Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XV, nº 864, 15 de marzo de 2010

[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

UM POUCO DO BRASIL ATRAVÉS DE RITMOS E SABORES: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA

 

Maíra Suertegaray Rossato
Mestre em Geociências pela UFRGS e professora do Colégio de Aplicação UFRGS
msuerte@terra.com.br

Dariane Raifur Rossi
Mestre em Geografia pela UFRGS e Professora do Colégio de Aplicação UFRGS
dariane.rossi@gmail.com


Um pouco do Brasil através de ritmos e sabores: uma proposta para o ensino de geografia (Resumo)

O presente trabalho visa relatar as atividades desenvolvidas pelas autoras na sua prática docente no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp). Serão relatadas as atividades feitas na oficina “Aprendendo Geografia pelos sabores do Brasil”, na qual os alunos do Projeto Amora preparavam e degustavam receitas, expressando suas percepções sobre os aromas e os sabores que compõem ingredientes e pratos da culinária brasileira. A prática que integra a culinária e o trabalho com músicas que retratam aspectos culturais brasileiros despertou a curiosidade e aguçou os sentidos dos alunos. O desenvolvimento metodológico para a construção desta oficina seguiu três etapas: a) atividade de audição e interpretação de música regional; b) preparo e degustação da receita do dia; e c) elaboração do jogo das regiões. Os alunos que participaram da oficina demonstraram muito dinamismo, participação e interesse na realização do trabalho. O entendimento dos conteúdos pelos alunos ficou evidente a partir dos textos construídos em sala de aula, das apresentações orais de tarefas ou de curiosidades regionais, das interpretações musicais. A oficina proporcionou a união do lúdico com a construção conceitual dos saberes. O sucesso das atividades esteve balizado pela forma de abordagem da temática, que apresenta questões da nossa diversidade regional que muitas vezes perpassam ou não obedecem às convenções geopolíticas, mas que devem ser respeitadas e preservadas por formar a cultura brasileira e então fazer parte do cotidiano dos alunos.

Palavras-chave: Geografia Cultural, Geografia Regional, Ensino de Geografia, culinária brasileira, música


Un poco de Brasil a través de sus ritmos y sabores: una propuesta para la enseñanza de geografía (Resumen)

El objetivo de este trabajo es presentar las actividades desarrolladas por las autoras en su práctica docente en el Colegio de Aplicação de la Universidad Federal de Río Grande do Sul (CAp). Se relatarán las actividades hechas en el taller “Aprendiendo Geografía por los sabores de Brasil”, en las que los alumnos del Proyecto Amora preparaban y degustaban recetas, expresando sus percepciones sobre los aromas y los sabores que componen ingredientes y platillos de la cocina brasileña. La práctica que integra la cocina y el trabajo con canciones que retratan aspectos culturales brasileños despertó la curiosidad e estimuló los sentidos de los alumnos. El desarrollo metodológico para la construcción de este taller siguió tres etapas: a) actividad de audición e interpretación de una canción regional; b) preparación y degustación de la receta del día; y c) elaboración del juego de las regiones. Los alumnos que participaron en el taller demostraron mucho dinamismo, participación e interés en la realización del trabajo. El entendimiento de los contenidos por los alumnos se hizo evidente a partir de los textos construidos en clase, de las exposiciones orales de tareas o de curiosidades regionales, y de las interpretaciones musicales. El taller proporcionó la unión de lo lúdico con la construcción conceptual de los saberes. El éxito de las actividades se marcó por la forma de abordaje de la temática, que presenta cuestiones de nuestra diversidad regional que muchas veces sobrepasan o no obedecen a las convenciones geopolíticas, pero que se deben respetar y preservar puesto que conforman la cultura brasileña y, por lo tanto, forman parte del cotidiano de los alumnos.

