Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9796]
Nº 133, 21 de enero de 1999

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CARVALHO, Marcos Bernardino de. Da Antropogeografia do Final do Século XIX aos Desafios Transdisciplinares do Final do Século XX: O Debate Sobre as Abordagens Integradas da Natureza e da Cultura nas Ciências Sociais. Tese de Doutorado orientada pela Prof. Dra. Helena Ribeiro Sobral, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Brasil, outubro de 1998. XI+ 350 p.

Elvio Rodrigues Martins
Prof. Dr. do Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Brasil

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A tese de Marcos Bernardino de Carvalho representa uma contribuição valiosa para revigoramento do pensamento geográfico, no sentido de afirmar sua importância como parte integrante dos conhecimentos fundamentais que pautam os problemas das existências dos homens e do mundo em geral.

Faz isso tanto mediante resgates, descobertas e re-leituras de importantes componentes do patrimônio de produções passadas da ciência geográfica, bem como associando-se aos debates mais contemporâneos no campo da filosofia das ciências. Na verdade esse é um trabalho em que a ciência geográfica é o veiculo que nos introduz em uma reflexão mais ampla acerca dos problemas e das perspectivas da ciência em geral.

Mais especificamente, Marcos B. de Carvalho nos convida a uma re-leitura estimulante da obra de Friedrich Ratzel (1844-1904), demonstrando quão mal lido e quão mal interpretado foi o pensamento daquele antropogeógrafo, que até hoje muitos de nós, simplificadamente, associamos aos diversos ismos (determinismo, evolucionismo, positivismo, etc,) que aprendemos a condenar, apesar desse enquadramento não corresponder, como nos demonstra a minunciosa análise feita por Marcos B. de Carvalho das principais obras de Ratzel, à realidade das propostas e formulações feitas pelo professor de Leipzig.

Além da análise das grandes obras, o autor da tese apóia-se, nessa sua demonstração, no exame dos calorosos embates havidos entre Ratzel e seus pares dos meios acadêmicos-científicos da época, realçando, e isso é o mais importante, os diversos elementos que nos permitem perceber a contemporaneidade das preocupações de Ratzel quanto a natureza constitutiva do pensamento científico ou mesmo geográfico.

Para os debates atuais da filosofia da ciência, o autor da tese nos põe em contato com reflexões de pensadores provenientes das mais diversas áreas do conhecimento, cujos trabalhos de alguma maneira manifestaram inquietações sobre a natureza dos discursos científicos. Assim, vemos os pensamentos de físicos como Werner Heseinberg e Niels Bohr, de antropólogos como Edgar Morin e Marc Augé, químicos como Ilya Prigogine, ou mesmo biólogos como Joël de Rosnay, entre muitos outros, desfilarem suas idéias sobre questões centrais do conhecimento científico e, a partir disso, Marcos B. de Carvalho nos leva a refletir sobre as conexões desses debates com as preocupações da Geografia e dos geógrafos, do passado e do presente.

Portanto, não resta dúvida que esse trabalho, além de contribuir para uma atualização do pensamento geográfico, também o fortalece enquanto uma área do conhecimento capaz de produzir referências teóricas, não só para si e seu público interno (que, diga-se de passagem, por vezes não reconhece ser esse um papel da geografia), mas também para todos aqueles interessados na reflexão da complexidade da vida e das dificuldades da existência. Aqui, o pensamento geográfico quer ser vanguarda. Quer sugerir a necessidade de um novo pacto entre a ciência e a sociedade. Quer propor uma reflexão rompedora de fronteiras acadêmico-intitucionais e denunciar as unanimidades opressivas. Tudo isso em nome de um pensamento que busca refletir e estar em sintonia com a riqueza muitifacética da realidade em suas perpétuas metamorfoses. Um pensamento rico na polivalia de referências culturais, na fusão de horizontes lógicos, na aproximação entre ciência, arte, cultura e filosofia. Um conhecimento a serviço das consciências cosmopolitas e do respeito às integridades singulares e individuais. Uma geografia para seres planetarizados.

O Conteúdo da Tese

A tese esta dividida em três partes. Na primeira -- "Antropogeografia: Ratzel e a proposta de uma ciência social pluridisciplinar e hologeica" --o autor dedica-se a expor os principais elementos constituintes do pensamento de Ratzel, observados em suas principais obras. Na segunda -- "O alcance do legado ratzeliano e a reação das ciências e dos cientistas sociais na virada do século XIX" -- são examinadas as repercussões da produção ratzeliana nos meios acadêmicos, especialmente a polêmica criada em torno de suas formulações no ambito das ciências sociais. Finalmente, na terceira parte -- "Da resistência epistemológica ao conhecimento transdisciplinar e hologeico" -- cruzam-se as formulações do pensamento ratzeliano, as críticas que lhes foram feitas e os debates contemporâneos da Ciência.

