Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona
ISSN: 1138-9796.
Depósito Legal: B. 21.742-98
Vol. XI, nº 691, 5 de diciembre de 2006

PRIMEIRAS IMPRESSÕES DOS CRONISTAS E VIAJANTES
SOBRE O TEMPO E O CLIMA NO BRASIL COLÔNIA

João Lima Sant'Anna Neto
Professor Adjunto do Departamento de Geografia da FCT/UNESP
joaolima@fct.unesp.br


Primeiras impressões dos cronistas e viajantes sobre o tempo e o clima no Brasil colônial (Resumo)

Este artigo procura resgatar a história da Climatologia no Brasil colônia. Pretendeu-se analisar as primeiras impressões deixadas pelos cronistas e viajantes sobre o tempo e o clima de nosso território. Para tanto, recorremos aos documentos históricos mais importantes dos séculos XVI e XVII, em busca de uma interpretação de como a sociedade européia que, naquela época, via agonizar, lentamente, o pensamento escolástico da filosofia cristã e o surgimento do movimento Renascentista, que abria novas perspectivas de visões de mundo.

Palavras-chave: história da climatologia; história da ciência; paradigmas; pensamento geográfico


Primeras impresiones de los cronistas y viajeros sobre el tiempo y el clima en el Brasil colonial (Resumen)

Este artículo rescata la historia de la climatología en el Brasil Colonia. Buscase analizar las primeras impresiones dejadas por los cronistas y viajeros sobre el tiempo y el clima del territorio brasileño. Por lo tanto, recurrimos a los documentos históricos mas importantes de los siglos XVI y XVII, buscando una interpretación de cómo la sociedad europea que, por aquellos tiempos veía agonizar, lentamente, el pensamiento escolástico de la filosofía cristiana y el surgimiento del movimiento Renacentista, que abría nuevas perspectivas de visiones del mundo.

Palabras-clave: historia de la climatología; historia de la ciencia; paradigmas; pensamiento geográfico


First impressions of the columnists and travellers about the weather and climate in Brazil colony (Abstract)

This article tries to rescue the history of the Climatology in the Brazil colony. We intended to analyze the first impressions left by the columnists and travelers about the weather and the climate of our territory. For so much, we fell back upon the more important historical documents of the centuries XVI and XVII, in search of an interpretation of as the European society that, in that time, through agonizing, slowly, the scholastic thought of the Christian philosophy and the appearance of the movement Renascentist that opened new perspectives of world visions.

Key-words: history of the climatology; history of the science; paradigms; geographical thought


“...se houvesse paraíso na terra eu diria que agora o havia no Brasil. Quanto ao de dentro e de fora, não pode viver senão no Brasil quem quiser viver no paraíso terreal. Ao menos eu sou desta opinião. E quem não quiser crer venha-o experimentar”.

Carta de Rui Pereira aos familiares em Portugal, datada de 1560

Introdução

O conhecimento sobre o processo pelo qual cada área do conhecimento foi, ao longo do tempo, construindo os seus alicerces e estabelecendo filtros e recortes temáticos, mais do que apenas uma volta ao passado, se constitui num elo permanente que conecta (e de certa forma explica) o estágio atual da arte e seus marcos historicamente contextualizados.

O estudo dos fenômenos atmosféricos, compartido entre a Meteorologia e a Climatologia é caracterizado por uma interface que, nas diversas fases da evolução das ciências, esteve presente em numerosas áreas do conhecimento. Mas, sem dúvida alguma, é no escopo da Geografia, que tem encontrado terreno fértil para o seu desenvolvimento.

O que pretendemos neste artigo é trazer ao leitor uma leitura geográfica das primeiras impressões sobre o tempo e o clima do Brasil, deixadas pelos cronistas e viajantes nos dois séculos iniciais de nossa colonização. Para tanto, recorremos aos documentos históricos mais importantes dos séculos XVI e XVII, em busca de uma interpretação de como a sociedade européia que, naquela época, via agonizar, lentamente, o pensamento escolástico da filosofia cristã e o surgimento do movimento Renascentista, que abria novas perspectivas de visões de mundo.

Visões do paraíso

Os primeiros viajantes europeus a percorrerem as terras brasileiras, navegantes, comerciantes, religiosos e aventureiros de todos os tipos tinham em comum, e não poderia ter sido de outra forma, a visão de um mundo desconhecido, de uma paisagem natural estranha e selvagem, repleta de simbologia, mitos e fábulas, que permearam as primeiras impressões e descrições, carregadas de representações que evidenciavam mais as visões do que os fatos.

Ao tratar esta questão, Belluzzo (1996) comenta que estas primeiras visões deste novo mundo podem ser interpretadas da seguinte maneira:

[...]as primeiras imagens das terras brasileiras correspondem a dois impulsos. De um lado, a projeção sobre o desconhecido, os símbolos e mitos, os contos maravilhosos e as fábulas. De outra, a observação direta e o cálculo, que proporcionaram descrições geográficas na forma cartográfica.(Belluzzo. 1996, p.15)

Com muita freqüência, estes primeiros viajantes mencionavam o mundo natural e se sentiam particularmente atraídos pelos animais e pela vegetação estranha e exótica. Não faltaram as idealizações sobre a vida na floresta e o bom selvagem, em perfeita harmonia com o universo.