Palabras-clave: Geografía Cultural, Geografía Regional, enseñanza de Geografía, culinaria brasileña, música


A taste of brazil through rythms and flavours (Abstract)

The aim of this paper is to describe the activities developed by the authors in their teaching practice at Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS). The activities were developed in the workshop entitled “Learning Geography through tastes around Brazil” in which students from Projeto Amora prepared and tried recipes from Brazilian cooking and expressed their perceptions on the flavors and aroma from the dishes. This practice integrating regional cooking tasks and the learning of songs proved to be very stimulating for the students sharpening their senses in a thoroughly way. The methodology for this workshop followed three steps: a) listening and learning to sing a regional song; b) making and trying the dish of the day; and c) elaboration of the game of the regions. The students involved in this project demonstrated a lot of interest in participating and developing the tasks. The assimilation of the contents by the students became explicit by the analyses of the texts written in class, by the oral presentations of tasks and regional curiosities and the singing of the regional songs. The workshop allowed the connection between knowledge building and learning through a playful way. The activities were successful due to the way that the themes were approached, presenting our regional diversities that many times do not follow the geopolitical conventions established, but should be respected and preserved for being part of our Brazilian culture by making part of students' routines.

Key words: Cultural Geography, Regional Geography, Teaching of Geography, Brazilian cooking, songs


 “A gente deve sair à rua como quem foge de casa.
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.” (Mário Quintana)


O ensino atual é, ainda, predominantemente voltado para o repasse de conhecimento, através de um professor que, a rigor, nada tem a repassar, e não ser pela imitação. Von Zuben (2001), em artigo que trata do pensar reflexivo como tarefa educacional, traz trechos escritos por Anísio Teixeira em 1934, quando da primeira edição do livro Pequena Introdução à Filosofia da Educação. Nesta ocasião, fazia a seguinte crítica às escolas

As escolas passam, com efeito, por transformações alarmantes. A velha autoridade dos mestres já não é a mesma, se é que existe ainda. A própria autoridade dos livros começa a ser posta em dúvida... diante de coisa alguma pára a coragem corrosiva e insolente desses pensamentos adolescentes e vivazes (Teixeira, 1971, p.18).

A escola fundada nos “programas de lições previamente traçadas” e no regime do “aprende ou serás castigado” ignorava, antes do mais, a complexidade do ato educativo e tudo que podia realmente conseguir eram crianças hábeis no jogo da dissimulação, que procuravam cumprir - para evitar a pena ou ganhar o prêmio - com o mínimo de responsabilidade voluntária a tarefa obrigatória que lhes marcavam os mestres (Ibidem, p. 21).

Nem existe, ali, a vida no seu sentido normal de um conjunto de atividades aceitas, em que nos empenhamos com sentido de responsabilidade e de prazer, nem ali existem, propriamente, saber e ciência, por isso mesmo se perverteu em um simples esforço de repetir, pela palavra ou pela escrita, o que outros formularam em livros (Ibidem, p. 70).

Atuais, estas afirmações podem ser aplicadas para tratar das questões que ainda afligem a educação no Brasil. As teorias mais atuais em educação apontam com insistência para o respeito aos saberes dos alunos, ao seu conhecimento empírico, à sua experiência anterior. A escola atual precisa significar os temas a serem trabalhados a partir vivências, de experimentos, de problemas que instiguem a curiosidade em sala de aula (Freire, 1997; Moran, 2006).

Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas soluções e exige um posicionamento rápido e adequado ao cenário de transformações imposto pelas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas com as quais nos deparamos nas últimas décadas. Este cenário permeia todas as esferas de nossa vida pessoal, mobilizando continuamente nossa reflexão acerca dos valores, atitudes e conhecimentos que pautam a vida em sociedade.

