REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES (Serie documental de Geo Crítica) Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 Vol. XII, nº 713, 25 de marzo de 2007 |
PRÁTICAS EDUCATIVAS COM FOTOGRAFIAS AÉREAS VERTICAIS EM UMA PESQUISA COLABORATIVA
Práticas educativas com fotografias aéreas verticais em uma pesquisa colaborativa (Resumo)
Esta pesquisa originou-se de reflexões sobre práticas educativas com fotografias aéreas. Minha preocupação residiu inicialmente em compreender como os professores do segundo ciclo (3a e 4a séries do Ensino Fundamental) de escolas municipais paulistas utilizariam as páginas com fotografias aéreas verticais do Atlas Municipal e Escolar (geográfico, histórico e ambiental) de Rio Claro no Estado de Sao Paulo - Brasil (Almeida et. al., 2001) em suas práticas educativas. É nessa tensão entre a separação curricular habitual e as aproximações solicitadas pelo estudo do lugar que as fotografias aéreas verticais são inseridas pelos professores em suas atividades de ensino. Em princípio, a abordagem para a disciplina de Geografia realizada pelos professores pautou-se na clássica separação entre as disciplinas escolares (Geografia, História e Ciências). À medida que as professoras iam trazendo nas aulas as fotos aéreas com o objetivo de estudar o lugar, ocorreu a imbricação destas disciplinas em alguns dos temas propostos. Foi inspirada na idéia de passagens – cruzamentos -, que analisei as práticas educativas com fotografias aéreas verticais de três professoras das séries iniciais.
Palavras-chave: fotografias aéreas, profesores, conocimiento
Key words: aerial pictures,
teachers, knowledge
Este texto é resultado de
minha investigação de doutoramento, concluída no segundo
semestre do ano de 2005 (Cazetta, 2005), versando sobre a utilização
de fotografias aéreas verticais por professoras do segundo ciclo
(terceiras e quartas séries) do ensino fundamental da rede paulista
de ensino do município de Rio Claro no Estado de São Paulo
- Brasil. Inicialmente, meu interesse residiu em compreender como estas
professoras utilizariam as páginas com fotografias aéreas
verticais do Atlas Municipal e Escolar de Rio Claro: geográfico,
histórico e ambiental (Almeida et. al., 2001) em suas
práticas educativas. Digo “inicialmente” porque, ao longo da pesquisa
detectei que para a incorporação de linguagens alternativas
no ensino de geografia, como as fotografias aéreas verticais, não
basta somente incorporá-las em materiais didáticos de circulação
ampla e/ou restrita, se isso não “tocar” ou não tiver um
significado em termos de experiência para o professor.
Dedicando-me a leituras de autores
preocupados com a produção do conhecimento de uma perspectiva
da cultura escolar1, vim a (re)descobrir que as escolas são
locais de produção de conhecimento, o qual não subordina-se
ao conhecimento acadêmico-científico. Às vezes torna-se
necessário não somente inverter caminhos, mas (des)construir
entendimentos prontos e acabados, pois quanto mais se experimenta formas
diferentes de “olhar” para as “coisas” do mundo, mais este se mostra como
obra humana inacabada. Antes de entrar no cerne das práticas educativas
com fotografias aéreas verticais, situarei o contexto de minha investigação
para não causar no leitor estranhamento quanto aos itinerários
deste texto.
Antes da procura fui ao encontro
Minha investigação de doutoramento originou-se de reflexões iniciadas ainda na graduação quando da realização de estágio de Iniciação Científica (Almeida e Cazetta, 1999), cujo desdobramento resultou em minha dissertação de mestrado (Cazetta, 2002; Cazetta e Oliveira, 2003). Entre a iniciação científica e a conclusão da investigação de mestrado, foi publicado o Atlas municipal e escolar de Rio Claro, conforme explicitado mais abaixo. Assim, minha investigação de doutoramento começou vinculada ao projeto de pesquisa Integrando universidade e escola por meio de uma pesquisa em colaboração: Atlas municipais escolares, em sua segunda fase2. Na primeira fase, foram elaborados atlas municipais e escolares para os municípios paulistas de Limeira, Rio Claro e Ipeúna, cuja iniciativa deveu-se a solicitação de assistentes pedagógicos da rede pública paulista que freqüentavam o Laboratório de Ensino de Geografia e Ciências Naturais do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista - UNESP de Rio Claro. Além disso, as pesquisas internacionais conforme as de Piñeiro Peleteiro e Melon Arias (1997), já apontavam também tal perspectiva de investigação no campo da Didática da Geografia.
