Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. 
Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XIII, nº 772, 15 de enero de 2008


O UNIVERSO DO HOMEM SOCIAL E O LUGAR DA REALIDADE OBJETIVA: UM DIÁLOGO ENTRE PIERRE TEILHARD DE CHARDIN E MILTON SANTOS


Cilene Gomes
Docente Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Bolsista DCR - CNPQ/FAPERN)
Docente do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade do Vale do Paraíba
cilene@crn.inpe.br / cilenegomes@terra.com.br


O universo do homem social e o lugar da realidade objetiva: Um diálogo entre Pierre Teilhard de Chardin e Milton Santos (Resumo)

Uma questão a respeito de nosso tempo que merece atenção reporta-se à condição do homem alienado. Sem a adequada consciência da dimensão evolutiva, social e cultural do espaço que lhe cabe à vida em comum, prossegue no curso da história produzindo um modo de vida destituído de preocupações teleológicas e, portanto, desvirtuado dos processos de personalização e socialização que condiz à sua natureza humana e estatura de homem integral e cidadão. A questão da constituição e transformação da subjetividade da pessoa humana está no cerne do problema de remodelação da sociedade, nas suas instâncias econômica, política e cultural e na contextura de seu espaço. Nesse sentido, torna-se de fundamental interesse contribuir para uma reflexão profunda sobre a questão e trazê-la ao debate público. Para isso, notáveis são os horizontes entreabertos pelo diálogo entre a visão fenomenológico-científica de Pierre Teilhard de Chardin e o método da totalidade do geógrafo Milton Santos.    

Palavras-chave: alienação, personalização, socialização, remodelação sócio-espacial, cidadania.


El universo del hombre social y el lugar de la realidad objetiva: un diálogo entre Pierre Teilhard de Chardin y Milton Santos ( Resumen)

Un tema de nuestro tiempo que merece atención es el que dice con respecto a la condición del hombre alienado. Sin la adecuada conciencia de la dimensión evolutiva, social y cultural del espacio que le cabe a la vida en común, la historia continua produciendo un modo de vida desprovisto de preocupaciones teleológicas y, por tanto, desvirtuado de los procesos de personalización y socialización inherente a su condición humana y estatura de hombre integral y ciudadano. El asunto de la constitución y transformación de la subjetividad de la persona humana está en el centro del problema de la remodelación de la sociedad, en sus instancias económica, política y cultural y en la contextura de su espacio. En este sentido, es de fundamental interés reflexionar profundamente sobre este tema a fin de incorporarlo al debate público. Para ello son notables los horizontes entreabiertos por el diálogo entre la visión fenomenológico-científica de Pierre Teilhard de Chardin y el método de la totalidad del geógrafo Milton Santos.

Palabras clave: alienación, personalización, socialización, remodelación socio-espacial, ciudadanía.


The social man's universe and the place of the objective reality: a dialogue between Pierre Teilhard de Chardin and Milton Santos (Abstract)

One subject regarding our time that deserves attention reports the alienated man's condition. Without the appropriate conscience of the social and cultural dimension of the space that fits him in common life, it continues in the history producing a life way deprived of concerns teleological and, therefore, depreciated of the personalization processes and socialization about your human nature and stature of integral man and citizen. The subject of the constitution or transformation of the human person's subjectivity is in the duramen of the problem of remodelation of the society, in your economical, political and cultural instances and spatial contexture. In that sense, to contribute for a serious reflection and to bring it to the public debate becomes of fundamental interest. For that, notables are the half-open horizons for the dialogue between the phenomenological-scientific vision of Pierre Teilhard de Chardin and the method of the totality of the geographer Milton Santos.

Key words: alienation, personalization, socialization, social-space remodelation, citizenship.


Na sociedade capitalista de nossos dias, o problema da alienação se engendra e realimenta em todos os contextos da vida social, redimensionando a perversa separação entre os indivíduos e os grupos sociais e dando margem a questionamentos e reflexões em distintos âmbitos das ciências humanas e sociais. Quando os indivíduos são chamados a adotar um estilo de vida baseado nos modelos vigentes da competitividade e consumo, sustentando a máquina da acumulação e do lucro, o homem é mera peça da engrenagem social (Marcel, 1944), que roda sem parar, “movida por si mesma e sem se importar com ninguém nem mudar em nada a sua marcha”. Sua ação reside apenas na reprodução do status quo, no servilismo cego e estreito a uma ordem social reguladora que, em última instância, induz à contramão do próprio movimento ascensional da Vida.

Na composição de um possível retrato das situações que podem configurar, no tempo e no espaço, o problema dos homens que se mantêm alheios à própria natureza e às indagações a propósito das finalidades da vida, a atenção que se justifica dar ao negativo de sua imagem deverá limitar-se, entretanto, à necessidade de identificarmos, como nos ajuda a pensar Pierre Teilhard de Chardin, “o lugar e a parte que cabem ao mal num mundo em evolução” (1986, p.368). Sim, a questão merece um desvendamento na medida em que ocupa o coração da problemática maior da Vida na Terra que, desde os tempos primordiais, desafia os povos e nações em todo lugar e os homens que os integram.                                    

