Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie  documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XIV, nº 828, 25 de junio de 2009


FAVELAS NO RIO DE JANEIRO: NASCIMENTO, EXPANSÃO, REMOÇÃO E, AGORA, EXCLUSÃO ATRAVÉS DE MUROS

 

Alvaro Ferreira
Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geografia da PUC-Rio e Departamento de Geografia da UERJ-FEBF
alvaro_ferreira@puc-rio.br / alvaro.ferreira.geo@gmail.com


Favelas no Rio de Janeiro: nascimento, expansão, remoção e, agora, exclusão através de muros (Resumo)

Apresentamos brevemente o cenário de nascimento, expansão, políticas de remoção e terminamos enfocando a recente proposta de criação de muros para contenção do crescimento de favelas na cidade do Rio de Janeiro. Afirmamos também que o crescimento das favelas está relacionado ao aumento do trabalho informal, à contenção de gastos públicos e à especulação imobiliária.

Palavras-chave: favelas, Rio de Janeiro, exclusão, muros de contenção


Favelas in Rio de Janeiro: birth, growth, removal and now, exclusion through walls (Abstract)

We present briefly the scenario of birth, expansion, and removal policies of slums in Rio de Janeiro. Finally, we focus the recent proposal of building walls to contain the growth of slums in Rio de Janeiro. The growth of slums is related to increased unemployment, the containment of public spending and property speculation.

Keywords: slums, Rio de Janeiro, exclusion, containment walls


Se a imagem da metrópole no século XX era a dos arranha-céus e das oportunidades de emprego, ao redor do mundo é possível, atualmente, observarmos cenários de pobreza onde vive grande parte dos habitantes das grandes cidades do século XXI. Temos presenciado o crescimento cada vez maior do número de favelas em diversas partes do mundo; em todos os continentes. Os números impressionam e quando expostos, como feito por Mike Davis (2006), deixam atônitos até os menos envolvidos com a temática: tratam-se de aproximadamente 200 mil favelas existentes no planeta.

Esse crescimento está ligado a vários fatores, mas mencionaremos apenas alguns que, obviamente, estão interligados. A impiedosa especulação imobiliária é um dos fatores responsáveis pela expulsão de milhões de moradores pobres das cidade para as periferias e para as favelas, sujeitando-os a inundações, deslizamentos e a todo tipo de risco que acabam sujeitos, levando a graves doenças, inclusive ligadas a falta de saneamento básico. Além disso, doenças praticamente banidas dos países centrais crescem vertiginosamente nessas áreas. Dados comprovam o crescimento exponencial de tuberculose dentre os habitantes das favelas. Em 2008, matéria publicada no Jornal do Brasil afirmava que a favela da Rocinha, localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, registrava a impressionante média de 55 casos mensais de tuberculose, ou seja, são 600 casos para cada 100 mil habitantes. A ausência de debates públicos quando se trata de crescimento tão elevado – a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável apenas cinco casos de incidência do Bacilo de Koch, causador da doença, para cada 100 mil habitantes – somente se explica por tratar de assolar a população mais pobre da cidade.

Outro ponto importante, inclusive explorado por Davis (2006), referir-se-ia ao papel do Estado, que tem se preocupado apenas com obras de embelezamento urbano e medidas remediadoras – que não resolvem os problemas – ao invés de desenvolver políticas de inclusão social, seja no que se refere a políticas de geração de empregos, seja em forma de políticas habitacionais ou no desenvolvimento de sistema de transportes coletivos eficientes. Maricato, no posfácio do livro de Davis (2006, p. 217), afirma que “o Brasil, por exemplo, cresceu 7 por cento ao ano de 1940 a 1970. Na década de 1980, cresceu 1,3 por cento, e na década de 1990, 2,1 por cento, segundo o IBGE. Ou seja, o crescimento econômico do país, nas duas últimas décadas do século XX, não conseguiu incorporar nem mesmo os ingressantes da População Economicamente Ativa (PEA) no mercado de trabalho, o que acarretou conseqüências dramáticas para a precarização do trabalho e, conseqüentemente, também para a crise urbana”.

Foi com a introdução das políticas neoliberais, a partir de 1980, que esse processo ganhou força, já que houve uma política de privatização, uma acumulação de bens e serviços em poucas mãos, o que acabou desestabilizando socialmente os países periféricos e lançando milhões de pessoas na  informalidade. Para o sistema, segundo Davis (2006), eles são "óleo queimado", "zeros econômicos", "massa supérflua" que sequer merece entrar no exército de reserva do capital. Essa exclusão pode ser percebida pela crescente favelização que ocorre no planeta. Segundo Davis (2006, p. 34), 78,2 por cento das populações dos países pobres é de favelados e dados da CIA, de 2002, apresentavam o espantoso número de 1 bilhão de pessoas desempregadas ou subempregadas favelizadas.

