Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XVII, nº 1002, 30 de noviembre de
2012
[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL RURAL: REFLEXÕES METODOLÓGICAS A PARTIR DO CASO BRASILEIRO

 

Philippe Bonnal
CIRAD, Montpellier, França
philippe.bonnal@cirad.fr

Ademir Antonio Cazella
PGA/UFSC, Florianópolis, Brasil
acazella@cca.ufsc.br

Nelson Giordano Delgado
CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, Brasil
nelsongdelgado@gmail.com

Recibido: 16 de noviembre de 2011. Devuelto para revisión: 21 de mayo de 2012. Aceptado: 15 de septiembre de 2012


Contribuições ao estudo do desenvolvimento territorial rural: reflexões metodológicas a partir do caso brasileiro (Resumo)

Parte-se da constatação de que os estudos sobre a inter-relação entre o conceito de território e sua utilização para a ação pública são ainda incipientes. Apesar disso, a abordagem territorial é apresentada como uma contribuição importante para o enfoque do desenvolvimento rural sustentável. Os conceitos e interpretações referentes às políticas públicas são discutidos como base para a compreensão das novas institucionalidades, da articulação entre atores sociais e entre políticas públicas e da participação cidadã nos processos de gestão social do desenvolvimento territorial rural. Sobre esse aspecto constata-se que não existe uma combinação ideal, e passível de ser formulada teoricamente, da participação dos atores das esferas do Estado, da sociedade civil e do mercado nos processos de desenvolvimento territorial rural. O resultado obtido nos casos concretos será consequência da negociação política, das estruturas de poder existentes e da capacidade de protagonismo social dos atores territoriais, sem qualquer garantia de que estará adequado às necessidades da sustentabilidade do desenvolvimento rural nesses territórios.

Palavras-chave: políticas públicas, território, gestão social, institucionalidades territoriais, desenvolvimento territorial rural.


Contributions to the Study of Rural Territorial Development: methodological reflections based on the Brazilian case (Abstract)

This paper begins by presenting the finding that studies about the inter-relationship between the concept of territory and their use for public action are still incipient. It then discusses the territorial approach as an important contribution to the focus on rural sustainable development. Concepts and interpretations related to public policies are discussed, based on an understanding of new institutionalities, the articulation between actors and between public policies and citizen participation in the processes of social management of rural territorial development. It was found that there is no ideal combination, which can be theoretically formulated, for participation in the spheres of the state, civil society and the market in the processes of rural territorial development. The result obtained in the concrete cases is the consequence of political negotiations, the structures of power and the capacity for social protagonism of the territorial actors. There is no a priori guarantee that it will be suitable to the needs of the sustainability of rural development in these territories.

Key words: public policies, territory, social administration, territorial institutionalities, rural territorial development.


Contribuciones al estudio del desarrollo territorial rural: reflexiones metodológicas a partir del caso brasileño (Resumen)

Se parte de la constatación de que los estudios de la interacción entre el concepto de territorio y su uso para la acción pública son todavía incipientes. Así, el abordaje territorial se presenta como una importante contribución al enfoque del desarrollo rural sostenible. Los conceptos e interpretaciones de las políticas públicas se discuten como base para la comprensión de las nuevas institucionalidades, de la articulación entre los actores y entre las políticas públicas y de la participación ciudadana en los procesos de gestión social del desarrollo territorial rural. En cuanto a este último punto se observa que no hay una combinación ideal, y pasible de ser formulada teóricamente, de la participación de los actores de las esferas del Estado, de la sociedad civil y del mercado en los procesos de desarrollo territorial rural. El resultado obtenido en los casos particulares será el resultado de la negociación política, de las estructuras de poder y de la capacidad de protagonismo social de los actores territoriales, sin alguna garantía de que se adapte a las necesidades de la sostenibilidad del desarrollo rural en esos territorios.

Palabras clave: políticas públicas, territorio, gestión social, institucionalidades territoriales, desarrollo territorial rural.


Este artigo representa uma tentativa de contribuir para o esforço coletivo de construção de uma abordagem teórica do desenvolvimento territorial em zonas rurais, que busque preencher as consideráveis lacunas que ainda persistem, tendo em vista que o viés normativo é predominante em grande parte da bibliografia nessa área. Quatro temas principais compõem a estrutura de análise, iniciando pelas formulações teóricas relativas aos conceitos de território, sustentabilidade, políticas públicas e, por fim, novas institucionalidades e dinâmicas dos processos de desenvolvimento territorial.

Cabe salientar que na primeira e na segunda partes não se teve a ambição de apresentar o estado da arte sobre os conceitos de território e de sustentabilidade, buscando dar conta das diversas disciplinas que trabalham com o assunto. O que norteou a escolha dos enfoques discutidos foi a possibilidade de auxiliarem na análise da multiplicidade de usos desses conceitos, em especial pelas políticas públicas. A ênfase recai sobre os riscos práticos de que as políticas de desenvolvimento territorial em zonas rurais, embora inovadoras do ponto de vista conceitual, não consigam romper com os vieses setorial e economicista ainda predominantes na maioria das políticas públicas.

A terceira parte destaca a evolução recente do papel do Estado na orientação das atividades econômicas e das dinâmicas sociais, em geral, e dos processos de construção de políticas públicas, em particular. Aborda também o significado do que se convencionou chamar de política pública para, então, precisar os principais recursos metodológicos necessários para tratar das interfaces entre as distintas políticas de desenvolvimento rural. Por fim, a quarta parte analisa as três esferas fundamentais da ordem social - Estado, mercado e sociedade civil- e a importância dos processos de construção social de combinações adequadas dessas esferas nos territórios. Uma hipótese central é que não existe uma combinação que possa ser “receitada” a priori como ideal e que o resultado obtido nos casos concretos será consequência da negociação política, das estruturas de poder e da capacidade de protagonismo social dos atores territoriais, sem qualquer garantia de que estará adequada às necessidades da sustentabilidade do desenvolvimento rural nesses territórios.


Utilizações do conceito de território para a ação pública

Atualmente, o “território” é uma noção amplamente utilizada pelos atores sociais e políticos engajados nos processos de desenvolvimento rural. De certo modo, o surgimento dessa noção e sua progressiva incorporação nas agendas sociais e políticas referentes ao meio rural têm raízes, primeiro, no questionamento dos efeitos da revolução verde nos anos 1970, apontando os impactos socioambientais negativos da modernização agrícola e, segundo, na década de 1980, destacando a fragilização dos agricultores familiares e suas conseqüências para a sociedade. A ideia inicial de desenvolvimento local, especialmente quando associada às reflexões sobre agricultura alternativa, ganhou força, em contraposição à modernização agrícola, ao se opor à especialização produtiva, à concentração fundiária, à otimização da produtividade do trabalho e ao privilegiar os preceitos de desenvolvimento endógeno, de localidade, de sistemas agrários ou ainda de diversificação das atividades econômicas. Nos anos 1990, o interesse despertado pela escala local foi ampliado pelos processos de globalização da economia, liberalização comercial e reforma do Estado.

Essas novas orientações fortaleceram a legitimidade do território ao torná-lo um lugar (uma escala) considerado estratégico para enfrentar os desafios de (i) reequilíbrio socioeconômico, (ii) gestão do meio ambiente, (iii) construção de uma nova capacidade concorrencial e (iv) reforma da governança. Essa trajetória marcada pela preocupação crescente em incorporar e articular as dinâmicas locais aos desafios e dinâmicas mais globais contribuiu para que a noção de território substituísse paulatinamente, no linguajar de atores sociais e políticos, a noção de local, a qual, em geral, sugere uma estratégia de ação coletiva mais autônoma em relação aos desafios globais da sociedade e às ações do Estado. Vale a pena lembrar aqui, brevemente, a diversidade existente tanto nas definições de território utilizadas nas ciências sociais, quanto nas formas concretas de sua utilização no Brasil.