O que precisamente parece estar em causa, nessa trajetória da humanidade, é a situação do risco à autodestruição, imposta pela condição do homem alienado, no sentido de que, assim, o homem se encontra apartado de seu poder de crescimento, da consciência do seu ser social, de seu universo de interações, de sua história e seu lugar, seus valores e cultura e de sua cidadania. A sociedade que lhe abriga o torna homem reduzido, sem as reais dimensões de sua humanidade e, por isso, ela própria, sociedade, tende a se degenerar nas armadilhas dos modelos corruptíveis do menor esforço descompromissado, do maior proveito material e da renovação travestida de convencionalismo, de uma ação inconvenientemente dirigida etc.                             

Assim sendo, no homem e na sociedade, o resgate de si mesmo e de sua natureza gregária é o resgate da possibilidade de assumir uma atitude frente à Vida na direção de uma aspiração e uma ação que, no essencial, seguem ao encontro do bem estar e do ser feliz. É nesse sentido que poderemos nos reportar à construção da individualidade forte, que nos fala Santos (1987), ou à perspectiva da “pessoa na e pela personalização” (Teilhard de Chardin, 1986, p. 191), mas também aos pressupostos de remodelação do espaço e à lei da socialização formulados, respectivamente, pelos mesmos autores em outras passagens de sua obra.   

No intuito de reordenar a linha de investigação interdisciplinar que supõe a complementaridade entre as ciências humanas e sociais e as ciências do espaço é que buscaremos agregar nossas formulações a partir do conjunto de referências que deverão sustentar as proposições do universo do homem social e do lugar da realidade objetiva, consubstanciando a reflexão proposta no enfoque prospectivo das exigências do porvir e dos direcionamentos para a ação.

Concebendo o espaço do homem como resultado e condição do permanente processo de remodelação da sociedade, em suas instâncias de produção e transformação da vida econômica, política e cultural, nesse enfoque do fenômeno humano abordaremos a questão da constituição da subjetividade no indivíduo e do sujeito como um ser - no - mundo. Ou seja, o homem constrói o seu próprio ser e se diferencia enquanto personalidade única na esfera de suas relações com a natureza e a sociedade da qual participa. Ele vive e subsiste em dado tempo e lugar, desenvolvendo uma ação intimamente associada, portanto, à sociedade que o integra na particularidade geográfica de seu lugar de vida e no grande movimento da natureza em seu contínuo processo de gênese.        


O homem social e seu universo

Em recorrência a esta ordem de idéias, que apresenta, basicamente, a problemática de fundo - da alienação dos indivíduos de nosso tempo e em consideração ao nosso lugar na Terra -, para a qual buscamos uma elucidação e um ancoradouro seguro tendo em vista a ação de escolher e colaborar para a construção do futuro, não há como reordenar o pensamento sem partir de algumas proposições essenciais a respeito da concepção do homem social e de seu universo.

E aqui o propósito é fazer convergir a exposição ao foco do sujeito como ser pensante, medida de consciência e da individualidade de cada um, por oposição à objetividade de tudo que se nos apresenta à vista e ao espírito, a tudo que nos oferece matéria ao conhecimento, tudo que nos reporta à totalidade do universo social dos seres individuais.

Ao nos ensinar que “a natureza sempre foi o celeiro do homem”, Santos (1980, p. 161) distingue uma fase pré-social na história do homem de outra fase onde o homem torna-se homem social:

“(...) para que o animal homem se torne o homem social é indispensável que ele também se torne o centro da natureza. Isto ele consegue pelo uso consciente dos instrumentos de trabalho. Nesse momento a natureza deixa de comandar as ações dos homens e a atividade social começa a ser uma simbiose entre o trabalho do homem e uma natureza cada vez mais modificada por esse mesmo trabalho. Esta fase da história não poderia realizar-se se não houvesse um mínimo de organização social e sem uma organização paralela do espaço”.

Dessa forma, também entende-se o homem como sujeito consciente e produtor da história e, em última instância, como nos conduz a ver Teilhard de Chardin (1986, p  25-26), a chave do universo: 

“Mas, se conhecer é verdadeiramente tão vital e beatificante, por que, insisto, voltar de preferência nossa atenção para o Homem? (...) Por uma dupla razão, que duas vezes o faz centro do Mundo, o Homem se impõe ao nosso esforço para ver, como a chave do Universo.

Subjetivamente, para começar, somos inevitavelmente centro de perspectiva em relação a nós mesmos (...) Objeto e sujeito se unem e se transformam mutuamente no ato de conhecimento. Quer queira, quer não, a partir de então, o Homem se reencontra e se olha a si mesmo em tudo o que vê (...) Centro de perspectiva, o Homem é simultaneamente centro de construção do Universo”.    

Em razão de se encontrar em uma bem determinada posição na natureza, “em um ponto singular, sobre um nó, que domina toda a fração do Cosmo atualmente aberta à nossa experiência” (Ibid., p. 26) é que o homem assume a posição central no universo “do qual emerge e nele culmina”, conforme nos explica José Luiz Archanjo1:

“Homem, centro estruturante (ou centro de perspectiva) porque ordena, distribui, molda, cria enfim a Realidade através do Pensamento e da Ação, fazendo História... Homem, centro estrutural (ou centro de construção) porque compõe essa mesma Realidade como peça indispensável de sua arquitetura, como ápice que ela, presentemente atinge. Homem, portanto, chave de compreensão do Universo”.