No Rio de Janeiro a realidade não é diferente. Há um grande crescimento de favelas na cidade e dados oficiais (Instituto Pereira Passos - IPP) trazem a informação de que cerca de 20 por cento dos habitantes da cidade moram em favelas. Esse crescimento mais vertiginoso faz-se ainda mais visível a partir da década de 1980 – conhecida no Brasil como a década perdida, já que o crescimento foi irrisório frente aos anteriores – e está associado a todos os fatores enunciados anteriormente. Alto índice de desemprego, crescimento da informalidade, especulação imobiliária, falta de política habitacional para população de baixa renda e sistema de transportes coletivos precário são apenas alguns exemplos dos motivos para o crescimento das favelas no Brasil e especificamente no município do Rio de Janeiro.   

Com toda certeza, para falarmos sobre as origens, expansão, remoção e, atualmente, exclusão concretamente proposta através da construção de muros de contenção contra o crescimento das favelas, teríamos de iniciar nossa argumentação com o próprio processo de formação e expansão da cidade do Rio de Janeiro, contudo nossa proposta – até por ter um caráter de sucinto comentário – objetivará fazer uma breve, e por isso insuficiente, contextualização para posteriormente abordarmos a proposta do governo do estado com o apoio da prefeitura da cidade, de construir muros para conter a expansão das favelas. Para tanto, subdividimos este artigo em três partes: inicialmente retornaremos ao final do século XIX e início do século XX para apontarmos o que seria considerado o surgimento das favelas na cidade do Rio de Janeiro, além de, também, abordarmos as transformações realizadas durante a Reforma Passos, que promoveu grande mudança na organização espacial da cidade; na segunda parte trataremos da expansão das favelas – que certamente seguem a expansão da própria cidade e dos empregos gerados por ela – , além de apontarmos também as políticas de remoção; e, finalmente, chegaremos ao fim do artigo apresentando as atuais absurdas propostas de contenção do crescimento das favelas a partir da construção de muros em seu entorno.

Sobre as origens das favelas    

A presença de casebres em morros da cidade data de 1865, o que leva a argumentação de que já se tratariam de formas embrionárias de favelas. Isso porque a definição oficial inclui a conotação de adensamento, ilegalidade, pobreza, insalubridade e desordem. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse tipo de habitação encontra-se assim definido: “aglomerado subnormal (favelas e similares) é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou não), dispostas de forma desordenada e densa, carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais”. Sem entrarmos no mérito da definição, por si só problemática, já na última década do século XIX, em 1897, surgiram as favelas nos morros da Providência e de Santo Antônio, na área central da cidade.

A cidade do Rio de Janeiro tinha problemas seríssimos de falta de moradia e ainda assim não parava de crescer. Entre 1903 e 1906, o Prefeito Pereira Passos promoveu uma intensa reforma urbana, na qual foram demolidos vários imóveis (grande parte deles de habitação popular) para ampliação de vias e construção de “prédios modernos”, muitos deles de inspiração parisiense. Além disso, como voltaremos a falar posteriormente, o prefeito impôs novas e rigorosas normas urbanísticas que acabaram por inviabilizar inclusive os subúrbios para as classes mais pobres que foram desalojadas da área central da cidade. Nesse sentido, o novo já traz em si a sua própria negação. Para complicar ainda mais, os meios de transporte eram precários, obrigando a força de trabalho a residir  próximo ao local de trabalho.    

Desde o início do século XX – com a denominada Reforma Passos – foram promovidas reformas urbanas vigorosas (Abreu, 1987, p. 60; Neves, 1996, p. 49; Vaz, Silveira, 1999, p. 59; Reis, 1977, p. 22), ademais, embora tenham sido formados bairros ditos operários (Albernaz, 1985, p. 25), o aspecto geomórfico peculiar da cidade fez com que a divisão de classes por entre os diversos bairros da cidade fosse ligeiramente borrada. Assim é que observamos um grande número de favelas localizadas em bairros nobres da cidade. Contudo, importa reconhecer que a própria concepção “de morador do morro” e “morador do asfalto” por si só já denota a divisão.

Houve, durante a constituição da organização espacial carioca no decorrer do século XX, um comportamento já conhecido desde o século XIX, em que o Estado associou-se ao capital privado em benefício das classes mais abastadas da sociedade – sobre tal tema Jacobi (1989, p. 06-09) debruça-se com bastante clareza. É nesse sentido que podemos afirmar, juntamente com Lojkine (1981), que as formas de urbanização são, antes de tudo, formas da divisão social e territorial do trabalho. Jean Lojkine (1981, p. 122) acredita que “não considerar a urbanização como elemento-chave das relações de produção (...) é retomar um dos temas dominantes da ideologia burguesa segundo a qual só é ‘produtiva’ a atividade de produção da mais-valia”.