Das definições de território nas ciências sociais...

Nas disciplinas das ciências sociais, a noção de território corresponde a distintas acepções e definições[1]. Os geógrafos, de maneira geral, consideram um território como uma porção de espaço delimitado e qualificado por um caráter específico natural, cultural, político ou administrativo. Esta concepção destaca duas características consideradas fundamentais da noção de território: a existência, primeiro, de um limite ou de uma fronteira e, segundo, de uma especificidade notável, diferenciando o que está dentro da fronteira do que está fora. Mas, para além desta concepção geral, observam-se diferenças de enfoques entre as correntes social, econômica e política.

Muitos sociólogos e geógrafos que trabalham com a questão social definem o território pelas modalidades de uso do espaço[2]. Milton Santos[3] fala de “território usado” para diferenciar o enfoque sociológico do enfoque geográfico padrão. Este autor atribui uma importância destacada às representações dos atores sociais em torno do território, ou seja, à sua dimensão simbólica. Esta representação coletiva e simbólica é o elemento central da construção social do território. Além do aspecto simbólico, esta concepção aponta para o papel da informação na construção social. São as informações elaboradas sobre o território, juntamente com a simbologia a ele associada, que constituem os fatores da construção da representação coletiva.

Para Gumuschian[4], o território pode ser definido a partir de quatro características. A primeira é a natureza simbólica e material mencionada anteriormente. A segunda corresponde às formas de colonização da natureza pelo homem. A terceira é constituída pelas configurações espaciais dos territórios: suas formas e extensão geográficas. Em último lugar figuram os processos auto-referenciais nos aspectos materiais e simbólicos usados. Essa acepção é retomada por Lévy e Lussault[5] que concebem o território não apenas como uma representação da realidade construída pelos atores que influencia a ação, mas também como uma representação que contribui para precisar ou até definir as suas próprias identidades. É a construção de uma identidade coletiva que justifica a diferença cultural do grupo em relação ao exterior.

Na geografia econômica, um território é definido essencialmente a partir das atividades produtivas. A principal particularidade desse enfoque consiste em considerar que as relações de proximidade entre os atores econômicos podem induzir um efeito sinergético, criando uma vantagem comparativa em relação ao exterior. A reflexão em torno do desenvolvimento econômico territorial pode se desdobrar, então, em duas preocupações: de um lado, a compreensão dos fenômenos de concentração territorial de empresas e seus efeitos econômicos e sociais e, de outro, a construção de projetos econômicos territorializados.

No que diz respeito aos efeitos da concentração de empresas aprendeu-se muito com a experiência dos distritos industriais, descrita pelos economistas italianos a partir dos anos 1970. Como Alfred Marshall no século XIX, no caso da Inglaterra, esses economistas demonstraram que, na Itália, observam-se concentrações de empresas em torno de um mesmo produto, conformadas por um conjunto diversificado de pequenas unidades de produção de bens e serviços. A existência de relações de solidariedade, que fogem da lógica meramente mercantil e de um “clima” favorável ao desempenho da produção, faz com que essas concentrações territoriais tenham notável capacidade de inovação frente à evolução do mercado. Nessa situação, o território corresponde a uma concentração de atores econômicos capazes de coordenar suas atividades produtivas, mobilizando um patrimônio cognitivo criado através do tempo[6]. Os clusters definidos por Michael Porter[7] e os sistemas ou arranjos produtivos localizados inspiram-se nessa mesma concepção. Observa-se, contudo, que a reprodução deste tipo de dinâmica territorial é limitada pela dificuldade de se criar um capital cognitivo coletivo de forma exógena, voluntária e rápida.

Outra preocupação relacionada à definição de projetos econômicos territorializados é baseada numa combinação das abordagens sociais e econômicas. O objetivo é construir um projeto coletivo na escala territorial, para melhorar a situação social da coletividade ou, simplesmente, para servir aos interesses de um grupo de atores? A natureza e a intensidade da relação entre o projeto e o território podem variar significativamente, indo de uma simples referência à localização dos atores até a construção de um projeto complexo de valorização de ativos específicos do território - recursos naturais, capital cognitivo, localização frente aos mercados consumidores etc.-, passando pela certificação territorializada de qualidade dos produtos. Destacam-se aqui as estratégias para implementar cestas de bens, visando criar vínculos entre a produção de bens e serviços e os ativos específicos do território, com a perspectiva de forçar o consumidor a se deslocar para dentro do território[8].

Na geografia política ou na sociologia política, o território é um lugar delimitado para o exercício do poder. Nessa abordagem, como nas anteriores, diferentes enfoques coexistem. Um primeiro está ligado ao poder público, tratando concretamente da forma como o Estado atua na escala local, o que remete, por sua vez, à problemática da territorialização das políticas públicas. Outro enfoque está voltado para a análise das dinâmicas sociais ligadas à estrutura do poder. Nesse caso, a atenção é dirigida aos processos de negociação ou, ao contrário, de contestação do poder e às estratégias sociais de contorno (stratégies de contournement) adotadas para proteger-se. De um lado, as ações coletivas podem ser realizadas segundo uma preocupação de complementaridade com a ação pública, procurando articular-se com ela. Esse processo é revelador de uma estratégia proativa ou ofensiva por parte dos atores da sociedade civil ou privados (do mercado) com o objetivo de aproveitar, e mesmo ampliar, as oportunidades ofertadas pelo Estado. De forma inversa, a ação coletiva pode ser construída em contraposição à ação do Estado, na perspectiva de estabelecer uma distância ou certo nível de autonomia em relação ao Estado. Em oposição à precedente, poderíamos qualificar essa estratégia de defensiva. Enfim, a noção de território remete à organização espacial do Estado, ou seja, às divisões de subsidiariedade do exercício do poder público. Nesse sentido, o território é uma unidade de governança pública, suscetível de ser definida por normas jurídicas que precisem seu status legal e sua função dentro da estrutura funcional do Estado.

...às construções e usos dos atores sociais

À pluralidade de definições da noção de território corresponde uma multiplicidade de práticas de construção e de uso do território pelos atores sociais. Não é o caso de fazer aqui o inventário dessas práticas, mas apenas assinalar a existência de duas formas canônicas de construção e de uso de territórios. A essas duas formas nos parece possível associar uma diversidade de práticas e maneiras de uso.

A modalidade mais intuitiva – mas talvez não a mais comum - de construção e de uso dos territórios está ligada à ação coletiva dos atores locais. São os atores socioeconômicos que, a partir de uma representação compartilhada sobre a realidade, identificam os limites do território, geralmente por agregação de unidades administrativas (municípios) ou sociais (sindicatos, organizações de agricultores, comunidades etc.) e constroem uma estratégia de ação. Trata-se nitidamente de um processo de co-construção social direcionado, no sentido de que a finalidade da ação é construir um projeto coletivo para o benefício de atores do território. O objetivo do projeto pode variar (econômico, social, cultural, ambiental etc.), como também o tipo de atores envolvidos (determinados segmentos de agricultores familiares, pequenos empresários, ONGs, com ou sem a participação de instituições públicas etc.) e as atividades realizadas, sem que seja modificada a lógica de ação. Em todos os casos, trata-se de um processo ascendente, cujo centro de ação está ancorado no território. Essa inscrição de projeto coletivo no local é compatível com a mobilização de parcerias (financeiras, tecnológicas etc.) em níveis mais abrangentes (estadual, nacional, internacional). Nada impede, também, que os atores territoriais inscrevam suas ações dentro de uma problemática global (aquecimento do planeta, combate à fome e à pobreza, desenvolvimento rural etc.). Pelo contrário, isso pode fortalecer as possibilidades de ação coletiva dos atores locais.