Na primeira parte, são analisadas em seus fundamentos as quatro principais obras de Ratzel: Anthropogegraphie, Völkerkunde, Politische Geographie e Die Erde und das Leben. Mediante essa exposição ficam evidenciados fundamentalmente dois aspectos da obra do autor: em primeiro lugar, a sua distância, recusa e crítica em relação ao determinismo, condição que seus detratores jamais admitiram; e, em segundo lugar, a defesa intransigente de uma atitude integradora dos diferentes ramos do conhecimento, denominada por Ratzel de proposta hologeica.

Muito distante dos determinismos grosseiros observa-se o real propósito da Antropogeografia de Ratzel, na qual ele se propõe a investigar os componentes físico-geográficos e histórico-antropológicos da difusão do homem sobre a Terra. Para conduzir tal investigação, como Marcos B. de Carvalho observa em sua tese: "o pensador alemão metabolizou tal atmosfera [a atmosfera científica do final do século XIX] de maneira singular ao sugerir um caminho para o conjunto das ciências sociais, num momento em que o tratamento de conjunto, dada a pressão analítica e corporativa, estava fadado ao insucesso" (pág. 54). Evidencia-se, assim, que para Ratzel havia a necessidade da construção de um conhecimento capaz de indicar a existência da conexão entre todas as coisas presentes no mundo. Portanto, muito mais que estudos detalhados e específicos das diferentes realidades geográficas desse mundo, ou de suas partes, a Antropogeografia representa uma nova concepção de organização do conhecimento científico, centrado num princípio epistemológico holístico. Ou, como diz o próprio Ratzel, citado por Marcos B. de Carvalho: "Se é verdade que a geografia investiga os mesmos fenômenos que são estudados também por outras ciências, todavia o seu método se distingue por causa de sua tendência natural a ultrapassar seus próprios muros, realizando uma observação que eu denominarei Hologeica, ou seja abraçadora de toda a Terra". (pág. 79)

Essas características também são observadas nas demais obras de Ratzel.

Na verdade, a Antropogeografia, a Geografia Política e As Raças Humanas, são obras que obedecem uma linha de seqüência e amadurecimento do pensamento ratzeliano, configurando-se como partes constituintes, segundo a proposta de Ratzel, da elaboração de uma ciência mais geral: a biogeografia. No entanto, como bem observa o autor da tese, a noção ratzeliana de biogeografia não deve ser confundida com aquela que usualmente temos, e restrita às cartografias de flora e fauna, mas sim como algo que efetivamente representa um conhecimento integrador de todas as formas de vida constitutivas do mundo, incluindo os seres humanos, seus territórios, suas sociedades e suas histórias.

Assim, a partir da análise desenvolvida nessa parte da tese evidenciam-se as fragilidades das obscuras afirmações que enquadraram Ratzel como determinista, ou então as infundadas acusações de ele ter sido precursor das bases do nacional-socialismo. Marcos B. de Carvalho discute largamente essa questão. Mais diretamente, referindo-se àquela obra que daria os principais argumentos para tais acusações, "Geografia Política", o autor da tese demonstra que o seu caráter era de investigação da relação entre a movimentação das populações, seus estabelecimentos e a constituição dos Estados, mencionado o próprio Ratzel na sua definição de que a "Geografia Política" constituia o "núcleo da parte mecânica da Antropogeografia" (pág. 90) . Sendo assim, enquanto a antropogeografia estuda as concentrações humanas, suas posições, sua difusão e seu desenvolvimento, relacionando-o com a densidade demográfica, o nível cultural e as trocas, a geografia política tem o seu olhar mais voltado para a consideração das condições e dos resultados político-territoriais dessas concentrações humanas. Portanto, como nos afirma Marcos B. Carvalho, a Geografia Política de Ratzel não tem como objetivo principal "formular ciência ou discutir epistemologia científica, mas sim abordar um tema à luz dos fundamentos antropogeográficos". (pág. 91)

Na segunda parte da tese observamos as repercussões nos meios acadêmico-científicos da obra razteliana. Há nessa parte pelo menos três aspectos que chamam a atenção: a discussão que Durkheim faz do pensamento de Raztel em diversos artigos do L'Année Sociologique; a posição tomada por Vidal de La Blache; e, por fim, o "veredicto final" proferido pelo historiador Lucien Febvre acerca dos "inconvenientes" acadêmico-institucionais em se aderir às propostas do geógrafo alemão.