No último quartel do século XIX, as companhias de bondes da cidade também tiveram importante papel na produção do espaço carioca. Longe de representarem apenas companhias de transporte, estas participaram da conformação da espacialidade da cidade do Rio de Janeiro, pois a partir das alianças entre o capital externo, o capital imobiliário, o capital fundiário e o Estado, o espaço urbano começa a ser (con)formado. Maria Lais Pereira da Silva (1992, p. 43) elucida tal colocação ao afirmar que, quando da concessão para abertura das linhas para Copacabana e Vila Isabel, ocorreram barganhas com o poder público que implicaram em obras que modificaram o espaço urbano:

“a Cia. Do Jardim Botânico, por exemplo, executa o desmonte de parte da ladeira de Santo Antônio para alargamento da rua da Guarda Velha, sem falar nos túneis e em aterro (como vários na lagoa Rodrigo de Freitas) para construir estações; a Cia. De São Cristóvão prolonga e abre várias ruas, como condição para extensão de suas linhas; a Cia. De Vila Isabel faz o aterro do mangue de Praia Formosa e abre ruas no Cachambi e outros locais, e assim por diante”.

Maurício Abreu (1987, p. 44) também percebe tal aliança e enaltece o que denominou “associação bonde-loteamento”. Exemplificando essa forma de associação, afirma que o bairro de Vila Isabel foi criado em 1873 pela Companhia Arquitetônica, cujo proprietário era o mesmo da Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel, o Barão de Drummond. Visto isso, acreditamos que a apropriação e a produção do espaço se dá segundo os interesses do Estado, do capital comercial (nesse caso, mais especificamente os concessionários do setor de transportes), o capital imobiliário e o capital fundiário.

Evidentemente, todas essas obras de extensão das linhas de bondes, que contribuíram para a expansão da cidade, demandavam grande quantidade de mão de obra. Esses trabalhadores acomodavam-se nos canteiros de obra durante a construção, porém quando esta chegava ao fim, se não encontravam emprego em novas obras, tinham de construir suas casas junto aos locais em que pudessem conseguir trabalho.  

Em se tratando das companhias de bondes, poderíamos afirmar que enquanto a Companhia Jardim Botânico contribuiu para a ocupação da freguesia da Lagoa pelas classes abastadas, as demais companhias exerciam a função de integração da área central da cidade aos bairros proletários de Santo Cristo, Gamboa, Saúde e Catumbi.

Roberto Lobato Corrêa (1995, p. 32) dá-nos exemplo da associação desses agentes quando da abertura do Túnel Velho (que liga Botafogo a Copacabana) pela própria Companhia de Bondes do Jardim Botânico. Para esse empreendimento foi criada a Empresa de Construções Civis, que acabou sendo a maior responsável pela valorização do arrabalde de Copacabana.

Nesse sentido, elucida-nos Elizabeth Cardoso (1986, p. 66) a propósito do que vinha a ser a Empresa de Construções Civis. Constituiu-se de uma aliança de interesses comuns centrados nas valorizações fundiária e imobiliária.

“Eram seus acionistas vários proprietários de terras em Copacabana, vários bancos – Banco Luso-Brasileiro, Banco Brasil e Norte América, Banco Construtor do Brasil e Banco de Crédito Rural e Internacional –, pelo menos uma empresa do setor industrial, a Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros, empresas comerciais, entre elas uma de exportação de café, outras empresas imobiliárias, como a Empresa de Obras Públicas no Brasil, que foi a maior acionista e a própria Botanical Garden”.

Mas isso não é tudo, participaram também da Empresa de Construções Civis um ex-Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e dois prefeitos da cidade, dentre eles Carlos Sampaio (também proprietário fundiário em Copacabana). Corrêa (1995, p. 33) acrescenta à lista de acionistas membros da antiga nobreza: “pelo menos seis barões e um visconde eram sócios dela”. Percebemos, então, a aliança entre proprietários fundiários, promotores imobiliários, bancos, empresas comerciais e industriais e, inclusive, o Estado.

A expansão das favelas por toda a cidade e as políticas de remoção

A partir da década de 1910, as favelas crescem mais intensamente e penetram a zona sul e o seu crescimento é acompanhado, nessa mesma década, pela sua repressão. Foi assim que presenciamos uma longa história de remoções, desconsiderando um fato fundamental: durante toda a história o trabalhador buscou estar próximo ao local de trabalho. E nesse sentido não é de espantar que a maior parte das remoções não obteve sucesso, pois os moradores eram alocados em locais muito distantes e sem infra-estrutura de transportes.

Desde meados do século XX, a ocupação da cidade continuou seguindo o caminho traçado já no início desse mesmo século: o declínio da população residente na área central era cada vez maior e enquanto os subúrbios absorviam as classes mais baixas da população, a zona sul manteve-se como área preferida da classe mais abastada da cidade. Durante a primeira metade do século XX a cidade se expandiu e em seu interior as favelas foram sendo criadas. Era possível observar um crescimento vertical no centro e na zona sul, enquanto que nos bairros da zona norte e dos subúrbios a expansão deu-se através da construção horizontal, principalmente de casas unifamiliares. Lílian Vaz (1998) enaltece o fato de que “nas décadas de 1940-1950 e seguintes assistiu-se à expansão metropolitana e à formação das periferias”. Nesse período já havia forte pressão para a remoção das favelas e a população de baixa renda que optava por não sofrer esse tipo de risco, tinha como alternativa as periferias cada vez mais distantes, onde se multiplicaram os loteamentos populares. Assim, segundo Vaz (1996), “nos lotes pequenos, sem infra-estruturas urbanísticas, de difícil acesso, e por isso mesmo, baratos, praticava-se a auto-construção. Assim, na produção dos novos espaços, destacava-se o binômio loteamentos populares e auto-construção, e em menor grau, a produção de conjuntos residenciais pelo Estado”.