A segunda modalidade está ligada à territorialização das políticas públicas. Aqui, o centro estratégico de ação se encontra fora do território, em níveis mais abrangentes (estadual ou nacional). O território é concebido pelos atores públicos com o objetivo de facilitar a resolução de problemas da sociedade, coerente com a missão do Estado (ou com promessas eleitorais de representantes políticos). Nesta lógica, o território é identificado principalmente com referência ao zoneamento de determinado problema ou carência da sociedade. O desafio para o poder público é o de definir as modalidades de ação mais apropriadas para a resolução desse problema ou carência, levando em conta as especificidades locais. Esse tipo de território pode dar lugar a uma formalização jurídica, visando precisar sua função dentro da estrutura funcional do governo.

Na prática observa-se a existência de um processo de justaposição das lógicas territoriais e de hibridação de modelos de construção de territórios. No que diz respeito à coexistência de territórios criados a partir de diferentes lógicas - social, econômica e política -, para o caso brasileiro destacam-se, no registro dos territórios com enfoque sociocultural, as comunidades indígenas, os quilombolas, os assentamentos de reforma agrária, os territórios rurais de identidade instituídos pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA) etc. Nesses territórios, segundo o contexto, observam-se estratégias qualificadas anteriormente como ofensivas ou defensivas. Outros territórios respondem nitidamente a uma lógica econômica, tais como os Arranjos Produtivos Locais (APL) ou, ainda, alguns conglomerados especializados (agricultura de exportação, produção de vinho, de café etc.).

No registro dos territórios criados numa perspectiva de ação política, destaca-se o Programa Territórios da Cidadania, que objetiva reduzir a pobreza no meio rural[9] por meio de ações dirigidas explicitamente ao enfrentamento da pobreza e a melhorias nas condições de vida no campo. Nessa área convém destacar os programas Bolsa Família criado no primeiro Governo Lula e o Brasil Sem Miséria lançado em 2011 pela Presidente Dilma. Com o primeiro programa, o Estado aporta um auxílio financeiro mensal (bolsa família) às famílias com renda per capita inferior a R$140,00 mensais, enquanto que com o segundo busca atender as famílias que vivem com renda per capita inferior a R$70,00 mensais. Nesses casos, para famílias do meio rural, além do “bolsa família”, ações complementares estão previstas, a exemplo de assistência técnica específica e aquisição da produção agropecuária com recursos públicos, em se tratando de agricultores familiares.

Em relação à hibridação dos processos de construção e de uso dos territórios segundo uma lógica de co-construção pelos atores locais e segundo a delimitação de um espaço de governança pelo Estado, destaca-se a experiência dos territórios rurais de identidade da SDT/MDA que, apesar de ter sido estruturada na esfera federal, faz referência a elementos simbólicos da agricultura familiar e à ação coletiva local. O processo de hibridação é ampliado ainda mais pela criação do programa governamental Territórios da Cidadania e por sua operacionalização utilizando o recorte e a institucionalidade dos territórios rurais de identidade.

Consideramos, assim, que o processo de hibridação dos modelos de construção e de uso de territórios constitui uma forma de experimentação (institucional, social, política, econômica). Ou seja, um processo de inovação complexa, definido e implementado em relação a um debate social (desenvolvimento rural, fortalecimento da agricultura familiar, enfrentamento da pobreza) e localizado em um contexto político específico de governos que têm buscado empreender ações inovadoras no que se refere às políticas públicas de desenvolvimento rural. É este processo de hibridação que buscamos dar conta nesta abordagem.


Os desafios da sustentabilidade na abordagem do desenvolvimento territorial rural: significado, alcances e limitações

Este tópico procura refletir sobre a incorporação das dimensões da sustentabilidade – econômica, social e ambiental - na noção de desenvolvimento territorial contida nas principais políticas públicas colocadas em prática, nos últimos anos, nas zonas rurais brasileiras. A intensificação do debate acadêmico e político sobre a necessidade de integrar a abordagem territorial no planejamento de novas estratégias de desenvolvimento rural pode ser entendida como parte de um esforço de redução das contradições, das incertezas e dos riscos de um processo de globalização ao mesmo tempo ecologicamente predatório e socialmente excludente[10]. Apesar desse esforço, as abordagens sobre o desenvolvimento territorial em zonas rurais tendem a privilegiar os fatores econômicos, em detrimento de uma consideração consistente da dimensão socioambiental. Além disso, prevalece o enfoque eminentemente setorial, com claro direcionamento de políticas públicas para a agricultura, sem se levar em consideração a visão intersetorial, tida como necessária para se compreender as novas e complexas interconexões existentes entre os diferentes setores da economia e as diversas categorias sociais presentes no mundo rural, bem como as suas articulações com os espaços urbanos.

Antes de prosseguir nessa análise convém, no entanto, esclarecer minimamente nossa compreensão acerca da noção de desenvolvimento sustentável. Para tanto, recorremos a Theys[11] para quem “o caráter extremamente vago e ambíguo do conceito de desenvolvimento sustentável”, que marcou uma primeira fase de debates, está sendo substituído por uma tendência progressiva de adoção dos preceitos desse estilo de desenvolvimento na definição de políticas territoriais. Essa articulação entre políticas territoriais e sustentabilidade implica na construção de normas operacionais, que permitam arbitrar minimamente as contradições que afloram quando se tem como objetivo articular as três dimensões rivais do processo de desenvolvimento (econômica, social e ecológica).

Temos que reconhecer que o ideal normativo do desenvolvimento sustentável fundamenta-se atualmente num conjunto muito limitado de “normas” teóricas. Encontramo-nos numa situação que pode ser muito esquematicamente caracterizada pela existência de ‘práticas sem teoria e teorias sem prática’ – uma situação que desemboca, finalmente, num caleidoscópio de iniciativas cuja eficácia – e até mesmo, às vezes, cuja concretude são muito difíceis de serem avaliadas[12].

Nesse sentido, ao invés da elaboração de um programa prescritivo, a opção por boas práticas de desenvolvimento sustentável, de cunho essencialmente pragmático, que tenha por base o contexto de descentralização, parece ser o caminho promissor da segunda fase do desenvolvimento sustentável que, segundo Theys, se encontra em curso. Assim, ao invés de se preocupar com a melhor definição de desenvolvimento territorial sustentável, a análise, segundo esse enfoque, deve buscar compreender em que medida as três principais dimensões da sustentabilidade estão sendo incorporadas nas agendas e na seleção de projetos territoriais, seja por iniciativa dos atores sociais, seja por normas instituídas pelas políticas públicas, ou ainda, conforme apontado na primeira parte deste artigo, pela hibridação de modelos de construção de territórios.

Em relação ao desenvolvimento territorial existe um consenso, referido anteriormente, sobre o papel pioneiro desempenhado por pesquisadores italianos no resgate das experiências de industrialização difusa na Itália, desde o final dos anos 1970. Ao longo da década de 1980 multiplicaram-se as análises sobre os sistemas produtivos localizados, caracterizados por uma marcada circunscrição territorial e elevada autonomia em relação às demais esferas econômicas[13].

Para Pecqueur[14], essas primeiras reflexões evidenciaram que o espaço-território se diferencia do espaço-lugar pela sua “construção” a partir do dinamismo dos atores que nele habitam. A noção de território passou então a ser associada a processos de desenvolvimento tributários da sua criação coletiva e institucional. Assim, a análise da densidade institucional de um dado espaço auxilia na melhor compreensão das dinâmicas de construção territorial que mobilizam atores sociais predispostos à identificação e valorização dos chamados recursos territoriais específicos[15]. Como destacam Vieira et al[16], “no rol desses processos estão incluídas, entre outras, a criação de novas formas de reciprocidade econômica, nutridas pela formação de um tecido social especialmente coesivo e cooperativo; a estruturação de sistemas produtivos locais em zonas rurais, integrados em redes de pequenas e médias empresas que transcendem a esfera das relações puramente mercantis e desvelam novos tipos de atividade não-agrícola no meio rural; e a pesquisa de novos arranjos institucionais autenticamente descentralizados, voltados para o exercício efetivo da governança territorial”(ênfase dos autores).

