Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XV, nº 863, 10 de marzo de 2010

[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A FUNÇÃO OLÍMPICA DO PESQUISADOR DIANTE DO LIVRE PENSAR

 

Profa. Dra. Katia Rubio
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo


Nota do Conselho de Redação

A informação que se proporciona neste artigo da professora Katia Rubio nos parece especialmente preocupante e digno de atenção e de conhecimento público. Esta é a razão pela qual o publicamos como número extraordinário da Revista Biblio 3W.

A decisão do Comité Olímpico Brasileiro (COB) de controlar o uso das expressões olímpico, olimpíadas e outras derivações, nos parece inaceitável. Mais ainda por se tratar da proibição do uso de termos num livro de grande importância social, produzido por uma professora de uma universidade brasileira, que há anos vem trabalhando com esta questão. Mais grave ainda quando consideramos que esta professora realiza suas pesquizas com financiamento do próprio Estado Brasileiro, por meio de órgãos oficiais de fomento à investigação, como o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior  (Capes) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Por tudo isso, o Comitê de Redação da Revista Biblio 3W, se solidariza com a professora Katia e solicita que o COB reconsidere a sua decisão.



Nota del Consejo de Redacción

La información que se proporciona en este artículo de la profesora Katia Rubio nos parece especialmente preocupante y digna de atención y de conocimiento público.  Esta es la razón por la que lo publicamos como número extraordinario de la revista Biblio 3W.

La decisión del Comité Olímpico Brasileiro (COB) de controlar el uso de las expresiones olímpico, olimpíadas y otras derivaciones, nos parece inaceptable.  Tanto más por tratarse de la prohibición del uso de términos en un libro de gran importancia social, producido por una profesora de una universidad brasileña, que desde hace años viene trabajando con esa cuestión. Más grave aun cuando consideramos que esa profesora realiza sus investigaciones con financiación del propio Estado brasileño, por medio de órganos oficiales de fomento a la investigación, como el Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior  (Capes) y la Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Por todo esto, el Comité de Redacción da Revista Biblio 3W, se solidariza con la profesora Katia e solicita que el COB reconsidere su decisión.



A FUNÇÃO OLÍMPICA DO PESQUISADOR DIANTE DO LIVRE PENSAR

 

A função olímpica do pesquisador diante do livre pensar (Resumo)

Esse ensaio nasceu pela necessidade de reflexão sobre a ação que o Comitê Olímpico Brasileiro moveu contra mim em função do livro “Esporte, educação e valores olímpicos” e pela necessidade de socialização de todas as informações que essa situação desencadeou. Quando o mundo caminha para o livre trânsito de informação e conhecimento, a notícia sobre o recolhimento do livro, justificada pela posse do termo “olímpico” por parte do COB, gerou uma série de protestos e de discussões sobre os limites de utilização de palavras, temas, conceitos e símbolos, que colocam em risco a produção acadêmica de forma geral e dos temas olímpicos em específico.

Palavras chave: Censura, Olimpismo, Estudos Olímpicos, valores.


The Olympic function of researchers face of free thinking ( Abstract)

This essay was written because of the need for reflection on action that the Brazilian Olympic Committee filed against me on the basis of "Sport, education and Olympic values" and the need to socialize all the information that triggered this situation. When the world is moving to the free flow of information and knowledge to gather news about the book, justified by the possession of the word "Olympic" by the BOC, generated a series of protests and debate about the limits of the use of words, subjects, concepts and symbols that threaten the academic production in general and Olympic themes in particular.

Key words: Censorship, Olympism, Olympic Studies, values


Quem sou e o que penso

Qual o papel que nós, pesquisadores, ocupamos na sociedade contemporânea?

Essa questão invulgar é debatida em diferentes fóruns acadêmicos e ganha uma dimensão social quando o livre exercício do pensamento é colocado em xeque, em um momento histórico em que as marcas da restrição da liberdade estão relacionadas aos regimes autoritários que parecem fazer parte do passado. O que buscarei discutir nesse ensaio não são o autoritarismo e a repressão conhecidos dos Estados totalitários, mas um poder paralelo exercido por interesses econômicos legitimados por discursos e práticas seculares e sustentados por uma complexa rede de direito, que tornou uma prática pedagógica e social em uma mercadoria, usurpando-a da sociedade, seu público alvo original. Eu falo do Olimpismo, dos Jogos Olímpicos e dos Valores Olímpicos.