O contexto de elaboração dos atlas construiu-se paralelamente à aquisição de procedimentos de produção de conhecimento e serviu para delinear o projeto de pesquisa em sua segunda fase que correspondeu à necessidade de se dar uma resposta ao questionamento feito pela comunidade escolar local a respeito do preparo do professor para “usar o atlas” (Almeida, 2004).
Se, nesse contexto meu olhar esteve focado inicialmente em como professores sem formação específica em Geografia, utilizariam as páginas de fotografias aéreas verticais do Atlas de Rio Claro, no decorrer da pesquisa mudei meu foco de investigação das páginas com fotos aéreas verticais inseridas por mim no referido atlas para as práticas educativas com fotos aéreas verticais, de modo que, o próprio cotidiano da sala de aula levasse os professores à descoberta desta linguagem, bem como o meu encontro com os dados coletados nas escolas e o que emergiria deles enquanto recorte interessante de ser estudado na constituição de minha investigação.
No decorrer da segunda fase da pesquisa,
acompanhei durante um período mais longo em três escolas municipais
de Rio Claro, três professoras efetivas de educação
básica (PEB-I), sendo que duas delas lecionavam em turmas de quarta
séries e uma em turmas de terceira série. No início
do primeiro semestre de 2003, somente duas professoras aproximarem-se de
mim manifestando interesse em desenvolver atividades de ensino com fotos
aéreas verticais (em preto e branco - P&B, da área urbana
de Rio Claro do ano de 1995, com escala numérica 1:5000, e disponibilizadas
pela Secretaria de Desenvolvimento e Planejamento Ambiental da Prefeitura
Municipal de Rio Claro – Sedeplama, à Universidade Estadual Paulista
para fins de pesquisa).
Dentre um dos motivos que levaram
as professoras não desenvolverem, inicialmente3 atividades
de ensino com fotos aéreas verticais com os escolares, destaco o
fato desta linguagem não fazer parte do universo cultural escolar.
Abro um parêntese para destacar que atualmente não somente
este tipo de fotografia, mas também as imagens orbitais, têm
participado de modo mais efetivo do cotidiano de muitas pessoas, educando-as
informalmente. Basta acessarmos sites como, www.embrapa.gov.br
ou www.googlearth.com.br ou
ainda , assistirmos a filmes como Cidade de Deus entre outros para
nos depararmos com este tipo de linguagem.
Um segundo motivo decorrente do anterior diz respeito à insegurança dessas professoras, apontando para mim que essas páginas não foram suficientes ou auto-explicativas para deixar os professores mais seguros quanto a sua utilização. Destacaria ainda um terceiro motivo, vinculado a uma relação menos próxima da pesquisadora com as professoras logo no início do projeto de pesquisa, diluída no decorrer do contexto da pesquisa.
Abordados nos parágrafos anteriores os motivos pelos quais, no início do projeto, os professores não utilizaram as páginas de fotos aéreas verticais do Atlas de Rio Claro, me volto agora para os motivos que levaram as professoras a usarem essas fotos somente no primeiro semestre de 2003.
Primeiramente,
destaco o fato do lugar de vivência dos alunos ter ganhado centralidade
nas ações e reflexões das professoras a partir dos
desenhos da “clássica” atividade caminho casa-escola, não
importando “se esse lugar onde se vive seja pensado como o município,
seja a área urbana ou rural, o bairro central ou periférico,
a vila ou mesmo a rua ou estrada onde vivem as pessoas”4.
Paradoxalmente, o segundo motivo
decorrente deste anterior, refere-se ao fato de que esta mesma atividade
foi perdendo força por não propiciar aos alunos um conhecimento
mais inteiro o lugar onde vivem. Neste caso, a foto aérea vertical
pode possibilitar uma visão mais de conjunto – típico conhecimento
que pode ser melhor elaborado a partir das fotografias aéreas verticais
do que nos mapas. Até esse momento, a abordagem dada pelos professores
não somente para a disciplina de Geografia, mas para as disciplinas
de História e Ciências pautava-se na clássica separação
entre os conteúdos escolares, conforme o quadro 1.