Ora, o que está realmente em causa nestas passagens transcritas da visão hiperfísica2de Teilhard de Chardin é o lugar que o pensamento ocupa no eixo da evolução da natureza e da vida. Encarar bem de frente o fenômeno central da reflexão é o passo essencial se desejamos conceber o homem em sua inteireza. Para o autor, todas as realidades - da vida ou do homem -, sobre as quais podemos nos voltar, no processo de conhecimento, definem-se por ações conjugadas do que é exterior e do que é interior. Nesse sentido o passo da reflexão possibilita o acesso a todas as atividades da vida interior do homem.

Sim, pois, entendendo a reflexão como “o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: não mais para conhecer, - mas conhecer-se; não mais para saber, mas saber que se sabe” (Teilhard de Chardin, 1986, p.186), o ser reflexivo ou pensante torna-se susceptível de viver numa esfera nova, num outro mundo que nasce, em todo um outro domínio do que é real, porque “abstração, lógica, opções e invenções ponderadas, matemáticas, arte, percepção calculada do espaço e da duração, ansiedades e sonhos de amor (...) nada mais são que a efervescência do centro recém-formado explodindo sobre si mesmo”.

Para Milton Santos (1996, p. 204-206), essa nova esfera é também chamada de psicosfera, “reino das idéias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido”, que, socialmente constituída, também fornece regras à racionalidade ou estimula o imaginário. Em contraposição ao que o mesmo autor concebe como tecnosfera - que seria o outro pilar para a compreensão da organização do espaço humano construído socialmente -, a psicosfera é a esfera da ação humana e poderá definir um dado lugar pelo tempo da co-presença que se instaura, por sua existência de relações inter-pessoais, de caráter essencialmente comunicacional, podendo apontar para o reino da liberdade.

Nesse contexto da esfera do pensamento e do acontecer existencial, a questão da consciência e da personalidade do indivíduo são medidas de um processo de evolução do sujeito que podem revelar, em contrapartida, o seu estado de alienação relativamente ao seu lugar na natureza e à sua verdadeira dimensão como homem social.

Conforme desenvolve a sua fenomenologia, Teilhard de Chardin nos explica que a vida se eleva sempre a mais consciência e organização, e dizendo mais: se a evolução é igual a ascensão de consciência, a ação progressiva desta lei gera o efeito de uma união cada vez maior (1986, p. 277). Em outras palavras do autor, “ser mais é unir-se cada vez mais”, mas “a unidade só aumenta sustentada por um crescimento de consciência, isto é, de visão” (Ibid. p. 25).

Daí o tradutor (já citado) de sua obra nos explicar que a situação existencial básica de todo ser consciente é tanto mais complexa quanto maior a capacidade de “visão” do mesmo, considerando a consciência no seu amplo espectro que envolve desde a simples percepção à mais complexa ciência. O ser mais consciente é aquele que vê mais e une mais, que se une a si mesmo e aos outros ou que se deixa unir pelos outros.

Ainda para Teilhard de Chardin, nesse processo de união do ser consciente é que se desenvolve a sua personalização, porque, segundo as leis da união, na visão do mesmo autor, a união cria, diferencia e personaliza. A constituição da subjetividade equipara-se então à personalização do sujeito, ao progresso do sujeito com um aprofundamento interno da consciência sobre si mesma, ao sujeito tornando-se plenamente ele próprio pelo passo decisivo da reflexão.

E aí configura-se, finalmente, o universo do homem social no encontro de um universo pessoal ao universo social que o personaliza, na medida em que, para Teilhard de Chardin (1986, p. 297), “procurando se separar o mais possível dos outros, o elemento se individualiza (...)”. Mas, “para sermos plenamente nós mesmos, é em direção inversa, é no sentido de uma convergência com todo o resto, é em direção ao Outro, que temos de avançar”, pois, “o termo de nós mesmos, o cúmulo de nossa originalidade, não é nossa individualidade – é nossa pessoa”. Ou seja, “o verdadeiro Ego cresce em razão inversa do “Egotismo” (...)”, ou do individualismo, no processo de personalização que se consuma sob a influência da união.                                                


A realidade objetiva e seu lugar

A realidade que deveríamos tomar como objeto do conhecimento, no âmbito da geografia, segundo a teoria de Milton Santos (1980, 1996), é o espaço tempo do homem. É o espaço produzido historicamente sobre a superfície da Terra pelo homem vivendo em sociedade. No contexto das mais distintas formas de organização da comunidade humana, os grupos humanos modificaram a natureza, demarcando o seu território, criando técnicas, modelando e remodelando seu espaço para a realização da vida social. De tal forma que no transcorrer do tempo da história humana, processos de mudança, períodos característicos e recortes espaciais podem ser identificados para efeito de compreendermos a sociedade humana em suas relações com a natureza ou o espaço que lhes cabe. Daí pensarmos que toda realidade sócio-espacial, objetivada no processo do conhecimento, ocupa um lugar no eixo da evolução histórica e na horizontalidade do espaço geográfico.                    