Isso se deu em função de uma ação extra-judicial movida pelo Comitê Olímpico Brasileiro no mês de janeiro de 2010 para o recolhimento de meu mais recente livro “Esporte, Educação e Valores Olímpicos”, obra dedicada à educação olímpica de crianças e jovens, por causa da palavra “olímpicos” e pela alusão ao símbolo olímpico, considerados propriedade do Comitê Olímpico Internacional, e em última instância dos Comitês Olímpicos Nacionais.

Desde que ingressei na Universidade de São Paulo como docente há 13 anos fui posta à prova em diferentes situações, como processos seletivos, concursos, bancas de mestrado, doutorado e livre docência, além da concorrência a editais de bolsas de pesquisa, onde sei que disputarei com meus pares verbas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa, e onde prevalece a excelência acadêmica. Essa é a razão de ser de nossa vida na universidade. Com isso quero dizer que estou acostumada a ser avaliada e julgada de forma quase que ininterrupta há muitos anos. E com isso fui capaz de desenvolver senso crítico apurado para julgar minhas possibilidades diante das muitas contendas que a vida nos impõe, além de evitar os conflitos desnecessários.

Entendo que aceitei esse desafio em parte porque fui criada e educada dentro do esporte. Embora não tenha sido atleta de nível olímpico, aprendi ao longo da minha vida esportiva que o sucesso é o resultado de um processo que envolve dedicação, disciplina, determinação, e que perder e ganhar faz parte do jogo. Aprendi cedo também que a ideologia que fundamenta essa ação não reside em um discurso neo-liberal individualista que transfere para o sujeito toda a responsabilidade de seu êxito ou fracasso e que nem toda prática esportiva é militarista, autoritária e cruel, embora haja quem tente transformar o esporte apenas “nisso”. Isso porque tive a felicidade de contar com excelentes professores e técnicos que apontavam a todo instante a fundamentação ética dessa atividade, sem necessariamente evocar essas palavras.


Algumas notas sobre o Olimpismo do século XIX e princípios de século XX

Quando me dediquei ao estudo, ensino e pesquisa da Psicologia do Esporte e dos Estudos Olímpicos, os fiz porque tinha a convicção da importância que esse fenômeno representa para a sociedade (Rubio, 2000; 2001; 2002.a.; 2002.b.; 2003.a.; 2003.b.; 2004; 2006; 2007.a.; 2007.b.; 2007.c.; 2008; 2009). A indicação dessas referências bibliográficas não se dá por motivos de vaidade, mas para que fique claro que minha dedicação ao tema se dá mesmo antes dos Jogos Olímpicos entrarem na pauta do mundo dos negócios ou dos oportunistas acadêmicos, em função da realização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Minha dissertação de mestrado em 1999, minha tese de doutorado em 2001 e minha tese de livre docência em 2005 discorreram sobre o tema a partir de diferentes perspectivas sobre esse fenômeno, partindo de um nível mais micro de análise, no mestrado, e chegando ao mais macro, na livre docência.

Essa tradição inventada chamada Olimpismo, que se tornou um dos principais fenômenos sociais contemporâneos, tem como principal ideólogo Pierre de Freddy, conhecido pelo título nobiliárquico de Barão de Coubertin. Educador, pensador e historiador, quando se empenhou na reorganização dos Jogos Olímpicos almejava revalorizar os aspectos pedagógicos do esporte mais do que assistir à conquista de marcas e quebra de recordes. Sua preocupação fundamental era valorizar a competição leal e sadia, o culto ao corpo e à atividade física.

Embora de origem aristocrática, Coubertin resistia à idéia e à prática de perpetuar um modelo político-social que havia levado a França a três monarquias, dois impérios e três repúblicas em menos de cem anos. Por essa razão definia-se como um republicano e, embora desacreditasse da política, desejava promover ações que levassem à transformação de uma sociedade que lhe parecia enferma. Nesse contexto começou a freqüentar a École Supérieure des Sciences Politiques, na qual teve contato com a pessoa e a obra de Hipólito Taine e com um núcleo anglófilo que buscava compreender a dinâmica cultural inglesa, capaz de proporcionar uma estabilidade social que faltava à França.