Quadro 1
Conteúdos disciplinares
de História, Geografia e Ciências desenvolvidos
em classes de terceiras e quartas
séries do ensino fundamental
DISCIPLINAS
|
|
|
|
|
|
História
|
História
de vida
História do bairro |
História
de vida
Migração Formação do município |
Geografia
|
Trajeto
casa-escola
Direções cardeais/lateralidade Maquete da sala de aula |
Representação
do espaço
Bairros e serviços |
Ciências
|
Corpo
humano
Vegetação Saneamento básico Lixo |
Corpo
humano
Saúde |
A potencialidade dessa linguagem reside justamente nisso, isto é, a solicitação pelas fotos dos saberes corporais acerca do lugar onde se vive. Tais saberes serão misturados a outros saberes, provenientes de distintos universos culturais. Nesse sentido, as fotos ou informações em imagens sobre esse dado lugar, irão “colonizar” as pessoas de modo mais inteiro e detalhado e, ao mesmo tempo, possibilitar a crítica de fato.
Assim, pergunto: como as fotos aéreas verticais são apropriadas pelos professores possibilitando no universo escolar a produção de outros significados acerca do lugar onde se vive, além daqueles já propostos pelo próprio Atlas de Rio Claro? Como essas fotos solicitam a circulação por outros tipos de saberes que não somente aqueles ligados, por excelência, ao campo dos conhecimentos geográficos, (des)construindo nas crianças outras práticas discursivas que não somente aquelas veiculadas pelos materiais didáticos restritos ao universo escolar?
Não estou querendo dizer com isso que as fotos aéreas verticais, concebidas enquanto a linguagem objetiva da realidade, assim como os mapas, sejam a geografia do lugar. Mas como a partir dessa própria escrita da realidade ou da pedagogia específica das fotografias aéreas verticais, os alunos são remetidos ou lançados para outras geografias do lugar onde vivem e produzem suas existências?
Entre passagens e constituição de saberes
Foi inspirada na idéia de passagens (cruzamentos) que encontrei poesia e amparo para sobrevoar as práticas educativas com fotografias aéreas das três professoras que se aproximaram de mim durante a segunda fase da pesquisa temática, conforme já mencionado anteriormente. Para Oliveira Júnior (2003, p.38; 2004, p.2)
“essas passagens não só relacionariam saberes, mas antes os aproximariam e misturariam. Elas promoveriam a constituição de percursos por outros saberes e práticas, permitindo-nos renovar e ampliar a experiência cotidiana, formulando novos discursos e falas: ir e vir, percorrer, transitar, contaminar e ser contaminado”.
Assim, advogo em prol da idéia de que pelo fato das fotos aéreas verticais constituírem-se em imagens menos codificadas e lidas, em parte, a partir das memórias visuais das formas, elas seriam, deste modo, mais efetivas na geração de passagens – cruzamentos – entre os saberes oriundos das experiências espaciais e visuais cotidianas das crianças e aqueles saberes provindos do universo escolar, mais institucionalizados.
O
percurso de todos os professores no grupo de pesquisa foi marcado por atividades
de ensino em torno da representação espacial, os quais desenvolveram
primeiramente atividades junto de seus alunos, voltadas para iniciação
cartográfica, com a finalidade de promover bons leitores e produtores
de mapas por meio da representação do espaço vivido,
compreendendo inclusive os processos histórico-sociais de uso e
ocupação desses mesmos lugares. E como a atividade denominada
caminho casa-escola era freqüente entre os professores dos
quatro primeiros anos do Ensino Fundamental e parte integrante do Programa
de Geografia das escolas, eles lançaram-se a essa atividade.
Nas atividades de iniciação cartográfica, isto é,
mapeamentos realizados pelas crianças do caminho casa-escola, já
havia marcas das experiências espaciais e visuais cotidianas.
