo no que diz respeito as suas potencialidades e a profunda reflexão acerca do modo de consumo que a atividade que desempenha traz consigo. Canclini (1996), sociólogo mexicano, aponta que o maior acesso aos bens materiais e simbólicos é resultado do processo de abertura das fronteiras nacionais, “não vem junto a um exercício global e pleno da cidadania” (p. 30), porque o processo de globalização vem sendo acompanhado de um crescente desinteresse pelo espaço público e, conseqüentemente, pela participação política.

 

As associações observadas, ainda que de maneira e intensidades diferentes, tornam-se assim “organizações sociais adaptáveis” (COLEMAN, 2005, p. 400), isto é, as identidades coletivas, criadas para neste espaços contribuem também para outros aspectos, “vindo assim constituir o capital social[15] que pode ser empregado” (p. 401). A evidência mostra que certas associações de catadores não se limitam a trabalhos de auto-regulação: mesmo fixando limites externos para se distinguir de quem trabalha de maneira independente, elas não se recusam ao encontro com quem está nas fronteiras do seu território. Esta propensão ao diálogo se manifestou, antes de mais nada, entre as associações de catadores e contribuiu para criar uma identidade mais articulada, a FARRGS. Por meio da atividade de mediação e de representação dos interesses da categoria, assumiu, pelo menos em certos períodos, o papel de interlocutora reconhecida pela autoridade pública local e pelos atores econômicos formais, que operam no mercado dos resíduos recicláveis urbanos. Este reconhecimento legitimou o papel das associações que fazem parte desta federação, como instrumento fundamental para catadores participarem na esfera da política.

 

Diante da complexidade do universo da catação, procurou-se desenvolver neste artigo uma abordagem de análise, propondo uma leitura mais ampla desta realidade, para além da geração de renda (dimensão econômica), incorporando os laços sociais entre os catadores e sentimento de pertencimento ao grupo e representações de si mesmos emanadas do trabalho com o lixo (dimensão socioambiental e cultural). Após refletir sobre as diferentes as possibilidades de análise, vislumbramos uma perspectiva integradora, que congregue as múltiplas dimensões desta realidade social, como a capaz de evidenciar a riqueza desta cartografia da reciclagem que se manifesta na aparente pobreza do cotidiano de trabalho com o lixo.

 

 



Notas:

 

[1]Em tal sentido, o dualismo setor formal/informal utilizado principalmente pela Organização Internacional do Trabalho, no início dos anos setenta, pode talvez ser considerada uma tentativa de definição única do conceito economia informal, aquela que talvez teve mais sucesso (ILO, 1972). Por diversos aspetos, um outro dualismo que contribuiu com a visibilidade da economia informal é aquele entre legalidade e ilegalidade, utilizado na metade dos anos oitenta pelo economista peruano Hernando de Soto (1989). Para um resumo sobre economia informal, veja Lautier (2004) e Portes, Castells, Benton (1989).

 

[2]Embora o nome tecnicamente correto seja resíduos sólidos optamos por nos referir ao lixo, por considerar relevante não esquecermos da relação que temos com nossos resíduos do dia a dia e conteúdo pejorativo que o termo carrega.

 

[3]Diferentes são os termos usados, em toda a América Latina, para indicar aquelas pessoas que recolhem lixo reciclável: pepenadores no México, cartoneros na Argentina, moscas no Peru. No Brasil, são denominados catadores enquanto papeleiros são aqueles que recolhem somente material em papel. Neste artigo, o termo catador será usado por ser esta a forma como se auto-denominam. No entanto é por comodidade que se usará a desinência masculina do termo para indicar a categoria de trabalhadores e trabalhadoras em geral; embora se faz necessário destacar, que, no caso da realidade observada nas associações de catadores, as pessoas empenhadas em tal atividade são, na sua maior parte, do gênero feminino.

 

[4]Entre os documentos mais recentes e significativos relativos a saude de nosso planeta, se assinala o Geo Year Book 2007, elaborado pelo Programa para o ambiente das Nações Unidas (Unep). O relatório evidencia as conexões entre a saúde dos ecossistemas, o bem estar da espécie humana e o desenvolvimento econômico; analisa uma nova linha de pensamento sobre o valor das funções dos ecossistemas e a ameaça da degradação planetária; e descreve conclusões recentes de pesquisa que deveriam incidir sobre as decisões políticas para uma mudança mundial.

 

[5]O termo econômico externalidades reflete bem a visão predominante até então de que o ser humano (a sociedade) é separada da natureza (externo a ela), o que se refletiu sobremaneira na degradação ambiental que vivenciamos hoje.

 

[6]Aqui o emprego do termo reciclagem, assume um outro significado, mesmo sabendo que tecnicamente não se refere somente a triagem dos resíduos, mas envolve todos os procedimentos desde a segregação na origem até as transformações estruturais dos materiais que incluem a lavagem, fundição, extrusão, etc; passamos a utilizá-lo referindo-nos a catação a fim de reafirmar a relevância do papel dos catadores neste processo como um todo.

 

[7]Mas, em particular, desde os anos noventa que tais eventos iniciam e incluem sessões inteiramente dedicadas ao chamado desenvolvimento sustentável e as práticas para atuá-lo (entre as quais a reciclagem do lixo), focalizando a atenção nas realidades urbanas dos países economicamente mais pobres. A tal propósito, lembramos a Conferência Rio 92, na qual foi assinada a Agenda 21: um documento que define as medidas a serem adotadas no nível global para tornar possível uma convivência sustentável entre o desenvolvimento econômico e a preservação, a auto-suficiência e a auto-organização dos ecossistemas em que os seres humanos vivem.

 

[8]Para Heidrich (2004) a globalização não é uma força espontânea, mas encadeamento entre reestruturações econômicas, políticas governamentais que vem promovendo a transnacionalização, adoção de processo tecnológico e reestruturação organizacional nos sistemas de comunicação e transporte. Como etapa de um processo maior de integração no âmbito mundial, interfere também nas demais escalas de integração socioespacial, como no cotidiano de comunidades locais.

 

[9]http://www.movimentodoscatadores.org.br/.

 

[10]Consideramos catadores avulsos os trabalhadores que não fazem parte de nenhuma associação ou cooperativa, que atuam individualmente, tais como, carrinheiros, carroceiros e papeleiros.

 

[11]Na região metropolitana de Porto Alegre estão presentes dois grandes pólos siderúrgicos que reciclam materiais ferrosos; uma empresa de grandes dimensões para a transformação de plástico de tipo PET; uma multinacional que produz lã de vidro; e duas empresas que produzem material de papel reciclado.

 

[12]Geralmente, os intermediários têm os seus próprios depósitos em posições geográficas estratégicas para as suas atividades comerciais, isto é, perto do centro da cidade ou nas grandes vilas de Porto Alegre.

 

[13]Nenhum destes catadores contribui mensalmente para a previdência. Isto significa que os associados, assim como todos os carrinheiros e carroceiros de Porto Alegre, não têm direito à licença saúde, previdência e indenizações por acidentes de trabalho.

 

[14]Normalmente, a autoridade política que detém o poder legitimado pela lei tende a estar presente somente com finalidades repressivas nos âmbitos em que prevalecem transações econômicas que ocorrem fora do circuito oficial da economia e, então, do sistema de normas legais.

 

[15] Capital social pode ser definido como um potencial social produzido na vida das pessoas de uma comunidade, compreendendo características como a existência das redes sociais, normas e confiabilidade, que permite aos indivíduos agirem mais eficazmente juntos por objetivos comuns (PUTNAM, 1993).

 

 

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