Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. 
Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XI, nº 671, 25 de agosto de 2006

MENZIES, Gavin. 1421 – El año en que China descubrió el mundo, traducción de Francisco J. Ramos. Barcelona: Grijalbo, colección Huelas Perdidas, 2003, 555 páginas. ISBN 84-253-3780-1 [versión original: 1421 – The Year China Discovered the World. Londres: Bantam Books, 2003; tercera edición en DeBolsillho, Barcelona, febrero 2005]*
 

Francisco Roque de Oliveira
Centro de História de Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa

Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal)



 
Palavras-chave: Gavin Menzies, China, Viagens de descobrimento, Cartografia histórica, Séculos XV-XVI
 
Key words: Gavin Menzies, China, Voyages of discovery, Historical cartography, 15th-16th centuries


 

Gavin Menzies, oficial da Royal Navy na reserva, tomou como ponto de partida para este livro um conjunto de factos históricos há muito conhecidos. A sua referência principal é a figura do almirante Zheng He (c. 1371-c. 1435), o célebre navegador chinês de origem muçulmana que, entre 1405 e 1421, foi encarregado pelo imperador Yongle (r. 1403-1424) de conduzir seis grandes expedições oficiais aos mares da Ásia do Sueste, a Ceilão, à Índia, ao Golfo Pérsico, ao Mar Vermelho e à costa oriental de África compreendida entre, pelo menos, a actual Somália e Melinde. Com estas directrizes, Yongle dava seguimento à política do primeiro imperador Ming, Hongwu (r. 1368-1398), que lançara vastas ofensivas diplomáticas visando reforçar o prestígio e a autoridade da nova dinastia e das quais resultou a recepção de embaixadas provenientes de países e regiões estrangeiras como a Coreia, o Japão, o Champá, o Vietname, o Camboja, o Sião, a Península Malaia, o Coromandel ou o Bornéu. Com Yongle, os emissários da Corte completam os recentes avanços militares da China na Manchúria, na região do Amur, na Sibéria marítima e no Aname, viajando até à Coreia, ao Japão, ao Sião, a Java, ao Tibete, à Índia, ao Nepal e à Corte de Tamerlão, na Transoxiana. As armadas de Zheng He integram-se neste esforço, fazendo vassalos numerosos reis e régulos do chamado Xiyang (Oceano Ocidental), conceito definido no tempo em que a dinastia Song do Sul (1127-1279) dera um impulso decisivo às comunicações marítimas e ao comércio em direcção aos mundos indiano e muçulmano, mas que, quase 300 anos depois, ganhara um âmbito geográfico mais amplo já que abrangia a área compreendida entre os limites setentrionais e ocidentais do Índico visitados por Zheng He e uma raia instável que ora se traça a oeste de Java e Palembang, ora a oeste de Xiamen e Brunei.

Constitui também um facto incontroverso que este movimento de longa duração – marcado por uma abertura sem precedentes ao exterior e ao mar que atravessa as dinastias Song e Yuan e que acaba por transformar a China das primeiras décadas da era Ming na mais importante potência marítima da Ásia – é interrompido depois da morte de Yongle: em 1433, é assinado o primeiro de uma série de éditos que decretam o fim oficial das expedições marítimas; por volta de 1479, o vice-presidente do Ministério da Guerra submete à Corte uma proposta para a destruição dos registos dessas expedições com o argumento de que constituíam um mau exemplo de dispêndio de recursos; e, ao mesmo tempo que começam a rarear as embaixadas tributárias recebidas em Pequim, o influente confucionismo dos letrados-funcionários vai ganhando a sua campanha contra a participação estatal no comércio externo e consegue conduzir o Império a um novo longo período de ensimesmamento[1] .

Quanto ao almirante Zheng He, sabe-se que em 1431 ainda foi autorizado a partir para uma sétima viagem, que se prolongou por três anos e no curso da qual revisitou boa parte das rotas que antes percorrera. De acordo com a versão mais difundida, terá morrido em Nanquim, cuja guarnição militar comandava. Contudo, certas fontes de época indiciam que terá antes morrido no mar, quando regressava a casa vindo da sua última viagem ao Índico [2] .

Tendo por pano fundo este contexto histórico, Menzies formula uma tese que pode ser resumida em duas ideias principais. Por um lado, defende que as várias flotilhas que partiram em 1421 comandas por Zheng He e por outros quatro almirantes chineses (Yang Qing, Zhou Man, Hong Bao e Zhou Wen) cruzaram todos os oceanos e concluíram a circum-navegação do globo. Assim, uma primeira expedição teria dobrado o cabo da Boa Esperança, reconhecido a América do Sul e o estreito de Magalhães, descido até à Antárctida e seguido para oriente até à Austrália. Uma segunda expedição teria percorrido as costas americanas do norte ao sul, fundado colónias na América Central, cruzado o Pacífico por duas vezes e reconhecido os litorais da Austrália e da Nova Zelândia. Uma terceira expedição teria atravessado o Atlântico, o Mar das Caraíbas, fundado uma colónia em Rhode Island, contornado a Gronelândia pelo norte e regressado à China através do Oceano Glacial Árctico e do estreito de Bering. Enfim, uma quarta expedição navegara pelo Oceano Índico, onde os seus tripulantes teriam solucionado o problema do cálculo das longitudes através de um método que envolveria a observação do eclipse lunar. Vale dizer que o que se sabe de ciência certa sobre esta expedição de 1421 (a 1422) é que a armada original se separou em Semudera, na ilha de Samatra: enquanto Zheng He parece ter regressado à China com um pequeno contingente de navios logo em finais de 1421, o grosso da frota rumou à costa oriental africana e ao Golfo Pérsico sob comando do eunuco Zhou Man.