No contexto brasileiro, a recente adoção da noção de territórios sustentáveis em zonas rurais remete à análise da experiência de descentralização político-administrativa do Estado. A Constituição Federal de 1988 deflagrou um processo de descentralização, visando ampliar a autonomia política e fiscal dos municípios. A chamada municipalização de diversas políticas públicas expandiu também a capacidade de intervenção de organizações locais da sociedade civil. Os municípios assumiram funções de planejamento e de gestão de políticas públicas, na maioria das vezes, associadas a programas coordenados por instituições governamentais das esferas federal e estadual.

Ao longo dos anos 1990 assistiu-se a uma verdadeira proliferação de conselhos municipais decorrentes de exigências impostas pela orientação de municipalização de políticas públicas. Apesar dos avanços obtidos nesse processo de gestão de políticas públicas, percebe-se as limitações dessa orientação, sobretudo, nas regiões rurais. “Na maioria das vezes exigem que pequenos municípios ‘se voltem para o próprio umbigo’, mediante criação de conselhos apenas municipais, quando igualmente importante seria induzir articulações intermunicipais”[17]. Passados mais de duas décadas, a introdução da noção de desenvolvimento territorial nas agendas de vários ministérios e de alguns governos estaduais indica, portanto, que estamos às voltas com as dificuldades típicas de uma fase de transição posterior à decisão de fortalecer a dinâmica de descentralização de políticas públicas via municípios.

Paralelo a isso, a percepção de que o meio rural cumpre um papel de destaque na dinâmica de desenvolvimento do país, embora pouco valorizada pelos formuladores das políticas macroeconômicas de desenvolvimento e, por conseqüência, pelo orçamento público, tem sido crescente nos últimos anos. Dentre outros aspectos, a relevância social e econômica da agricultura familiar, das ocupações rurais não agrícolas, da pluriatividade das unidades agrícolas familiares e do caráter multifuncional dessas unidades, além do expressivo grau de empreendedorismo de determinadas zonas rurais não só são temas cada vez mais recorrentes de pesquisas, como representam indícios de um lento processo de reconhecimento societário da importância dos territórios rurais para o desenvolvimento sustentável.

É nesse contexto sociopolítico que os temas da qualidade dos serviços territoriais e das novas ruralidades apresentam-se como centrais no debate contemporâneo sobre estratégias de desenvolvimento rural. A imbricação do setor de serviços com a promoção do desenvolvimento em zonas rurais é hoje um eixo norteador das políticas de desenvolvimento territorial nos países com tradição nesse domínio. Essa interligação tem a característica particular de ser coerente com os preceitos da sustentabilidade: melhor distribuição da população no território, preservação dos recursos naturais, da biodiversidade e das paisagens, baixo grau de poluição, melhor qualidade de vida, etc. Como destaca Theys[18], “o que está mais profundamente em jogo no que diz respeito à operacionalização dos princípios de desenvolvimento territorial sustentável é a nossa capacidade coletiva de modernização da ação coletiva”.

As regiões rurais do mundo que alcançaram altos índices de desenvolvimento socioeconômico sem comprometer de forma preocupante a base de recursos ambientais construíram e qualificaram, ao longo do tempo, arranjos institucionais capazes de gestar projetos inovadores. O desenvolvimento territorial sustentável é, assim, tributário de um processo de formação, que procura re-qualificar o saber-fazer local, lançando mão de novas tecnologias socioeconômicas e ambientais. Isso pressupõe a inclusão nesses processos de sistemas versáteis de informação, formação e educação. Nessas situações, as instituições acadêmicas representam um elemento estrutural do processo de dinamização das economias rurais. Os suportes intelectuais asseguram a geração e difusão de tecnologias, além de cumprirem o papel de concepção de novas ideias e competências técnicas. O sucesso dos chamados distritos industriais italianos se explica, em grande parte, pela articulação de longa data entre o “saber fazer” histórico dos atores locais e o saber acadêmico[19].

A estratégia de desenvolvimento territorial sustentável exige, assim, um criterioso e detalhado inventário dos recursos locais. Um inventário realizado com imaginação, capaz de transformar aspectos negativos, como os resíduos de atividades agropecuárias  ou industriais, em novos projetos de desenvolvimento. Esse criterioso diagnóstico territorial permite que valores, por vezes simbólicos, acabem se transformando em recursos socioeconômicos indutores de novas ações de desenvolvimento[20].

Até o momento, as reflexões voltadas para a compreensão dos fatores que condicionam a defasagem da maioria dos territórios rurais em matéria de internalização dos preceitos do desenvolvimento territorial sustentável são escassas e fragmentadas. Por um lado, a possibilidade de elaboração de um modelo de análise teórico-metodológico compartilhado, capaz de alimentar a criação de programas coordenados de experimentação interdisciplinar-comparativa em diferentes contextos territoriais encontra-se ainda muito distante. Por outro lado, os riscos de desvio economicista e tecnocrático no manejo do enfoque territorial são evidentes. Como destacam Vieira et al[21], “a força de inércia da ideologia economicista pode chegar a comprometer seriamente a consistência das iniciativas em curso – ainda muito embrionárias – de construção e consolidação institucional de territórios sustentáveis, na ausência de uma reflexão crítica que aponte no sentido da elaboração progressiva do conceito de desenvolvimento territorial sustentável” (ênfase dos autores).

Em muitos territórios rurais brasileiros, a ação conjunta dos serviços públicos de extensão rural e de agentes financeiros via crédito rural desempenhou, tradicionalmente, o papel de difusão de novas tecnologias e informações, quase sempre restritas ao setor agropecuário. Na atualidade, esse tipo de articulação continua sendo relevante, mas suas funções agora demandam um caráter que extrapole o universo do setor primário. Alguns estudos sobre a implementação de políticas públicas de desenvolvimento territorial no meio rural revelam que essas iniciativas apresentam contornos de um modelo conservador, cujas ações são destinadas a segmentos sociais intermediários que já se encontram integrados nos mercados[22].

É sabido que uma parcela majoritária de agricultores familiares brasileiros apresenta baixos rendimentos econômicos, não participa de movimentos sociais e sindicais, além de não ter acesso às principais políticas públicas de desenvolvimento rural, em especial as de crédito e de extensão rural. Esse público, somado aos assalariados agrícolas residentes nas periferias de pequenos municípios rurais e aos microempreendedores rurais não-agrícolas, configura uma parcela significativa da população rural que não faz parte da sociedade civil organizada, no sentido de não integrar ou não ser representado por nenhuma organização associativa, política ou sindical. Trata-se de uma população rural invisível que não compõe o público alvo de políticas públicas de cunho não assistencialista e das intervenções, também de caráter público, empreendidas por organizações da sociedade civil.

O desenvolvimento territorial sustentável pressupõe a cooperação entre atores cujos interesses não são idênticos, mas que podem encontrar áreas de convergência em novos projetos, de tal maneira que uma “atmosfera” propícia à geração de iniciativas criativas seja gerada. Esse tipo de cooperação não ocorre de forma espontânea, pois a tendência é que cada instituição isolada não perceba as áreas de interesses comuns e as possibilidades de parcerias. É da interação entre atores diversos que podem emergir “vantagens diferenciadoras” menos elitistas e excludentes no interior de um território.