De fato, para o geógrafo a realidade em sua totalidade é o planeta Terra e a habitação que representa para a humanidade. É a sociedade humana que se aproveita dos recursos do planeta e daqueles criados por ela própria para a sua sobrevivência, seu bem estar e sua felicidade.

Nesta visão encontraremos muitos pontos de convergência com a concepção de Teilhard de Chardin (1986, p. 241), a nos explicar que no decurso da luta humana pelo conhecimento do universo, o espaço, por sua realidade tangível, foi o primeiro a ser descoberto e, aqui, a “Terra era simples grão da poeira sideral” e “os céus se acharam livres para as expansões intermináveis que, desde então, lhes temos reconhecido”. Mas “muito mais lentamente percebida, por falta de referenciais aparentes, mostrou-se a profundeza dos séculos”, o “abismo do passado”, “a idade real da Terra”, da vida, do homem.

Todavia, continua o mesmo autor:

“nos primeiros estádios do despertar humano para as imensidades cósmicas, espaço e tempo permaneciam ainda, por maior que fossem, (...), independentes um do outros. Dois receptáculos separados, cada vez mais vastos sem dúvida, mas onde as coisas se amontoavam e flutuavam sem ordem fisicamente definida” (Ibid. p. 242).

O que faltava ao homem descobrir deu-se somente em pleno século XIX: “a coerência irreversível de tudo o que existe”; “o tempo e o espaço unindo-se organicamente para tecerem, os dois juntos, o estofo do universo”; “o acesso definitivo da consciência a um quadro de dimensões novas” e, dessa forma, como ressalta Teilhard (Ibid. p. 243):

“O que faz um homem “moderno” e assim lhe permite ser classificado (e, nesse sentido, muitos de nossos contemporâneos ainda não são modernos) é ter-se tornado capaz de ver, não somente no Espaço, não somente no Tempo, mas na Duração, - ou, o que dá no mesmo, no Espaço-Tempo biológico; - e é se achar, além disso, incapaz de nada ver de outra maneira, - nada, - a começar por ele próprio”.

Essa duração, como nos explica José Luiz Archanjo (Teilhard, 1986, p. 54, nota 25) corresponde à noção teilhardiana de Tempo Orgânico ou Espaço-Tempo, corresponde a “uma organização do Espaço e do Tempo, a nível biológico, num todo único e convergente no qual o Espaço é integrado na dimensão temporal de que passa a representar a seção transversal, uma ”fatia” do cone do tempo”; “um movimento universal (...) em virtude do qual a totalidade das coisas, de alto a baixo, se desloca solidariamente, e num único decurso, não somente no espaço e no tempo, mas num Espaço-Tempo (...), cuja curvatura particular tem por efeito tornar o que aí se move cada vez mais ordenado”. 

Em outras palavras, um princípio de ligação orgânica, ou de união, vigora em todas as realidades do universo. Toda e qualquer realidade objetiva tem o seu lugar nesse Todo Real, porque os elementos que a compõem permanecem organicamente ligados entre si e a esse Todo maior da qual é parte. E aqui, mais uma vez, voltamos à visão totalizante de Milton Santos (1996, p. 95), ao conceber que a realidade em sua totalidade, pormenorizada aos limites do espaço geográfico e da sociedade humana, abrange tanto a organização dos elementos ou partes que a compõem e suas relações, quanto o permanente movimento de totalização, que transforma, no tempo, a configuração de uma dada totalidade em outra realidade, inteiramente nova e, portanto, distinta da anterior.

Além disso, nesta concepção da realidade objetiva e seu lugar, um outro par de atributos deve ser destacado. É a Santos (1996, p. 98) que nos reportamos primeiramente, para nos explicar a unidade entre o universal e o particular que constituem toda e qualquer totalidade:      

“o movimento da totalidade permite entende-la, num primeiro momento, como uma integral e, num segundo momento, como uma diferencial. Enquanto integral, a totalidade é vista como algo uno e, frequentemente, em abstrato. Enquanto diferencial, ela é apreciada em suas manifestações particulares de forma, de função, de valor, de relação, isto é, em concreto.

A totalidade é, ao mesmo tempo, o real-abstrato e o real-concreto. Só se torna existência, só se realiza completamente, através das formas sociais, incluindo as geográficas. E a cada momento de sua evolução, a totalidade sofre uma nova metamorfose. Volta a ser real-abstrato”.

Os elementos ou partes da realidade objetiva são concebidos como função (ou lugar) da totalidade. Daí a idéia de que a começar dos próprios homens, “cada indivíduo é apenas um modo da totalidade, uma maneira de ser; ele reproduz o Todo e só tem existência real em relação ao Todo” (Ibid., p. 98). Cada fração da realidade é apenas uma forma particular de organização desta realidade. No seu todo, à sua vez, a realidade poderá ser apreendida e representada pelos aspectos de sua universalidade, do que é comum a todas as suas partes, a todas as realidades elementares.

Se assim podemos retratar a real dimensão, visível e intrínseca ou profunda, do universo que integra a vida humana na Terra e é dado ao conhecimento, tudo o mais que nos reportará a essa totalidade do espaço tempo organicamente unido cabe às possibilidades entreabertas ao homem pelas exigências do porvir e seus direcionamentos para ação.  