Se essas experiências espaciais e visuais cotidianas
presentes nesses processos de mapeamento deixaram de ser totalmente aproveitadas
pelas professoras no começo do grupo de pesquisa, acabaram apontando
para essas mesmas professoras “caminhos didáticos” mais promissores
ao aproveitarem-nas de modo mais inteiro nas atividades com fotos aéreas
verticais, possibilitando inclusive aos alunos passagens mais facilitadas
pelos saberes cartográficos. Narro, a seguir, partindo de excertos
de práticas educativas com fotos aéreas verticais, as passagens
realizadas entre os diversos tipos de saberes solicitados por essas
práticas educativas. Os nomes utilizados para os sujeitos desta
pesquisa são fictícios.
Práticas educativas com fotografias aéreas verticais
O
interesse das professoras em utilizar as fotografias aéreas verticais
deu-se no momento em que paralelamente, tanto suas buscas quanto as dos
alunos passaram a girar mais em torno do bairro do que na prática
educativa do trajeto “caminho casa-escola”. As fotografias aéreas
verticais vieram compor o mosaico das atividades das professoras para dar
conta daquilo que os desenhos dos trajetos e a cartografia do bairro não
possibilitaram, ou seja, apreender o bairro enquanto espaço percorrido
e vivido. As professoras ao levarem mosaicos de fotografias aéreas
verticais (em branco e preto, escala 1:5000, ano de 1995) para as crianças
deram visibilidade ao conjunto de bairros que não aparecem mapeados
e fotografados no Atlas de Rio Claro (Almeida et al., 2004, p.53). Tais
mosaicos foram elaborados por mim junto às professoras.
Observei certo fascínio nas crianças à medida que
olhavam para o mosaico de fotografias aéreas verticais a ponto de
se envolveram com certa familiaridade e tranqüilidade no manuseio,
entendimento e crítica daquelas fotos. Oliveira Júnior (2003)
afirma que a própria “natureza” da imagem fotográfica mantém
uma enorme verossimilhança com as experiências espaciais
e visuais cotidianas das pessoas. A abordagem deste autor diz respeito
às fotografias comuns. Porém, é possível ampliar
tal entendimento para as fotografias aéreas verticais, pois, segundo
ainda este mesmo autor, se tomarmos a visualidade como a maneira privilegiada
da civilização ocidental conhecer, então esta verossimilhança
visual das fotografias ganha um grande peso de verdade, à medida
que as pessoas reconhecem seus passos com certa familiaridade neste tipo
de fotografia, inclusive por possibilitar um conhecimento mais inteiro
do lugar vivido, apreendido de uma única vez. Nesse sentido, pode-se
afirmar que as fotografias aéreas verticais possibilitam passagens
mais facilitadas entre os saberes corporais, espaciais e visuais cotidianos
e aqueles geográficos – elaborados formal ou informalmente. A solicitação
dos saberes espaciais e visuais cotidianos acerca do lugar onde se caminha
e vive é inerente à própria observação
das fotos que estavam diante dos alunos (Oliveira Júnior, 2004).As
crianças, ao percorrerem a foto com o dedo e a memória, encantam-se
com a paisagem “vista de cima” do bairro onde residem. Ao vincularem suas
experiências espaciais cotidianas com os itinerários
percorridos nas fotos, elas vão descobrindo ausências e
permanências, e ao mesmo tempo, dando plasticidade àquela
paisagem chapada, conforme exemplifica o trecho de aula abaixo: Aluno:
Não tem nosso bairro aqui?Professora: O bairro de vocês é
muito novo e a foto é de 1995 (...)Aluno: Então, como a gente
vai fazer a nossa casa se Jardim Progresso não aparece nessa foto?
Professora: Vocês observarão que na foto aparece somente o
loteamento. Então, vocês terão que construir o bairro
(...) Caren teve o mesmo problema de vocês, pois seu bairro - Jardim
Araucária - também não existia!6.
Essas
passagens permitem às crianças completar mentalmente
o que está e o que não está registrado cartograficamente
no atlas ao confrontarem essas experiências com os desenhos dos trajetos
(mapas não oficiais), os mapas oficiais (presentes no atlas) e as
fotos aéreas verticais (presente no atlas, mas trazendo somente
alguns bairros de Rio Claro).