Por outro lado, Menzies pretende que os grandes navegadores europeus dos séculos XV a XVIII – caso de Cristóvão Colombo, de Vasco da Gama, de Fernão de Magalhães ou de James Cook, por exemplo – partiram para as suas viagens através do Atlântico ou do Pacífico sabendo de antemão o que iam encontrar uma vez que estariam munidos de cópias de mapas chineses ou de mapas que incorporavam os alegados conhecimentos cartográficos chineses resultantes das navegações patrocinadas por Yongle. Mais: identifica o veneziano Niccolò de’ Conti como a personagem que assegurara a transferência para a Europa de todo esse incomensurável saber oriental. Se alguém se propusesse demolir os alicerces da história dos descobrimentos ou questionar de alto a baixo o legado europeu, convenhamos que dificilmente poderia conceber proposta mais drástica do que esta: um Colombo não só precedido em cerca de 70 anos, como afinal sabendo muito bem em que continente tropeçara; os feitos de Bartolomeu Dias, Gama e Magalhães descritos como réplicas tardias das experiências dos almirantes Ming; Cook explorando a Austrália e a Nova Zelândia cerca de 350 anos depois dos chineses as terem cartografado; a primeira exploração da Antárctida antecipada em 400 anos e John Harrison a perder por três séculos a hipótese de ter sido o primeiro a solucionar o problema da longitude.

Para sustentar estas “revelaciones a la vez asombrosas y terribles” (p. 33), Menzies descarta a hipótese de se poder apoiar extensivamente em documentos e fontes chinesas, pois considera que os originais se perderam para sempre depois dos sucessores imediatos de Yongle se terem aplicado na destruição dos registos históricos das viagens de Zheng He. Não obstante, através da bibliografia citada neste livro percebemos que o seu autor não ignora obras como Yingyai shenglan (Descrição geral das costas do Oceano) de Ma Huan, um dos mais relevantes intérpretes que acompanharam Zheng He em três das suas sete viagens – neste caso, na versão desse celebérrimo texto quatrocentista (1.ª ed. 1451) anotada por J. V. G. Mills (1970) [3] .

Até por isto, logo se estranha que Menzies se esquive a sublinhar a coincidência e – o que é mais – a relação de dependência que é muito improvável que não exista entre a cartografia inserta no Wubei zhi (Colectânea de arte militar, c. 1621) de Mao Yuanyi (referimo-nos, claro, ao mapa chamado “Mao Kun”, o qual inclui a marcação da rota marítima que liga Nanquim a Ormuz e aos portos da África Oriental, conforme se pode observar em várias das páginas desta preciosa carta náutica reproduzidas no próprio livro de Menzies – figs. pp. 49, 97, 112-113) e as informações geográficas e etnográficas relativas às viagens de Zheng He que integram o texto de Ma Huan [4] . Uma vez que o tratado de Mao Yuanyi recolhe material elaborado cerca de 200 anos antes, lógico seria que se começassem por explorar aqui todas as consequências de um horizonte geográfico que é comum a ambas as obras [5] . Ora, Menzies furta-se a tal exercício com argumentos como o que, pretendendo que só uma parte do Wubei zhi foi traduzida até à data, parecem subentender que obras como esta ainda poderão esconder testemunhos das viagens protagonizadas pelos boachuan – os “navios do tesouro” – através de uma geografia mais extensa do que aquela compreendida entre o Mar da China e a costa oriental africana (pp. 114, 116, 132 e 259) [6] .

Em alternativa, Gavin Menzies serve-se de um diversificadíssimo conjunto de alegadas evidências empíricas, de vestígios de porcelana a pedras esculpidas, das características linguísticas de certos povos a elementos sobre migração de fauna e flora, de despojos de naufrágios a análises de ADN. Consulta também alguns relatos de viajantes europeus (entre eles o citado Conti). Porém, grande parte das suas conclusões deriva de uma abordagem, em regra bem peculiar, de alguns dos mais famosos espécimes da cartografia antiga ocidental. As palavras são suas: “La extraordinaria información que dichos mapas contienen está, y ha estado siempre, a la vista de todo el mundo; pero ha escapado a muchos historiadores eminentes de China, no por falta de diligencia por su parte, sino debido sencillamente a su escasez de conocimientos sobre la navegación astronómica y los océanos del mundo. Si yo he encontrado la información que a ellos se les escapó, se debe únicamente a que sé cómo interpretar los extraordinarios mapas y cartas náuticas que revelan el rumbo y el alcance de los viajes de las grandes flotas chinas entre 1421 y 1423” (p. 37). ejamos algumas consequências desta sui generis demonstração de amor próprio.

 O primeiro mapa evocado por Menzies é a carta náutica atribuída ao veneziano Zuane Pizzigano, que se julga datada de 1424. Representa o Atlântico Norte, com as costas da Irlanda, do sudoeste de Inglaterra, da França, de Maiorca e da África norte-ocidental, tendo os arquipélagos canário e madeirense ao largo. No centro do Mar Oceano estão representadas duas grandes ilhas rectangulares, antilia e satanazes, e duas mais pequenas, saya e ymana. Confrontado com estas quatro ilhas, Menzies convence-se (depois de reler o topónimo português con/ymana como “el volcán entra en erupción aquí”...) de que Antília e Satanazes “eran en realidad las islas caribeñas de Puerto Rico y Guadalupe” (p. 30 e 31). Torna-se-lhe então forçoso identificar os navegadores que as teriam cartografado com tanto rigor setenta anos antes da viagem de Colombo. Como não acredita que fossem portugueses (porque desconheceriam tais plagas nessa data) ou venezianos (porque o seu poder marítimo já se encontraria demasiado decadente para empreender tamanha navegação), muito menos hipóteses encontra em quaisquer outros ocidentais, ou até nos egípcios. É assim que, por exclusão de partes, chega aos chineses – os únicos que poderiam ter descoberto “un método para determinar la longitud que les permitiera dibujar mapas con errores de longitud práticamente insignificantes” como os daquelas misteriosas ilhas que aparecem no portulano de Pizzigano (p. 32-33).

