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REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie  documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XIV, nº 817, 30 de marzo de 2009
 

A POLISSEMIA NA DISCUSSÃO SÓCIO-ESPACIAL DA CULTURA

ROSENDAHL, Zeny e CORREA, Roberto Lobato (org.) Espaço e Cultura: Pluralidade Temática. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008. 296 p. [ISBN 978-85-7511-125-3]


Otávio José Lemos Costa
Universidade Estadual do Ceará-UECE/Brasil


Palavras chave: geografia cultural, espaço e cultura, regiões culturais

Palabras clave: geografía cultural, espacio y cultura, regiones culturales

Key words: cultural geography, space and culture, cultural regions


O livro Espaço e Cultura: Pluralidade Temática reúne um conjunto de textos sobre as relações entre espaço e da cultura, nas quais se associam a uma já consolidada reflexão acadêmica empreendida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura – NEPEC - pertencente ao Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.

A divulgação da geografia cultural brasileira, assim como os trabalhos apresentados nos Simpósio sobre Espaço e Cultura, bienalmente organizados pelo NEPEC, é realizada através de sua revista Espaço e Cultura, e também pela coleção “Geografia Cultural”, referências ímpares para todos aqueles interessados na dimensão espacial da cultura. Tanto o periódico quanto a coleção refletem a maturidade da geografia brasileira, no que concerne ao papel da cultura e suas múltiplas interpretações. Acrescida à produção dos geógrafos brasileiros, é relevante a freqüente inserção de artigos e traduções de importantes textos de geógrafos e outros pesquisadores estrangeiros que também se dedicam a pensar a cultura na seara da ciência geográfica.

Definida como um sub-campo da geografia e analisando a dimensão espacial da cultura, a geografia cultural, desde o inicio do século XX, procurou abordar temas como os gêneros de vida, a paisagem cultural, configurando, portanto, uma vasta produção ilustrada sobretudo pela Escola de Berkeley, cujo maior expoente foi Carl Sauer. A escola saueriana, calcada na visão abrangente da cultura e no historicismo irá ainda enfatizar a diversidade cultural, valorizando o passado em detrimento do presente. No âmbito da geografia cultural renovada, a partir da década de 1970, o conceito de cultura é resignificado, fugindo da visão supra-orgânica e agora observada como um reflexo, uma mediação e uma condição social. Agora o significado passa ser o tema principal para o entendimento da cultura numa perspectiva geográfica.

Os textos apresentados no livro Espaço e Cultura: Pluralidade Temática trilham caminhos plurais que incluem tanto a dimensão material da cultura quanto a sua dimensão não-material. Análises objetivas e subjetivas no que diz respeito à região, à paisagem e ao lugar são apreendidas de forma singular, elaborando-se uma importante  agenda de investigação na qual os significados relevam a espacialidade da cultura em seu caráter polissêmico.

O texto que inicia a coletânea “Região Cultural - Um Tema Fundamental”, de Roberto Lobato Corrêa, discute o conceito de região no sentido de apontar um direcionamento na investigação sobre a região num contexto da heterogeneidade cultural brasileira. Sob a perspectiva que uma determinada região é constituída pela extensão de características e relações culturais, podemos constatar que em última instância, existe uma determinada região especifica, com base em seu sentido simbólico, na medida em que seja construído um conjunto de símbolos que apontem para seu significado. Neste sentido, a perspectiva de uma região cultural no presente texto, refere-se a ela como sendo um espaço definido por gêneses e formas culturais, enfatizando também o caráter heterogêneo presente na dinâmica regional brasileira e visando uma contribuição da ação humana no tempo e no espaço. Ressalta-se ainda, a importância que é dada à região no sentido de resguardar referências identitárias nas quais o autor nos mostra a afirmação de identidades regionais ao discutir o processo de formação das regiões culturais especificamente no que concerne às regiões culturais brasileiras.