Análise de políticas públicas: conceitos e abordagens

No Brasil, como em outros países, o processo de elaboração das políticas públicas –entendidas, numa aproximação inicial, como sendo as intervenções públicas referentes à economia, à sociedade e ao meio ambiente- evoluiu consideravelmente no transcurso das últimas décadas, acompanhando as mudanças no contexto político e na situação social e econômica do país. Para quem pesquisa o tema, essa evolução impõe a necessidade de adaptação de conceitos e de métodos de análise. Três pontos serão brevemente abordados neste item: primeiro, a evolução histórica no Brasil do papel do Estado e, consequentemente, do processo de elaboração de políticas públicas; segundo, a evolução do conceito de políticas públicas do ponto de vista acadêmico; e terceiro, as metodologias de análise das políticas públicas.

Durante a história republicana do Brasil observa-se uma drástica mudança do papel do Estado no que diz respeito às suas formas de intervenção no espaço nacional. Ao longo de toda a fase desenvolvimentista que se estende do governo Vargas ao final do período militar (1930 a 1985), o Estado teve uma importância central nos processos de orientação da economia, organização da sociedade e uso dos recursos naturais. Essa fase de Estado planejador e intervencionista foi encerrada pela crise da dívida externa, que cristalizou as fraturas sociais, políticas e econômicas que vinham se aprofundando desde os anos 1960, dando início à ruptura neoliberal. Na curta fase neoliberal, o Estado foi desqualificado em nome das vantagens do mercado, tratado como a principal força do desenvolvimento nacional, tendo seu papel limitado, teoricamente, apenas à sua missão reguladora básica (segurança, proteção da moeda, soberania, justiça). Sobretudo na última década, diferentes crises (financiamento, alimentação) mostraram mais uma vez, nos níveis internacional e nacional, os limites do mercado e notadamente sua incapacidade de organizar uma distribuição equitativa da riqueza e de estabilizar eficientemente as flutuações econômicas. Esse questionamento contemporâneo da capacidade regulatória do mercado estaria iniciando uma nova fase, baseada na ação protagonista do Estado junto com a sociedade civil e o setor privado. No Brasil, para além dos aspectos econômicos, essa orientação é sustentada e legitimada nos preceitos da democracia, sistema político-social fortalecido pela Constituição de 1988 e que condiciona, desde então, de maneira crescente, os comportamentos individuais e coletivos. Os dois governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) se enquadram nitidamente nessa nova fase da relação Estado- Sociedade.

Na atualidade, o processo de construção das políticas públicas assume, em várias dimensões, maior complexidade do que durante as fases anteriores. Primeiro, os problemas da sociedade foram aguçados pelo aumento demográfico, a maior pressão sobre os recursos naturais e a interdependência multiníveis (do local até o internacional) de um mundo cada vez mais globalizado. Segundo, os governos atuais são compelidos a corrigir as externalidades negativas dos modelos de desenvolvimento anteriores, notadamente os problemas de pobreza, desigualdade social, marginalização socioterritorial, insegurança, carência de infraestruturas sociais e produtivas, degradação ambiental etc. Outros fatores referem-se aos constrangimentos impostos pelo marco democrático-liberal: a multiplicação dos atores organizados, o reconhecimento da diversidade das especificidades socioterritoriais, a diversificação dos espaços de discussão de políticas públicas etc. Outros constrangimentos têm a ver com a estratégia de posicionamento político-econômico no plano internacional, tratando-se, de um lado, do aprofundamento da inserção competitiva no espaço mundial e, de outro, de legítima reivindicação de participação nas instâncias internacionais de regulação política e econômica.

A definição de políticas públicas diante de desafios tão diversificados e complexos mobiliza a participação tanto dos atores privados e associativos como dos atores públicos, conformando, consequentemente, uma nova arquitetura da ação pública. No meio rural, essa evolução foi particularmente significativa e se concretizou, entre outros aspectos, pela legitimação da agricultura familiar como ator sociopolítico organizado, ao lado da agricultura patronal e empresarial, e o reconhecimento das especificidades socioterritoriais. Observa-se que essa situação de diversificação e de fragmentação da ação pública aproxima a problemática da elaboração das políticas públicas no Brasil com as considerações teóricas elaboradas em outras democracias nacionais.

Cabe esclarecer, portanto, o significado da noção de “política pública” nesse contexto marcado pela reformatação do papel do Estado. De forma preliminar, é possível dizer que o debate atual sobre a definição de política pública está estruturado em torno do grau de centralidade do Estado no processo de construção da ação pública e da importância dada à racionalidade substantiva nesse processo. Na origem da noção de políticas públicas, Pierre Muller opõe as concepções norte-americanas e europeias. Segundo esse autor, nos Estados Unidos, onde foi criada a noção nos anos 1950, a política pública se insere no conceito de government, tratando-se de determinar de forma pragmática como “a formação dos interesses pode conduzir à implementação de boas políticas, eficientes, correspondendo aos objetivos definidos sem desperdiçar o dinheiro dos cidadãos”[23]. Essa concepção de políticas públicas focaliza-se na ação racional do governo (policies). Na Europa, ao contrário, prevalece a tradição fundamentada nas concepções de Hegel e Weber, que consideram o Estado como uma instituição que transcende a sociedade e domina os atores da sociedade civil e do setor privado. Assim, Thoenig[24] define a noção de política pública como sendo as “intervenções de uma autoridade do poder público com legitimidade governamental sobre um aspecto específico da sociedade ou do território”. Em comparação com a definição anterior, observa-se que a formulação de Thoenig ressalta o caráter legal do poder do Estado (a violência legal).

Uma concepção um pouco diferente coloca o processo de elaboração das políticas públicas dentro do jogo político (politics) e de interação com os atores organizados da sociedade, além da confrontação com a realidade. Dessa forma, uma política pública é uma trajetória de ação que visa resolver um problema da sociedade. É a concepção do “Estado em ação” formulada por Jobert e Muller[25].

Na literatura recente, a conceituação de políticas públicas destaca que se trata de uma ação complexa dentro de uma lógica de sociedade cada vez mais “ingovernável”. A “ingovernabilidade da sociedade” faz referência à multiplicidade de atores organizados, à diversificação dos fóruns e lugares de interação multiníveis entre Estado e Sociedade, incluindo evidentemente o nível internacional na conformação dos problemas de sociedade. Nessa acepção, Massardier[26] identifica uma política pública pela existência de diversos elementos: dispositivos e recursos de ação pública (orçamento, normas jurídicas e instituições especializadas); práticas de intervenção dentro de um setor da sociedade ou de um setor econômico, ou mesmo um projeto; dispositivos oriundos de uma construção social coletiva e complexa por atores diversificados (indivíduos, empresas, associações...) ou grupos de atores (movimentos sociais) ou ainda a pressão das organizações internacionais. Essa formulação discute a centralidade do Estado dentro do processo de elaboração das políticas, acordando-lhe apenas o estatuto de um ator como qualquer outro. A redução do papel do Estado, junto com a complexidade crescente do processo de elaboração das políticas, leva Lascoume e Le Galès[27] a questionarem a própria denominação “políticas públicas” e a proporem a sua substituição pela noção de “ação pública”, que indicaria de maneira mais adequada a pluralidade de atores envolvidos.

A multiplicidade de abordagens e a complexidade crescente dos processos em jogo fazem emergir, por outro lado, a questão da compreensão dos processos de elaboração, implementação e avaliação dos resultados das políticas públicas. Ou seja, o campo da “análise das políticas públicas”. Sobre esse tema pretende-se aqui apenas assinalar alguns aspectos metodológicos úteis para estudos sobre a eficácia de políticas públicas. A primeira observação a ser feita é que nem sempre uma política pública é um objeto dado, definido e delimitado. Freqüentemente, sua identificação precisa de um trabalho de pesquisa, convertendo-se em um objeto construído. Mesmo tratando-se de política de Estado, questiona-se a influência dos atores da sociedade civil e do setor privado na construção e na adaptação dos instrumentos implementados. Acontece que essa interação pode explicitar impactos diferenciados de uma determinada política no nível local.

