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REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie  documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. IX, nº 535, 20 de septiembre de 2004

GOMES, Paulo César da Costa.  A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: 2002, 304 p.  [ISBN 85-286-0956-1]

Angela Maria Endlich

Universidade Estadual de Maringá-PR
Universidade Estadual Paulista -Presidente Prudente-SP
Brasil


Palavras-chave: território; espaço urbano; geopolítica.

Key words: territory; urban space; geopolitics.


O autor do livro A condição urbana, Paulo César da Costa Gomes, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 1995, atua nas linhas de pesquisa Território e Cidadania e Teoria da Geografia. A leitura do referido livro poderá referendar a filiação do autor a essas duas linhas, já que ele reúne numa só publicação contribuições que contemplam temas afinados com ambas.

Suas publicações anteriores versaram principalmente sobre o espaço público, cidadania e modernidade, em especial o livro Geografia e Modernidade, uma das duas principais publicações do autor, ao lado de A condição urbana. Entretanto outros trabalhos compõem seu currículo, como publicações periódicas e participação na qualidade de autor e organizador de coletâneas no Brasil e na França.

O livro que se resenha, A condição urbana, sintetiza os esforços do autor em contribuir para a construção teórica da Geografia. Exposições com essa preocupação no Brasil devem lembrar o nome de Milton Santos, por quem foi cunhada essa perspectiva no país. Santos inspira Gomes em diversos momentos; contudo, o raciocínio deste flui de forma bastante independente, trazendo outros olhares para esta empresa convergente.

Sobre a formulação do livro, Gomes expõe em suas últimas notas que ele foi esboçado em 1997; portanto demandou alguns anos, dedicados a ampla pesquisa, cujos resultados se encontram expressos ao longo da obra. Embora distintas, as realidades analisadas ganham afinidade na interpretação do autor quanto ao referencial teórico por ele proposto e aplicado.

Seu aporte para a Geografia está na persistente procura dos componentes espaciais presentes nas práticas e representações do poder, que se convertem em embates territoriais, de acordo com diversas situações apresentadas: "O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela independência da Província do Quebec, no Canadá?" (p.7).

Conforme Gomes, trata-se, na realidade, de uma disputa territorial, e ele analisa minuciosamente estas situações mostrando a relevância desse processo. Os diferentes quadros enfocados constituem exemplos por meio dos quais o autor explica que onde há vida pública há conflitos que, de alguma forma, traduzem-se em disputa territorial. Se os poderes constituídos possuem uma dimensão espacial, as contestações também envolvem tal componente.

Na introdução, o autor afirma que são três as noções básicas que estruturam a reflexão do livro - território, política e cidade.  Versa, enfim, sobre a geopolítica, como anuncia seu subtítulo. O livro estrutura-se em duas partes. A primeira é dedicada à fundamentação teórica e está baseada em duas matrizes. A segunda refere-se à aplicação destas matrizes.

Gomes preocupa-se em ampliar o diálogo da Geografia com as demais ciências sociais, visando superar a visão restrita que têm da Geografia os demais profissionais. Esta visão expressa-se em trabalhos multidisciplinares, nos quais as condições geográficas não vão além da descrição dos elementos morfológicos e ambientais no interior de um determinado recorte territorial. O trabalho dos geógrafos em equipes multidisciplinares deve ajudar a ultrapassar essa visão simplista da Geografia.  Eles devem evidenciar outras contribuições desta ciência na análise da sociedade.

As matrizes teóricas propostas pelo autor resultam de "marcas duráveis, profundas e distintas de conceber e de viver o espaço, e resultam em modelos igualmente distintos de refletir sobre a dimensão política do espaço; por conseguinte, de escrever uma geografia política". (p.29).

A primeira matriz -O nomoespaço- baseia-se numa relação da sociedade com o espaço regida por normas que regulam a dinâmica social protagonizada por indivíduos diferentes. O sistema social fundamenta-se na lógica. Gomes explica que a lei diferencia espaços à medida que exclui aqueles que não são por ela atingidos, criando e formalizando territórios de inclusão e exclusão social (p.34).