Exigências do porvir e direcionamentos para a ação

O homem alienado permanece na superfície das relações sociais. Não conhece a si próprio e aos outros na dimensão real da implicação de sua vida com a evolução do mundo, da vida e do pensamento humano. Longe ele permanece de entrar e viver no “no âmago de uma metamorfose”, olhando de frente para o seu ser subjugado e egoísta, aceitando sem refletir “a sorte que o submete ao resto da sociedade” (Teilhard de Chardin, 1986, p. 242, 243 e 250).

Em parcelas numerosas da sociedade em que vivemos, o homem alienado ainda não se deu conta de seu poder de crescimento e reflexão, de que “Algo se desenvolve no Mundo, por meio de nós, - às nossas custas talvez” (Ibid., p. 250).

Para a superação dessa situação existencial de alienação, em Teilhard de Chardin encontraríamos a resposta de que o passo decisivo seria o de buscar progredir, de forma duradoura, “até o termo de nós mesmos” (Ibid. p. 251), envolvendo-se com o movimento evolutivo que nos conduz à expansão e ascensão de nossa consciência diante do que é o Real.

“Quanto mais o Homem se tornar Homem, menos aceitará movimentar-se a não ser na direção do interminavelmente e do indestrutivelmente novo” (Ibid. p. 251).

Com a leitura de Pierre Teilhard de Chardin compreendemos que temos a dimensão completa da evolução contida em nossa pessoa e, por isso, a grande exigência do porvir, e ao mesmo tempo a base suficiente para a fundação de uma nova ética, é tomarmos em nossas mãos a responsabilidade pela evolução. O que supõe uma adesão existencial aos progressos da personalização e da socialização. Não para se enredar numa rede de convenções ou de acordos juridicamente impostos ou aceitáveis, mas para assumir uma espécie de compromisso no seio de uma cosmogênese3e, mais particularmente, de uma psicogênese4 e noogênese5, onde os efeitos da solidariedade nos enlaça, onde começaríamos “a realizar em nosso espírito a grandeza e a gravidade verdadeira da condição humana” (Teilhard de Chardin, 1951).

Ora, mas o homem orienta-se, naturalmente, pela busca ao encontro da felicidade. Essa será sempre uma exigência para o seu porvir. O que lhe é possível, hoje, e o que poderá lhe advir como um futuro melhor, tais são as percepções conjugadas que operam no homem em todo momento de sua vida.

Nesse sentido, Teilhard de C. (1943)6 oferece as suas formulações no sentido de desvendar não apenas a origem do problema que perpassa a busca da felicidade, mas as respostas coerentes à sua visão do Real. Diz ele então que é no tipo de homem que portamos no fundo de nós mesmos, na nossa atitude diante da Vida que reside a forma de felicidade buscada por nós.

Aos fatigados, ou pessimistas, àqueles aos quais os perigos são maiores do que o interesse de sucesso em superá-los, e a quem é melhor ser menos do que ser mais, a felicidade estaria em uma vida sem aborrecimentos, riscos ou esforços, sendo o homem feliz “o que pensa, sente e aspira o menos” possível.

Aos bons vivants, diz Teilhard de C., certamente é melhor ser do que não ser. Mas, para eles, ser não significa agir, mas preencher-se do prazer que se pode obter do momento presente. Nestes, arriscar-se seria apenas pelo prazer momentâneo de viver o risco por si mesmo, pelo prazer de ousar ou sentir medo. A felicidade estaria na vida com o máximo proveito e saciedade. O objetivo seria realizar o menor esforço “para mudar a taça e o licor”.

Para o terceiro tipo de homem, o élan ao futuro prevalece como atitude diante da Vida. Viver é uma incessante descoberta, pois o ser é inesgotável e o que se pode fazer, hoje, para preparar a Terra de amanhã, eis o que conta. A felicidade é função de uma permanente busca de crescimento, é a recompensa por uma ação convenientemente dirigida. A renovação do ser, para este homem, não é mero revestimento ditado pelo sistema convencional, mas aquela que se alcança no objetivo de si mesmo adiante, na busca de uma sempre maior consciência e união.

Para Teilhard, ainda, nesta atitude encontraremos as soluções para a nossa busca de felicidade. Por isso, diz ele, “juntemo-nos sem hesitar ao grupo dos que querem arriscar a ascensão até o último vértice”. Mas indaga e responde qual é o bom caminho para isso e como se opera de fato essa marcha de nossa personalização.

“Para estar plenamente consigo e vivo, o Homem deve: 1) Centrar-se sobre si; 2) Descentrar-se “sobre” o outro; 3) Supercentrar-se sobre um Plano maior (que si)”.