Portanto, não se pode deixar de considerar nos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, tanto o contexto histórico, como toda a carga de conceitos éticos, morais, religiosos e estéticos, com que descreveram suas primeiras impressões.

Sergio Buarque de Holanda (1969), ao abordar as controvérsias sobre o mundo natural – e o clima – entre os pensadores do século XVI, a respeito do legado de Aristóteles/Estrabão e a experiência adquirida nas viagens, comenta:

O vigor, porém, dessas razões, ainda quando não se leve em conta a fragilidade dos supostos fundamentos científicos em que se amparam, é claramente alimentado pelo empenho de mostrar o erro dos destratores obstinados do mundo tropical. No argumento de fundo polêmico pode vislumbrar-se alguma coisa daquela mesma emoção que deve ter possuído os cosmógrafos quando, ao circularem as primeiras notícias de viagens efetuadas às terras outrora ignoradas, se foram dissipando ou desbotando noções que, durante longos séculos, passaram quase por artigos de fé: a noção, por exemplo, de que em nosso globo a terra tem extensão muito maior do que as águas; a da existência dos antípodas, de que até os santos duvidaram, e não faltou quem o lembrasse; ou ainda a de que a cor da pele, nos seres humanos, nada tem a ver com a intensidade do calor, de modo que num mesmo clima e à mesma distância da equinocial, podem existir brancos e pretos, e por fim a de que mesmo os sítios mais quentes, ou tidos como tais, são perfeitamente habitáveis. (Holanda. 1969, p.277-278)

No início da colonização, enquanto os portugueses, indecisos, se convenciam das vantagens em investir na ocupação do Brasil, os franceses, que não aceitavam a divisão da América estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, entre os reinos ibéricos, desde 1003, já perambulavam pela costa brasileira, comercializando com várias tribos indígenas e, por duas vezes, tentaram fundar colônias em nosso território.

Além disto, os holandeses, que por esta época lutavam por sua independência contra os espanhóis, trouxeram esta guerra para o novo mundo, invadindo o litoral do nordeste brasileiro que, pela união das coroas entre Portugal e Espanha, a esta última seu território passou a pertencer entre 1580 e 1640.

Não se pretende realizar um tratado sobre os viajantes e cronistas europeus que percorreram as terras brasileiras no início de nossa colonização mas apenas contextualizar historicamente como foram sendo construídas e produzidas as primeiras visões, sensações e conceitos sobre as condições do tempo e descrições do clima do Brasil.

Consideramos três conjuntos de informações que se identificam tanto cronologicamente, quanto pela natureza das descrições realizadas. O primeiro conjunto se refere à visão dos portugueses, a partir do conteúdo da carta do escrivão Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel, por ocasião da descoberta do Brasil em abril de 1000 e, em especial, às observações dos religiosos da Companhia de Jesus, como as dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim, na primeira metade do século XVI.

No segundo conjunto, analisamos o que consideramos serem as mais preciosas e significativas contribuições sobre o mundo tropical para a época, que foram aquelas realizadas pelos religiosos franceses presentes nas duas tentativas de implementação de colônias em território brasileiro, entre o final do século XVI e início do XVII, em especial, os relatos de Andre Thevet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville e Yves d’Evreaux que, de certa forma, se constituíram nos principais documentos que fundamentaram a visão dos “alegres trópicos”, que tanto influenciou a cultura européia, notadamente francesa, produzindo as teorias (ou mitos ?) do bom selvagem e da sociedade primitiva perfeita, como aquelas propagadas por Rousseau e enciclopedistas do Iluminismo francês.

Para finalizar, o terceiro conjunto se refere ao período do domínio holandês no nordeste brasileiro, marcado pela primeira tentativa de se tratar a natureza de forma mais científica, a partir dos estudos realizados por Georg Marcgrave, Johannes de Laet e Gaspar Barleus, naturalistas e cientistas que vieram com a comitiva de Maurício de Nassau, no século XVII, quando o racionalismo científico toma corpo e passou a ditar as regras.

A Carta de Caminha e os relatos de Fernão Cardim

A ocupação efêmera do Brasil por parte de Portugal no início da colonização foi responsável pelo pouco interesse despertado sobre nossa terra e nossa gente. Os poucos relatos encontrados na literatura, com exceção do primeiro documento enviado à metrópole representado pela carta do escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, vieram dos padres da Companhia de Jesus, José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim.

Destes, Cardim é o único que descreve, de forma mais aprofundada, as características do clima do Brasil. Nascido em 1548, foi dirigente da Companhia de Jesus por várias décadas, posto este que o obrigava a percorrer, como padre visitador, as paróquias e capelas distribuídas ao longo de nosso território, para cuidar do andamento dos serviços religiosos aos cristãos e da catequese dos indígenas.

Antes de morrer, em 1625, deixou excelentes relatos, condensados na obra “Tratados da Terra e Gente do Brasil”, preparado por Capistrano de Abreu e publicado, pela primeira vez, em 1939, pela série Brasiliana.