Embora esta relação caracterize o Estado moderno, o autor mostra sua origem pretérita: a polis grega. Esta se definia como a fronteira dos muros e de suas leis, criando um novo domínio da vida coletiva, redefinindo seus quadros físicos e comportamentais baseados na igualdade e na constituição do espaço público. Assim ocorreu a passagem de uma comunidade étnica para uma sociedade civil e a polis passou a ser sede do poder cidadão. Da mesma maneira, as formas romanas de organização do território -a propriedade privada, a cidade e o Império - exigiam limites rigorosamente definidos. Então, a delimitação espacial está associada à organização social. É a esse tipo de relação social com o território que o autor denomina nomoespaço, constituído por uma extensão física limitada, instituída e regida pela lei, baseada em princípios justificados. O nomoespaço constitui-se por relações formais de pertencimento e ordenamento. A desobediência à lei implica em penalidades correspondentes à exclusão territorial, como o encarceramento (p.35-39).

A organização do espaço também passa a expressar a lógica por meio de novos valores, como a simetria, proporção e geometria. Nesta concepção estão também as raízes do Estado moderno e a origem da sociedade contratual: "Os princípios do contrato são os que regem a organização espacial e por meio dela constroem-se os lugares para determinadas práticas e comportamentos que põem em cena essa ordem social. Assim, o espaço delimita os comportamentos, classifica as ações sociais, ordena a dinâmica social e hierarquiza práticas e instituições". (p.54).

Ao final do capítulo sobre o nomoespaço, o autor apresenta ponderações, pois, embora marcada por valores baseados na idéia de pacto, isonomia, igualdade e justiça, esta relação da sociedade com o espaço apresenta limites, como a dificuldade em atingir um verdadeiro consenso, apesar da sofisticação das normas. Para ressaltar a extrema disciplina, com comportamentos monitorados segundo um sistema de controle, o autor lembra o trabalho de Foucault. Outras denúncias sobre perigos da opressão e do totalitarismo demonstram que a sociedade moderna, fundada nos valores do racionalismo e do individualismo, vem sendo contestada e gerando antiutopias, como 1984, de George Orwell.

A segunda matriz - o genoespaço  -  baseia-se nas origens comuns (reais ou criadas) da relação com o espaço, que constituem grupos ou comunidades. "O discurso que funda a identidade comunitária é o da diferença" (p.60). Esta diferenciação é construída com exageros nos traços que podem distinguir determinado grupo. A unidade pode ser atribuída a traços étnicos, familiares, culturais, históricos, morfológicos, comportamentais ou  mais que um  desses, considerados de forma simultânea.  Nesse caso, a diferença legitima uma identidade comum e própria, baseada num sentimento de pertencimento, de compartilhamento. O genoespaço constitui-se, então, em nome de um coletivo que se impõe sobre o individual, e cria-se uma identidade social. A identidade comunitária está associada a uma identidade territorial. A história de um território comum, ainda que parte de uma história longínqua, pode estar na base da formação dessas identidades. As fronteiras desse tipo de espaço são fluidas e instáveis.

O autor recorre às cidades medievais para mostrar elementos para a análise deste espaço, pois nesse caso as áreas comuns não correspondem a espaços públicos. Constituem-se espaços coletivos que são dissuasivos e de defesa, embora não completamente proibidos aos membros de outros grupos. O genoespaço corresponde à forma mais típica das sociedades primitivas. Não obstante, o livro de Gomes não estabelece uma linearidade cronológica entre as duas matrizes apresentadas. As formas políticas de relacionamento da sociedade com o espaço, fundamento destas matrizes, coexistem.

