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Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98
Vol. VII, nº 401, 30 de septiembre de 2002

AUGÉ, MARC. Diario de guerra, El mundo después del 11 de septiembre. Barcelona: Gedisa. 2002. 94 p. [ISBN 84-7432-963-9]

Marcos Bernardino de Carvalho
Departamento de Geografia/ PUCSP- Brasil


Palabras-clave: terrorismo, não-lugares, história, Estados Unidos

Key-words: terrorism, non-places, history, USA


Desde os episódios de 11 de setembro de 2001, inúmeros títulos inundaram as prateleiras de todas as livrarias oferecendo uma pluralidade e quantidade de análises que só fatos da magnitude dos que naquele dia se sucederam são capazes de promover.

Produzidas enquanto ainda não haviam sido retirados nem todos os destroços resultantes do ataque e desabamento do World Trade Center, muitas dessas análises são recebidas com as reservas e as desconfianças que naturalmente temos diante dos enfoques precipitados e superficiais que buscam tirar partido do calor dos acontecimentos.

Há no entanto exceções. Isto é, entre os inúmeros títulos dedicados ao 11 de Setembro, é possível encontrar alguns que já parecem portar uma condição de reflexão amadurecida , apesar do curto período de tempo que nos separam daquele episódio. É esse o caso do mais recente livro de Marc Augé, Diário de Guerra/ El mundo después del 11 de septiembre, lançado com o título original Journal de guerre (Paris: Editions Galilée, 2002) e traduzido para o espanhol em seguida ao seu lançamento da França, ainda no início de 2002.

Em Diário de Guerra, a sensação de que estamos diante de uma reflexão feita há mais tempo do que de fato foi, possivelmente resulta das modestas pretensões da análise, que o próprio autor anuncia na introdução de seu texto (e realiza no seu desenvolvimento), e também porque boa parte de seu conteúdo dá prosseguimento a um caminho de considerações que há muito já vinha sendo trilhando pelo autor, agora enriquecido com a ilustração proporcionada pelos inéditos e trágicos acontecimentos do 11 de Setembro. Segundo palavras do próprio Augé: "São páginas de humor e de reação viva, que se alimentam dos acontecimentos e da atualidade e, simultaneamente, recuperam o rastro de reflexões já esboçadas ao longo do tempo, de nosso tempo." (p.11)

Esse rastro de reflexões pode ser muito bem escrutado apenas tomando-se como referência um dos livros mais conhecidos de Marc Augé, Não-Lugares/Introdução a uma antropologia da supermodernidade, lançado na França em 1992 e no Brasil em 1994 (Papirus Editora). Nele, Augé conceituava como não-lugares, "tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais" (p.36-37) e afirmava serem eles, os não-lugares, "particularmente visados por todos aqueles que levam até o terrorismo sua paixão pelo território a ser preservado ou conquistado" (p.102).

Agora, nesse seu Diario de Guerra, o autor afirma: "O cenário dos atentados é, para dizer a verdade, bastante estranho. Os locais em que eles acontecem pertencem àquela espécie que eu denominei não-lugares porque parecem escapar a qualquer determinação de identidade, simbólica ou histórica" (p.62).

A proliferação dos não-lugares parecia ser o jogo inexorável da supermodernidade. Os episódios de 11 de setembro, no entanto, parecem indicar que esse curso pode ser invertido. No mínimo, transforma um local de identidades e contatos fugazes, balizado pelo ritmo frenético dos negócios, ou do turismo ligeiro, em um novo espaço de relações "onde se recria uma identidade coletiva, onde se afirma um patrimônio, um lugar de culto e de celebração, que de agora em diante simbolizará outra América." (p. 64). Segundo Augé, por meio do gesto desesperado do terror, "tragicamente (a história é trágica), o não-lugar converteu-se em lugar" (p.64).

Assim, a inércia de uma história previsível, cujo fim, por isso mesmo, já havia sido inclusive decretado, parece viver um daqueles sismos que mesmo que desviem esse seu curso inercial em apenas minutos ou segundos de grau, provocam, ao longo de períodos suficientemente extensos, trajetórias e soluções bastante diversas daquelas incialmente previstas, cultivadas ou apregoadas.

Num único ato, a ausência de identidade se desfaz e o "símbolo do global torna-se terrivelmente local" (p.66), registra Marc Augé em seu Diário.

As coisas se passam como se os valores excluídos e as pessoas que se julgam vitimadas por aquilo que o géografo Milton Santos apropriadamente denominou de "globalitarismo", interrompessem à força esse processo coercitivo e nos alertassem para o fato de que a história da chamada globalização, em verdade, ainda não se iniciou, pois se é de interação e inter-relação mundial que de fato se trata o atual processo mundializado, e não da imposição totalitária de pensamentos, padrões e modos únicos de existência a todos os povos e países do planeta, há que se incluir na composição de forças que contribuirão para a resultante planetária, o conjunto de vetores que participam da cena mundial.