Inicialmente, a abordagem dos Jardins Progresso e Araucária, onde
vivem os alunos da professora Camila, insere-se como um problema por não
possuírem existência mapeada e fotografada, pois as fotos
são do ano de 1995, momento no qual esses bairros estavam iniciando
o processo de arruamento. Ou seja, os alunos tiveram que “construir” o
bairro no croqui, isto é, tornar sua existência mapeada a
partir das ausências apontadas pela própria fotografia aérea
vertical do bairro. Nesse exercício imaginativo os alunos vão
constituindo e concebendo uma geografia diferente daquela apresentada pelo
atlas e pelas próprias fotografias aéreas verticais. A foto
aérea solicita a passagem entre a memória e os saberes
corporais das crianças. A realização de seus croquis
foi possível por meio desta articulação entre memória
e espaço, ou seja, terão que “trazer” para a foto elementos
do bairro que não foram fotografados e nem mapeados, conforme o
trecho de aula citado anteriormente. Apesar da foto aérea já
trazer um ponto de vista semelhante ao do mapa, ela é obtida a partir
do real, podendo ser tomada como uma construtora de realidades (assim como
os mapas), numa acepção ao filósofo italiano Gianni
Vattimo (1992). Não é necessário que se use somente
o que é atual. Através das atividades realizadas, os alunos
demonstraram reconhecer o lugar em que vivem mesmo em fotografias mais
antigas.
(...)
“As fotos eram de 1995 e estávamos em 2003. Muito do que se [convi]via
no território ainda não havia 8 anos antes. Novamente as
crianças que moram nos “bairros novos” não tinham suas casas
– e às vezes, nem suas ruas – ali encontradas. Mas foi justamente
a partir das transformações descobertas entre o que era e
o que é – diferenças entre o que se via nas fotos aéreas
e o que se via nas ruas em 2003 –que os lugares não mapeados foram
tomando existência e puderam ser “mapeados” pelos próprios
alunos neles residentes. Lugares que já nasceram no fluxo do tempo,
mapas em que o espaço tem duração, essa quarta dimensão
do território”7.
As crianças seguem fixadas
ao “caminharem” pela foto, fazendo seus trajetos (espaço de reconhecimento
individual), agora na foto aérea vertical (espaço de reconhecimento
coletivo). Seus corpos, ali apoiados no conjunto de cadeira e carteira,
deslocam-se no tempo e no espaço à procura também
de elementos conhecidos daquele território fotografado para ser
mapeado, como, a escola, o córrego (paralelo à escola), a
linha férrea, casas comerciais e outras instituições
de ensino.
A partir da foto aérea e do croqui o trajeto casa-escola vai se tornando “área” e “volume”, adensando conhecimentos e significados, ao mesmo tempo que vai deixando de ser pessoal e vai se tornando grupal, coletivo, social, público. Ou seja, os trajetos tornam-se, respectivamente, o bairro onde cada aluno vive, “território socialmente produzido e existente em várias “materialidades”: física, dos fluxos, das memórias, das projeções, dos acasos...”8. Como as escolas municipais localizam-se nos bairros periféricos, e estes geralmente situam-se no limite entre o que é rural e urbano, o mosaico de fotos aéreas verticais trouxe aspectos destes dois tipos de ambiente do lugar onde os alunos vivem. Constantemente, se vê animais pastando em chácaras, próximas dos comércios e casas em que residem, inclusive dentro da escola. Num outro episódio, o mosaico de fotografias aéreas verticais, permitiu a aluna Yara fazer uma passagem para a atividade do “caminho casa-escola” para o mosaico:
Professora:
A aluna Yara identificou o pontilhão do Inocoop, dizendo: “Ah, como
é fácil!” (recordando seu desenho do trajeto casa-escola)9.
Quando a aluna Yara identifica o pontilhão
do Inocoop, tão difícil de ser desenhado, pelo fato de estar
localizado entre dois declives, passou na verdade pelas mesmas dificuldades
que os cartógrafos da antigüidade passaram, isto é,
re(a)presentar algo tridimensional para o plano do papel. E quando descobre
que na foto aérea vertical, aqueles declives praticamente desaparecem,
por conta deste tipo de fotografia chapar a paisagem, todo enigma em como
re(a)presentar aquele pontilhão se desfaz. O trecho da narrativa
da professora Luiza citado anteriormente é indicativo de como a
aluna relaciona o desenho, realizado no primeiro semestre de 2003, com
a foto aérea e com suas experiências espaciais e visuais cotidianas.