Sobre isto, apenas duas breves observações. Em primeiro lugar, ao contrário do sugerido por Menzies, assim como a historiografia actual não postula datas absolutas para a generalidade dos descobrimentos das ilhas do Atlântico Norte por parte dos europeus, não ignora nem considera encerrado o capítulo das eventuais navegações até às Antilhas anteriores a 1492 e a sua hipotética representação nos portulanos do século XV. Por exemplo, é mais do que aceitável ponderar o alcance da viagem que é suposto os irmãos genoveses Vivaldi terem feito no Atlântico, em 1291; permanece em aberto a possibilidade da experiência da primeira navegação europeia até à Canárias ser anterior ao avistamento desse arquipélago por Lanzarotto Malocello, cerca de 1310; é relativamente pacífico pensar que a Madeira fosse conhecida do Ocidente pelo menos desde o século XIV, correspondendo a respectiva descoberta oficial por João Gonçalves Zarco, cerca de 1418-1419, ao início do povoamento do arquipélago; continua a ponderar-se a eventualidade dos Açores terem sido avistados muitas décadas antes da sua descoberta oficial por Diogo de Silves, em 1427; continuam a discutir-se os efeitos que o sistema de ventos e correntes na parte central do Atlântico Norte possa ter tido sobre eventuais viagens precursoras ao Novo Mundo semelhantes àquela que é atribuída por alguns ao piloto andaluz Alonso Sánchez de Huelva, em 1484 ou 1485 [7] . Simplesmente, a questão essencial é sempre a de saber qual o momento a partir do qual a revelação de uma nova geografia foi confirmada por navegações regulares na zona e transmitida em herança, quer dizer, quando é que ocorreu a repetição da experiência dos novos lugares, a sua exploração sistemática, e quando é que esta última foi incorporada num universo mental alargado. É por isso que faz todo o sentido destacar um feito como o de Colombo (mesmo que ele tenha morrido julgando que a Jamaica se encontrava a dez dias de caminho do rio Ganges). E é por isso que o feito de Colombo releva sobre outros que sabemos o precederam: os povos polinésios que, sem cartas, nem compasso, nem cronómetro, atravessaram o Pacífico em frágeis canoas abertas e atingiram a América depois de fazerem escala na ilha da Páscoa; ou os navegadores vikings que, como Leif Ericsson, por volta do ano 1000 reconheceram os litorais da Gronelândia e da Terra Nova, até à nebulosa posição de Vinland [8] .

Em segundo lugar, Menzies ignora por completo que, a despeito do realismo e da precisão que genericamente as caracteriza, muitas das cartas-portulano desta época continuam a integrar representações simbólicas próprias do imaginário medieval. Este lapso é tanto mais espantoso quanto topónimos como Antília ou Satanazes correspondem ao exemplo clássico desses resquícios de fantasia cujo sentido original reside na necessidade que então se sentia de representar ora um contraponto maléfico à ideia herdada de Paraíso Terreal, ora um lugar de bem-aventurança e de refúgio que teve nas Afortunadas dos Antigos ou na lenda da ilha de São Brandão dois dos paradigmas mais duradouros [9] . Acresce que Antília está associada ao episódio lendário da fuga de um arcebispo e de seis bispos cristãos por alturas das invasões islâmicas da Península Ibérica, no início do século VIII, o qual explicita que os fugitivos aportaram em Antília ou na ilha das Sete Cidades. Menzies nota que há vários nomes de cidades inscritos em Antília, mas a sua preocupação reduz-se de imediato a descobrir quem é que teria “llegado y establecido allí una colonia secreta sesenta y ocho años antes que Colón” (p. 31). Na carta anónima veneziana representa-se também uma Ixola de Ventura, mas algum motivo deve ter havido para que o autor de 1421 não só não tenha reparado na posição impossível que esta segunda ocupa no centro do Oceano, à latitude da Bretanha, como no facto de a sua forma semicircular parecer decalcada da “rigorosa” cartografia de sayo (p. 30).