Nos anos 1960 e 1970, a produção de conjuntos habitacionais esteve associada à política de remoção de favelas. Nesse período, grande quantidade de moradores de favelas foi transferida para assentamentos distantes do núcleo, que na maioria das vezes não contava com comércio e nem com sistema de transportes coletivos que desse boas condições de deslocamento para essas pessoas. Boa parte das áreas de onde foram removidas as favelas foi ocupada por grandes empreendimentos imobiliários que se destinavam à construção de conjuntos de edifícios de apartamentos de alto luxo.

Neste momento seria importante tecer alguns esclarecimentos quanto à noção de subúrbio. Para tal, importa reconhecer, junto com José de Souza Martins (1992, p. 09), que “a perspectiva elitista do centro domina a concepção que se tem do que foi [e é] o subúrbio”. Tentaremos não nos alongar em demasia, contudo a maneira como essa noção foi e, efetivamente, é utilizada no Rio de Janeiro tem sua especificidade. Nelson da Nóbrega Fernandes (1995, p. 29) ao investigar a história da categoria subúrbio no Rio de Janeiro entre 1858 e 1945, reconhece que essa palavra sofreu uma transformação em seu significado tradicional, fazendo com que deixasse de representar todas áreas circunvizinhas à cidade para designar, de forma particular e exclusiva, os bairros populares situados ao longo das ferrovias nos setores norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro.

O autor interpreta a produção do conceito carioca de subúrbio, como o resultado de um rapto ideológico – mudança brusca e drástica do significado de uma categoria, em que seus atributos mais originais e essenciais são expurgados de seu conteúdo, sendo submetidos por significados novos e complemente estranhos à sua extração mais genuína.  Esse tipo de reforma implicou na destruição dos bairros proletários centrais e o deslocamento de seus moradores para o subúrbio, que para a ideologia dominante, deveria ser o locus do proletariado. 

Em se tratando do Rio de Janeiro, a ausência de uma efetiva política de habitação popular, tornou a casa própria no subúrbio uma miragem para a maioria do proletariado. A partir de então, Fernandes (1995, p. 30) supõe que “o sentido do ‘conceito carioca de subúrbio’ experimentou o sentimento e a necessidade ideológica das elites no intuito de afastar as classes subalternas do Rio de Janeiro”.

Considerando a advertência de Henri Lefebvre (1976, p. 46) de que o espaço é sempre uma representação carregada de ideologia, o trinômio trem–subúrbio–pobreza só veio de fato a se concretizar depois do início do século XX, com o desenvolvimento da ideologia da casa própria no subúrbio. “Subúrbio”, então, passou a ser entendido como as áreas servidas por ferrovia que foram abertas ao proletariado como um dos símbolos das alterações das relações sociais que conformam e caracterizam as reformas urbanas verificadas no Rio de Janeiro. A alternativa da moradia suburbana para os pobres do Rio de Janeiro aparecerá com grande nitidez em 1905, no âmbito de uma comissão designada pelo Ministério da Justiça e do Interior para “propor soluções ‘ao urgente problema das habitações populares’ na capital da República” (Benchimol, 1992, p. 39).

O subúrbio ferroviário, contudo, não foi um lugar destinado aos pobres, o que significa que, do ponto de vista de um direito social como a habitação, a República, além de expulsar os pobres da cidade, não garantiu sequer aquela área ao proletariado da cidade. O Prefeito Pereira Passos, através do Decreto 39, de 10/02/1903, criou uma série de normas para construção que dificultava ainda mais a construção de habitações populares nos subúrbios. Assim, a tentativa de organização espacial acabou por contribuir para a formação de favelas por toda cidade – inclusive naquelas áreas mais periféricas, que teoricamente seriam destinados aos pobres – e, ainda, incentivou a promoção de loteamentos irregulares na Baixada Fluminense, ou seja, para além do território do, à época, Distrito Federal. É nessa conjuntura de transformação socioespacial do Rio de Janeiro que se define os subúrbios ferroviários como o lugar do proletariado.

Ainda hoje, no Rio de Janeiro, é comum o uso de expressões como: subúrbio da Leopoldina (referindo-se aos bairros servidos pela Estrada de Ferro da Leopoldina) e subúrbio da Central (tratando-se dos bairros servidos pela Estrada de Ferro da Central do Brasil).