De acordo com Tavares (2003), duas características da sociedade inglesa interessavam a Coubertin e iriam influenciar sobremaneira sua obra e suas ações: uma delas era o ‘espírito de associação’ da sociedade inglesa, "corporificado nas associações privadas de patronato das mais diversas causas" (p. 40); o segundo foi o sistema educacional inglês, "inclusive as atividades esportivas nas escolas que Taine discute sublinhando seu valor como uma preparação para a vida numa sociedade democrática" (p. 40).

Mas, sobretudo as obras Notes sur l’Anglaterre de Hippolyte Taine e Tom Brown’s Schooldays de Thomas Hughes iriam provocar profunda identificação de Coubertin com o sistema educacional e esportivo ingleses. Hughes foi aluno de Thomas Arnold na escola de Rugby, marco da institucionalização do esporte nas escolas inglesas, e na obra Tom Brown’s relatou de forma romanesca e apaixonada o cotidiano e as preocupações de uma pedagogia pelo esporte. A fundamentação dessa pedagogia se assentava na responsabilidade e na hierarquia. A responsabilidade estava associada ao uso da liberdade e do cumprimento de normas e tradições que entre, outras ações, refletia-se no uso do tempo ocioso. A hierarquia demandava a compreensão e aceitação de uma ‘ordem naturalimposta pelos veteranos, por aqueles que primeiro chegaram à instituição impondo a perpetuação de uma cultura que deveria ser reproduzida pelos mais novos.

Embora Coubertin encontrasse em Taine o eco necessário para a reflexão sobre um modelo pedagógico, foi em Frédéric Le Play que a reforma social por meio de uma pedagogia esportiva encontraria seu porto seguro. Organizador da Société d’Économie Sociale e da Unions de la Paix Sociale, Le Play, sociólogo e filósofo da segunda metade do século XIX, exerceu grande influência sobre Coubertin, que iria afirmar em seus escritos no final da vida que "Le Play foi, juntamente com Arnold, o mestre a quem dedico minha gratidão no momento em que o fim se aproxima. A esses dois homens eu devo mais do que eu posso dizer" (Mangan, 1986:83).

Coubertin começou a se preocupar em desenvolver um modelo de reforma social por meio da educação e do esporte em uma perspectiva internacionalista, depois de obter pouco sucesso com programas de caráter educacional em seu país, a França. MacAloon (1984) aponta que, durante os idos de 1880, visitou inúmeras escolas inglesas, uma verdadeira peregrinação, em busca de referência para seu projeto esportivo-pedagógico, deslocando, entretanto esse micro sistema – a educação – do macro sistema – a sociedade – no qual ele estava inserido e situado. Não satisfeito com isso, em 1889, partiu para os Estados Unidos para conhecer de perto o modelo americano emergente e distinto do inglês, agora não mais na condição de observador, mas como comissário oficial do governo francês ligado ao Ministério da Educação. Em quatro meses visitou escolas e universidades de Chicago e New York até New Orleans e Flórida. Nessa oportunidade, Coubertin mostrou-se surpreso com os ‘sentimentos democráticos do catolicismo americano’, que separava Igreja e Estado e tolerava a liberdade de culto, fato menos comum na Inglaterra. Talvez essa questão tenha lhe chamado tanta atenção em virtude da resistência que os países de cultura puritana ofereciam à idéia dos Jogos Olímpicos, relacionando-os com uma festa pagã, extinta pelo imperador Teodósio, um católico fervoroso, a pedido do bispo de Milão, San Ambrosio, no ano de 394.

Foi, sobretudo, o renascimento do interesse pelos estudos clássicos que levou Pierre de Coubertin a tomar para si a tarefa de organizar uma instituição de caráter internacional com a finalidade de cuidar daquilo que seria uma atividade capaz de transformar a sociedade daquele momento: o esporte. Tavares (2003) aponta que o estabelecimento do Movimento Olímpico nos idos de 1894 coincide com a criação e proliferação de um amplo espectro de organizações de cunho internacionalista, cujo principal objetivo era a promoção da paz. Isso porque, embora durante o século XIX tivesse ocorrido um grande desenvolvimento das ciências humanas e da produção de idéias, os conflitos ainda eram resolvidos por meio da guerra. As organizações internacionalistas buscavam a resolução de conflitos, tanto de ordem interna como externa, pelo uso da razão e das leis, e não pelas armas. Dentro dessa lógica, a competição esportiva era uma forma racionalizada de conflito, sem o uso da violência.