Em outras palavras, os passos a seguir, nessa trajetória para a felicidade resumem-se a uma busca sucessiva e conjugada de três atitudes para tornar-se:

1) Um homem que cultiva a si mesmo, que trabalha para se organizar, para ordenar as suas idéias, sentimentos e condutas. “Ser é, então, em princípio, fazer-se e encontrar-se”;

2) Um homem que compreende que o trabalho de seu aperfeiçoamento não consiste em se apartar dos outros, isolando-se e tentando progredir no objetivo de si mesmo sem sair de si mesmo, ao contrário. É unindo-se aos outros que acrescentaremos à nossa consciência, é que seremos mais nós mesmos;

3) O homem que assim alarga a base de seu próprio ser, prepara-se para um movimento de expansão que não mais se detém. Ele aspira unir-se cada vez mais, ou em meio a círculos de raio cada vez maior. Ou seja, para Teilhard, para encontrar “o alvo do que somos, não é suficiente associar nossa existência com uma dezena de outras existências escolhidas entre mil, mas devemos fazer “bloco” com todas a um só tempo”; devemos ser corpo e alma no movimento de “uma totalidade organizada em que não somos senão parcelas conscientes”. Submeter e aproximar a sua vida a um maior que si. Assim, haveria descoberta, crescimento e felicidade em colaborar com um Ideal ou uma Causa, em fazer o melhor possível, cada qual em seu lugar, pelo progresso do universo em evolução.

Dessa forma, seguindo os três passos da personalização, nossa conduta se definiria, no dia a dia, no sentido de reagirmos contra a tendência ao menor esforço; a buscar na agitação exterior e nas realidades materiais tangíveis a renovação de nosso ser ou de nossas vidas; a fecharmo-nos em nós mesmos ou a reduzirmos os outros sob nossa dominação, transportando, finalmente, o interesse de nossas existências na marcha e sucesso do mundo ao nosso redor.

É precisamente neste momento que poderemos realinhar, novamente, aos pontos convergentes e específicos do pensamento de Milton Santos, a quem a tarefa do homem de conhecimento é buscar em simultâneo a felicidade do mundo, porque sem esta vontade e vocação para a felicidade o progresso do conhecimento não tem nenhum objetivo (1980, p. 214). Para isso, propõe um trabalho intelectual que deve buscar romper, em suas formulações, com um sistema social que “para impor-se à humanidade deve, logo de saída, entorpecê-la” (Ibid., p 215). Ou seja, o novo saber do espaço do homem e do homem ele próprio tem a missão de denunciar todas as mistificações que o sistema social e a própria ciência criaram e difundiram para encobrir o conhecimento da realidade e da forma como ela se produz, cultivando uma espécie de ideologia que aliena e aprisiona tanto os indivíduos em geral como os que se dedicam ao ofício da produção do conhecimento.

É então que propõe a sua versão da parábola do joio e do trigo, dizendo-nos que a ideologia social subserviente aos interesses exclusivos dos grandes agentes do capitalismo e da exploração que praticam na esfera do trabalho deve ser destituída do status de conseguir impor o engano como verdade, a aparência pela essência, a idéia do homem reduzido pelo homem consciente, digno e livre para viver sua verdadeira condição de ser social e humano. Tanto no estudo quanto na ação, deveríamos “tentar fornecer as bases de reconstrução de um espaço geográfico que seja realmente o espaço do homem, o espaço de toda gente e não o espaço a serviço do capital e de alguns” (Ibid., p. 218).

Santos (1996, p. 258) convoca-nos, assim, a ver no lugar uma dimensão intermediária entre o Mundo e o Indivíduo:

“No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contigüidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade”.

E nesse sentido ainda de identificarmos exigências e direcionamentos para o amanhã, o mesmo autor afirma que a primazia que devemos dar ao homem supõe que ele estará no centro das preocupações, como ser integral e cidadão, em detrimento da centralidade que ocupa hoje o consumo como um dado do modelo de felicidade vigente e propagado, e em detrimento, por conseguinte, do pesado conformismo e inação que contamina nossos jovens e, mesmo, muitos intelectuais.

E então será lícito dizer que “o futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas” (Santos, 2000, p. 161).

Sob condições políticas favoráveis, a liberação da inteligência e da criatividade, assim como o estímulo à solidariedade social e à prática da cidadania poderão, de fato, dar início a uma nova história, a uma outra globalização constituída “de baixo para cima”, a partir dos dinamismos existenciais próprios às populações em dado lugar, a partir das bases de ação e consciência que todos os homens poderão constituir, a partir dos lugares em que vivem e através deles.

Com a responsabilidade política de ensinar ou aprender a ser e assumir-se como cidadão, os homens poderão adquirir a mesma força do Estado, que, por isso mesmo, será chamado a atender aos interesses de toda a sociedade, em detrimento de compactuar com o interesse de poucos. A nação será então objeto de um projeto e a alienação estrutural poderá ser revertida em pensamento livre e expressão cultural genuína. O cidadão, diz Santos (2002), é o indivíduo no lugar, mas só poderemos de fato falar em cidadãos quando os lugares constituírem um direito do indivíduo. Daí falarmos no direito à cidade ou aos bens e serviços indispensáveis à vida pessoal e em comum. 

“O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde (...); direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna” (Santos, 1987, p. 7).

Em síntese

Se avançamos um pouco na compreensão da subjetividade e de sua constituição - a partir da perspectiva fenomenológica e existencial de Pierre Teilhard de Chardin, e ainda, no reconhecimento do sujeito como um ser - no -mundo, portanto, considerando a perspectiva ética e política da subjetividade, na recorrência ao pensamento de Milton Santos, restaria, a título de uma síntese sobre o tema proposto, considerarmos as condições gerais para uma gradual transformação dos homens vivendo em sociedade e, por conseguinte, para novas práticas institucionais, que, no caso, serão reportadas muito mais ao plano da ação na universidade do que no propósito da clínica.