Como propósito de contribuir no processo de identificação das políticas públicas, Meny e Thoenig, citados por Muller[28] definiram cinco critérios que caracterizam, segundo eles, a existência de uma política pública: (a) contempla um conjunto de medidas que constituem a substância concreta da política; (b) inclui decisões de caráter autoritário embora de intensidade variada; (c) insere-se num marco geral de ação que nem sempre está explícito; (d) objetiva atingir um ou vários públicos-alvos a serem beneficiados ou, ao contrário, a serem penalizado se, por fim, (e) uma política pública é definida a partir de um objetivo a atingir que está associado a um problema existente na sociedade.

De certa forma, uma política pública corresponde a um procedimento seqüencial de ação que conforma um ciclo de vida. No prolongamento das considerações de Jones[29], que foi o primeiro pesquisador a formular essa concepção, identificam-se, freqüentemente, diversas fases durante o ciclo de vida de uma determinada política pública: a emergência (percepção do problema e incorporação na agenda política), a formulação do programa (as soluções imaginadas), a implementação (realização das atividades e alocação dos recursos necessários), a avaliação (definição dos critérios e indicadores de análise) e a finalização (fechamento). Apesar das diversas críticas feitas à análise seqüencial, decorrentes do caráter simplificador e até simplista do enfoque, o método continua sendo útil, desde que adotadas algumas precauções.

Uma política pública não é atemporal, ela se insere dentro de trajetórias de ação pública marcadas por diversas temporalidades, longas ou curtas. Conforme diferentes autores, notadamente North, Mahoney e Pierson & Skocpol[30], no tempo longo, as decisões e ações atuais são limitadas pelas “dependências do caminho” (path dependencies), conformadas pelas instituições permanentes que são criadas a partir de decisões tomadas no passado. A inclusão nessa abordagem das instituições informais, ou seja, da consideração do conjunto formal e informal de regras, normas e valores que estruturam o comportamento individual ou coletivo, permite compreender melhor os impactos diferenciados das políticas públicas estudadas. No tempo curto, as políticas públicas são freqüentemente adaptadas de forma incremental, mediante a mudança marginal de alguns de seus componentes. Contudo, essas mudanças repetitivas podem transformar substancialmente o conteúdo e até o objetivo da política pública[31].

Outra referência importante no contexto atual de análise das políticas públicas é a do enfoque cognitivo. O ponto comum dos autores que se inscrevem nessa corrente, embora bastante heterogênea, é o de atribuírem um papel destacado às ideias no processo de construção das políticas públicas. Essas ideias elaboradas em torno de valores, crenças e normas são organizadas, conformando matrizes cognitivas mobilizadas pelos diversos atores implicados no processo de elaboração da política pública para tomar suas decisões. Esses atores definem suas estratégias de negociação para resolver problemas da sociedade, tendo como base uma representação do seu entorno. Para Muller[32], nessa perspectiva, “as políticas públicas devem ser analisadas como os processos mediante os quais são elaboradas as representações de uma sociedade para entender e agir sobre a realidade tal como é percebida”. Na mesma lógica, o enfoque dos três “i”, construído a partir de referenciais da economia institucionalista, propõe investigar os processos de negociação entre os atores como resultante da interação complexa entre diversidade de ideias relacionadas aos interesses em jogo e às instituições existentes ou em construção[33].

Para fechar estas breves considerações sobre os desafios ligados à construção e à análise das políticas públicas, dois elementos precisam ser destacados. O primeiro é o caráter contingente da construção das políticas públicas e de seus efeitos concretos, uma característica que deve nortear o processo de análise. O segundo elemento tem a ver com o importante papel desempenhado pelos atores (públicos, privados e associativos), o que inscreve a análise da elaboração das políticas públicas dentro do campo disciplinar da sociologia política.


Dinâmica do desenvolvimento territorial rural: esferas sociais, institucionalidades e protagonismo social

A análise do tema do desenvolvimento territorial rural, sua institucionalidade e dinâmica deve partir, ao nosso ver, da recomendação mais geral de que as propostas ou projetos de desenvolvimento e as instituições que lhe são adequados sejam construídos de modo a levar em consideração três esferas fundamentais da ordem social contemporânea: o Estado, o mercado e a sociedade civil. Estamos, assim, nos inspirando em Offe[34], com uma reinterpretação importante motivada por nossos objetivos específicos: a substituição da esfera da comunidade, utilizada pelo autor, pela da sociedade civil, tendo claro que não estamos considerando, em absoluto, os dois conceitos como sinônimos. E utilizamos, no que segue, o conceito (operacional) de sociedade civil de Cohen & Arato[35], que a definem como “uma esfera de interação social entre economia e Estado, composta basicamente pela esfera da intimidade (especialmente a família), a esfera de associações (especialmente associações voluntárias), movimentos sociais, e formas de comunicação pública”. Como Offe[36] insiste de forma convincente, qualquer desenho institucional monístico, que tenda a privilegiar a importância de uma dessas esferas e a ignorar ou a excluir a participação das demais pode ter resultados bastante distorcidos e, por vezes, catastróficos, como as experiências do socialismo real e, mais recentemente, do neoliberalismo comprovaram. Como diz o autor, o “problema do desenho apropriado de instituições pode então ser formulado como o de manter a distância apropriada dos extremos das soluções ‘puras’ e, ao mesmo tempo, evitar o uso ‘muito reduzido’ de qualquer um daqueles fundamentos”.

Nesse sentido, construir uma institucionalidade adequada para o desenvolvimento territorial rural significa, citando Offe[37], engajar-se em um processo de desenho, “reajustamento e sintonização fina de uma mistura rica e adequada na qual os três blocos da ordem social tenham papéis variáveis que se limitem entre si. A capacidade de inventar, implementar e tolerar essas ‘colchas de retalho’ de ordem social impura ideológica e substancialmente, é a marca da civilidade ou do ‘comportamento cívico’, isto é, a habilidade e a vontade dos cidadãos de utilizar deliberação aberta e pacífica, assim como métodos institucionais para enfrentar os conflitos sociais e políticos”.

A combinação dessas três esferas não pode ser concebida teoricamente, nem é resultado de alguma fórmula técnica importada de um organismo internacional. Como diz Offe[38], em um sistema político não autoritário ela é o “resultado de uma deliberação democrática construída processualmente”, de modo que a relação entre essas esferas e a demarcação da linha que separa umas das outras “é ela própria uma questão de política”. Em consequência, “quase qualquer resposta à questão do papel adequado e do desejável tamanho relativo dos princípios macrossociais que organizam a economia política será controversa e essencialmente contestada”.

Em uma situação de competição política, em que o processo de ação social e seus resultados são usualmente conflitivos e contestáveis, a interação das três esferas na construção da institucionalidade territorial vai depender da presença e das características dos agentes coletivos representativos de cada esfera no território e do seu nível de engajamento e força política para influenciar o ordenamento e a política territorial. Ou seja, a institucionalidade e a dinâmica territorial vão depender das estruturas de poder existentes no território e da força política e da capacidade de construir coalizões políticas, dentro e fora do mesmo, das agências estatais, das empresas e das organizações empresariais, e das organizações da sociedade civil aí existentes.