Apesar de seus escritos estarem mais dedicados a oferecer à Companhia de Jesus uma visão geral da “empresa jesuítica”, Cardim organizou um conjunto de informações sobre a natureza (fauna e flora) e, particularmente, em seu primeiro capítulo, descreve as características do clima.

Logo no início da narrativa, oferecendo uma visão geral dos climas da porção litorânea do Brasil, escreve o autor:

O clima do Brasil geralmente he de bons, delicados e salutíferos ares, donde homens vivem até noventa, cento e mais annos; geralmente não tem frios, nem calores, ainda que no Rio de Janeiro até São Vicente há frios e calores, mas não muito grandes. Os céus são muito puros e claros, principalmente à noite. O inverno começa em março e acaba em agosto, o verão começa em setembro e acaba em fevereiro. (Cardim. 1978, p.25)

De suas impressões sobre o clima, invariavelmente compara as condições daqui e de Portugal da época merecendo destaque duas observações sobre as características da capitania do Rio de Janeiro e da Vila de Piratininga (atual São Paulo).

Na primeira, sobre o Rio de Janeiro, escreve o autor que o clima é bastante temperado, o que, em seu modo de dizer, significa que não há calor nem frio exagerado e o aré muito sadio e de muita boa água (Cardim. 1978, p.209).

Não podemos deixar de constatar, como veremos em outros capítulos, que neste período (séculos XV ao XIX), a Europa experimentava um rigor climático muito mais intenso do que hoje, período este denominado de Pequena Idade do Gelo (ou Glacial), que apresentava invernos muito rigorosos que castigavam as populações urbanas e comprometiam as safras agrícolas. Assim, o que Cardim considerava como clima temperado, na verdade significa mais a ausência de inverno, do que verões brandos. A este respeito, afirma:

O inverno se parece com a primavera de Portugal: tem uns dias formosissimos tão aprazíveis e salutiferos que parece os corpos bebendo vida. (Cardim. 1978, p.209)

A Segunda observação se refere a São Paulo. Além de retratar o clima como muito sadio, informa que no inverno o clima é muito frio, com a ocorrência de geadas e dias muito límpidos. Acrescenta que as terras são muito férteis, onde há grandes pinheiros, cujas pinhas são maiores do que as de Portugal e são tão abundantes, que há índios que se alimentam quase exclusivamente delas, e ainda que se planta muito trigo e cevada (Cardim. 1978, p.213-214).

Mas a descrição que Fernão Cardim realizou sobre o clima do Brasil não se limita a observações genéricas. Comenta alguns episódios bastante calamitosos, que já naquela época, provocavam flagelos e reconhecia que se tratava de fatos excepcionais. Num destes relatos, se refere a uma grande seca no nordeste, especificamente na capitania de Pernambuco, ocorrida em 1583, que atingiu inclusive o litoral, onde se encontravam os engenhos de açúcar, e tece o seguinte comentário:

Houve tão grande seca (em 1583) que os engenhos d’agua não moeram muito tempo. Houve grande fome, principalmente no sertão de Pernambuco, pelo que desceram do sertão apertados pela fome socorrendo-se aos brancos, quatro ou cinco mil índios. Porém passado aquele trabalho da fome, os que puderam se tornaram ao sertão, excepto os que ficaram em casa dos brancos ou por sua, ou sem sua vontade. (Cardim. 1978, p.199)

Desde esta época, portanto, já se encontram relatos que tratam da problemática da seca nordestina, e o caráter do movimento migratório das populações locais entre o sertão e o litoral, mesmo antes de uma ocupação mais intensiva. Este fato, de certa forma, confirma a existência deste problema crônico (de ordem genética do clima) sobre as anomalias da distribuição das chuvas da região.

Retomando as primeiras impressões dos portugueses sobre a natureza e o clima do Brasil, em abril de 1000, na célebre carta de Pero Vaz de Caminha, enviada ao Rei de Portugal, Dom Manuel, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, descrevendo os nativos do litoral baiano, conclui:

Por quê os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos, que não se pode mais ser. Isto me faz presumir que não tem casas nem moradas em que se acolhem, e o ar, a que se criam, os faz tais. (Caminha. 1981, p.53)

O que Caminha entende e denomina como “ar” é o que hoje definimos como clima. Mesmo considerando que, ao contrário de suas palavras, os indígenas habitavam malocas de madeira e palha, e não ao relento, como afirmara, descreve um clima como sendo muito salutar e temperado, e a seguir, comenta:

"[...] até agora não pudemos saber que há ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro, nem lho vimos. Porém, a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo de agora os achamos como os de lá". (Caminha. 1981, p.87)

Tanto Hans Staden, mercenário alemão a serviço do Reino de França, quanto Gabriel Soares de Souza, também deixaram impressões valiosas sobre as características gerais do clima do Brasil. O primeiro, que permaneceu no Brasil entre 1553 e 1554, publicou em 1557 suas “Duas Viagens ao Brasil” e, referindo-se ao território Atlântico, escreveu: o país do Brasil está em parte entre os dois trópicos [...] a gente anda nua e em estação nenhuma do ano faz tanto frio como aqui em Michaelis, mas a parte da terra mais ao sul do Capricórnio é um pouco mais fria(Staden. 1974, p.12).