Gavin Menzies volta a evocar a sua “propria pericia para descifrar las fragmentarias evidencias ofrecidas por antiguos mapas y cartas náuticas” (p. 107) nas páginas em que, com base no mapa-mundo de Fra Mauro, defende a tese de que a primeira circum-navegação de África – e a sua correspondente cartografia – foi obra das armadas chinesas que largaram em 1421 sob comando de Zheng He. Em síntese, o seu raciocínio assenta nas seguintes premissas: assume que a figura de navio desenhada no dito mapa diante do cabo da Boa Esperança representa um junco chinês por evidenciar “el casco cuadrado e inusualmente ancho –cuya forma recuerda a la de una moderna lancha de desembarco de tanques– característico de los juncos de Zheng He” (p. 118); a partir de uma leitura literal de uma legenda inscrita no mesmo mapa – e que alude a uma embarcação que passou e regressou ao extremo sul de África por volta de 1420 –, assume que os respectivos tripulantes fossem os ditos chineses (p. 117); jogando com as ideias de que Fra Mauro desenhou o seu mapa em 1459 e de que Bartolomeu Dias apenas podia ter disponibilizado informação sobre a geografia do cabo da Boa Esperança a partir de 1488, considera que a correcção com que o respectivo perfil aparece traçado neste célebre mapa-mundo veneziano apenas pode ter tido origem nos conhecimentos adquiridos durante a viagem que acabara de creditar aos súbditos do imperador Ming (p. 118-119); finalmente, o facto de existirem provas que apontam para que Fra Mauro tenha colhido informações sobre a Índia junto de uma pessoa de confiança que havia viajado até essas paragens, leva-o a conclui que apenas o seu compatrício Conti lhe poderia ter trazido a “copia de algún mapa que mostrara la forma y la situación exactas del extremo sur de África”, cópia essa obtida “durante sus viajes a bordo de la flota china” (p. 119). Para corroborar tudo isto, Menzies evoca ainda o desenho da costa oriental africana específico de dois outros mapas: por um lado, o mapa-mundo sino-coreano conhecido por Kangnido, putativo missing link entre os cartógrafos da suposta expedição chinesa de 1421 e a imagem de África na China contemporânea (p. 122-125); por outro, o mapa-mundo que, segundo o Tratado dos Descobrimentos de António Galvão (Lisboa, 1563), o infante D. Pedro (quarto filho do rei D. João I de Portugal) adquirira em Veneza, em 1428, e que não só teria representado o cabo da Boa Esperança, como também o estreito de Magalhães (p. 132-134).

Vejamos por partes mais este característico exemplo do método Menzies. Da mesma forma que um conhecido trecho do relato de Niccolò de’ Conti/Poggio Bracciolini alusivo a certos imponentes navios que cruzavam a “Terceira Parte da Índia” pode estar associado às imponentes frotas Ming [10] , não nos compete excluir que a figura do navio desenhado no mapa de Fra Mauro que é interpretada como sendo um junco chinês o pretendesse de facto representar. Afinal – e mesmo que Menzies se mostre surpreendido com isso –, Conti constitui uma conhecida fonte do mapa de Fra Mauro, síntese paradigmática da cultura geográfica dos finais da Idade Média, onde se tentam conciliar produtos cartográficos de origem tão diversa como os mapas-mundo medievais, a cartografia de Ptolomeu, mapas desenhados com base nas mais recentes navegações portuguesas Atlântico abaixo, os relatos de viagem de Marco Polo e do próprio Conti, além de elementos que dão todos os sinais de provir da cartografia islâmica [11] . Poder-se-á dizer que Menzies prefere colher o testemunho de Conti sobre esses majestosos navios num relato paralelo ao que Poggio Bracciolini inseriu no livro IV do seu Historiæ de varietate fortunæ (Cremona, 1492) que é a relação das viagens de Pero Tafur (ms. original c. 1454; 1.ª ed. Madrid, 1874), sendo que, ao contrário do que o autor inglês dá a entender, Tafur os descreve no Mar Vermelho e não em Calecut (p. 111-112) [12] .

Mas não valerá a pena ir por aí. Bastará referir que, leitura literal por leitura literal, na problemática legenda do mapa de Fra Mauro citada por Menzies também se pode ler que as caravelas que o rei de Portugal mandou a descobrir tinham trazido novas cartas que permitiam confirmar, sem margem para dúvida, “que esta parte austral e do sudoeste é navegável, e que o mar Índico é oceano e não lago” [13] . Parece óbvio que, ainda que não se desse fé a estes últimos dizeres, a partir do momento em que se toma à letra parte da legenda onde eles vêm e se especula a partir do seu conteúdo, se deveria indicar que existe um outro trecho da mesmíssima legenda que, se tomado também à letra, contradiz essa especulação. Claro, já tínhamos pressentido este jeito para prescindir do que é incómodo para o bom andamento da “tese” quer aquando leitura da carta chamada de Pizzigano, quer quando nos interrogámos sobre o porquê de se desprezarem as evidências da mais antiga cartografia costeira/marítima chinesa que espelha informações equivalentes àquelas que foram facultadas pelas viagens de Zheng He aos mares do sul.

Evocar a notícia de António Galvão sobre o alegado mapa trazido de Veneza pelo infante D. Pedro e, acto contínuo, escrever que “se afirma aquí de manera inequívoca que en 1428 tanto el cabo de Buena Esperanza como el estrecho de Magallanes habían sido ya cartografiados” (p. 133) diz um pouco mais sobre os critérios de Menzies. Desde logo, sabemos que esta notícia dada por Galvão não é corroborada por nenhum documento conhecido. Depois, mesmo aceitando que D. Pedro possa ter levado para Portugal um qualquer mapa onde se assinalava que o Atlântico e o Índico comunicavam entre si, não há que buscar nenhum nauta chinês para explicar o fenómeno. É que também sabemos que a ideia da comunicação entre aqueles dois oceanos era muito mais antiga, conforme se pode confirmar olhando o mapa-mundo que Pietro Vesconti desenhou por volta de 1320 para ilustrar o Liber secretorum fidelium crucis do veneziano Marino Sanudo [14] .

Dizendo um pouco mais: mesmo que a redescoberta de Ptolomeu no início do século XV, com a sua ideia equívoca de que o Índico era um mar fechado a sul por uma imensa Terra Incognita que unia a África subequatorial ao extremo da Ásia, tenha aumentado as incertezas geográficas a respeito desta parte do mundo, a respectiva aceitação não só foi sempre contestada por muitos geógrafos do Ocidente, como não pode fazer esquecer que a tradição cosmográfica que considerava que um grande mar-oceano circundava a totalidade da ecúmena fora maioritária durante a Idade Média, tal como atestado por qualquer mapa-mundo de tipo isidoriano [15] .