Poder-se-ia dizer com Abramovay[39], a partir de outro enfoque conceitual, que a participação e a composição das três esferas na institucionalidade territorial estão associadas ao empreendedorismo dos grupos sociais existentes em cada esfera, ou seja, dos empreendedorismos respectivamente público, privado e associativo. Seguindo a formulação de Fligstein[40, esses empreendedorismos estão associados, na abordagem de Abramovay[41], à habilidade social (social skill) desses grupos, definida como sua capacidade de induzir e de obter a cooperação de outros, de liderar coalizões políticas que vão refletir a sua força e competência na ação social. Nas perspectivas tanto de Fligstein, quanto de Abramovay, a cooperação é entendida num sentido particular, muito mais próximo ao conceito weberiano de poder, como a capacidade de dispor de recursos (até mesmo simbólicos) que permitam influenciar, no interesse próprio, a vontade de outros. Abramovay[42], inclusive, aproxima explicitamente esse conceito ao de capital social de Bourdieu. Note-se que é um conceito de cooperação radicalmente diverso, por exemplo, do empregado no modelo de ação comunicativo, para o qual a cooperação representa a construção de uma vontade comum, um processo “no qual o entendimento mútuo é um fim em si para todos os participantes”[43], o que não tem nada a ver com uma interpretação do tipo “culturalista” do conceito de capital social.

É claro, portanto, que a força política e a habilidade social dos atores pertencentes a cada esfera são determinantes das combinações possíveis dessas esferas em cada realidade empírica particular. Esse é um aspecto que tem sido destacado pela literatura sobre o tema. Não obstante, queremos enfatizar também que, além de sua capacidade de influenciar as coalizões locais, a relevância (política, econômica, cultural, etc) que os atores sociais atribuem à sua participação ativa no território e seus interesses para agir dessa forma são fatores decisivos para sua disposição em influenciá-lo, através da intervenção tanto em sua estruturação como em seus resultados efetivos. Embora, de modo geral, em todos os territórios, as esferas do Estado, do mercado e da sociedade civil estejam presentes, os interesses e as expectativas dos diferentes atores que fazem parte dessas esferas acerca da importância de participar na institucionalidade territorial podem variar consideravelmente de intensidade, o que vai se refletir na forma particular de combinação dessas três esferas na institucionalidade existente.

A atenção sobre esse aspecto ganha importância quando, como no caso do Brasil, a criação de territórios rurais é consequência de uma política governamental de desenvolvimento e de erradicação da pobreza no campo, como ocorre com os programas federais de Territórios Rurais de Identidade e, em especial, de Territórios de Cidadania. Nesse contexto, a iniciativa governamental é a ação decisiva para a adoção da abordagem territorial e ela é concebida com objetivos próprios, que antecedem a escolha dessa abordagem, e que visam atender a um público específico –composto, nesse caso, principalmente de agricultores familiares, assentados de reforma agrária e populações tradicionais- para o qual é dirigida a ação pública de eliminação da pobreza e de apoio ao desenvolvimento rural.

Evidentemente, essa situação influencia consideravelmente a combinação das três esferas que acaba prevalecendo empiricamente na institucionalidade dos diversos territórios rurais criados pelos programas governamentais. Em primeiro lugar, porque a importância de cada uma das esferas é desigual nos diferentes territórios e, portanto, a presença e a habilidade social, na expressão empregada por Fligstein e Abramovay, dos atores existentes em cada esfera é muito diversa. Há situações concretas em que os atores da sociedade civil são especialmente influentes e tiveram, inclusive, uma participação histórica decisiva na implementação da ideia e da abordagem territorial; há outras situações em que os mercados praticamente não existem ou são muito incompletos, de modo que a força política das organizações empresariais é reduzida; e há outras em que as agências estatais encontram-se muito divididas diante da proposta territorial e atuam de forma bastante fragmentada, algumas favorecendo a sua implementação, outras dificultando-a.

Em segundo lugar, como a implementação do enfoque territorial está associado à execução de programas governamentais com determinadas características, volume de recursos e peso político na estrutura da máquina governamental, essa circunstância afeta de modo significativo a decisão e o interesse dos atores sociais de cada uma das três esferas de participarem na política territorial. Se, por exemplo, o volume de recursos é pouco expressivo, destinado a grupos sociais subalternos, e oriundo de programas ou agências com reduzida influência na política governamental é muito provável que os atores empresariais e suas organizações não terão motivos para envolver-se na institucionalidade territorial, dada sua irrelevância diante das expectativas e dos interesses econômicos e políticos que possuem. O mesmo pode acontecer inclusive com atores da sociedade civil, se avaliarem que o mix de políticas públicas destacado pelos programas territoriais é incapaz de atender às prioridades de sua agenda de reivindicações ou se interpretarem que o principal objetivo desses programas é a cooptação política dos grupos subalternos. As agências governamentais, por sua vez, podem ter interesses muito desiguais em relação aos programas, dependendo da parte que lhes cabe no total dos recursos disponíveis, do poder do programa na hierarquia administrativa governamental, e do fato de que cada agência é um nicho de poder, com maior ou menor influência, o que repõe constantemente a perene dificuldade de coordenar e articular as ações governamentais.

Em terceiro lugar, a combinação das três esferas na institucionalidade territorial pode ser muito dificultada ou mesmo inviabilizada pela existência de agudos conflitos políticos no território, principalmente entre atores do mercado e da sociedade civil, em torno, por exemplo, da constituição de mercados, da apropriação da terra e de trajetórias antagônicas de desenvolvimento regional. Em casos como esses, a própria governança territorial é posta em cheque e a combinação das três esferas na institucionalidade territorial pode ser inviabilizada. Os resultados dependem, em parte, da capacidade dos atores do Estado de administrar os conflitos ou de sua decisão de assumir a posição e os interesses de um dos lados da disputa.

Neste ponto retomamos a análise de Offe[44] relacionando-a com a dinâmica da institucionalidade territorial. Inicialmente, isso significa reconhecer que a dinâmica institucional –entendida como o processo de interação econômica e política de atores sociais existentes no território, portadores de ideias e de interesses acerca do desenvolvimento territorial e buscando influenciar e apropriar-se das políticas públicas, no contexto de uma dada institucionalidade (provisória e em evolução)- vai estar decisivamente influenciada pela particular combinação de Estado, mercado e sociedade civil possível de ser construída no território.

Isso não quer dizer que possamos relegar a um segundo plano o fato de que a dinâmica territorial está colada à história originária do território, suas características econômicas, sociais e culturais, sua estrutura de poder e seu estoque de recursos latentes e de ativos territoriais. Pelo contrário, sugere, primeiro, que a dinâmica territorial não é apenas uma questão econômica, é em grande medida uma questão política e, segundo, que a construção territorial, ou seja, o uso particular que vai ser feito das potencialidades e das carências territoriais –em suma, da história originária, das características, dos recursos e dos ativos territoriais- vai depender da combinação resultante das três esferas e dos “jogos de poder” e dos “compromissos estáveis” entre os atores sociais que nelas predominam[45].

Nesse sentido, não há qualquer garantia a priori que a combinação possível de Estado, mercado e sociedade civil seja a mais adequada para viabilizar um projeto de desenvolvimento sustentável para o território, nem que seja factível evitar os desenhos institucionais monísticos ressaltados por Offe. No caso brasileiro, por diferentes razões que não podem ser exploradas aqui, a incipiente experiência dos Programas de Territórios Rurais de Identidade e de Territórios de Cidadania tem sugerido a frequência de desenhos institucionais onde a presença dos atores do Estado e da sociedade civil é predominante, com escassa ou inexistente participação dos atores do mercado, por exemplo, de representações de empresários comerciais, produtivos e/ou financeiros na institucionalidade territorial.

Esse é, sem dúvida, um considerável e recorrente problema na institucionalidade dos territórios rurais existentes no país. No entanto, como afirma Offe[46], não há qualquer “linha correta” que possa ser “imposta” nesse particular. A relação entre as três esferas será sempre precária, já que, ao mesmo tempo em que o funcionamento de cada uma depende do desempenho das demais, a predominância de uma pode distorcer o funcionamento das outras. Reconhecido isso e que estamos tratando hoje com um “mundo institucional essencialmente confuso”, os resultados vão depender da disposição e da capacidade dos atores sociais representativos das três esferas de empenharem-se em julgamentos informados e em engajamento cívico para buscar, num processo de tentativa e erro, a construção de uma institucionalidade para o território que seja consequência “de uma deliberação democrática construída processualmente e bem informada”.