O segundo, Gabriel de Souza, ao comentar o clima da Bahia, em 1587, registra os seguintes fatos:

Os dias em todo o ano são quase iguais com as noites e a diferença que tem os dias de verão e os do inverno é uma hora até hora e meia. Começa-se o inverno desta província no mês de abril e acaba-se por todo o julho, em o qual tempo não faz frio que obrigue aos homens se chegarem ao fogo, senão o gentio, por que andam despidos. Nesta comarca da Bahia, em rompendo a luz da manhã, nasce com ela juntamente o Sol, assim no inverno como no verão. E em se recolhendo o Sol à tarde, escurece juntamente o dia e cerra-se à noite. Começa o verão em agosto, durando até o mês de março, no qual tempo reinam os ventos nordeste e leste-nordeste e correm as águas na costa ao som dos ventos da parte norte para o sul, pela qual razão se não navega ao longo desta costa senão com as monções ordinárias. (Souza. 1587, apud, Ab’Saber. 1979, p.126)

Nesta passagem se observa o estranhamento dos europeus quanto ao fato de que não haja crepúsculos como os que ocorrem nas latitudes médias da Europa. Notam que o dia nasce com o sol e se encerra com o por do sol, tendo os dias e as noites quase igual duração.

Desta forma, conclui-se que, de modo geral, as primeiras impressões sobre os “ares”, ou seja, os climas do território brasileiro eram bastante positivas e suscitavam uma excelente perspectiva de aclimatação dos europeus.

Alegres trópicos: a França “descobre o Brasil”

O Brasil dos primeiros viajantes franceses é uma terra de beleza, fertilidade e alegria. A opinião sobre os “bons ares”, a riqueza e o colorido da flora e da fauna, assim como a boa impressão sobre os habitantes é quase unânime (Perrone-Moysés. 1996).

Desde 1003, navios franceses estiveram abordando o nosso litoral em busca do pau brasil, e outras riquezas nativas. Ao contrário dos portugueses, estes conseguiram se relacionar melhor com os indígenas brasileiros, pois estabeleceram um sistema de trocas justas de mercadorias e não se interessaram em dominar as terras nem escravizar os nativos.

Em 1505, Binot Palmier de Gonneville, rico comerciante francês, aporta no litoral de Santa Catarina e inicia um intercâmbio comercial, que duraria quase dois séculos, e que marcaria de forma profunda, até mesmo a própria sociedade francesa.

Meio século depois, chega ao Rio de Janeiro, em 1555, a armada de Nicolas Durand de Villegagnon, que em nome da coroa francesa, invade a vila e funda a França Antártica em terras brasileiras. Em sua companhia, vieram dois religiosos, que deixaram extensos relatos e crônicas sobre nosso país.

O franciscano Andre Thevet e o calvinista Jean de Léry, não tinham posições doutrinárias contrárias somente por suas convicções religiosas, mas também por suas impressões sobre o modo de vida dos povos indígenas e as peculiaridades da nova terra. Enquanto Léry, assim como seus conterrâneos capuchinhos Abbeville e Evreux, meio século mais tarde, defendia a existência de um quadro natural puro, sadio e paradisíaco, Thevet descrevia uma natureza perigosa e corrompida, mesmo que mais tarde tenha mudado de opinião, como veremos adiante.

Numa obra de vulto para a época, Thevet escreveu – entre 1555 e 1558 – sobre as singularidades da França Antártica, depois de ter estado por quase três anos no Brasil e outros tantos em diversas regiões do continente americano. Nesta obra, republicada pela Editora da Universidade de São Paulo em 1978, inserida na coleção Reconquista do Brasil, Thevet, ao contrário da visão de paraíso de Fernão Cardim, comenta sobre o Rio de Janeiro que, além da chuva incessante (abril de 1556) e do calor insuportável:

[...] a água da chuva nesta região é corrompida, por causa da infecção do ar pelo qual passa e da matéria igualmente corrompida que se encontra nas partes onde se formam estas chuvas. (Thevet. 1978, p.221)

Esta descrição, entretanto, não condiz com os relatos de todos os outros cronistas da época (primeira metade do século XVI), que foram unânimes em declarações positivas da natureza, da pureza do ar e das delícias do clima.

Aliás, esta controvérsia se estendeu por mais de um século, no início da colonização, quando os cronistas da época se debateram entre os preconceitos atribuídos às zonas tórridas e as características reais do clima do Brasil Atlântico. Esta controvérsia encontrou em Thevet seu principal interlocutor. Se em sua chegada via uma natureza corrompida, após sua permanência no Brasil, muda de opinião e assume uma postura crítica, ao discutir este conceito. Declarava que os antigos falavam mais por conjecturas do que por experiência, e que reproduziam a conceituação tradicional de que a zona inserida entre os trópicos é chamada de tórrida por causa da ardência dos raios solares. Entretanto, esclarecia o religioso francês, a sua experiência de vida no Brasil não lhe deixava dúvidas sobre a superioridade das regiões quentes e úmidas para a sobrevivência e habitabilidade humanas (Ab’Saber. 1979).