Para além de tudo isto, se já nos é muito difícil aceitar que um qualquer mapa europeu adquirido em 1428 apresentasse um desenho que, de acordo com a citada notícia de António Galvão, desde logo sugere as posteriores modificações dos contornos ptolomaicos das margens do Índico expostas na cartografia de Henricus Martellus (c. 1489) [16] e Martin Behaim (1492), cremos que não chega a ser minimamente razoável utilizar como única prova uma passagem tão imprecisa como essa do Tratado dos Descobrimentos para sustentar que a Corte portuguesa possuísse por essa altura um mapa onde figurava a “cauda do dragão” do estreito de Magalhães, como Galvão diz (p. 132). É que Galvão jamais o deverá ter visto como o estreito que flanqueia um Novo Mundo separado, mas antes como a imensa península da Ásia do Sueste que Martellus e Behaim haviam interposto entre o Índico e o Mar da China, a qual não era outra coisa senão a herança problemática do antigo “Grande Promontório” de Ptolomeu [17] .

Sobre o Kangnido, que é a designação abreviada do Honil kangni yoktae kuktu chi to (Mapa das regiões e das capitais dos estados integradas ao longo do tempo), tão-só o seguinte. Trata-se de um amplo mapa-mundo coreano de 1402, que combina o conteúdo do Shengjiao guangbei tu (Mapa do vasto alcance dos ensinamentos [morais da China]), mapa-mundo produzido pelo cartógrafo chinês Li Zemin c. 1330, entretanto perdido, e do Hunyi jiangli tu (Mapa das regiões integradas [da China]), peça cartográfica dos finais do século XIV da autoria de Qing Jun [18] . De modo muito conveniente, Menzies diz ter consultado uma versão do Kangnido “ampliamente modificada a partir de 1420” (p. 124). Refere-se àquela que está à guarda da Biblioteca da Universidade de Ryukoku, em Kyoto, comummenteconsiderada a mais antiga e que se sabe datada de c. 1470. Menzies não precisa este último detalhe, tal como não considera como hipótese de trabalho que a informação do Kangnido relativa a África possa provir de mapas islâmicos. Conhecendo-se o papel proeminente que a cartografia islâmica desempenhou na China durante a dinastia Yuan, conhecendo-se as áreas abrangidas pelos mapas a partir dos quais o Kangnido foi compilado, enfim, conhecendo-se as áreas cobertas por outros mapas contemporâneos do de Li Zemin, como o Yutu de Zhu Siben (Mapa terrestre, c. 1320), essa é a primeira pista que ocorre a quem se debruça sobre as partes não-chinesas deste mapa-mundo.

Porém, em vez da esperada análise e confronto de provas, encontramos um axioma: para Menzies, apenas um navegador chinês teria estado em condições de, simultaneamente, reconhecer a costa ocidental africana e de a desenhar no Kangnido (pp. 124-125). Mesmo admitindo que, por absurdo, Menzies tivesse razão, já agora uma pergunta inocente: por que será que, quando comparada com outras secções do Kangnido, a cartografia do território chinês e áreas imediatamente adjacentes é tão confusa e rudimentar? Dar-se-ia, por acaso, que os chineses só conseguiam ser bons cartógrafos quando trabalhavam longe da China?Uma das partes mais desconcertantes deste livro será por certo aquela em que Menzies imagina as frotas chinesas a rumarem Atlântico acima à boleia dos ventos e das correntes e a acertar na ilha cabo-verdiana de Santo Antão com uma pontualidade perfeita em relação à cronologia da viagem descrita na citada legenda que Fra Mauro apôs à extremidade sul da África [19] .

Porque tem de encontrar uma prova indesmentível desse achamento, ei-lo nessa ilha a revolver a base de uma pedra gravada, onde identifica “dos grupos caligráficos” que descreve como “espirales que se entrelazaban como cuernos de carnero, y una serie de círculos concéntricos”(pp. 129-130). À falta de qualquer língua africana ou asiática que se lhe assemelhasse (incluindo “chino medieval”, que fora o seu primeiro palpite – p. 130), interroga por fax o Banco da Índia, de onde alguém lhe terá respondido por telefone que parecia malaiala (p. 130). Associação fulminante: malaiala – Quêrala; Quêrala – escala de Zheng He; escala de Zheng He – Conti; Conti – Fra Mauro (ainda p. 130). Para que não nos restem dúvidas, Menzies corre a embrenhar-se até ao limite navegável do rio Congo, a um lugar onde, “desde los portugueses en 1485 hasta los chinos en la actualidad”, todos tinham feito aguada (p. 131). Aí, na base de outra pedra providencial (que não identifica claramente, mas que, na verdade, corresponde ao chamado “padrão” português de Ielala, gravado por Diogo Cão e seus companheiros de armada quando exploraram o curso inferior do Congo em 1485-1486) [20] , acha vestígios da mesma “caligrafía” indecifrável e reconforta a sua certeza de que “los chinos hubieran llegado allí en su viaje a lo largo de la costa de África” (p. 131).