Após apresentar as duas matrizes, o autor analisa os significados do Estado, Nação e Esdados-Nações, procurando por meio dessas ferramentas sinalizar novos campos para a pesquisa geográfica. Ele contesta a freqüente associação que se faz entre nacionalidade e cidadania, pois a cidadania refere-se à relação com o espaço baseada na igualdade perante as leis do Estado, o nomoespaço. Nacionalidade se aproxima da relação com o genoespaço, fundamentado na diferença e igualdade. Desta maneira, o autor segue problematizando a fusão entre Estado e Nação. Analisa as formas que os Estados modernos adotam para a concessão das nacionalidades, baseadas no direito de solo (todos os que nasceram no território controlado pelo Estado) e no direito de sangue (laços interpessoais de consangüinidade, que compartilham uma herança comum).

Buscando a noção de cidadão no estatuto derivado do contrato social, defende que a cidadania só se aplica ao nomoespaço. Diferencia dois tipos de nacionalismo: o primeiro ele entende como sentimento nacional, como consciência de participar de uma nação ou comunidade política; o segundo baseia-se na convicção de pertencimento a determinado grupo, cujo modo de vida é considerado diferenciado dos outros. Em resumo, a categoria nação existe sob dois registros bastante diferentes nas formas de estabelecimento de relação com o espaço -o nomoespaço e o genoespaço (p.90). É preciso, então, mostrar como a palavra nação passou por alterações semânticas.

O autor mostra a alteração de significados de outros termos afins com a discussão proposta. A cortesia (termo que expressa o bom comportamento da sociedade cavalheiresca) foi substituída por civilidade e, mais tarde, por urbanidade. Enquanto corte deu origem à expressão cortesia, a urbanidade, oriunda de urbs (cidade) fundamenta um comportamento espacializado, já que um espaço define e é definido por um determinado comportamento (p.108).

A segunda parte do livro apresenta aplicações das matrizes aos diferentes casos. O autor inicia esta parte com uma reflexão sobre a cidadania e a Geografia. Que contribuição a Geografia poderia trazer no debate freqüentemente em pauta sobre a cidadania?  A idéia de cidadania pressupõe um componente espacial? Retomando o conceito de cidadania, ele mostra que no mundo grego ela consistia numa forma de relação social que compreendeu também um novo arranjo espacial. "O poder cidadão surgiu da confrontação dos habitantes, concentrados em uma certa área, no caso a cidade de Atenas, contra o poder de uma oligarquia rural que controlava o poder político e a produção da riqueza dessa sociedade".(p.130). O fenômeno espacial é co-fundador do fenômeno político, baseado na isonomia. O autor assegura a idéia de que ser cidadão é pertencer a uma determinada porção territorial. Então, Gomes adverte que as discussões sobre cidadania e democracia não devem ignorar a dimensão espacial, pois as disputas socioterritoriais atuais correspondem a disputas de um espaço que é condição e meio de exercício dessa cidadania. E o olhar geográfico sobre o debate da cidadania moderna, preocupação do autor, pode ocorrer, segundo o mesmo, com a reflexão sobre o espaço público, arena de problematizações, debates e diálogo.

É nesse sentido - de analisar o espaço público - que o autor fala da fragmentação da cidade, constatando a multiplicação de espaços comuns, coletivos, mas não públicos. Ocorre um confinamento dos terrenos de sociabilidade. Observa um recuo da idéia fundadora de cidadania, idéia que organizou a cidade e a convivência social nos primeiros anos da Modernidade (p.174). Esse recuo da cidadania compreende um recuo do projeto social e espacial. Novamente expondo a alteração de significados, o autor lembra que cidade e civilização são palavras com raízes comuns. A redefinição dos quadros da vida social que modificam as práticas, processo que o autor denomina de recuo da cidadania, é paralela ao recuo do espaço público.