Uma suposição que poderia ser inferida é a de que em sua curta estada na baía de Guanabara, a despeito de suas idéias pré-concebidas, tenha vivenciado um episódio destes que são bem conhecidos dos habitantes dos trópicos, que se refere ao domínio do ar tropical continental. Quando este avança sobre o litoral, provoca as temperaturas mais elevadas, acompanhada de baixa pressão do ar e de calmarias. Este quadro sinótico sobre uma área de manguezais, típica do entorno da cidade do Rio de Janeiro, pode provocar a existência de odores fortes que ocasionam mal estar, pela exalação de gases como o metano e enxofre.

De qualquer forma, a descrição de Thevet não deve ser desconsiderada, mesmo sendo contrária a dos outros cronistas da época, uma vez que, em geral, tais viajantes não permaneciam muito tempo em cada lugar. Desta maneira, tinham uma possibilidade parcial de avaliar o comportamento do clima, limitando-se a descrever os tipos de tempo dominantes na época do ano que aí permaneciam.

Mesmo sem mencionar diretamente sobre o clima da nova terra, Jean de Léry, que chegou ao Rio de Janeiro em 1557, e publicou suas narrativas sobre a experiência vivida no Brasil em 1578, denominadas “Viagem à terra do Brasil”, tinha uma visão muito mais aberta e de respeito às diferenças, se comparada com seu compatriota Thevet. Enquanto este, mais moralista, condenava nos índios a preguiça e a luxúria, Léry se mostrou mais fascinado pela natureza tropical, pela cultura, pela ética e pelo modelo de vida dos indígenas brasileiros, a ponto de retratar esta terra como os “alegres trópicos” (Perrone-Moysés. 1996).

Expulsos do Rio de Janeiro em 1567, pelas forças de Mem de Sá, então governador geral da colônia, os franceses voltam ao Brasil meio século mais tarde e, ao invadirem as terras maranhenses, implantam a França Equinocial em São Luis, em 1612. A armada de Daniel de la Touche traz, entre outros, dois padres capuchinhos: Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux.

Além da impressionante descrição que faz sobre os Tupinambás, Abbeville foi aquele que mais observou o tempo e o clima, deixando através de sua grande obra “A Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão”, um importante conjunto de informações sobre as características climáticas da região.

Era opinião reinante nos círculos cultos da Europa do século XVI, a concepção aristotélica de que na então denominada “zona tórrida”, o calor seria tão extremado, que a vida se tornaria impossível de adaptação. Contrariando este conceito, Abbeville descreve, entre espantado e maravilhado com o que via e sentia, o clima da Ilha do Maranhão, da seguinte forma:

Passando o sol continuamente sobre essa zona tórrida, de um trópico a outro, como em sua morada eterna ou magnífico palácio contempla seus súditos diretamente e de frente, e seus raios sendo perpendiculares e ortogonos, e a reverberação dos mesmos intensos, deve o calor ser extremado a ponto de terem pensado autores acatados (e ainda o pensarem) que somente com grandes dificuldades pode o homem adaptar-se. Mas por merce de Deus, observa-se o contrário na Ilha do Maranhão e terras adjacentes do Brasil, situadas precisamente sob a zona tórrida, a dois e meio graus do Equador, onde passando o sol duas vezes pelo seu zênite, seria de fato o calor insuportável não fosse a incomensurável providência divina atenuar e temperar tal ardor por meios muitas vêzes maravilhosos. (Abbeville. 1975, p.152-153)

Observa-se que, apesar da constatação da existência de um clima muito mais ameno do que se poderia imaginar para essas latitudes, o autor (e todos os autores de sua época) ainda desconhecia a gênese de tais fatos, ou melhor, atribuíam suas causas à vontade e providência divina, como era corrente durante o período em que o pensamento escolástico predominou no contexto da filosofia cristã.

Mesmo considerando as explicações teológicas para a compreensão das amenidades do clima desta região, Claude d’Abbevile já atentava para o fato de que, vindo as correntes de ar que chegavam ao litoral brasileiro, pelo quadrante oriental, atravessando o Oceano Atlântico, este ar era temperado pelos vapores das águas oceânicas, que o tornavam puros e “sadios”. Tal foi o impacto destas sensações na percepção do clima local, que o autor descreveu estas sensações, e arriscou uma explicação:

Se a temperatura, ou o clima, de uma região depende tão somente da pureza e da doçura do ar, julgo (o que há de parecer paradoxal a muitos) que não existe lugar no mundo mais temperado e delicioso do que este. Passando o sol da Guiné, a leste, para o Brasil, a oeste, atravessa grande extensão de mar e se impregna de vapores puros e limpos que o temperam admiravelmente. Por esta razão é o Brasil salubre e temperado, enquanto a Guiné não o é, por não se achar sob a cobertura de idênticos vapores. (Abbeville. 1975, p.153-154)

Trata-se, naturalmente, dos ventos alísios. Em todo o litoral norte e nordeste do Brasil, os ventos que sopram do mar efetivamente amenizam as condições do clima, pela ação do calor latente. Abbeville, observador atento, já constatara que além do papel regulador da temperatura promovida pela ação destes ventos, quando do solstício de verão para o hemisfério sul, a região se tornava palco de abundantes precipitações, principalmente no período equinocial de março. A terminologia empregada como “doçura do ar” e “vapores puros” ou “salutíferos” pode ser interpretada no contexto das grandes epidemias e da insalubridade das cidades européias do início do Renascimento.