Curioso observar que, em tempos de organização do Movimento Olímpico, o esporte se torna uma sublimação dos enfrentamentos, e na segunda metade do século XX, principalmente durante a Guerra Fira (Lico, 2007), ele será a principal metáfora de uma grande guerra que o mundo já não aceita como resolução de conflito.

O projeto de restauração dos Jogos Olímpicos como na Grécia Helênica foi apresentado em 25 de novembro de 1892, quando da ocasião do 5° aniversário da União das Sociedades Francesas de Esportes Atléticos, que teve como paraninfo o Barão de Coubertin. Naquela ocasião, ele manifestaria seu desejo e intenções com relação aos Jogos: "É preciso internacionalizar o esporte. É necessário organizar novos Jogos Olímpicos" (López, 1992:21). A tarefa audaciosa de promover uma competição esportiva de âmbito internacional, espelhada nos Jogos Olímpicos gregos, com caráter educativo e permanente, demandava a criação de uma instituição que desse o suporte humano e material para a realização de tal empreitada.

E assim, em junho de 1894, na Sorbonne, diante de uma platéia que reunia aproximadamente duas mil pessoas, das quais setenta e nove representavam sociedades esportivas e universidades de treze nações, teve início o congresso esportivo-cultural em Paris, no qual Coubertin apresentou a proposta de recriação dos Jogos Olímpicos. Essa é uma clara indicação da proximidade que o Movimento Olímpico tinha com a Universidade, desde a sua criação. Inicialmente, o Barão intentava realizar a primeira edição dos Jogos Olímpicos na capital francesa em 1900, como parte das comemorações da virada do século, que ocorreria em seis anos. Entretanto, diferentemente do que havia sugerido o proponente, a competição foi antecipada para o ano de 1896, para Atenas, como uma deferência aos criadores dos jogos originais.

Algumas particularidades marcaram a criação do Comitê Olímpico Internacional (COI) e sua dinâmica ao longo do século XX. Constituído por representantes de várias nacionalidades indicados pelos participantes do encontro da Sorbonne, o COI tinha como missão e intenção a organização dos Jogos Olímpicos bem como a normatização das modalidades disputadas, muitas delas recém-criadas e sem um corpo de regras universalizadas. A idéia inicial, e que posteriormente foi perpetuada, era da celebração de uma competição de caráter internacional, com realização quadrienal, cujos participantes estariam vinculados a representações nacionais.

Subjacente a essa proposta, lembra Tavares (2003:64), estava a idéia e o "princípio de  uma organização não ideológica, destinada a promover uma idéia, se organizar em torno de uma elite e servir a humanidade em regime de total independência de correntes políticas e de governos nacionais".

A proposta de criação da instituição nessas bases guardava preocupações com a isenção, autonomia e independência de um movimento que se propunha internacional, apolítico e apartidário. Como decorrência dessa perspectiva, Coubertin idealizou o Movimento Olímpico sustentado na força dos Comitês Olímpicos Nacionais, mas principalmente na cooptação e atuação dos membros do Comitê.

Vale lembrar que os membros do Comitê Olímpico Internacional são indicados, desde sua constituição, pelos membros participantes da instituição, ou seja, o regime que sustenta a organização olímpica não está pautado em uma concepção democrática, mas aristocrática e autocrática. Tavares (2003) enfatiza que Coubertin se baseou no princípio da representatividade reversa dos membros do COI como forma de garantir a independência de sua organização.