A abordagem sobre a temática da geografia da religião é apresentada através de três textos os quais ensejam desenvolver a perspectiva da experiência religiosa e sua espacialidade. Tais abordagens nos conduzem a uma compreensão do fenômeno das religiões e como este é influenciado por eventos que se referem às formas e funções que ocorrem na paisagem. A emergência dos estudos da religião na perspectiva da geografia torna relevante a dimensão espacial da cultura pela qual destacam-se as manifestações do sagrado e do profano.

No texto de “Os Caminhos da Construção Teórica: Ratificando e Exemplificando as Relações entre Espaço e Religião”, Zeny Rosendahl, nos apresenta inicialmente uma análise dos trabalhos realizados pelos primeiros geógrafos que se dedicaram ao estudo da geografia da religião, entre eles Paul Fickler, Pierre Deffontaines, Max Sorre e David Sopher, autores que desenvolveram a temática da religião em suas obras, orientando de forma seminal a investigação dos estudos religio-geográficos. A autora adverte para o fato de que, apesar dos autores citados em sua análise terem dado importantes contribuições para o estudo da religião, suas abordagens, entretanto, estavam situadas no campo tradicional, cujas temáticas eram inerentes às realidades regionais. Para Rosendahl, a partir da década de 1970, é que ocorrerá uma mudança de perspectiva com a introdução da abordagem humanística, na qual o contexto simbólico é produzido e vivenciado pela comunidade religiosa. Neste momento, as diferentes análises geográficas sobre a espacialidade do sagrado, enfatizam a vivência e a identidade religiosa, relevando um sentimento de pertencimento e de sentir o sagrado com o forte propósito de mostrar a dimensão espaço-tempo existente nos lugares sagrados. Dessa forma, a perspectiva humanística da geografia da religião oferece um realce, fazendo com que as representações simbólicas coexistam e se materializem, demarcando através de formas e ritos os vários tipos de lugares sagrados.

Percorrendo as trilhas do sagrado, Maria das Graças M. Santos nos apresenta o texto: “Os Santuários como Lugar de Construção do Sagrado e da Memória: Esboço de uma Tipologia”. Trata-se de uma importante contribuição a respeito do estudo dos santuários enquanto tema de interesse geográfico. Nessa abordagem, o trabalho indica um temário sobre a religião e sua espacialidade, sobretudo quando objetiva-se o entendimento dos lugares criados a partir de diversos sistemas simbólicos, elegendo os santuários como aqueles lugares potencialmente férteis e que estimulam os indivíduos a compreenderem o sentido pelo qual a religião oferece à razão humana, assim como a sua vivência e prática religiosa.

Na compreensão de que os santuários funcionam como núcleos de transmissão de mensagens com forte conteúdo religioso, o referido texto apresenta uma tipologia que caracteriza os santuários, naquilo que relaciona ao seu ordenamento espacial marcados pela prática religiosa e que se definem pela periodicidade de tempos e rituais sagrados, determinando ainda um elenco de representações que identificam os santuários como lugares de atividades associadas ao sagrado. A autora conclui seu trabalho, aplicando tipologia apresentada no texto ao Santuário de Fátima em Portugal, ressaltando que o referido santuário reveste-se de uma natureza ôntica ou substancial, pois nele a condição de hierofania é anteriormente manifestada. Explica ainda que a força desse santuário para a atração de peregrinos é justificada através de sua gênese na qual uma “aparição” ou “epifania” fundamentaria e manteria o intenso fluxo de peregrinos e turistas religiosos para aquele centro de peregrinação do catolicismo.

Compreender territorialidade do sagrado engendrada pela Festa da Irmandade da Boa Morte, que é realizada na cidade de Cachoeira-Bahia, é a contribuição de Aureanice de Mello Corrêa para esta coletânea. Seu texto nos mostra que as territorialidades trazem consigo o atributo de serem signos, os quais, nos rituais da festa, há uma evocação do passado que é sedimentado através dos típicos elementos que compõem a festa, tais como lendas, crenças, itinerários, caracterizando assim uma teia de elementos geossimbólicos. Esses elementos, marcados geossimbolicamente, são definidos sob a marca de significados que engendram na concepção da autora, um nexo território-santuário no qual se constitui territorialidades compostas por práticas culturais distintas. O texto ainda evidencia o conflito pela disputa do território sob a perspectiva de uma afirmação de poder e adequação das questões religiosas na Festa da Boa Morte, uma festa que evidencia o sincretismo religioso envolvendo crenças e rituais católicos e tradição africana.