Esmagados pela revelação de uma nova língua chamada “chinês medieval”, pela ciência dos linguistas indianos consultados sobre inscrições que não são reproduzidas ou transcritas no livro, pela segurança com que o autor nos descreve esse Congo recôndito “donde antaño los pescadores se sentaban inmóviles mientras las prostitutas patrullaban por las orillas aguardando la llegada de las tripulaciones de barcos extranjeros que navegaban corriente arriba en busca de agua y provisiones” (p. 131), nem nos apercebemos de que, três páginas à frente, já a armada chinesa de 1421 está à vista das Caraíbas. E não só disso: também de que o mapa de Piri Re’?s constitui mais uma “evidencia concluyente” de que, uma vez chegadas aí, duas das frotas que a comporiam foram impulsionadas pelas correntes em direcção à América do Sul (p. 135).

Será útil lembrar que o mapa dito de Piri Re’?s corresponde ao fragmento de um mapa-mundo hoje perdido e representa o Atlântico, com os litorais orientais de grande parte da América, a Bretanha, a Península Ibérica e o litoral ocidental de África compreendido entre o estreito de Gibraltar e a altura das Costas do Marfim. Foi composto em 1513 pelo cartógrafo turco homónimo a partir de um conjunto de fontes de diferente proveniência, fontes estas que o próprio identifica em algumas das notas escritas em turco inseridas no pedaço de pergaminho sobrevivente: cartas árabes e portuguesas, assim como um mapa “da região do Oeste” que teria pertencido a Cristóvão Colombo. Uma dessas legendas esclarece que este último mapa fora capturado por volta de 1501 pelo almirante Kemal Re’?s, tio do cartógrafo, quando tomara de assalto no Mediterrâneo um navio onde seguia um escravo espanhol que reclamara haver acompanhado Colombo em três das suas viagens às Índias Ocidentais.

Qualquer manual sobre cartografia antiga razoavelmente completo faculta os elementos básicos sobre o mapa de Piri Re’?s que acabamos de conferir. Agora o que não oferecerá com certeza é a multidão de coisas singulares que Menzies consegue observar na secção deste mesmo fragmento relativa à América do Sul. Cinco pontos emblemáticos do seu raciocínio:

(1) Menzies declara que a secção em causa apenas pode ter tido origem no perdido mapa-mundo que o infante D. Pedro adquirira em Veneza em 1428 – e, logo, nos levantamentos dos cartógrafos chineses em que este supostamente se basearia – porque Colombo jamais navegara para sul do equador e estava provado que fora no resgatado mapa de Colombo que Piri Re’?s se apoiara para representar toda essa área (pp. 132-134 e 405-406);

(2) que o facto de a toponímia das costas sul-americanas do mapa de Piri Re’?s ser essencialmente portuguesa não constitui prova de que tivessem sido os portugueses a descobri-las, já que eles jamais poderiam ter feito as primeiras navegações até todas essas paragens (p. 273);

(3) que as frotas chinesas que desciam da latitude das Antilhas em direcção ao extremo sul da América no venerável ano de 1421 deviam ter realizado um desembarque perto do delta do rio Orenoco, “ya que el mapa de Piri Reis muestra que habían inspeccionado esa pequeña parte de la costa con gran precisión” (p. 140);

(4) que o cartógrafo turco desenhara “con gran precisión” todo o litoral compreendido entre o Cabo Branco e a entrada do estreito de Magalhães, assim como representara gelos flutuantes ao longo das costas sul da Terra do Fogo e mais gelos flutuantes entre a ponta da América do Sul e a Antárctida (pp. 140, 142, 170, 172 e 336);

(5) que as ilhas representadas no fundo do mapa correspondem às Shetland do Sul, constituindo a prova acabada de que o cartógrafo original viajara a bordo de um navio chinês “que había descubierto el continente antártico y las islas Shetland del Sur cuatro siglos antes de que llegaran allí los primeros europeos” (p. 148).

Sabendo o que sabemos sobre as fontes que o próprio Piri Re’?s reconheceu ter utilizado quando construiu o seu mapa, como é possível continuar a insistir de forma tão obstinada na ideia de que a cartografia da América do Sul desse mapa só pode provir de levantamentos chineses? E como é possível sustentá-lo escamoteando aquilo que décadas de estudos sobre o mapa de Piri Re’?s são unânimes em concluir: que no momento em que este mapa foi desenhado já navegadores como Pedro Álvares Cabral, Gonçalo Coelho, Amerigo Vespucci, João Dias de Solis, Vicente Yáñez Pinzón, Diego de Lepe ou Alonso Vélez de Mendoza tinham operado viagens de reconhecimento desses litorais, cujos resultados seriam certamente assinalados em algumas das cartas consultadas (e citadas) por Piri? E se a toponímia portuguesa nada prova sobre a génese do mapa de Piri Re’?s, por que será que quase se obtém o “filme” da construção dos litorais que surgem consolidados neste mapa alinhando para tanto uma série de mapas portugueses, ou comprovadamente baseados em cartas portuguesas, todos eles concluídos pouco antes, do Cantino (1502) ao Caveri (c. 1505), do Kunstmann II (c.1502-1504) ao King-Hamy-Huntington (c. 1502-1504), do Vesconte de Maggiolo (1504) ao Ruysch (1507), do Kunstmann III (c. 1506) ao Waldseemüller (1507), do Oliveriani/Pesaro (c. 1508-1510) ao Egerton-2803 (c. 1508-1510)? [21]

Se só os hipotéticos levantamentos chineses do início do século XV tinham sido incorporados no desenho que servira de guia ao mapa de Piri Re’?s, que significado atribuir ao facto de a maioria dos topónimos dados pelo cartógrafo turco serem idênticos àqueles que ainda hoje são utilizados? – por exemplo, Kav de Santa Agostini (Cabo S. Agostinho), San Megali (S. Miguel), San Francesko (Rio S. Francisco), Port dali (Porto Real), Totel Sante (Baía de Todos os Santos), Abroklok (Abrolhos), Kav Fryo (Cabo Frio), Sano Saneyro (Rio de Janeiro) e Katenio (Cananeia) [22] .