Levando em conta as observações acima como um ponto de partida referencial, queremos ressaltar, para finalizar este item, que o entendimento da dinâmica institucional de um território requer, como já enfatizado, um olhar atento sobre a interação entre os atores, mas com destaque para a consideração de suas ideias, interesses e capacidade para adquirir habilidades sociais, no sentido definido por Fligstein e Abramovay, numa perspectiva analítica, ou capacidade de construção de hegemonia na política territorial, em uma outra perspectiva, que não nos parece antagônica à primeira.

Estamos sugerindo, então, uma aproximação ao tema da dinâmica institucional territorial através da análise do que foi chamado, em outro lugar, de protagonismo social territorial, observando sua existência ou não no território e as características que venha assumir[47]. Três perguntas básicas podem servir de fio condutor dessa aproximação: existe protagonismo social no território? Quais são os atores portadores desse protagonismo social? Com esses atores e as especificidades do território quais são as características que assume o protagonismo social? Deixando explícito que por protagonismo social territorial entendemos o processo por meio do qual determinados atores sociais existentes no território agem coletivamente como portadores da abordagem territorial e como impulsionadores principais tanto da institucionalidade como do desenvolvimento territorial.

Isso significa que esses atores possuem, de forma mais ou menos clara ou mesmo implícita: i) interesses que justificam uma perspectiva de atuação territorial ou que consideram estratégica a ação no território para a sua preservação e realização; ii) capacidade de liderança razoavelmente legitimada na organização e na condução da institucionalidade territorial, o que nos reporta à investigação das razões dessa liderança e dos capitais que a viabilizam, referindo-nos novamente ao estudo das origens históricas do território, sua estrutura de poder e suas características econômicas, políticas e culturais; e iii) ideias e experimentos (técnicos, econômicos, sociais etc.) que lhes permitam formular algum tipo de proposta estratégica de desenvolvimento rural para o território, que será utilizada, explícita ou implicitamente, para tentar construir uma espécie de “bloco hegemônico” ou de coalizão estratégica, tendo em vista garantir a aprovação de projetos territoriais que, pelo menos em parte considerável, objetivem implementar essa estratégia de desenvolvimento rural no território[48].

Pelo proposto acima, a abordagem do protagonismo social territorial sugere um tratamento metodológico da dinâmica institucional, que torna indispensável a análise das interrelações entre as noções de ideias, interesses e instituições, tal como tem sido feito, em parte, pela literatura atual sobre mudança institucional e sobre políticas públicas[49]. O protagonismo social é impossível de ser concebido sem ideias que expressem os interesses dos atores e que os adaptem à formulação de propostas mais gerais que fundamentem e viabilizem suas estratégias de formação de coalizões com outros atores. Sem a elaboração e a adoção de ideias agregadoras, que estabeleçam objetivos e linguagens comuns para diferentes atores, os processos de fragmentação de interesses e de rent seeking (busca de rendas, vantagens, privilégios) e os fenômenos de free riding (comportamento oportunista) dos atores sociais individuais são praticamente impossíveis de serem contornados, inviabilizando o surgimento de protagonismo social no território e comprometendo as possibilidades de aperfeiçoamento e de consolidação da institucionalidade territorial e de articulação de atores e de políticas públicas, indispensáveis para a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento rural.

Notas

[1]Retomamos neste parágrafo algumas das considerações apresentadas em Cazella, Bonnal e Maluf, 2009.

[2] Faz-se aqui referência explícita à corrente da geografia que focaliza sua atenção nos efeitos espaciais das dinâmicas sociais e, portanto, considera o território como uma construção social.

[3]Santos, 1994 e 2007.

[4]Gumuschian, 2002.

[5]Lévy e Lussault, 2003.

[6]Pecqueur, 2000.

[7] Porter, 1990.

[8]Uma cesta de bens pode ser constituída, por exemplo, por atividades de turismo rural, valorizando uma paisagem atrativa (ativo específico), a produção de alimentos de qualidade e a tradição culinária original. Ver a respeito Mollard, 2001.

[9] A política de desenvolvimento territorial em zonas rurais foi instituída em 2003, no início do primeiro mandato presidencial do Governo Lula, com a criação da SDT no interior do MDA. Mais tarde, os Territórios da Cidadania representaram uma extensão desse enfoque para outros ministérios com o propósito de coordenar as principais ações de alívio à pobreza rural conduzidas pelo governo.

[10]Vieira et al, 2010.

[11]Theys, 2006, p. 180.

[12]Theys, 2006, p. 183.

[13]Bagnasco, 1998; Becattini, 1992; Garofoli, 1996.

[14]Pecqueur, 1987.

[15]Gumuschian e Pecqueur, 2007.

[16]Vieira et al, 2010, p.6.

[17]Veiga et al, 2001, pp.57-58. Esse autor foi um dos pioneiros no debate sobre o desenvolvimento territorial no Brasil ao introduzir o tema tanto no meio acadêmico (Veiga, 1999), quanto na agenda de políticas públicas durante o período que presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável no final do segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso.

[18]Theys, 2006, p. 191.

[19]Le Roy, 1997; Raud, 1999.

[20]Carrière e Cazella, 2006.

[21]Vieira et al, 2010, p. 7.

[22]Favaretto, 2009; Cazella, 2006.

[23]Muller, 2004, p. 4.

[24]Thoenig, 2004.

[25]Jobert e Muller, 1987.

[26]Massardier, 2003.

[27]Lascoumes e Le Galès, 2007, p. 6.

[28]Muller, 2000.

[29]Jones, 1970.

[30]North, 1990; Mahoney, 2001; Pierson e Skocpol, 2002.

[31]Lindblom, 2009/1959 e 1979.

[32]Muller, 2004, p. 59.

[33]Palier e Surel, 2005.

[34]Offe, 2001.

[35]Cohen e Arato, 1992, p. ix.

[36]Offe, 2001, pp. 129-130.

[37]Offe, 2001, p. 130.

[38]Offe, 2001, p. 131 e p. 132.

[39]Abramovay, 2006.

[40]Fligstein, 2001.

[41]Abramovay, 2006, p. 60.

[42]Abramovay, 2006, pp. 60-61.

[43]Habermas, 1980, p. 103.

[44]Offe, 2001.

[45]Carrière e Cazella, 2006, p. 35.

[46]Offe, 2001, p. 128 e p. 131.

[47]Delgado e Zimmermann, 2010; Delgado, 2009/2010.

[48]O conceito de hegemonia está, sem dúvida, relacionado à capacidade de direção e de construção de alianças, originalmente discutido por Gramsci. No entanto, a expressão “construir um bloco hegemônico”, no sentido dado acima, refere-se simplesmente à tentativa, a partir da iniciativa de determinados atores, de compor uma base social e política – através da articulação de atores e de políticas públicas - capaz de respaldar a existência e a implementação de uma proposta ou de um projeto de desenvolvimento rural para o território.

[49]Blyth, 2002; Palier e Surel, 2005.


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© Copyright Philippe Bonnal, Ademir Antonio Cazella, Nelson Giordano Delgado, 2012
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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam Hermi Zaar]


Ficha bibliográfica:

BONNAL, Philippe; CAZELLA, Ademir Antonio; DELGADO, Nelson Giordano. Contribuições ao estudo do desenvolvimento territorial rural: reflexões metodológicas a partir do caso brasileiro. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 30 de noviembre de 2012, Vol. XVII, nº 1002. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-1002.htm>. [ISSN 1138-9796].