Neste caso, a foto aérea possibilita a Yara realizar essas passagens.
Neste outro momento de aula citado abaixo, observa-se outra passagem:“Pedi
aos alunos que identificassem os lugares que eles elegeram para o trajeto
coletivo original, iniciado pela escola. Para encontrar a escola, os alunos
que tinham dificuldade, começaram identificando o cemitério,
o Centro Social Urbano, até chegar na escola. O tamanho destes lugares
serviu de estratégia”10.Neste caso, as crianças
lançam mão de suas memórias visuais, ou seja, identificam
primeiramente a forma/tamanho dos elementos com os quais já estão
acostumados visualmente, como o cemitério e o Centro Social Urbano
(CSU). É a partir deles que elas vão “caminhando” na memória
e na foto em direção aos demais lugares presentes na imagem
fotográfica. Num outro momento de aula um dos alunos lança
mão também de um mapa, já utilizado na atividade “Trajeto
Coletivo”, junto da foto e afirma que “o mapa é mais fácil,
porque tem o nome das ruas e dos lugares”11.
Alguns alunos vibram no fundo da sala e vêm até mim dizendo
que descobriram mais coisas nas fotos. Tais descobertas foram pautadas
pela utilização simultânea da planta urbana, saberes
corporais, saberes fotográficos e da imaginação das
formas. Pergunto a eles se preferem a foto ou o mapa. Um dos alunos responde:
“No mapa eu tenho o nome das coisas e na foto não, mas um ajuda
o outro”12. Ou seja, as crianças ao dizerem dos
nomes das ruas enquanto auxiliares na realização do trajeto
sobre as fotos, revelam que os mesmos são importantes em suas práticas
espaciais nesse território vivido. Por isso o mapa é mais
fácil, pois nele constam referências que eles já utilizam
em seus deslocamentos no território.
Em seguida, a professora afirma: “não vale, vocês estão com o mapa em mãos!” Estes mesmos alunos respondem: “mas está apagado professora! Na foto é pior. É tudo pequenininho”13. Mesmo assim, esses alunos continuam com o mapa em mãos, pois dá para ler o nome das ruas e transferí-las para a foto aérea. Além do mais, eles já fizeram o trajeto coletivo nas imediações da escola. Tem um grupo que está utilizando uma lupa para olhar o mosaico. Estariam estes últimos tentando descobrir formas conhecidas no dia-a-dia, mas que são difíceis de serem identificadas no mosaico de fotos por seu tamanho ser pequeno demais? Com a lupa ampliando o que é visto, essas formas já conhecidas – uma esquina, uma pracinha, por exemplo – saltariam aos seus olhos, facilitando o entendimento da foto e sua relação com o espaço vivido. Dúvidas que permaneceram, pois não perguntei aos alunos o que os levou a utilizar a lupa.
A partir de outro momento de aula ainda dessa atividade a foto aérea solicita para seu entendimento e leitura, a relação entre parte/todo – típico conhecimento que pode ser melhor elaborado nas fotos do que no cotidiano, pois nelas “vemos tudo ao mesmo tempo”.
-Professora:
Por que vocês utilizaram o mapa além da foto?
-Aluno 1: Por que no mapa tem coisas
escritas.
-Professora: Qual a diferença
entre o mapa e a foto?
-Aluno 2: O mapa é desenhado
e a foto não. A foto traz mais detalhes do que o mapa.
-Professora: Que detalhes são
esses?
-Aluno 3: O mapa só tem o
contorno. Aqui na foto tem as casas e no mapa só tem o contorno
dos quarteirões.
-Professora: Os mapas são
feitos como?
-Aluno 2: Foto aérea. No
mapa não dá pra ver as árvores. Na foto eu posso ver
a arborização.
-Professora: Qual rua é mais
arborizada?
-Aluno 4: A da Avenida da Saudade14.