Na polêmica com Durkheim, observa-se uma verdadeira disputa territorial de competências entre a Morfologia Social proposta pelo sociólogo e a Antropogeografia. Durkheim criou inclusive uma seção em L'année com o nome de Morfologia Social, onde criticamente expõe a obra de Ratzel. Manifesta-se aí o desconforto causado pelas posições hologeicas do pensador alemão, desrespeitadoras, segundo Durkheim, das competências reivindicadas por sua Morfologia Social. Numa argumentação um tanto duvidosa por parte do sociólogo, uma vez que flagrantemente ignora inúmeras passagens da obra ratzeliana, como nos demonstra o autor da tese, Durkheim caracteriza a Antropogeografia como uma obra genérica e fortemente balizada pelos horizontes de um determinismo físico-territorial. Ou, como expõe Marcos B. Carvalho: "Era necessário colocar a geografia no seu "devido lugar", e, para isso, nada melhor do que acusar as imprecisões e "vaguidades" de suas formulações, pois o passo seguinte seria sugerir as tarefas que lhe caberia desenvolver, desde que na condição assumida de tributária da morfologia social" (pág. 152). Dessa forma, a ciência geográfica ficaria restrita a uma função descritiva e desobrigada das tarefas explicativas, tais como a de responder questões do tipo "como se formaram" determinados agrupamentos humanos.

Postura um tanto vacilante teve Vidal de La Blache diante da contenda. Num primeiro momento, o eminente geógrafo francês esteve muito próximo das posições de Ratzel, defendendo a necessidade da ciência geográfica possuir um método fundado na concepção de "unidade terrestre". Em sucessivos artigos presentes nos números inciais dos Annales de Géographie observa-se, entre outras, a seguinte afirmação de La Blache: "Diante do perpétuo movimento de influências que se trocam entre a natureza e o homem, seria sem dúvida uma ambição prematura querer formular leis. Mas, claramente já aparecem certos princípios de método que se destacam. Se este resumo, com todas as suas insuficiências, tiver o êxito de despertar esta idéia nos leitores, que isto se torne motivo para que se reportem aos escritos de M. Ratzel." (pág. 175)

Todavia, a posição do geógrafo francês se inverte. Num artigo publicado nos Annales de 1913, que reproduz uma palestra proferida por Vidal de La Blache, ele afirma que a ciência geográfica possui lugar destacado no grupo das "ciências naturais, ao qual sem nehuma dúvida pertence" (pág. 179). Ocorre que durante anos La Blache esteve, como nos lembra Marcos B. Carvalho, preso à discussão de onde estaria localizado o conhecimento geográfico, mas que este, sem dúvida, localizava-se dentro do emaranhado de fronteiras disciplinares das nascentes "ciências sociais". Não bastasse isso, La Blache também passa a concordar com Durkheim, em restringir a ciência geográfica ao campo das puras descrições.

As razões dessa inversão de posição por parte de La Blache parecem estar relacionadas com a posição assumida por Lucien Febvre. Este manifesta sua opinião no famoso La Terre et l'évolucion humaine de 1922.

Em seu importante livro, Febvre não se dedica apenas a discutir a posição de La Blache exposta no mencionado artigo, mas desenvolve extensos argumentos com vistas a intervir de forma efetiva no debate entre a geografia e as demais ciências sociais. Seu alvo principal, não há dúvida, são os principais postulados ratzelianos. Sua argumentação visava nitidamente desmoralizar o esforço pioneiro do geógrafo alemão. Aqui nasce a defesa da posição de La Blache, denominada por Febvre de "possibilista", em detrimento de um suposto "determinismo" de Ratzel. Some-se a isso, o esforço em desenvolver e ratificar os próprios argumentos de La Blache, principalmente os do artigo de 1913, delimitando o domínios de cada uma das disciplinas, restando para a geografia a condição de ciência dos lugares e não dos homens. Ou seja, segundo as palavras do próprio Febvre "o homem que interessa à geografia é o agente fisionômico, isto é, aquele elemento que se soma à ação dos fatores físicos e biológicos na modificação da fisionomia dos lugares" (pág. 199). Eis, segundo Febvre, a tarefa da geografia: uma ciência da fisionomia dos lugares. Assim, parece ter se chegado a uma solução, para a querela da época, que, ao que tudo indica tornou-se hegemônica.