O conceito carioca de subúrbio é uma representação que sintetiza um discurso ideológico sobre o lugar dos pobres na cidade do Rio de Janeiro.  Para Fernandes (1995, p. 31), tal conceito significa o tipo de cidadania reservada para a maioria de sua população, já que “predomina, entre nós, a idéia de um espaço (suburbano) subordinado e sem história, sem criação, sem cultura, carente de valores estéticos em seus homens e sua natureza (subúrbio é quase sempre feio e sem atrativos), ausente de participação política e cultural. No máximo, concede-se ao subúrbio o lugar da reprodução”.

A partir dessa leitura, constatamos que o padrão de segregação que se reproduz através do conceito carioca de subúrbio, reifica o subúrbio enquanto ideologia, o que acaba por legitimar não só os discursos que fazem apologia ao status quo como aqueles que se opõem a ele e o denunciam; isto porque não vão além da forma, ou seja, classificam as aparências mas não as explicam e ao não fazê-lo reificam as práticas sociais a partir da ideologia dominante. Portanto, repete-se um dos fundamentos das ideologias que é a negação e/ou omissão do processo histórico. É a naturalização do real e sua redução ao presente, onde o passado existe para ratificá-lo.

Após essa explanação, podemos perceber de maneira mais apropriada a forma pela qual a cidade do Rio de Janeiro se expandiu. As primeiras três décadas do século XX demonstraram notável expansão da tessitura urbana da cidade. Nesse período, caracterizou-se o crescimento da cidade a partir de dois vieses: as classes alta e média ocuparam as zonas sul e norte, tendo no Estado e nas companhias concessionárias de serviços públicos seus maiores aliados; e por outro lado, os subúrbios cariocas caracterizaram-se como locais de residência do proletariado, que, a partir do deslocamento das indústrias, se dirigiu, também, para lá. Se as zonas sul e norte tiveram apoio do Estado, em se tratando dos bairros suburbanos a ocupação se deu sem qualquer apoio estatal ou das concessionárias. Dessa maneira, logo se percebia a desigualdade sócio-econômica que se refletia na espacialidade da cidade.

Pelo que vimos, o Rio de janeiro apresentou uma história de crescimento urbano marcado por extensas periferias, em que residia a população de classe mais baixa, e por forte desigualdade da oferta de infra-estrutura e de serviços, em benefício das áreas habitadas pelas classes mais abastadas. Vetter e Massena (1982, p. 50), analisando a cidade, identificaram em sua dinâmica uma matriz perversa de distribuição dos recursos urbanos, que direcionava os investimentos públicos direta ou indiretamente para as camadas já mais bem servidas e de mais alta renda. Denominaram esse modelo de “causação circular”, que, segundo Cardoso e Ribeiro (1996, p. 22), “passou a ser considerado pela literatura como característico do nosso padrão de urbanização”. Harvey (1980, p. 135; 1982, p. 11), já percebendo tal distribuição desigual, enunciava a alocação espacial diferenciada dos equipamentos urbanos de consumo coletivo. Tal característica levava à ampliação da renda real daqueles que já possuíam elevada renda monetária. Apesar disso, convém lembrar que, devido à especificidade geomorfológica da cidade do Rio de Janeiro, mesmo nos bairros habitados pelas classes mais abastadas da sociedade carioca encontramos favelas sem a infra-estrutura mínima necessária.

A intensificação do processo de concentração de renda em curso culminou com a expansão da parte rica da cidade em direção a São Conrado e Barra da Tijuca. Para tanto, o Estado que se associou ao capital imobiliário teve importante papel, pois incorreu em um enorme investimento para a construção da Auto-Estrada Lagoa-Barra. Essa obra foi extremamente custosa, pois incluiu, para sua realização, a perfuração de vários túneis e a construção de pistas sobrepostas encravadas na rocha. Nesse período, essas novas áreas da cidade, apesar de esparsamente habitadas, tiveram no Estado importante agente para a produção do espaço. A partir da associação com o capital privado, seja na abertura de estradas e ruas, seja na pavimentação e instalação de infra-estrutura, o Estado investiu grandes somas de dinheiro na preparação desse novo eixo de expansão da cidade. Em um período de aproximadamente 40 anos – 1955 a 1999 – a Barra da Tijuca apresentou um crescimento surpreendente, principalmente nos últimos 15 anos (Figuras 01, 02, 03, 04 e 05).

A rede viária do Rio de Janeiro, juntamente com a construção imobiliária, tem se constituído como marco concreto do processo de produção e transformação do espaço urbano. A construção da rede viária contribuiu, segundo Mauro Kleiman (2001, p. 1597), para a configuração de seu padrão de segregação socioespacial. Tal afirmação baseia-se na forma com que se deu

“a reestruturação do centro da cidade, suas ligações com os bairros da zona sul, as ligações destas sem ter que passar obrigatoriamente pelo centro, com os demais bairros do Rio, com vias de padrão de grande porte e técnicas sofisticadas, sendo constantemente melhoradas, ampliadas, superpostas, onde se pode verificar seu nexo com os interesses do capital imobiliário e das camadas de maior renda (situadas na zona sul, Tijuca e arredores e mais recentemente na Barra), opõem-se ao não provimento (...) das vias de utilização por camadas pobres, na Baixada, zona Oeste, Anchieta e Irajá”.