Este tipo de conhecimento, no qual a professora solicita esta relação parte/todo, terá continuidade na elaboração de um painel. Após terem destacado o trajeto coletivo no mosaico de foto aérea vertical, as crianças organizadas em três grupos, utilizaram na elaboração do painel o mosaico e as fotos tiradas por elas no dia da realização do trajeto coletivo. A cada grupo foram distribuídas dez fotografias e para cada uma delas as crianças criaram uma legenda. Cada foto, ligada ao mosaico por uma seta, indicava os serviços mais importantes oferecidos no bairro, os quais elas já haviam também destacado da realização do trajeto coletivo sobre mosaico.
Após
a elaboração do painel, temos outra passagem entre saberes
corporais e fotográficos, quando a professora pergunta:
-Professora: O tamanho do trajeto
que vocês fizeram agora e aquele outro são do mesmo tamanho?-
Iara: A foto tá errada e não tem a peixaria e a chácara
já não é mais daquele tamanho. Agora construíram
casas e o tamanho da área ocupada pela chácara diminuiu15.
Aqui nota-se nitidamente a presença dos saberes corporais na leitura das fotos, uma vez que é a partir deles que a aluna questiona a veracidade da foto. Ela sabe que agora existe uma peixaria que não está na foto. Passagens que revelaram a transformação no espaço onde se vive. Porém, o “dia em que essa aluna disser “a foto é antiga, por isso tem coisas nela que são diferentes das de hoje”, então teremos alcançado um outro tipo de conhecimento escolar”16 (...) menos maniqueísta, como relata o aluno Vinicius “Eu descobri que esta foto aérea é diferente do meu trajeto de casa à escola porque esta fotografia é de 1995 e não mostra alguns pontos de referência que no meu trajeto mostra”17.
Continuidade das práticas educativas com fotografias aéreas verticais
As fotos aéreas verticais, linguagem que não fazia parte dos saberes curriculares das professoras, foram incorporadas em suas práticas educativas. Afirmo isso apoiada em depoimentos que obtive, em junho de 2005, das professoras Luiza, Juliana e Camila18. É importante ressaltar a importância dessa coleta de dados mais recente como uma abertura em minha discussão para situar saberes e práticas com fotografias aéreas verticais, no tempo que decorreu desde que cessaram as atividades da pesquisa.
Após um ano, eu me reuni com as professoras, em momentos separados, para saber de que maneiras as experiências realizadas com fotos aéreas verticais naquele projeto permaneceram, ou não, em suas práticas escolares cotidianas. Para minha surpresa, Camila, Luiza e Juliana disseram que lançaram mão das fotos aéreas verticais em diferentes situações. Afirmaram que se não tivessem participado do grupo de pesquisa durante aqueles dois anos, desconheceriam tanto as possibilidades quanto o poder dessa linguagem em suas aulas. Apresento trechos dos depoimentos dessas professoras:
-Camila: “Eu desconhecia as fotos aéreas verticais. Quando fiz o curso de Pedagogia, nós tivemos somente um semestre sobre ensino de Geografia (...) E se eu não tivesse participado dessa pesquisa, não saberia que dava para usá-la nas aulas. O auxílio da tutora em relação às fotos aéreas verticais foi muito importante para mim, pois tirava minhas dúvidas sobre as fotos e conseguiu as fotos aéreas do bairro da escola e bairros adjacentes a ela”.
-Luiza: “A presença dos tutores, dos coordenadores e mais as reuniões que tínhamos semanalmente para discutir as atividades de ensino foram de fundamental importância para eu incorporar novas linguagens em minha prática. Aquelas explicações que você, Fernanda (Tutora da área de Sensoriamento Remoto), me deu sobre as fotos aéreas verticais, me deixaram mais segura no momento de utilizá-las com os alunos. Obviamente, o professor tem que saber aonde quer chegar com a atividade. Não é somente levar as fotos para os alunos e pronto. Tem que se ter um motivo. Depois de ter participado dessa pesquisa, eu reflito muito mais”.
-Juliana: “Apesar dos diferentes pontos de vista presentes nas pessoas que participaram do grupo de pesquisa, os momentos de diálogo a respeito das atividades que a gente pensava junto no grupo, auxiliaram bastante o meu trabalho em sala de aula. Em relação à foto aérea vertical, eu já conhecia, pois sou geógrafa, mas nunca a havia utilizado nas aulas. Como eu gosto de aula que gera diálogo, a foto aérea possibilita isso... muito diálogo”.