Para isso, a busca do conhecimento alarga-se pelas interfaces disciplinares que relacionam as ciências do homem e do espaço às preocupações gerais da psicologia, em particular da psicologia social relativamente às relações com o ambiente da vida em comum. Ou seja, no sentido de fazer progredir o nosso conhecimento acerca do desenvolvimento do homem vivendo em sociedade e em meio a um espaço por ele produzido ou organizado, uma natural convergência de influências interdisciplinares nos levara às indagações a respeito de sua psique, sua alma, seu espírito.

Ora, em Teilhard de Chardin (1986) temos visto que toda construção de matéria e de beleza, de sistemas de pensamento e sistemas de ação terminam por se traduzir em maior organização e consciência e que, no grande movimento da evolução, este grande esforço da engenhosidade humana torna-se herança transmissível por meio da educação. Por este processo de uma gênese ininterrupta, os povos se constituem em nações, estados, países, fazendo a sua história, criando o seu particular modo de vida, sua cultura. E é considerando as ricas e matizadas variações da alma dos agrupamentos humanos que o autor nos conduz a entender que, para o estudo da estrutura de “um filo pensante”, a psicologia se faz necessária, porque as fibras de qualquer um dos agrupamentos se enraízam no seu psiquismo.

Mas o essencial do que ele nos convida a observar, na grande história da humanidade, reside no poder de aglutinação ou unificação da natureza do homem, nas influências recíprocas entre as sociedades e culturas, reside, finalmente, na gradual e permanente harmonização das grandes correntes psíquicas que respondem pelos ideais e interesses peculiares às mais heterogêneas frações da humanidade. Deste modo, explica Teilhard de C. (1986, p. 275), a humanidade vive os seus grandes momentos de invenção, expansão e agregação que tornam a Terra de um tamanho cada vez menor, pelas forças de compressão geradas pelo crescente aumento demográfico, pelas forças de organização da vida social e de convergência psíquica:

“Ora, à medida que, sob o efeito dessa pressão, e graças à sua permeabilidade psíquica, os elementos humanos se interpenetravam cada vez mais, seu espírito (...) aquecia-se por aproximação. E como que dilatados sobre si mesmos, alargavam, cada qual pouco a pouco, o raio de sua zona de influência sobre uma Terra que, por isso mesmo, se achava cada vez mais apequenada. O que vemos nós, efetivamente, acontecer no paroxismo moderno? Já foi de sobejo registrado. Pela invenção, ainda ontem, da estrada de ferro, do automóvel, do avião, a influência física de cada homem, reduzida outrora a alguns quilômetros, estende-se agora a centenas de léguas. Melhor ainda: graças ao prodigioso acontecimento biológico que representa a descoberta das ondas eletromagnéticas, cada indivíduo se encontra doravante (ativa e passivamente) simultaneamente presente à totalidade do mar e dos continentes, - coextensivo à Terra.

Assim, não apenas por aumento incessante do número de seus membros, mas também por aumento contínuo de sua área de atividade individual, a Humanidade, sujeita que está a se desenvolver em superfície fechada, encontra-se irremediavelmente submetida a uma pressão formidável, - pressão constantemente acrescida por seu próprio jogo: pois que cada novo grau na compressão não tem outro efeito senão o de exaltar um pouco mais a expansão de cada elemento”

Dessa forma, o processo de socialização econômica, política e psíquica do Mundo culmina hoje no que se costuma chamar de realidade globalizada, já que potencialmente, ao menos, todo indivíduo teria um franco acesso ao que se passa em qualquer parte do globo e, por isso, facultando a novas relações inter-pessoais de toda ordem, que se dariam em círculos de cooperação ou realização da vida social cada vez mais ampliados.

É em razão da aspiração por uma unificação humana levada às suas últimas conseqüências que Teilhard de C. (1948)7 chama a atenção para as condições objetivas e subjetivas necessárias à conservação e desenvolvimento da disposição psíquica indispensável para tal aperfeiçoamento da humanidade em todo lugar. E mais, convidando-nos à reflexão de um direcionamento para o trabalho da psicologia enquanto ciência e prática.

Para que o homem realimente a sua crença no valor e interesse do fenômeno social no qual se encontra envolvido, seria preciso que o universo em movimento se apresentasse a ele como um caminho que o possa conduzir a algum lugar ou realização que o fizesse se sentir mais vivo. Seria necessário igualmente que ele se visse, nos distintos contextos em que esta unificação poderia se concretizar, mais respeitado e acrescido em seu poder de pensar e sentir, de se personalizar enfim.

A estas razões que o homem buscaria para aceitar positivamente novas formas de associação e atividade com os outros, Teilhard de C. destaca as condições subjetivas ou propriamente psicológicas do problema. Para provar a fundo o gosto da super-humanização, os homens necessitariam de que neles se desenvolvessem e se afirmassem alguns sentidos diante da realidade da evolução irreversível, do universo em movimento, da Terra em que habitamos e da nossa própria condição de seres humanos.