É interessante notar que estas informações sobre o curso anual da sazonalidade do clima, também eram de conhecimento dos Tupinambás, nativos habitantes desta região do Brasil, com a única diferença de que, enquanto Abbeville associava as estações secas e chuvosas pelas situações da movimentação do sol (do trópico de Capricórnio para o de Câncer – solstícios e equinócios), os índios maranhenses observavam pela movimentação das estrelas – as Plêiades.

Ao caracterizar a variabilidade do clima, Abbeville descreve tanto a sazonalidade diuturna quanto estacional. Sobre as variações ao longo do dia, comenta que:

O frescor da noite, dos rios e regatos, banha os vapores do sol, formados durante o dia e mesmo depois do ocaso, e os condensa tanto mais depressa quanto sutis, e os transforma rapidamente em abundantes e frescos orvalhos que regam e refrescam toda a região, tornando as noites belas e serenas, agradáveis e deliciosas. (Abbeville. 1975, p.155)

Sobre o curso anual – sucessão dos períodos chuvosos e de estiagem – explica da seguinte maneira:

Além disto a providência divina, que tudo dispõe com sabedoria, tempera o ardor do sol em toda essa região, por meios muito mais extraordinário. Manda à frente do sol, na sua trajetória do trópico de Capricórnio para o trópico de Câncer, grandes chuvas que principiam mais ou menos seis semanas antes de encontrar ele na linha vertical e continuam por dois meses e meio depois de ter ele passado pelo zênite. Duram assim as chuvas de 4 a 4 e meio meses regando abundantemente o ar e a terra, temperando o ardor do sol e fecundando a terra. Estas chuvas começam na Ilha do Maranhão, mais ou menos em fevereiro, e duram até fins de maio ou meados de junho. (Abbeville. 1975, p.155)

Ao terminar suas impressões sobre o clima do Maranhão, Abbeville está tão convencido da pureza do ar e da salubridade das condições atmosféricas, ao longo do ano todo, que não resiste ao comentário de que, na falta de doenças e outras moléstias tão correntes no continente europeu, a esta época – como a lepra e a tuberculose – os nativos brasileiros são muito mais sadios e fortes e finaliza (sobre os Tupinambás): Tão saudável é o clima, que só morrem de velhice (Abbeville. 1975, p.211).

De qualquer forma, os relatos dos cronistas que por estas terras estiveram nos séculos XVI e XVII, traçaram as primeiras linhas gerais dos tipos de tempo e conseguiram com muita e atenta observação, caracterizar as condições habituais do clima da costa brasileira. A maior parte destas constatações foi muito útil para que se modificassem os conceitos teóricos do significado da zona tórrida e, estabelecessem uma nova visão dos trópicos.

Esta boa imagem do Brasil persistiu através dos séculos seguintes, principalmente no imaginário francês, a ponto de introduzir na Europa a teoria do “bom selvagem”, primeiramente abordadas por Jean de Léry e Michel Montaigne e que tão relevante papel exerceu no iluminismo e no próprio ideário da Revolução Francesa.

Segundo Perrone-Moysés (1996, p.90), a França talvez tenha sido o país mais profundamente marcado pela descoberta do Brasil e dos brasileiros, já que esta transformou seus conceitos éticos, políticos, pedagógicos e higiênicos”.

Georg Marcgrave e os primeiros registros meteorológicos no Brasil holandês

Se os cronistas do primeiro século da colonização do Brasil puderam apenas realizar constatações a partir da observação e da experiência vivida em nosso território, no século XVII, por ocasião da presença holandesa no nordeste brasileiro, foram realizadas as primeiras pesquisas científicas baseadas nos registros das condições do tempo e caracterização do clima.

Assim, os europeus que estiveram no Brasil no início do século XVI eram representantes de um conhecimento científico que ainda se pautava no sistema aristotélico-tomista, proveniente do pensamento clássico helênico e da época cristã, que dominou toda a Idade Média. Este conhecimento se caracterizava pela exploração especulativa dos fatos e pelos axiomas cristãos. Entretanto, com o Renascimento europeu estabelecem-se novas visões de mundo quando a experimentação toma o lugar da especulação. É neste contexto, que os sábios holandeses que vieram com o Príncipe Maurício de Nassau procuraram entender a terra e a gente do Brasil.

Apesar da Holanda ter sido velha parceira comercial de Portugal, atacou o Brasil, a maior colônia lusa, porque travava com a Espanha a guerra por sua independência. Desde 1580, a coroa portuguesa passa para o domínio espanhol e, consigo, toda a vastidão do império colonial lusitano. É neste contexto que, em 1630, os holandeses invadem Pernambuco (e mais outras 6 das 19 capitanias existentes àquela época), então a maior zona produtora de açúcar do Brasil e do mundo, com cerca de 130 engenhos produzindo mais de mil toneladas deste produto, anualmente (Bueno. 1997).