No texto “David Harvey e a Geografia Cultural”, João Sarmento nos oferece uma importante contribuição ao analisar a produção teórica do geógrafo David Harvey. Talvez, em um primeiro momento, e isto nos é informado inicialmente, a obra de Harvey não ofereça subsídios para uma discussão da cultura enquanto fenômeno espacial. Entretanto, nos alerta Sarmento para as evidencias existentes nos trabalhos de Harvey, nos quais, são possíveis, uma analise critica do ponto de vista da geografia cultural. Com objetivo precípuo de tornar claro esta análise, o autor empreende leituras de textos produzidos por Harvey, sobretudo naquilo que concerne aos temas sobre paisagem e a cultura, conhecimento e representação e a matriz espacial. As abordagens centradas nas analises conceituais de espaço e lugar convergem para a dimensão cultural a partir do momento que Harvey aponta as dimensões subjetivas daqueles conceitos. O texto em tela estabelece o entendimento da cultura enquanto espacialidade quando toma como exemplo o livro, Social, Justice and the City  no qual o conceito de lugar se torna uma referência associada a uma preocupação pela justiça social e espacial. Ainda com esse objetivo, exemplifica outra articulação da geografia cultural com a obra de Harvey, The Condition of Posmodernity, mostrando, por exemplo, como é analisada por Harvey as paisagens culturais sob a forma de uma geografia das representações modernas e pós-modernas do espaço. A analise que é feita sobre a construção do lugar, à luz da globalização é entendida na perspectiva do objeto construído e vivido, considerando que as representações do lugar em Harvey estão atreladas ao processo de compressão espaço-tempo.  Sarmento em seu texto, nos apresenta que a contribuição de Harvey ao uso de conceitos de espaço e lugar, coaduna-se com a temática da geografia cultural, pois ao explorar as relações de dominação e resistência em diferentes espaços, o espaço socialmente produzido irá se juntar à tradição humanística na qual destaca o sentido de lugar e as experiências e vivências do tempo.

Com o intuito de discutir a paisagem e a cultura, Werther Holzer nos apresenta o texto: “A Trajeção: Reflexões Teóricas Sobre a Paisagem Vernacular”. O autor introduz uma discussão sobre o emprego do método fenomenológico, no qual, contrapondo-se ao positivismo exarcebado da geografia tradicional, constrói um entendimento sobre o real, cujo ponto de partida é a paisagem. Nesta perspectiva, Holzer faz uma análise de uma paisagem especifica – a região dos lagos fluminense- propiciando ao leitor uma sugestiva discussão  sobre o vernáculo daquela paisagem, estimulada ainda pelo conceito de Berque sobre o caráter trajetivo da mesma,na qual é relevante o processo de intersubjetividade, ou seja, a realidade do sujeito e do objeto não é apenas física ou mental, comportando uma teia de relações sócio-espaciais que se expressam naquela paisagem cultural.

O texto “O Rio dos Símbolos Oficiais e Vernaculares” de João Baptista F. de Mello apresenta a relação existente entre as formas simbólicas produzidas pelo poder e as recriações dessas formas a partir do entendimento popular. O autor evidencia o caráter simbólico dos lugares, fazendo uma leitura dos principais ícones da cidade do Rio de Janeiro. O Pão de Açúcar, a estátua do Cristo Redentor, os Arcos da Lapa, entre outros são revisitados no texto com o entendimento que estes ícones são inventados e reinventados pelo poder publico, produzindo assim, a memória simbólica da cidade. Entretanto, no mesmo plano dessas configurações simbólicas, existe  uma contestação ao aparelho de Estado por parte das camadas populares e que dizem respeito às toponímias oficiais. Neste sentido, Mello nos fala de uma resignificação dos símbolos em uma determinada área da cidade, enfatizando que o caráter simbólico dos lugares é estabelecido pela conexão entre o presente e o passado na qual reitera a sua memória vernacular.