Figura 01. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1955.
Podemos observar que a Barra da Tijuca encontrava-se pouco habitada. É possível percebermos a formação do que atualmente ficou conhecido como “Barrinha” (faixa em fase de urbanização localizada próxima à Joatinga); juntamente com a abertura de um conjunto de ruas em torno do que viria a ser a Praça Prof. José Bernardino.
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.


Figura 02. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1969.
Onze anos depois a “Barrinha” já apresenta maior densidade populacional e é possível percebermos o crescimento da área urbanizada ao redor da Praça Prof. José Bernardino.
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.

     
Figura 03. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1975.
Em 1975, apenas seis anos após, percebemos intenso crescimento das construções, seja na “Barrinha”, seja no entorno da Praça Prof. José Bernardino. Além disso, identificamos a construção de diversos condomínios na orla e no interior, mais à oeste.
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.

 

Figura 04 . Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1984
Aqui está claro o movimento em direção à Barra da Tijuca. O crescimento da construção de imóveis é cada vez maior e encaminha-se mais intensamente para oeste do bairro.
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.

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Figura 05. Ortofotos da Barra da Tijuca em 1999.
As ortofotos permitem-nos observar a verticalização do bairro e seu forte adensamento, inclusive das ihas da lagoa. Percebemos, também, à direita da Av. das Américas (em sentido oeste) o Centro Empresarial Dowtown e o Centro Empresarial Città América. Também é possível observar a mais vigorosa ocupação das encostas.
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.


Os investimentos em direção à Barra da Tijuca continuaram com a abertura de novas vias de acesso: Avenida das Américas (que se prolonga em direção ao Recreio dos Bandeirantes) e a Avenida Alvorada (atual Avenida Ayrton Senna). Tais avenidas favoreceram, respectivamente, a expansão imobiliária em direção ao Recreio e a acessibilidade maior a partir do bairro de Jacarepaguá. Contudo, juntamente com os condomínios fechados construídos, houve também o surgimento e o crescimento das favelas. Algumas, como no caso da Favela do Terreirão, bem próximas à praia e nesse caso tratando-se de favelas planas.

No caso do Rio de Janeiro, como vimos anteriormente, a articulação entre os agentes ocorreu desde há muito tempo atrás e continua a ocorrer. Apesar de o governo federal ter anunciado sua intenção de concentrar seus investimentos em moradia para a população de baixa renda, as principais construtoras que atuam na cidade têm-se dedicado à construção para a classe mais abastada. Segundo levantamento da própria Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi/RJ), publicado pelo jornal O Globo (2003), 50,5 por cento dos novos projetos – imóveis na planta, em construção ou que acabaram de ficar prontos – custam hoje mais de R$ 251 mil. Além disso, 23,7 por cento referem-se a unidades com preços acima de R$ 400 mil. Curiosamente, o próprio presidente da Ademi/RJ (Associação dos Empresários do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro) na época, Márcio Fortes, ao analisar o resultado do levantamento, afirma estar diante de uma grande distorção no sistema, já que em condições normais os imóveis avaliados acima de R$ 251 mil não deveriam representar mais de 10 por cento da oferta.

Outro ponto marcante encontra-se no fato de, aproximadamente, 60 por cento dos imóveis serem financiados diretamente pelo incorporador. Nesse sentido, o financiamento caracteriza-se pelo curto prazo – em geral, cinco anos – o que exclui a possibilidade de aquisição pela parcela menos abastada da população.

E se a cidade vêm crescendo em direção da Barra da Tijuca (zona oeste litorânea), não é à toa que das 513 favelas registradas pelo IBGE na Região Metropolitana, mais de 100 estão concentradas na zona oeste. Não nos surpreende que os números oficiais cheguem a afirmar que aproximadamente 20% da população da cidade vive em favelas.

Paulo Bastos Cezar (Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 2002), pesquisador do Instituto Pereira Passos (IPP), concluiu seu trabalho sobre o crescimento das favelas afirmando que se a ocupação do Rio de Janeiro continuar no ritmo em que está, em 2024 os condomínios e prédios de Jacarepaguá estarão todos cercados por favelas. Segundo o pesquisador, atualmente o bairro tem 113.227 favelados, ou seja, 22 por cento de um total de 506.760 moradores. Enquanto “a população favelada cresceu 12,53 por cento ao ano, a população normal [sic] cresceu em média 2 por cento nos últimos quatro anos”. Importante frisar que grande parte da população favelada presta serviços no bairro vizinho: Barra da Tijuca. Fato é que o crescimento populacional da Barra da Tijuca continua alto e, como no passado, tal crescimento gera uma demanda por serviços pouco qualificados, que atrai cada vez mais população de baixa renda em busca de postos de trabalho.