Em 1637, chega ao Recife o novo governador geral mandado pela Companhia das Índias Ocidentais, o nobre Johann Mauritius van Nassau-Siegen, Príncipe de Orange, alemão de nascimento, mas a serviço da Holanda. Demonstrando o enorme poderio econômico da empresa patrocinadora desta aventura ultramar e da formação humanística e intelectual de Nassau, com ele vem uma numerosa comitiva incluindo artistas, naturalistas e homens de ciências, como Franz Post, Willen Piso, Zacharias Wegener e Georg Marcgrave (ou Marcgraf).

Enquanto Post, primeiro europeu a pintar os esplendores da natureza dos trópicos, retratava de forma brilhante os animais e plantas, além das paisagens naturais, Piso, médico pessoal de Nassau, estudou profundamente a ervas medicinais e realizou os primeiros estudos de medicina tropical. Já Marcgrave, astrônomo, matemático e cartógrafo trouxe consigo um observatório astronômico completo da Holanda, empreendendo as primeiras medições científicas sobre os céus e o clima de Recife e arredores.

Marcgrave, que viveu no Brasil por 6 anos (1637 a 1642), obteve uma série temporal diária entre 1640 e 1642, em Recife (então denominada de cidade Maurícia, em alusão ao príncipe holandês Maurício de Nassau, encarregado da administração local), registrando as condições do tempo, os ventos e as chuvas. Seu companheiro de missão, o médico holandês Willem (Guilherme) Piso, pode descrever o regime climático e detalhou o terrível episódio pluviométrico de 1641, quando o rio Capibaribe transbordou ocasionando muitas perdas de animais e vidas humanas.

Johannes de Laet, que foi uma espécie de escritor dos feitos de Marcgrave, pois este faleceu precocemente em 1648, na África, aos 34 anos, deixando seus manuscritos inacabados, descreve outro evento bastante atípico para aquela latitude quase equatorial (cerca de 8o sul), quando da penetração de um anticiclone polar atlântico no inverno daquele mesmo ano. As temperaturas baixaram tanto, principalmente na região serrana de Garanhuns, que um frio inédito e intenso nevoeiro, pouco comuns para esta parte do Brasil, atingiram a região inesperadamente.

Sobre este episódio, comenta que choveu muito no inverno de 1641. Além dos densos nevoeiros que se formavam, os ventos fortes e frios ocasionaram temperaturas excepcionalmente baixas mesmo ao meio dia. No alto do monte Itapuameru (provavelmente na atual região de Garanhuns), o frio era tão intenso que os cabelos e barbas ficavam cobertos de gotas de água e as mãos “enregelavam” à comparação do gelo.

Segundo Sampaio Ferraz (1980) isto parece bastante plausível, pois, afirma o autor;

Do ponto de vista da climatologia de todo o globo, esta quadra excepcional se enquadra bem no primeiro período da chamada Pequena Era Glacial, de 1550 a 1650, em que se registrou o avanço geral das geleiras nos Alpes, Escandinávia e Islândia, e que, segundo autoridades no assunto, repercutira igualmente no Hemisfério Sul. (Ferraz. 1980, p.211)

Dos registros de Marcgrave, merecem especial atenção às direções do vento, os dias com relâmpagos e trovoadas e, mais especificamente, o número de dias com chuva. Como não havia ainda como quantificar a pluviosidade, anotou os dias em que ocorreram chuvas e comenta sobre os episódios de chuvas mais intensas. Esclarece que, na maior parte das vezes, tratava-se de chuvas curtas, rápidas e de pequena intensidade. Na Tabela 1, a seguir, demonstra-se este fato.

Tabela 1
Número de dias com chuvas. Comparação entre os dados registrados por Marcgrave (1640/1642) e por Morize (1912/1919)
Anos
Jan
Fev
Mar
Abr
Mai
Jun
Jul
Ago
Set
Out
Nov
Dez
Tot.
1640
12
14
21
22
24
19
26
22
12
11
10
10
203
1641
6
15
13
21
24
18
19
15
8
7
7
13
166
1642
16
9
16
21
19
22
14
16
13
7
7
4
164
Med 1640/42
11
13
17
21
22
20
20
18
11
8
8
9
178
Med 1912/19
14
19
18
19
21
26
27
26
25
18
11
11
235
Fonte: Sant’Anna Neto (2001)

Sem dúvida alguma, os registros e observações desta pioneira dupla de naturalistas, Marcgrave e Piso, são as primeiras de que se tem notícia em todo o território brasileiro. Foram condensadas numa valiosa publicação (para a época), Historia Naturalis Brasiliae, que é o verdadeiro marco histórico de uma análise mais conjuntiva da climatologia brasileira, despojada da física rudimentar aristotélica, ainda tão em voga no velho continente.

Outras observações muito interessantes de Marcgrave referem-se ao que podemos considerar como as pioneiras considerações bioclimatológicas, quando, ao tratar da paisagem pernambucana, não se limita à descrição dos fatos, mas busca suas possíveis causas. Isto pode ser notado no trecho que se segue:

O importuno ardor do verão obriga os habitantes a não cultivarem a terra. Os próprios outeiros, por esses meses, por causa do ardor do sol, são infrutíferos e secam no interior, de sorte que não só toda erva, mas também as árvores morrem de tempos em tempos e o capim incendiado uma vez, principalmente pelo vento rápido, prossegue o incêndio em grande área, assim elas que reverdecem soberbamente nos meses de chuva, no estio morrem nos montes. (Marcgrave. 1942, p.261-262)

Comenta também que os incêndios acabam sendo benéficos para a cultura da mandioca e que fazem parte do ciclo natural. Além disto, citando informações orais passadas pelos indígenas locais e pelos portugueses, que aí já estavam há muitas décadas, aponta a existência de uma ciclicidade entre os anos mais chuvosos e secos, em torno de sete anos, mas sem saber as causas, justifica que isto ocorre por “alguma oculta provação”.