André Reyes Novaes analisa em seu texto ”Cartografias Jornalísticas, Imagens e Significados: um Estudo da Representação das Drogas Ilícitas na Imprensa Brasileira”. A busca de uma investigação sobre o papel da imprensa enquanto agente das representações espaciais no contexto do tráfico das drogas, é objetivo deste trabalho, no qual é delineada uma análise dos jornais brasileiros e sua percepção/representação das drogas ilícitas. As representações neste trabalho são clarificadas pela construção através da mídia das imagens cartográficas. O autor nos chama a atenção para o fato de haver um desencontro entre a cartografia jornalística e as teorias sobre a imagem e significado na geografia e na cartografia. Assim, propõe uma análise iconográfica tomando como exemplo mapas jornalísticos sobre as drogas ilícitas, iniciando um debate sobre as técnicas de produção e práticas cartográficas aplicadas na representação. O texto busca introduzir também, uma analise mais relacionada com a iconologia, considerando os significados da imagem e sua conseqüência para a dimensão espacial.

Com a preocupação em estabelecer uma discussão a partir do ponto de vista geográfico, Paulo César da Costa Gomes, atenta para a inclusão de novos temas antes considerados estranhos à geografia, buscando a compreensão espacial frente aos domínios marginais à geografia, enfatizando o caráter relacional que é estabelecido entre coisas, fatos e fenômenos. Atenta também para o fato que em uma análise geográfica, deve ser priorizado a observação de fenômenos e sua relação com as significações em uma ordem espacial. É ressaltado no texto, a compreensão de novos objetos de pesquisa relevando o papel da imagem, observando também que os novos cenários para a geografia a partir de representações plenas de significados podem ser explicadas através da perspectiva de autores como Roland Barthes e Erwin Panofski, O texto aborda ainda os cenários enquanto uma forma conceitual a ser entendida pela geografia. Na perspectiva que o termo cenário concebe um arranjo de elementos dentro de um espaço preciso, verifica-se uma aproximação com a geografia. Com este propósito, o autor objetiva conectar a dimensão física e os arranjos espaciais aos comportamentos para uma interpretação de possíveis significações, conservando assim a centralidade da dimensão geográfica.

O texto de Raul Borges Guimarães, intitulado “Escala Geográfica e Partitura Musical: Considerações Acerca do Sistema Modal e Tonal” sugere uma reflexão entre a métrica espaço-temporal contida nos mapas e partituras, tendo como cerne as evidências nas relações entre espaço e cultura. Busca-se, portanto, uma interpretação do espaço simbólico na interface entre a ciência e a arte. Apoiando-se nos estudos de Wisnik e Brunet, o autor persegue um entendimento à discussão dos mapas e partituras musicais, empreendendo uma reflexão sobre a filosofia da linguagem. Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que o texto de Raul Guimarães é assaz provocativo, ao estimular a discussão entre linguagem musical e sua representação espacial.

Os textos apresentados no livro Espaço e Cultura: Pluralidade Temática, organizado por Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa, reflete um momento ímpar pelo qual vive a geografia cultural no Brasil. Se a cultura em sua espacialidade reveste-se de uma polivocalidade e que, consoante ao pensamento de Denis Cosgrove, a geografia está em toda parte, podemos assegurar que a discussão realizada pelos autores dessa coletânea justificam e manifestam esse caráter plural. A polissemia investida na dimensão sócio-espacial é entendida através de seus múltiplos significados e impulsiona a pesquisa com novas abordagens, apoiando-se em novas imaginações geográficas.


[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]


© Copyright Otávio José Lemos Costa, 2009
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Ficha bibliográfica:

COSTA, Otávio José Lemos. Rosendahl, Zeny e Correa, Roberto Lobato (org.) Espaço e Cultura: Pluralidade Temática. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XIV, nº 817, 30 de marzo de 2009. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-817.htm>. [ISSN 1138-9796].


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