É possível notar, nesses
depoimentos, a importância da perspectiva colaborativa e dialógica
assumida para a pesquisa, a partir de autores como Michel Connelly e Jean
Clandinin (1995) e Ramón Flecha (1997). Naquela oportunidade, minha
aproximação com as professoras, tornou-se mais estreita na
medida em que fomos criando uma relação de confiança
mútua a partir da existência de algo partilhado entre nós:
a troca de experiências. O contato semanal, na observação
de suas aulas, ou nas conversas no grupo de pesquisa, possibilitaram momentos
de diálogo vitais tanto para mim quanto para elas. A partir das
histórias compartilhadas fomos experimentando inúmeras linguagens,
das quais podemos lançar mão para melhor compreender o lugar/o
mundo em que vivemos, e criar outras, conforme o significado que vamos
atribuindo às coisas que desejamos compreender desse mundo.
Notas
1 A cultura escolar é mais que conteúdos numa acepção à J. Gimeno Sacristán (1995, p.88). Este autor entende a cultura “não como os conteúdos-objetos a serem assimilados, mas como o jogo de intercâmbios e interações que são estabelecidos no diálogo da transmissão-assimilação, convém estarmos conscientes de que em toda experiência de aquisição se entrecruzam crenças, aptidões, valores, atitudes e comportamentos, porque são sujeitos reais que lhes dão significados, a partir de suas vivências como pessoas”.
2
Financiamento FAPESP, na linha de pesquisa Ensino Público, processo
n.02/00117-0) e Coordenada pela Profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida.
3 Além
das três professoras que lidaram diretamente com fotografias aéreas
verticais, houve uma outra professora que utilizou fotografias aéreas
oblíquas coloridas, graças ao pequeno acervo disponibilizado
pela Prefeitura do município de Ipeúna. Porém, a análise
das práticas pedagógicas desta professora não constam
em nosso estudo (Cazetta 2005), pois meu olhar estava voltado para as práticas
educativas com fotografias aéreas verticais. Porém, em momento
oportuno, analisarei as práticas educativas desta professora com
este outro tipo de fotografia, cuja abordagem pode espraiar-se para outros
entendimentos, como num dos estudos propostos por Alvarez Orellana (2005)
que utiliza o mapa conceitual como possibilidade de práticas educativas
com fotografias comuns.
4 Wencesláo Machado de Oliveira Júnior, 2004, p.2.
5 Wencesláo Machado de Oliveira Júnior (2003, 2004) chama de experiências espaciais cotidianas as experiências corporais, entendendo esse corporal como indicativo de algo encarnado, intenso, de modo a diferenciar essa experiência corporal de “vivências” superficiais e fugidias, essas últimas cada vez mais freqüentes entre nós e em nossos contemporâneos. E toma as experiências visuais cotidianas como a maneira privilegiada de nossa civilização conhecer... Neste caso, este autor entende o cotidiano enquanto aquilo que se vincula ao corpo e seus movimentos.
6 Diário de aula da professora, referente ao dia 23/05/2003.
7 Rosângela Doin de Almeida et al., 2004, p.54.
8 Idem, p.53.
9 Apontamentos retirados da narrativa da professora Luiza referente ao primeiro semestre de 2004.
10 Apontamentos retirados da narrativa da professora Luiza referente ao primeiro semestre de 2004.
11 Diário de aula realizado no dia 31/10/2003.
12 Diário de aula realizado no dia 31/10/2003.
13 Numa das aulas, a professora trabalhou com a planta urbana do bairro com as crianças. Como as cópias que a professora havia entregado não estavam em boa qualidade, ela providenciou outras cópias novamente, e recolheu as anteriores. Porém, este aluno não devolveu, colocando-a no caderno. Por isso, nesse dia ele tinha disponível uma cópia da planta urbana do bairro Consolação (Rio Claro/SP).
14 Diário de aula realizado no dia 31/10/2003.
15 Diário de aula da tutora Fernanda referente à aula do dia 13/11/2003.
16 Rosângela Doin de Almeida et. al., 2004, p.54.
17 Diário de aula da tutora Fernanda referente a aula do dia 13/11/2003
18 Entrevistas realizadas nos dias 15, 16 e 17 de junho do ano de 2005.
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