Mas para que os homens consintam ao fato de que quanto maior a união entre eles, maior o aperfeiçoamento e maior o despertar para a vida, um imenso trabalho de desobstrução e esclarecimento construtivo deve ser empreendido, no sentido de que, em todas as esferas em que esse trabalho possa se realizar, os sujeitos sejam ajudados a decifrar em áreas mal exploradas e explicitadas deles mesmos as grandes aspirações para além das forças e casos individuais ou de grupos limitados.

“Psicanalizar não mais para livrar mas para engajar. Fazer ler o homem em si, não mais para dissipar os fantasmas, mas para dar consistência, direção e satisfação a certas grandes necessidades ou apelos essenciais que rebentam em nós (e pois nos sufocam) por falta de serem traduzidos e compreendidos (...) Obra complicada e delicada de descoberta, na verdade, pois sobre esse domínio professor e aluno, diretor e dirigido, avançam igualmente a tenteios; mas trabalho eminentemente fecundo, pois se aplica a discernir, não mais laços ou taras, mas as competências as mais secretas e as mais gerais do dinamismo psíquico que nos anima” (Teilhard de C., 1948).

A rigor e em toda a sua obra, Pierre Teilhard de Chardin nos convida a um trabalho que almeja, em última instância, a uma gênese permanente da pessoa e da sociedade humana, pelo esforço de conseguirmos acender no coração dos homens a chama que os mobilize a comungar na esfera comum de uma fé verdadeiramente motriz.

Milton Santos (2002), que à maneira de sua ciência, também nos chama a tentar colaborar neste mesmo trabalho, reserva à universidade e ao intelectual em geral uma missão de grande responsabilidade, ao afirmar que a sua causa a mais nobre é a produção gradual de uma consciência coletiva, a criação e mobilização de idéias que expliquem, de modo sistemático e consistente, o lugar, o país e o mundo, e que façam eco às demandas profundas das populações, contribuindo, ademais, como porta-voz na trajetória de aperfeiçoamento da vida democrática e de suas instituições.

Nesse sentido, o mesmo autor nos mostra como no Brasil “o modelo político e cívico foram instrumentais ao modelo econômico” (Santos, 1987, p.3), e como em função dessa inversão de valores, a pobreza material e espiritual teria sido criada e recriada a partir da ideologia do consumo em detrimento do exercício da cidadania e, isto, num círculo vicioso de acirramento dos problemas relativos à formação dos indivíduos, das desigualdades sociais e dos desequilíbrios de ordem espacial. E finalmente, atribui mais uma vez à universidade a tarefa que em muito rechaça a atitude meramente carreirista ou produtivista, em favor do ideal de um pensamento livre e genuinamente produzido e da construção de um debate público verdadeiro, longe da doença particularista da corrupção e do pragmatismo, e mais próximo de condições políticas, econômicas, sociais e psíquicas mais saudáveis.                         


Notas

1 José Luiz Archanjo é tradutor do livro O fenômeno humano de Pierre Teilhard de Chardin e nos oferece esta explicação adicional na nota 8, da página 29 do mesmo livro.

2 A visão hiperfísica de Pierre Teilhard de Chardin remete, segundo nota do tradutor do livro O fenômeno humano, ao objetivo do autor de penetrar nas questões espirituais e humanas com os métodos da Ciência, numa visão em que Matéria e Espírito seriam englobados numa mesma explicação coerente e homogênea do Mundo, mas sempre partindo do “fenômeno”, daquilo que nos aparece, tangível, experimental, fotografável.

3 “Cosmogênese é o processo de geração ou formação do Cosmo, ou seja, o próprio universo evolutivo, apreendido como um processo animado por um movimento que se vai orientando e convergindo à medida em que avança. É a concepção moderna do universo, porque dinâmica, e que se opõe às antigas concepções de um Cosmo estático” (José Luiz Archanjo, nota 23 da pág 32 do livro O fenômeno humano.

4  Psicogênese é o processo de aparecimento e crescimento do psiquismo através de sucessivos limiares de ascensão evolutiva.

5 Noogênese é o processo de uma maior precisão da psicogênese, incluindo todo o desenvolvimento do espírito.

6 As citações referentes a este texto “Reflexões sobre a felicidade” aparecem sem o número das páginas em razão de serem extraídas de uma tradução feita por mim.

7 Pela mesma razão apresentada na nota 6, acima, as referências a este texto sobre “As Condições Psicológicas da Unificação Humana” também aparecem sem o número das páginas das quais foram extraídas.


Referências Bibliográficas

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TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. A evolução da responsabilidade no mundo. Psyché, Paris, 1951 (tradução nossa).

TEILHARD DE CHARDIN, Pierre.O fenômeno humano. São Paulo: Editora Cultrix, 1986.

WEIL, Eric. Responsabilité politique. Revue Internationale de Philosophie, 1959, n. 50, pp. 125 – 133. 

© Copyright: Cilene Gomes, 2008
© Copyright: Biblio3W, 2008


Ficha bibliográfica

GOMES, Cilene. O universo do homem social e o lugar da realidade objetiva: Um diálogo entre Pierre Teilhard de Chardin e Milton Santos. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales , Universidad de Barcelona, Vol. XIII, nº 772, 15 de enero de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-772.htm>. [ISSN 1138-9796].


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