Embora reconhecida como defeituosa e limitada, seu idealizador acreditava que a dinâmica impressa na instituição garantiria sua estabilidade, e defendia essa posição com o seguinte argumento: "Nós não somos eleitos. Não somos auto-recrutados, e nossos mandatos são limitados. Existe qualquer outra coisa que pudesse irritar mais a opinião pública? O público tem visto de maneira crescente o princípio da eleição se expandir, gradualmente, colocando todas as instituições sob seu domínio. Em nosso caso, estamos infringindo essa regra geral, uma coisa difícil de tolerar, não é mesmo? Bem, nós temos muito prazer em tomar a responsabilidade por esta irregularidade e não estamos nem ao menos preocupados com ela." (Müller, 2000: 587-589)

A prática de indicação pelo próprio Comitê persiste até os dias atuais e seus membros são considerados embaixadores dos ideais olímpicos em seus respectivos países, e não delegados de suas nações junto ao Comitê, numa tentativa de destituir aqueles que lidam com o esporte de qualquer relação com manobras políticas (Sagrave, 1988). Isso vem representar um paradoxo uma vez que, embora não haja representação nacional dentro da estrutura burocrática do COI, só é permitido que um atleta participe de uma edição de Jogos Olímpicos desde que tenha os índices necessários, obtidos em situações em que ele tenha representado seu país em eventos internacionais. Ou seja, é vetada a participação independente de qualquer pessoa, mesmo habilidosa, sem que ela defenda as cores de uma bandeira nacional.

O receio de lidar com conflitos internos e o ceticismo com a democracia levou Coubertin a estruturar e organizar o COI como uma instituição unipartidária, em um modelo próximo ao oligárquico, tendo como documento norteador de sua prática a Carta Olímpica, elaborada pelo fundador do movimento olímpico em aproximadamente 1898 (Valente, 1999). Regidos desde então por princípios fundamentais contidos na Carta Olímpica, os Jogos Olímpicos pautaram-se por um conjunto de valores que são a referência fundamental do Movimento Olímpico até os dias atuais.

De acordo com Tavares (1999:15), os Jogos Olímpicos eram, para seu reinventor, a institucionalização de uma concepção de práticas de atividades físicas que "transformava o esporte em um empreendimento educativo, moral e social, destinado a produzir reflexos no plano dos indivíduos, das sociedades e das nações" – concepção que expressava a formação humanista e eclética de Coubertin. E, é justamente o ecletismo uma das chaves para compreender a lógica interna do corpus de valores do Olimpismo, uma vez que a definição contida nos Princípios Fundamentais da Carta Olímpica (Comitê Olímpico Internacional, 2001) é pouco precisa – ou, em última análise, uma filosofia em processo durante o tempo de vida de Coubertin – o que tem levado estudiosos do tema a discussões extensas e inconclusivas (Lenk, 1976; Sagrave, 1988; Grupe, 1992).

Vale ressaltar que o termo Olimpismo refere-se ao conjunto de valores pedagógicos e filosóficos do Movimento Olímpico, e não aos aspectos formais e/ou burocráticos que sustentam a instituição e o fenômeno olímpico.

A Carta Olímpica apresenta o conceito de Olimpismo no Princípio Fundamental nº 2 "enquanto uma filosofia de vida que exalta e combina em equilíbrio as qualidades do corpo, espírito e mente, combinando esporte com cultura e educação. O Olimpismo visa criar um estilo de vidabaseado no prazer encontrado no esforço, no valoreducacional do bom exemplo e no respeito aos princípios éticos fundamentais universais" (Comitê Olímpico Internacional, 2001: 8).

E apresenta como objetivos no Princípio n° 3 "Colocar em toda parte o esporte a serviço do desenvolvimento harmonioso do homem, na perspectiva de encorajar o estabelecimento de uma sociedade pacífica preocupada com a preservação da dignidade humana. Neste sentido o Movimento Olímpico se engaja em cooperação com outras organizações e dentro do limite dos seus meios, em ações para promover a paz (p. 8).

E no Princípio n° 6 "Contribuir para a construção de um mundo melhor e pacífico pela educação da juventude através do esporte praticado sem discriminação de qualquer tipo e no espírito olímpico, o qual requer entendimento mútuo com um espírito de amizade, solidariedade e fair play (p. 9).

Outros autores buscam definir o conceito de Olimpismo, contemplando as idéias originais de Coubertin e assimilando as transformações ocorridas tanto no esporte como na sociedade do século XX.

É o caso de Muller (2000:14) que entende o Olimpismo como "Uma espécie de excesso de esforço, de transcendência do homemenquanto uma unidadepsicossomática, os quais revelados pela e na prática do esporte e ativadopelos constantes esforços do indivíduo em seguir princípios estéticos e morais, são encontrados na consciência, para integrar todos os valores humanos na educação do corpo e da mente."