Os chineses fizeram (outra) aguada no delta do Orenoco? Mas a que trecho do mapa se referirá Menzies quando nos diz (e só nos diz isso) que a respectiva latitude está “corregida con precisión” (p. 406)? Quem quer que siga de norte para sul os litorais sul-americanos traçados por Piri encontrará a desembocadura de seis grandes rios, mas não existe consenso quanto à interpretação dessa sequência, sendo que aquela que pretende que eles sejam o Atrato, o Madalena, o Orenoco, o Amazonas, o Parnaíba e o Prata é apenas a mais frequente [23] .

As razões para tais dúvidas são compreensíveis: por um lado, é inconcebível depreender a identificação dos traçados dos mapas antigos a partir da simples sobreposição dos mapas modernos, como se percebe que Menzies gosta de fazer; por outro, os diversos mapas manuscritos contemporâneos do de Piri que conhecemos – e em cuja análise se deverá sempre começar por buscar a resposta para este tipo de dúvidas – não permitem conclusões taxativas sobre este assunto. A eventualidade de o mapa de Piri Re’?s representar o delta do Prata sob a forma de três rios que se unem a montante, assim como parte da continuação da terra austral, constitui um assunto por demais abordado pelos estudiosos da cartografia antiga, mas em relação ao qual também não existe acordo, seja porque subsistem demasiadas interrogações quanto ao alcance da navegação que Vespucci reclama haver feito em 1501-1502, seja por escassez de provas conclusivas a respeito do eventual reconhecimento do litoral da Patagónia por outras expedições antes de 1513. Agora, o que é de todo inviável é voltar a sobrepor mapas modernos ao desenho de Piri e resguardar-se nessa habilidade para assumir que o mapa de 1513 representa as costas patagónicas na íntegra. Mas Menzies vai mais longe quando, para reforçar a sua ideia, inventa a existência de vestígios de gelo nos limites meridionais das terras americanas. É que não só não há sombra de tal fenómeno no mapa, como o cartógrafo foi tão profissional que assinalou com signos convencionais todos os acidentes que importava saber: pontos negros para os afloramentos rochosos; pontos vermelhos para os baixios ou os bancos de areia; pequenas cruzes para as rochas que os marinheiros não conseguiam descortinar a olho nu. E assinalou outra coisa a propósito do suposto continente do sul: uma legenda que esclarece tratar-se de uma terra muito quente, desolada e em ruínas, lugar onde viveriam grandes serpentes [24] .

Terras tórridas a sul dos gelos no hemisfério Sul? Menzies terá tido as suas razões para ignorar tal legenda.Se possível, o maior vício da leitura que Menzies oferece sobre o mapa de Piri Re’?s consiste em dizer que o imenso continente que se estende para leste do extremo sul da América, encerrando todo o Atlântico representado, corresponde à Antárctida. Quem quer que esteja minimamente familiarizado com a cartografia da época sabe que, por detrás desse desenho de uma imaginária terra austral, está tão-só a mesma concepção ptolomaica sobre a distribuição das terras e dos mares que suscitou a vista ideia do Índico fechado. Vários mapas coevos evidenciam a persistência desta velha ideia grega em moldes idênticos ou próximos aos seguidos por Piri, caso dos planisférios de Lopo Homem de 1519, de Juan Vespucci de 1524 ou do dito de Contarini-Rosselli de 1506 [25] .

De novo, Menzies faz tábua rasa destes dados adquiridos e insiste nas suas revelações surreais. E que outro adjectivo empregar senão esse quando se lê o que nos escreve sobre algumas das criaturas fantásticas com que Piri ilustra certos sítios da América do Sul? Baste o exemplo do Cinocéfalo, um dos mais conhecidos híbridos de humano e animal que povoam os bestiários e mapas medievais, tal como as obras enciclopédicas árabes do mesmo período [26] .

O cartógrafo turco não se esqueceu de o incluir, como se depreende olhando aquela inconfundível cabeça de cão que assenta sobre um tronco de gente. Quando chega a vez de o analisar, Menzies consegue duas proezas simultâneas: ignorar qualquer referência às tradições literárias subjacentes e associa-lhe a legenda que Piri dedicara à imagem de um Blemmyae ou Acéfalo, legenda essa que descreve tais seres sem cabeça e com a face no peito como bestas selvagens que atingiam um comprimento de sete palmos (p. 145).

Agora que tinha criado o seu monstro, Menzies não descansa enquanto não o identifica com um bicho real. A vítima será o Mylodon, até porque o autor logo afirma crer “que a bordo de los juncos chinos también viajaron varios Mylodon, dos de los cuales llegaron a China” (p. 146). Que os paleontólogos dos quatro cantos do planeta estejam de acordo quanto ao facto do Mylodon ter desaparecido da superfície da terra no final do Período Pleistoceno, há uns dez mil anos, é apenas mais um pormenor que nem vem ao caso. De qualquer modo, se era para ler histórias do Mylodon, continuamos a preferir aquela sobre o que estava na sala de jantar da avó de Bruce Chatwin, que sempre escrevia um pouco melhor e tinha a clareza de assinar como ficcionista.