O comprometimento do espaço público ocorre principalmente pela apropriação privada dos espaços comuns; progressão das identidades territoriais (tribalização); emuralhamento da vida social (serviços telemáticos, Internet, redes de televisão, videocassetes e outros); crescimento das ilhas utópicas (condomínios exclusivos). Assim, "A urbanidade ou civilidade são códigos de conduta cada vez mais segregados em pequenos espaços de freqüência mais ou menos homogênea". Na realidade, como observa o autor, esses arquipélagos urbanos são arremedos de cidade, pois jamais estabelecem uma vida urbana, já que recusam a diferença e a possibilidade do encontro com o diverso.

Os últimos capítulos do livro o autor reserva para a aplicação da teoria desenvolvida na análise dos casos enunciados na apresentação, nos quais, conforme o próprio autor, trata-se não de comparar casos semelhantes, mas de comparar o incomparável.

Inicialmente, ele compara os arrastões das praias cariocas com tumultos provocados por casseurs (quebradores) em Paris. Ambos identificam-se com a origem habitacional comum. Após mencionar estes casos, o autor considera que, enquanto na França o debate sobre inclusão social associa-se a religião e etnia, no Brasil devem-se levar em conta as grandes distinções de renda. Fatores fundamentais para a análise de uma determinada realidade podem não ser os mais relevantes para outra, por mais parecidos que possam ser os fatos analisados, no caso as origens espaciais dos jovens envolvidos. O que eles possuem em comum é o fato de que não pertencem ao território onde se manifestam, e a impressão criada é de invasão (p.215).

Em outro capítulo, Gomes mostra o futebol e sua dimensão estética, lida por meio da geopolítica: no campo, nas arquibancadas -espaços da torcida - e sobre a cidade nos momentos imediatos ao jogo. O futebol - explica Gomes - consiste num espetáculo que metaforiza os combates territoriais. Utiliza-se um vocabulário bélico para narrar jogadas: tiro, canhão, bomba, míssil, foguete e outros tantos termos citados pelo autor. Analisando a cidade como metáfora do futebol, o autor refere-se a uma apropriação tão forte, que leva os torcedores agrupados a não respeitar regras cotidianamente aceitas pelos mesmos indivíduos. Eles  "desfilam seu domínio pela cidade" Esta passa a fazer parte do universo simbólico do futebol e deve ser conquistada. A afinidade do grupo substitui a cidadania institucional.

A análise sobre os conflitos do Quebec no Canadá discute o movimento separatista dos francófonos residentes naquela província. Afirma-se uma singularidade histórica (preeminência da cultura francesa nas terras canadenses e relato de sucessivas opressões sofridas por este grupo) e territorial (narrativa de espaço singular, construído e moldado por essa cultura). Por outro lado, há diversos outros grupos étnicos no Quebec; mas o autor lembra que os Estados modernos incluíram diferentes nações, cujos princípios são a lei e o poder de imposição sobre um território.   Na sociedade anglo-saxônica, o multiculturalismo (traduzido no direito das comunidades) tende a se impor como ideologia dominante e legitimidade quase absoluta. Entretanto, não se admite a separação territorial definitiva.

Enfim, Gomes demonstra que no âmbito do nomoespaço e do recuo da cidadania ocorrem diversas manifestações afins com as idéias do genoespaço, isto é, com a composição de um espaço coletivo ancorada nas mais diversas motivações.

Procurou-se destacar as principais contribuições do autor, dentro dos limites de uma resenha. Certamente a leitura do livro será profundamente mais convincente acerca dos pontos aqui brevemente assinalados, como também possibilitará a apreensão de outros não comentados.

Pode-se dizer que, nessa publicação, o autor contribui com seus pares naquilo que aponta como necessário na atuação dos geógrafos: mostrar a relevância da análise do espaço no âmbito das ciências sociais na trilha do esclarecimento e da emancipação humana.
 

© Copyright: Angela Maria Endlich, 2004
© Copyright: Biblio3W, 2004
 

Ficha bibliográfica

ENDLICH, A. M. Gomes, Paulo César da Costa.  A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. IX, nº 535, 20 de septiembre de 2004. [http://www.ub.es/geocrit/b3w-535.htm]. [ISSN 1138-9796].



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