As modernas Olimpíadas, ou seja, o período em que ocorrem as edições dos Jogos Olímpicos, dividem-se em Jogos de inverno e de verão, ocorrem de quatro em quatro anos, como na Antigüidade, alternando-se a cada dois anos entre os Jogos de Verão e os de Inverno. Diferentemente da dificuldade para definição da sede ocorrida nas edições iniciais, na atualidade, a realização das competições é disputada por grandes metrópoles dos cinco continentes, em um processo que demanda alguns anos.

O crescimento da importância do evento pode ser observado nos números entre Grécia, em 1896, e Pequim, em 2008. As modalidades saltaram de 9 para 33. Os países participantes passaram de 13 para 204. De 250 atletas homens, na Grécia, o total entre mulheres e homens em Pequim ficou em torno de 10 mil (isso porque as autoridades chinesas não informaram ao COI o número exato de participantes, conforme informação colhida junto ao site da entidade – www.olympic.org). A evolução dos números é um bom indicador de que, na atualidade, os Jogos Olímpicos adquiriram a importância e o prestígio de que desfrutavam na Grécia Helênica, embora as razões para isso sejam bastante distintas.

Para os gregos, os Jogos representavam um momento de trégua nas guerras e conflitos de qualquer ordem para que competidores e espectadores pudessem chegar a Olímpia. Ao longo desses cento e quatro anos de competições, os Jogos Olímpicos da Era Moderna sofreram interrupção por causa das duas Grandes Guerras e boicotes promovidos por Estados Unidos e União Soviética, na década de 1980, indicando que o Movimento Olímpico não está alheio às questões sociais e políticas do mundo contemporâneo, como desejava Pierre de Coubertin.


Do Olimpismo moderno ao Olimpismo pós-moderno

Esse preâmbulo sobre o Olimpismo e o Movimento Olímpico foi necessário para situar a questão que me leva à reflexão que ora faço. A quem pertence o Olimpismo e seu principal produto de mercado, os Jogos Olímpicos?

Diversos autores de diferentes origens têm discutido a alteração dos rumos do Olimpismo e do Movimento Olímpico, principalmente na segunda metade do século XX (Simons & Jennings, 1992; Bourdieu, 1993; Brohm, 1993; Carrington, Ben, McDonald, Hargreaves, 2005; Guttmann, 1978, 1992; Jarvie, 2006; MacClancy, 1996; Maguire, 2005; Mandell, 1986; Walsh & Giulianotti, 2007). Isso porque não só os Estados Nacionais utilizaram os Jogos Olímpicos como palco para as dramatizações da Guerra Fria, como, a partir da década de 1980, transformaram os Jogos Olímpicos em um dos produtos mais rentáveis do planeta, retirando-os do plano do idealismo utópico desejado por Pierre de Coubertin e colocando-os dentro da lógica de mercado que rege quase todas relações no mundo contemporâneo (Beamish & Ritchi, 2006; Coackley, 2006; Coackley & Dunning, 2004; Morgan, 2006; Roche,1998). Nesse sentido, todo cuidado é pouco no que diz respeito ao trato com esse “produto” que se nos apresenta.

Eis que então surge a questão que não quer calar. E o que é nossa atividade de pesquisadores nas ciências humanas, senão o apuro da sensibilidade para captar aquilo que se apresenta diante de nós e buscar as razões e motivações, explícitas e implícitas, para que elas ocorram?

O estudo do fenômeno olímpico me inspira de diferentes formas, seja por seus aspectos macro, que envolvem a história, bem como as questões sociais e filosóficas, até seu âmbito mais específico, relacionado basicamente à psicodinâmica do atleta e das equipes esportivas. Entendo que reside na compreensão desse continun – sujeito-sociedade – o sucesso de uma intervenção que não é apenas clínica, mas essencialmente social.

Há anos trabalho com o tema olímpico, seja na realização de projetos de educação olímpica em consonância com o pensamento de Pierre de Coubertin, seja buscando a origem de questões já naturalizadas tanto no plano das idéias como das ações que ocorrem dentro desse ambiente. Pensei que a realização dos Jogos Olímpicos no Brasil fosse o momento oportuno e privilegiado para que essas ações se multiplicassem no sentido de promover o conhecimento e a aplicação de idéias e valores olímpicos, que já ocorrem dentro de uma perspectiva de educação não-formal e informal. Nós, da área acadêmica, temos essa estranha mania de ter fé na vida e acreditar em coisas improváveis ou mesmo impossíveis.