As palavras de Moran (2006, p. 22) sintetizam esta nova visão de educação, uma educação inovadora:

- Aprendemos melhor quando vivenciamos, experimentamos, sentimos. Aprendemos quando relacionamos, estabelecemos vínculos, laços entre o que estava solto, caótico, disperso, integrando-o em um novo contexto, dando-lhe significado, encontrando um novo sentido.
- Aprendemos quando descobrimos novas dimensões de significação que antes se nos escapavam, quando vamos ampliando o círculo de compreensão do que nos rodeia, quando como numa cebola, vamos descascando novas camadas que antes permaneciam ocultas à nossa percepção, o que nos faz perceber de uma outra forma. Aprendemos mais quando estabelecemos pontes entre a reflexão e a ação, entre a experiência e a conceituação, entre a teoria e a prática; quando ambas se alimentam mutuamente.
- Aprendemos quando equilibramos e integramos o sensorial, o racional, o emocional, o ético, o pessoal e o social.
- Aprendemos pelo prazer, porque gostamos de um assunto, de uma mídia, de uma pessoa. O jogo, o ambiente agradável, o estímulo positivo podem facilitar a aprendizagem.
- Aprendemos mais, quando conseguimos juntar todos os fatores: temos interesse, motivação clara; desenvolvemos hábitos que facilitam o processo de aprendizagem; e sentimos prazer no que estudamos e na forma de fazê-lo.

Esta visão de educação, contudo, não é tão atual assim, muito pressupostos apontados hoje como essenciais para boas práticas educativas remontam da Escola Nova, movimento que defende a educação como o elemento verdadeiramente eficaz para a construção de uma sociedade democrática, pois leva em consideração as diversidades, respeitando a individualidade do sujeito, aptos a refletir sobre a sociedade e capaz de inserir-se nessa sociedade.

Segundo Anísio Teixeira (1956), defensor deste movimento no Brasil, a escola deve ser agente da contínua transformação e reconstrução social, colaboradora da constante reflexão e revisão social frente à dinâmica e mobilidade de uma sociedade democrática " o conceito social de educação significa que, cuide a escola de interesses vocacionais ou interesses especiais de qualquer sorte, ela não será educativa se não utilizar esses interesses como meios para a participação em todos os interesses da sociedade... Cultura ou utilitarismo serão ideais educativos quando constituírem processo para uma plena e generosa participação na vida social" (Idem, 1930, p. 88-89).

Na Geografia esta premissa já se faz presente e nas mudanças que a escola vem passando nos últimos tempos, com vistas à reformulação dos métodos educacionais, os materiais didáticos são de fundamental importância no trabalho do professor. Os materiais didáticos contribuem como instrumentos que possibilitam o planejamento de boas situações didáticas, buscando promover a ampliação dos conhecimentos dos alunos, permitindo-os desenvolver conceitos, problematizar questões e articular conteúdos (Rossi & Rossato, 2007).

A partir da necessidade de oferecer um novo enfoque aos estudos de Geografia Regional do Brasil, pensou-se uma proposta de trabalho que favorecesse um olhar diferenciado sobre a cultura brasileira através da prática da culinária, da audição e da interpretação músicas. A oficina “Aprendendo Geografia pelos sabores do Brasil” foi desenvolvida pelas professoras de Geografia Dariane Raifur Rossi e Maíra Suertegaray Rossato no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp).

O ensino de Geografia pelos ritmos e sabores é uma contribuição para o estudo regional já que valoriza uma leitura crítica dos lugares e suas diferentes culturas. Insere-se na perspectiva da Geografia Cultural pós anos 1970, quando começou-se a esboçar um processo de recuperação da abordagem cultural na geografia.

Claval (2002, p.37), destaca que " O enfoque cultural se recusa a considerar a natureza, a sociedade, a cultura, o espaço como realidades prontas, dados que imporiam aos homens como do exterior. Julga que o mundo é mais complexo. Para mostrá-lo, parte dos indivíduos e se debruça nas suas experiências. O que lhe importa é compreender o sentido que as pessoas dão a sua existência. Na perspectiva da Geografia Cultural o seu objetivo é compreender como as pessoas vivem sobre a terra e experienciam os seus espaços de vivência em diferentes partes do planeta".

Esta concepção de enfoque cultural vem ao encontro do que Zanatta (2008, p. 254) aborda sobre seus estudos de diversidade cultural.