O que fica evidente, no final dessa análise estabelecida nas duas primeiras partes da tese de Marcos B. de Carvalho, são os conflitos gerados entre distintas perspectivas: de um lado, a defesa dos interesses corporativo-acadêmicos e, de outro, posturas inteessadas em refletir no discurso científico a real complexidade constitutiva do mundo e sua totalidade em eterna metamorfose. A "vitória" dos primeiros em relação aos segundos teve e tem suas conseqüências. E a resposta a isso é o debate contemporâneo traçado pelo autor da tese na terceira parte de seu trabalho.

Nos capítulos dessa última parte o autor nos apresenta o cenário contemporâneo da discussão sobre a natureza da Ciência, ilustrando-o com a retomada da necessidade de discursos que não se detenham de forma hermética em suas "propriedades privadas" acadêmico-institucionais. Tais discursos nos conduzem a uma ciência que se indiscipline, diante de posturas insistentes em manter o isolamento disciplinar ou o artificialismo dos objetos próprios e exclusivos.

Na tese de Marcos fica evidente a existência, no passado, de discursos alternativos à natureza do conhecimento científico. O Hologeismo ratzeliano, portanto, é contemporâneo àqueles que também propõem novas formas ao conhecimento científico. Hoje, retoma-se o combate mais sistemático ao princípio da "análise sem síntese". Trata-se da superação de um legado essencial do cartesianismo.

Os motivos dessa receptividade aos discursos integradores, segundo Marcos B. de Carvalho, podem ser atribuidos a pelo menos duas ordens de fatores: "Uma delas, sem dúvida, são as próprias condições evidenciadas hoje nos contextos configurados pelas situações-limite a que fomo levados, não só pela ciência e pela tecnologia, mas também pelas disposições econômicas, políticas, culturais e sociais, que hegemônica e imperativamente vêm se assenhoreando das escalas planetárias há algum tempo" (pág. 246); e a outra ordem de fatores seria aquela que nos foi proporcionada pela configuração de uma resistência epistemológica que, inspirada em concepções hologeicas, investiu contra as reduções praticadas pela formulação analítico-corporativa. São os casos, por exemplo, de Bachelard e Whitehead, segundo Marcos.

O hologeismo tem seu princípio totalizante hoje traduzido na postura transdisciplinar. Princípio este que pretendendo ser mais do que integrador, nos termos de uma interdisciplinaridade, quer ser transgressor/transcendente às fronteiras disciplinares. Algo que Marcos vai buscar em autores como Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jöel de Rosnay, Angelo Turco, entre outros.

Partindo da idéia que a complexidade é o conceito que exprime as múltiplas interligações de todos os elementos integrantes da vida na Terra, Marcos B. de Carvalho busca fugir de falsas dicotomias (como a estabelecidas entre determinações sociais e naturais) e fictícias divisões do conhecimento. Também se rebela contra a separação entre arte e ciência, e isso vemos em sua tese, ao mencionar o Doutor Pascal de Émile Zola. Aqui a obra de Zola é tomada como exemplo para mostrar a "sintonia entre essas narrativas da complexidade cotidiana e aquelas formulações que há pouco denominamos de resistências epistemológicas." (pág. 273)

Por último, Marcos B. de Carvalho situa a geografia nesse debate. Aqui vêm à tona as categorias de espaço e tempo e a demonstração da necessidade de um conhecimento transdisciplinar, que a interpretação de ambas exige. Tais categorias incorporam valor antropológico, superando suas interpretações meramente físicas, e exigem o cruzamento de referências culturais múltiplas, projetando uma ciência geográfica atenta à complexidade difusa do mundo como expressão territorial do continuum ordem/desordem. Enfim, uma geografia tomada como resultado da relação sociedade/natureza balizada por uma dinâmica antropo(bio)geográfica.

Eis aí o pensamento livre de Marcos Bernardino de Carvalho.

A tese foi defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil, no dia 9 de outubro de 1998, perante uma banca constituida pelos seguintes membros: Prof. Dra. Helena Ribeiro Sobral (orientadora da tese), professora do Departamento de Geografia da PUC-SP e do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP); Prof. Dr. Elvio Rodrigues Martins, professor do Departamento de Geografia da PUC-SP; Prof. Dr. Edgar Assis Carvalho, professor do Departamento de Antropologia da PUC-SP e da Univesidade Estadual Paulista (UNESP); Prof. Dr. Heinz Dietter Heidemann, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e Profa. Dra. Silvia Fernanda de Mendonça Figueiroa, professora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Obteve a nota 10,0 (dez).

© Copyright: Elvio Rodrigues Martins, 1999.
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