A ação extra-judicial que o Comitê Olímpico Brasileiro moveu contra mim para que o livro Esporte, Educação e Valore Olímpicos fosse recolhido colocou a mim e a muitos colegas acadêmicos e não-acadêmicos, do Brasil e do mundo, em estado de alerta para o que já vem acontecendo com aqueles que ousam tocar em algo protegido e para o que pode ocorrer em um futuro breve. Há exemplos na mitologia sobre o que ocorreu com aqueles que ousaram tocar o interdito. O mais conhecido e interpretado é sem dúvida o caso de Prometeu, que ousou roubar o fogo sagrado de Zeus para compartilhá-lo com os homens. Uma das interpretações possíveis a esse mito é que, dessa forma, Prometeu pretendia levar aos mortais um pouco do conhecimento sagrado dos imortais. O preço por tal ousadia foi permanecer por séculos agrilhoado a um monte no Cáucaso, uma vez que sua imortalidade o impedia de perecer, até que Kiron, o mestre dos heróis, convencesse Zeus de trocar o seu próprio sofrimento pelo sofrimento de Prometeu, libertando-o de seu infortúnio.

Podemos nós, pesquisadores, aceitar que o fogo do conhecimento fique restrito àqueles que, de alguma forma, pertencem a esse círculo sagrado? A resposta a essa pergunta foi dada ao Comitê Olímpico Brasileiro em exata uma semana: Não. Colegas de todo o mundo, de forma individual ou institucional, se posicionaram, enviando ao COB moções manifestando indignação diante do cerceamento da liberdade de pesquisa e publicação, lembrando que a língua é um patrimônio de uma nação, de um povo, e diferente de marcas, não pode ser registrada e apossada, sendo regida por normas próprias alheias a sua história e uso. As palavras olimpíadas, olímpico, Jogos Olímpicos e todas as suas derivações pertencem (nessa forma) à língua portuguesa e assim sendo devem circular na produção de todos aqueles que se referem ao fenômeno Olímpico.

Confesso o terror vivido ao longo dessa infindável semana. Lembrei de tempos sombrios, quando necessitávamos subterfúgios para nos referir a fatos e idéias inomináveis, entendidos assim pelos detentores do poder. Cheguei a imaginar que havíamos voltado aos tempos da Inquisição, quando apenas os iniciados poderiam fazer parte dos mistérios e os livros indexados deveriam ser expurgados, do nazismo que também fez suas escolhas de obras indexadas e termos permitidos, e da ditadura militar, que impôs o silêncio a muitos por algumas décadas.

Nos comunicados que dirigi aos colegas de todo o mundo, fiz uso da expressão de Luther King "I have a dream". Isso porque meu sonho continua vinculado ao país que tenho e ao país que desejo ter, entendendo que o esporte pode contribuir para essa realização. Publicar livros é dever de ofício de pesquisadores, principalmente das ciências humanas, e esse último foi mais um entre os muitos que ainda pretendo publicar sobre o tema olímpico. Optei por nomear o inominável e enfrentar a ira dos deuses, entendendo que nada de errado havia nessa atitude, entendida da mesma maneira pelas centenas de colegas que se manifestaram.

Fica aqui o meu agradecimento a todos aqueles que estudam, pesquisam, ensinam e publicam sobre Olimpismo, Educação olímpica, Valores olímpicos, Ideais olímpicos, Imaginário olímpico, os deuses olímpicos não atletas, os heróis olímpicos de hoje e da Antiguidade, e àqueles que pertencem ao universo da produção de conhecimento de uma forma geral, por frearem uma ação em forma de censura para que isso não se abatesse sobre nossas produções, para que prevalecesse a liberdade de pesquisa e de expressão e para que o conhecimento pudesse chegar a toda a sociedade, saindo dos círculos restritos da universidade e contribuindo para uma sociedade mais justa e um país melhor.


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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]



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Ficha bibliográfica:

RUBIO, Katia. A função olímpica do pesquisador diante do livre pensar. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 863, 10 de marzo de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-863.htm>. [ISSN 1138-9796].


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