Sinais concretos da exclusão: muros para conter o crescimento das favelas

Voltando os olhos para o período pós-1984, percebemos o que Lago (2001, p. 1534) denominou “elitização do mercado imobiliário carioca”, pois com a crise do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e praticamente o fim do financiamento para construção de habitações populares, a produção das grandes empresas passou a se concentrar mais especificamente na Barra da Tijuca. Contudo, não devemos esquecer que, na década de 1990, bairros como Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico e Leblon começaram a vivenciar um processo de renovação do seu estoque imobiliário pelas grandes incorporadoras, seja para a construção de apartamentos de luxo, seja para edifícios de escritórios.

Esse período compreende justamente a fase em que o crescimento econômico no Brasil foi praticamente nulo, não conseguindo incorporar a população economicamente ativa que chegava ao mercado de trabalho, além de apresentar um forte crescimento do desemprego. A estratégia de sobrevivência dessa parte da população voltou-se à informalidade e as favelas próximas aos locais de trabalho tornaram-se sua opção de habitação. 

Luciana Corrêa do Lago (2001, p. 1535) percebe uma tendência que se refere à “elitização da população residente em áreas com significativa intervenção do capital imobiliário, responsável pelas mudanças de uso do espaço”. Tratam-se, basicamente, de áreas consolidadas e já valorizadas como Botafogo, Leblon e Lagoa. Além dessas, a Barra da Tijuca se junta a elas como nova área de expansão. Em uma dessas áreas, na Favela Santa Marta em Botafogo (Foto 06), o Governador Sérgio Cabral em parceria com o Prefeito Eduardo Paes estão pondo em ação um plano de ocupação de favelas. Na segunda quinzena de dezembro de 2008, foi inaugurado o novo Posto de Policiamento Comunitário (PPC) na favela ocupada pela polícia desde 19 de novembro do mesmo ano. Essa primeira experiência, segundo o Secretário de Segurança,  funcionará como projeto piloto e deve ser expandido para outras favelas, segundo matéria publicada no jornal O Globo (19/12/2008).

Figura 06 – A Favela Santa Marta, em Botafogo com o Corcovado ao fundo. Na foto é possível perceber a precariedade de algumas habitações, embora não haja barracos de madeira e todas sejam de alvenaria. Ao fundo, é possível avistar a imagem do Redentor – no Morro do Corcovado – que, de braços abertos,  parece olhar para a favela de maneira tão imóvel quanto o poder público. Há anos não existe qualquer política de construção de habitações populares.
Fonte: www.midiaindependente.org/.../07/325100.shtml, em 05/02/2009.


A ação policial, que teria “expulsado” os traficantes, seria acompanhada de uma “invasão social”, que traria atividades educativas e culturais, acesso aos serviços públicos e etc. Contudo, segundo o presidente da Associação de Moradores, a invasão social ainda não chegou.

Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Pereira Passos (IPP), na primeira quinzena de janeiro de 2009, afirma que o Rio de Janeiro já contabiliza 968 favelas, ou seja, 218 a mais do que em 2004. A pesquisa mostra ainda que a população favelada passou a ocupar mais três milhões de metros quadrados do que ocupava em 1999. Segundo o IPP,  as favelas passaram a ocupar 3,7 por cento do território do município.

O Prefeito da cidade, na primeira quinzena de janeiro de 2009, publicou quatro decretos com o objetivo de controlar o crescimento das favelas. Um deles autoriza a Secretaria de Urbanismo a firmar convênios com universidades e institutos de pesquisa  para elaborar regras urbanísticas para as 968 favelas até 2012. Tais regras definirão o gabarito – limite máximo de altura para prédios em certas zonas – permitido, assim como as áreas públicas dentro das comunidades. O prefeito determinou ainda que os órgãos municipais passem a demolir habitações em áreas de risco. Outro decreto autoriza a Secretaria de Urbanismo a contratar arquitetos para ajudar a orientar os moradores quanto às regras de construção. E, finalmente, o quarto decreto define a favela Vila Canoas, em São Conrado, como Área de Especial Interesse, onde será desenvolvido um projeto piloto que servirá como base para posterior expansão para outras favelas. Ali, além de definir os gabaritos e as áreas públicas da comunidade, o prefeito determinou a obrigatoriedade de habite-se para qualquer obra.

Contudo, a medida mais polêmica do Governo do Estado juntamente com a Prefeitura foi a divulgação do início da construção, ainda este mês, de um muro de quase 650 metros de comprimento por três metros de altura na Favela situada no Morro Dona Marta, em Botafogo (zona sul carioca). Se tivermos em conta que do outro lado da favela há um plano inclinado, com teleférico para transporte da comunidade, que já serve como muro de contenção, ao final da construção do muro os moradores estarão concretamente segregados (Foto 07).