Não se tratava mais de estudar a diversidade cultural com base nos seus conteúdos materiais, mas de admitir que a cultura está intimamente ligada ao sistema de representações, de significados, de valores que criam uma identidade que se manifesta mediante construções compartilhadas socialmente e expressas espacialmente, ou seja, de admitir que a cultura no seu sentido antropológico mais amplo representa todo o modo de vida de uma sociedade, o que não inclui somente a produção de objetos materiais, mas um sistema cultural (valores morais, éticos, hábitos e significados expressos nas práticas sociais), um sistema simbólico (mitos e ritos unificadores) e um sistema imaginário, que serve de liame aos dois últimos, constituindo-se no locus  da construção da identidade espacial de um grupo.

Assim sendo, segundo Corrêa (2003, p.13), o conceito de cultura [...] é liberado da visão supra-orgânica e do culturalismo, na qual a cultura é vista segundo o senso comum e dotada de poder explicativo. É vacinado também contra a visão estruturalista, na qual a cultura faria parte da “superestrutura”, sendo determinada pela “base”. A cultura é vista como um reflexo, uma mediação e uma condição social. Não tem poder explicativo, ao contrário, necessita ser explicada.

Nesse contexto, muitas perspectivas de análise têm sido propostas para compreender as intensas transformações do espaço geográfico, bem como para orientar o trabalho de educação geográfica escolar necessário à formação para a cidadania critica. Dentre elas, uma perspectiva de cunho crítico que, a partir da década de 1990, adquiriu significativa relevância, devido sua consonância com o movimento pós-moderno, e a abordagem cultural. Destaca-se, nessa abordagem, o interesse pela investigação de uma pluralidade de temas relacionados à cultura popular, ao folclore, à etnia, ao gênero, à religião, a paisagem, assim como por diferentes manifestações artísticas como a música, a literatura e a poesia (Zanata, 2008). Conforme McDowell (1996, p.159):

A geografia cultural é atualmente uma das mais excitantes áreas de trabalho geográfico. Abrangendo desde as análises de objetos do cotidiano, representação da natureza na arte e em filmes até estudos do significado das paisagens e a construção social de identidades baseadas em lugares, ela cobre numerosas questões. Seu foco inclui a investigação da cultura material, costumes sociais e significados simbólicos, abordados a partir de uma série de perspectivas teóricas.

Corrêa (2003, p.51) coloca que a Geografia Cultural "não se define por temáticas específicas e sim pelas suas abordagens. Para se empreender análise geográfica acerca da dinâmica sócio-cultural do Brasil, por exemplo, pode-se estudar as festividades, as atividades turísticas, as danças, as músicas, as obras literárias, entre outras. As abordagens da Geografia Cultural permitem uma leitura nas escalas global, nacional, regional e local".

Precursor da abordagem cultural, Sauer (1963) entendia que a tarefa da Geografia é concebida como o estabelecimento de um sistema crítico que inclua a fenomenologia da paisagem, de modo a captar todos os significados e cores da variada cena terrestre. Para este autor " Existe um meio estritamente geográfico de se pensar a cultura, qual seja, como a marca dos trabalhos do homem sobre a área. Podemos pensar as pessoas associadas a uma área ou sobre uma área, como podemos pensá-las como grupos associados por linhagem ou tradição. Nos primeiro caso estamos pensando a cultura como uma expressão geográfica, composta por formas que são parte da fenomenologia geográfica" (Sauer, 1963, p.326).

A culinária representa um dos aspectos mais saborosos de uma cultura, além de ser um possível recorte para análise da História e da Geografia de um lugar ou região. Em virtude dos objetivos propostos nossa ênfase será dada ao conceito de região.

Santos (1994, p. 46) afirma que “estudar uma região significa penetrar num mar de relações, formas, funções, organizações, estruturas etc., com seus mais distintos níveis de interação e contradição”.

Entendemos que o conceito de região é bastante amplo para ser conceituado com algo fechado e sem mobilidade. Dessa forma, adotamos a região como concebida por Haesbaert apud Rua (1993, p. 230) “um espaço (não institucionalizado como Estado Nação) de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco regional de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução”.