Comparando os cursos de água que desembocam no litoral, Marcgrave salienta que, como é longo o período de estiagem do verão no interior, onde estão as nascentes destes rios, o volume de água é pequeno, apesar de suas extensas larguras quando chegam ao mar. Isto se deve mais à influência das correntes marítimas do que à vazão verificada. Quando se refere ao Rio São Francisco, entretanto, após analisar o material carreado pelas suas águas, infere que este rio deveria nascer muito ao sul, no interior, cuja região apresenta estação chuvosa mais longa e intensa (Marcgrave. 1942).

Salomão Serebrenick, geógrafo do IBGE, que comentou a obra de Marcgrave na primeira edição brasileira, numa apreciação crítica sobre os estudos climatológicos contidos na “História Natural do Brasil”, aponta uma série de fatos relevantes, como:

Os dois elementos climáticos que foram objeto das observações de Marcgrave são o estado do tempo e o vento, sendo o primeiro representado pelos elementos parciais: número de dias de chuva, épocas chuvosas, meses mais chuvosos, trovoadas, relâmpagos e nevoeiro. As observações de Marcgrave sobre a região costeira do nordeste oriental foram particularmente felizes, já que nas regiões tropicais – como hoje sabemos – existe estreita correlação entre a dinâmica das massas de ar e os tipos de tempo, sendo indispensável o conhecimento do regime pluviométrico para caracterizar as verdadeiras estações do ano, porque as variações sazonais de temperatura, via de regra, são restritas ou muito pequenas. (Serebrenick, in: Marcgrave. 1942, p.101)

Percebe-se, pois, que as observações e análises de Georg Marcgrave eram surpreendentes mesmo para o seu tempo. As preocupações com os tipos de tempo e as explicações causais e relacionadas aos aspectos cotidianos da população e da economia agrícola de Pernambuco, aproximam estes propósitos, com os da própria Climatologia Geográfica. Infelizmente, parte dos estudos de Marcgrave se perdeu, com a sua morte prematura, e a despeito do esforço de Johannes de Laet, que organizou seus escritos, mas que jamais esteve no Brasil, não pode terminar alguns dos documentos por falta de informações.

O legado científico deixado pelos holandeses, como afirma Belluzzo (1996), fornece as primeiras evidências do momento de construção histórica do observador ocorrido no século XVII, quando se buscava apreender a estrutura visível da natureza. Esta nova abordagem da ciência da natureza desenvolve-se em oposição à crença religiosa e sem preocupações morais.

De qualquer forma, em 1640, o Brasil e as demais colônias voltam ao domínio português, com a restauração de sua coroa, após 60 anos de domínio espanhol. Em 1644, após desentendimentos com a Companhia das Índias Ocidentais, Nassau renuncia a seu cargo e retorna à Holanda. Junto com ele, voltam também os pintores, médicos e naturalistas. A partir daí, inicia-se a decadência da ocupação holandesa no Brasil. Dez anos depois, foram definitivamente expulsos, em 1654.

O Brasil permaneceria, por mais de um século e meio, sem nenhum avanço significativo em termos do conhecimento sobre o tempo e o clima, até que a família real e as cortes portuguesas se transferiram para o Brasil, em 1808, iniciando uma nova etapa de desenvolvimento científico, com as contribuições dos viajantes e naturalistas do século XIX. Mas esta é uma outra história.

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BARLEU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia e São Paulo: Edusp, 1974. 409 p. (coleção Reconquista do Brasil, v. 15).

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CORTESÃO, Jaime. A carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1943. 351 p.

FERRAZ, Joaquim de Sampaio. A meteorologia no Brasil. In: Fernando de Azevedo (org). As ciências no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1980. p. 205-240.

HOLANDA, Sergio Buarque. Visão do Paraíso. São Paulo: Edusp/Cia Editora Nacional, 1969. (Série Brasiliana, vol. 333)

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SANT’ANNA NETO, João Lima. História da Climatologia no Brasil. Presidente Prudente, FCT/UNESP, 2001. (Tese de Livre Docência)

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia e São Paulo: Edusp, 1974. 216 p. (coleção Reconquista do Brasil, v. 17). Publicado originalmente em 1557

THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte: Itatiaia e São Paulo: Edusp, 1978. 271 p. (coleção Reconquista do Brasil, v. 45). Publicado originalmente em 1558.

© Copyright João Lima Sant'Anna Neto, 2006
© Copyright: Biblio 3W, 2006


Ficha bibliográfica

NETO, João Lima Sant'Anna. Primeiras impressões dos cronistas e viajantes sobre o tempo e o clima no Brasil colônial . Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XI, nº 691, 5 de diciembre de 2006. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-691.htm>. [ISSN 1138-9796].


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