Figura 07– A Favela do Morro Dona Marta, em Botafogo (Zona Sul da cidade).
A foto permite observarmos que essa favela foi erguida em um morro com forte declividade, no coração do bairro de Botafogo, zona sul carioca. É possível, também, observarmos o plano inclinado com as estações de parada – lado direito do foto (construções em amarelo com telhado em vermelho).
Foto: www.trekearth.com/.../Brazil/photo512623.htm, em 02/02/2009.


No discurso, o motivo para a construção do muro é apenas para impedir a devastação da floresta do entorno, tanto que três dias após a divulgação da construção do muro, as instâncias de governo passaram a referir-se a ele como “ecolimite”. Em nota oficial o governador afirma: “estamos investindo na ordem pública, enfrentando o tráfico de drogas e impondo limites ao crescimento desordenado”.

A Favela Santa Marta parece ser apenas a primeira dentre outras tantas, já que os secretários de Ordem Pública, de Urbanismo e de Meio Ambiente sobrevoaram as Favelas da Rocinha (São Conrado), Pavão-Pavãozinho (Copacabana) e Chapéu-Mangueira (Leme), todas na zona sul da cidade, e também demonstraram preocupação com o crescimento desenfreado das construções e com o desmatamento das áreas de floresta. Mas as medidas não param por aí, já foi iniciado o monitoramento online da expansão das comunidades usando satélites e a remoção de construções fora das áreas delimitadas estão entre as ações definidas pela prefeitura para acabar com as invasões em áreas de florestas. Segundo os secretários municipais, estão sendo definidos os limites e qualquer construção que estiver além dessa definição será derrubada.

Essa idéia de murar as favelas e que está sendo posta em prática agora pela parceria entre governo e prefeitura do Estado do Rio de Janeiro não é nova. Em 2004, o Vice-Governador do Estado, Luís Paulo Conde (que é arquiteto), fez essa mesma proposta para conter o crescimento da Favela da Rocinha, contudo a grande mobilização da academia e da opinião pública fez com que não a pusesse em prática. O Vice-Governador havia sido Secretário de Urbanismo e, em seguida, Prefeito da cidade em meados da década de 1990.

Em 1991, havia cerca de 245.000 imóveis desocupados no Rio de Janeiro. Atualmente, estima-se que haja mais de 300.000 nessa mesma condição. Se olharmos atentamente, veremos ao longo das vias que cruzam as zonas industriais e portuária galpões, armazéns e prédios em sua maioria abandonados. Na área central da cidade a cena se repete em edifícios antigos e novos com grande quantidade de escritórios vazios. Isso acontece inclusive no núcleo central da cidade.

Afirma Vaz (1996) que “nas zonas residenciais, principalmente nos bairros mais modernos, onde predominam os edifícios de apartamentos, vemos apartamentos e por vezes edifícios inteiros vazios e fechados”. A autora acrescenta ainda, no que se refere ao enorme número de domicílios vazios, que esse número é tão alto que daria para ocupá-los com os habitantes das favelas. Segue Vaz (1996) afirmando que “há moradias para todos, e o Rio de Janeiro não precisaria ter nenhuma moradia em favela, nem tampouco, nenhuma favela! E no entanto, os dados sobre favelas continuam a ser utilizados como demonstrativos do déficit de habitações e da necessidade de construção de novas moradias”.

Evidentemente, os números apresentados pela autora – que acreditamos ter tido o objetivo apenas de provocação – são dados gerais, que incorporam imóveis particulares, de veraneio, além de imóveis públicos e de empresas que faliram ou que simplesmente abandoram os antigos prédios. Acreditamos que há realmente um número considerável de imóveis que poderiam ser convertidos em habitações populares, mas não seriam suficientes para dar conta de toda a população favelada do Rio de Janeiro.

Assusta-nos que, nos dias atuais, os governos acreditem que isolar em guetos parte específica da população – a classe pobre – por achá-la inconveniente ou perigosa vá resolver algo. O problema do crescimento do tráfico de drogas, do crescimento das favelas e da desordem urbana estão como estão porque houve descaso com a população mais pobre e porque a escolha política de caminhar junto às propostas neoliberais contribuíram para o crescimento da informalidade. A instalação de equipamentos, como infra-estrutura de água e esgoto, luz e energia, gás, coleta de lixo, serviço de correio, saúde e educação facilmente encontradas no asfalto não chegaram às favelas. Então, ainda é preciso pensar em políticas de construção e financiamento de habitações populares, mas tendo em conta que é preciso pensar que a maioria da população necessitada não tem sequer capacidade de endividamento, pois não tem como confirmar sua renda, são trabalhadores informais. É preciso levar serviços públicos de qualidade até essas localidades. E finalmente, é preciso respeitar essas pessoas que lá vivem e que são tão moradores da cidade do Rio de Janeiro como qualquer outro.


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Ficha bibliográfica

FERREIRA, Alvaro. Favelas no Rio de Janeiro: nascimento, expansão, remoção e, agora, exclusão através de muros. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XIV, nº 828, 25 de junio de 2009. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-828.htm>. [ISSN 1138-9796].


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