Esta concepção permite perceber a região como inserida na totalidade social, reconhecendo-a não só a partir dos movimentos regionalistas, de base político-cultural, mas também na relação dialética espaço/sociedade pela qual se estabelece a identidade regional (Rua, 1993). Deste conceito destacamos o aspecto cultural, propriamente evidenciado na proposta aqui referida, que indica a região como “expressão real do regionalismo que se materializa numa parcela do espaço e que constitui a forma como uma parte do espaço é percebida/vivida pelos seus habitantes” (Ibidem, p. 231).

Assim, partir desta discussão este conceito foi adaptado para uma melhor compreensão por parte dos alunos e sintetizado da seguinte forma: região é uma parte de um continente, país ou estado onde as pessoas que nela vivem desenvolveram costumes e hábitos comuns, produzindo sua culinária e sua música.

Com o estudo de sua cozinha típica, os alunos poderão perceber e compreender as alterações que os pratos sofrem ao longo do tempo, a descoberta de invenções humanas, a influência que os povos recebem de outros povos. Além disso, a culinária possui um aspecto afetivo pelo fato de os aromas e os sabores das comidas invocarem em nós lembranças e sentimentos agradáveis. A função social da refeição é importante também porque as pessoas não comem somente para se alimentar, mas para vivenciar com parentes e amigos um prazer compartilhado, um modo de ser e de viver (TVE Brasil, 2008).

O uso da música paralelamente ao trabalho com os alimentos foi extremamente rico, uma vez que a música está na nossa vida diária, expressando sentimentos sobre o nosso espaço de vivência. A música é uma representação cultural, permite o conhecimento do cotidiano dos mais diferentes espaços, das sociedades e de interações sociais nele contidas. A música enquanto criação social pode ser vista sob a ótica da espacialidade, atributo inerente a toda ação humana. São representações a respeito das paisagens, regiões, lugares e territórios, as quais são simultaneamente reflexos, meios e condições sociais. (Correa & Rosendahl, 2009). O trânsito pedagógico que ela oferece é de uma aprendizagem por reestruturação, ou seja, uma releitura de concepções que temos da realidade. Possui uma linguagem acessível, pois desperta a sensibilidade e trabalha com diferentes inteligências (Rossi & Rossato, 2007).

Ao utilizarmos a música e a culinária abrimos cominho para o trabalho com conceito de regionalidade, aqui compreendida como o conjunto de elementos econômicos, históricos e da população local que distingue e diferencia uma região da outra.

Gil, Klink e Santos (2004) entendem que regionalidade “constitui uma espécie de consciência coletiva que une os habitantes de uma determinada região em torno de sua cultura, sentimentos e problemas, tornando possível um esforço solidário pelo seu desenvolvimento.”

A prática que integra a culinária e o trabalho com músicas que retratam aspectos culturais brasileiros desperta a curiosidade e aguça os sentidos dos alunos. Por outro lado, a construção de uma proposta pedagógica amparada na experimentação sensorial permite ao professor o desenvolvimento de um instrumental referencial maior, capaz de favorecê-lo no desenvolvimento de seu processo pedagógico e na sistematização dos conteúdos, valorização das identidades regionais e informações de forma mais criativa.


Contextualizando o CAp, o Projeto Amora e a proposta de oficinas

O Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS) foi fundado em 14 de abril de 1954 com a prioridade inicial de servir de câmbio de estágio para os alunos da licenciatura, de acordo com o Decreto de Lei nº. 9053 de 12 de março de 1946.

Do ano de sua fundação até o ano de 1996 o CAp se localizava no prédio da Faculdade de Educação (FACED) no Campus central da Universidade. A transferência do CAp para o Campus do Vale ocorreu em 1996, onde possui suas instalações num espaço bem amplo e com melhor infra-estrutura.

Atualmente, o quadro discente é composto por 658 alunos, sendo 58 alunos pertencentes ao EJA (Ensino de Jovens e Adultos), e o quadro docente é composto por 90 professores, incluindo os afastados para qualificação. O Colégio de Aplicação conta, atualmente, com 22 funcionários do quadro da UFRGS e 16 funcionários terceirizados (incluindo funcionários da limpeza, cozinheiros do refeitório, guardas, eletricista, entre outros).