"Se tomamos o planeta como referência", afirma Augé, "devemos admitir que a história humana até nosso dias não foi mais do que uma pré-história". E o próprio autor conclui: "A história do planeta como cenário total e como aposta resultante dos enfrentamentos e das inciativas dos homens começa agora." (p.38)

Augé dialoga, assim, com vários autores que, de uma maneira ou de outra, já haviam sugerido limites para a história recente da nossa aventura humana, ou para os prazos, longos ou curtos, do seu transcurso e vaticina: "O mundo viverá uma nova Guerra dos Cem Anos, com seus altos e baixos, suas tormentas e suas calmas, mas será uma guerra interior, civil, uma guerra eminentemente política, cuja aposta será saber se a democracia pode se transformar, se a utopia planetária pode realizar-se ou se as exortações que alternam entre a loucura religiosa e a barbárie mercantil continuarão se prolongando até as estrelas."(p. 93-94)

Para o autor de Diário de Guerra, portanto, os acontecimentos de 11 de setembro não são pouco importantes, nem podem ter o seu significado reduzido à simplificada interpretação que busca circunscrevê-los à insânia tresloucada do gesto terrorista de um ex-agente da CIA, agora convertido em inimigo número um da "civilização ocidental" por um presidente dos EUA que, aliás, investiu-se no cargo supremo da principal potência planetária graças a uma bem conduzida fraude eleitoral e ao silêncio complacente da orgulhosa justiça norte-americana.

Quanto ao gesto terrorista, Augé faz questão de deixar clara sua veemente condenação: "gesto nihilista de quem já não sente respeito nem por suas vidas nem pelas vidas dos outros, porque seu ódio e sua loucura os conduziram para além desse respeito" (p.77). Mas isso, segundo o autor, não deve nos impedir de buscar entender mais aprofundadamente o significado e as conseqüências dos gestos e processos que são conduzidos por protagonistas portadores de toda espécie de desequilíbrio ou ilegitmidade, nem tampouco nos impedir de distinguir, entre os acontecimentos, aqueles que por sua magnitude e pelas reações provocadas transmutam-se em causas deflagradoras de novos processos, às vezes imprevistos e incontroláveis. A história, nos lembra Augé, é prenhe de importantes situações em que tais características poderiam ser verificadas. Freqüentemente, na genesis de seus processos "se combinam forças e fatores que não tem nem a mesma idade, nem a mesma história, nem o mesmo sentido" (p.30).

Dessa forma, os acontecimentos de 11 de setembro têm, no mínimo, a propriedade de nos tornar mais conscientes do transcurso e da irreversibilidade do tempo no qual estamos submersos: "Vivemos no tempo como o peixe na água e quando entre o tempo que está fluindo e o tempo que já passou nenhum obstáculo, nenhum contratempo se interpõe, podemos ter a sensação ilusória de uma continuidade sem pausa nem ruptura, quase imóvel, até o momento em que algum acontecimento imprevisto nos impõe, com a evidência de um presente inédito, a certeza de um passado sem retorno. Com o atentado de Nova Iorque, esta evidência emerge de uma repentina e coletiva tomada de consciência." (p.48)

Quase todos os breves capítulos desse pequeno mas denso livro-diário de Augé são denominados por meio de referências a datas específicas ou simplesmente ao tempo e suas imprecisões, como por exemplo "Domingo 30 de setembro de 2001" (3° capítulo) ou "O tempo que passa e que não passa" (6° capítulo) ou "Sábado 22 de dezembro de 2001" (décimo e penúltimo capítulo). Com isso o autor não só se utiliza da marcação típica de qualquer diário, mas também parece querer chamar a atenção para o fluxo do nosso próprio tempo, que teimamos em caracterizar como uma sucessão desprovida de acontecimentos.

As idéias do antropólogo francês e sua "caderneta de campo", que já nos conduziram por vários outros "lugares" e agora nos levam a refletir sobre os escombros das Torres Gêmeas, podem produzir incomôdos ou discordâncias, mas não seria conveniente ignorá-las, sob pena de empobrecermos nossa percepção sobre o significado e os rumos dessa história que os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 deflagraram.
 

© Copyright: Marcos Bernardino de Carvalho, 2002.
© Copyright: Biblio 3W, 2002.

Ficha bibliográfica

CARVALHO, Marcos Bernardino de. O lugar, o tempo, a guerra e o começo da história. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. VII, nº 401, 30 de septiembre de 2002.  http://www.ub.es/geocrit/b3w-401.htm [ISSN 1138-9796]


 
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