Prosseguir no rasto das armadas chinesas saídas da imaginação delirante de Menzies e desmontar, um por um, os seus alardeados “dons de decifração” seria um exercício ao mesmo tempo interminável, penoso e redundante. Não constitui pecado nenhum formular uma hipótese e acabar rendido à evidência de que essa hipótese não funciona. É essa a regra de toda a ciência, que sabe que qualquer pequeno avanço no conhecimento por norma só acontece depois de ter deixado pelo caminho toda uma série suposições prévias que as evidências ou a falta de provas acabaram por inviabilizar. Só que já se percebeu que o autor de 1421 não joga nem está interessado em jogar com as regras de qualquer investigação historiográfica séria. A sua especialidade é outra: definir a priori uma ideia e, em seguida, seleccionar dos documentos disponíveis aquilo e apenas aquilo que sirva para a sustentar. A tudo deita mão: ignora o contexto em que os documentos foram produzidos, lê literalmente textos e figuras que possuem um declarado significado simbólico, cruza testemunhos inconciliáveis, inclusive fabrica pormenores que não constam em parte alguma de modo a reforçar o impacto dos seus argumentos. A efabulação é tão evidente que é impossível não reparar que o principal objectivo deste livro é engendrar a polémica que o mantenha no centro dos holofotes. Só é pena que o pretexto tenha sido um dos períodos mais notáveis da história da China, cuja brilhante civilização dispensa de bom grado o arremedo de pesquisa que Menzies nos quer vender.
 

Notas

* A primeira versão deste texto, correspondente à resenha da versão portuguesa do livro de G. Menzies (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004), foi publicada na revista Anais de História de Além-Mar, vol. 5, 2004, p. 542-550 (ed. Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa). Para esta leitura da edição castelhana do mesmo livro, desenvolvemos alguns pontos dessa resenha e acrescentámos um aparato bibliográfico alternativo sobre os principais temas tratados nesta obra.

1. Ver Oliveira, 2003, p. 100-113.

2. Para uma recente leitura sobre as viagens de Zheng He e o contexto que as propiciou, ver Levathes, 1994.

3. Ma Huan, 1970.

4. Ver Ma Huan, ibid., p. 239-241; Yee, 1994, p. 52-55; Smith, 1996, p. 33-34; Ptak, 2001, p. 113-114 e n. 9, p. 126-127.

5. Ver Kuei-Sheng Chang, 1970, p. 25-26; Leonard, 1984, p. 116-117; Niu Zhong Xun, 1988, p. 175-181; Nebenzhal, 2004, p. 42-43.

6. Para o mesmo propósito, ver também: Gong Zhen, 1961; Zhu Jianqiu & Li Wanquan, 1988; Fei Hsin, 1996; Levièvre, 2004, p. 263-266.

7. Apenas para este último caso - porque será o menos referido de todos os que enumerámos -, ver Vargas Martínez, 1990, p. 99-102. Ao invés do que o seu título possa sugerir, este livro não exibe qualquer coincidência com o essencial da "tese" proposta na obra de G. Menzies, correspondendo antes a uma reflexão alargada sobre o tema inspirado pelas Considérations géographiques et physiques sur les nouvelles découvertes au Nord de la Grand Mer de Philippe Bauche (Paris, 1753) e pelas Recherches sur les navigations des chinois du coté de l'Amérique et sur quelques peuples situés á l'extrémité orientale de l'Asie de Joseph de Guignes (Paris, 1761). Cf. Vargas, 1990, p. 105, 134-135. Agradeço ao Prof. Doutor Héctor Mendoza Vargas (Universidad Nacional Autónoma de México) ter-me dado a conhecer este livro de Gustavo Vargas.

8. Entre a vastíssima bibliografia que reflecte sobre o tema, ver Parry, 2002, p. 46-47 e 272; Boorstin, 2000, p. 161-254.

9. Ver, inter alia, Godinho, 1990, p. 119-210 e 223-254; Johnson, 1994, p. 131-163 e 175-206.

10. Ver Conti, 2004, p. 114.

11. Ver Cortesão, 1971, p. 172-181; Crone, 1978, p. 27-32; Albuquerque, 1983, p. 63-65.

12. Ver Tafur, 1995, p. 66.

13. Albuquerque, 1986, cit. p. 93-94.

14. Ver Galvão, 1987, n. 2, p. 77; Suárez, 1999, p. 87-89.

15. Ver Destombes, 1964, p. 54-57 e Pls. B, C, D, R e U; Relaño, 2003, p. 70-71.

16. Ver Randles, 2000, p. 11.

17. Ver Suárez, 1999, p. 90-99.

18. Ver Ledyard, 1994, p. 244-49; Smith, 1996, p. 29-32.

19. Para uma análise competente das principais inconsistências que o livro de G. Menzies revela na área da náutica, ver Pereira, 2004, p. 6-17. Agradeço ao Comandante Malhão Pereira (Academia de Marinha, Lisboa) o amável envio do texto desta sua conferência.

20. Ver Cordeiro, 1971, p. 167-188.

21. Ver Adonias, 1970, p. 103-114; Marques, 1989, p. 448 e 452; Guerreiro, 1999, p. 115-119.

22. Ver McIntosh, 2000, p. 35-41.

23. Ver McIntosh, ibid., p. 41.

24. Ver McIntosh, ibid., p. 48-49.

25. Ver Relaño, 1992, p. 13-17; Relaño, 2003, p. 71-80; McIntosh, 2000, p. 48-68.

26. Ver Woodward, 1987, p. 330-332.
 

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  Ficha bibliográfica
 
OLIVEIRA, F. R. de. Menzies, Gavin. 1421 – El año en que China descubrió el mundo. Biblio 3W Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XI, nº 671, 25 de agosto de 2006. [http://www.ub.es/geocrit/b3w-671.htm]. [ISSN 1138-9796].


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