Os alunos ingressam no CAp por intermédio de um sorteio para séries correspondentes a cada final de ano letivo. Estes alunos são oriundos das mais diversas realidades socioeconômicas e também de outros municípios vizinhos. Essa variedade de realidades faz com que as diferentes culturas sejam percebidas claramente, o que favorece o enriquecimento das práticas vivenciadas pelos alunos.

O Projeto Amora é uma proposta curricular desenvolvida nas 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental do CAp e procura construir conhecimento a partir da inter-relação entre as múltiplas facetas das diferentes áreas do conhecimento, o que propicia a quem o constrói, uma visão ampla e interacional da realidade, também muito apreciada por integrar criativamente, afeto e cognição. Desta forma, o currículo do Projeto Amora, pelas suas características de flexibilidade, possibilita a inclusão de metodologias e recursos pedagógicos diversos, favorecendo processos comunicativos, interativos e cooperativos ligados às novas tecnologias de informação e comunicação.

As oficinas fazem parte das atividades do Projeto Amora e têm como objetivo desenvolver habilidades de pensamento. Estas oficinas são formadas por grupos de, em média, 15 a 20 alunos, com diferentes estilos cognitivos e tempos de aprendizagem geralmente indicados pelo grupo de professores. Nela estes alunos desenvolvem atividades específicas, tais como produção textual, histórias em quadrinhos, culinária, jogos pedagógicos, etc.

As oficinas ocorrem em ciclos de planejamento – ação, observação e reflexão –, o que oportuniza aos participantes metodizar sobre as práticas, bem como compreender as relações coletadas através de dados, de apreciação e de discurso desenvolvido. Dessa forma, elabora-se uma inter-relação continuada e mútua entre professores e alunos, a fim de distinguir as ocasiões em que pode abarcar o construir e o ponderar o que está sendo estabelecido coletivamente.

De acordo com Vigotsky (1984), este tipo de abordagem favorece a ampliação da zona de desenvolvimento proximal, na medida em que é constituído um espaço de interação social como elemento determinante para o desenvolvimento e ampliação das potencialidades dos sujeitos.

Na criação das ofertas é possível, também, o trabalho interdisciplinar entre os professores da escola, o que enriquece ainda mais a proposta, na medida em que fomenta a troca entre colegas com experiências distintas e dá ao aluno múltiplas possibilidades de olhar sobre determinadas questões.

Nesta modalidade de trabalho, o aluno opta pela disciplina que deseja trabalhar; são feitas duas escolhas durante o ano letivo e, por isso, o desenrolar da disciplina acontece no período de um semestre. Por serem disciplinas de livre escolha, os grupos formados normalmente são pequenos e mistos, englobando alunos de 5ª e 6ª série, o que permite um trabalho mais próximo e mais focado para as necessidades e interesses do grupo.


Caracterização da oficina proposta

A oficina no nosso entendimento proporciona um espaço para a vivência, a reflexão e a construção do conhecimento porque se respalda em princípios pedagógicos tais como a interdisciplinaridade, construção de competências e a socialização do conhecimento, pois seus participantes interagem durante todo o seu processo de aprendizado.

Para Perrenoud (2000), as competências não podem ser entendidas de forma partilhada e sim por diferentes ângulos: pode-se dizer que uma competência permite mobilizar conhecimentos a fim de se enfrentar uma determinada situação. A competência não é o uso estático de regrinhas aprendidas, mas uma capacidade de lançar mão dos mais variados recursos, de forma criativa e inovadora, no momento e do modo necessário. A competência abarca, portanto, um conjunto de esquemas, em um sentido muito próprio. Seguindo a concepção piagetiana, o esquema é uma estrutura invariante de uma operação ou de uma ação. Não está, entretanto, condenado a uma repetição idêntica, mas pode sofrer acomodações. Uma competência orquestra um conjunto de esquemas. Envolve diversos esquemas de percepção, pensamento, avaliação e ação.

Em síntese, a competência implica uma mobilização dos conhecimentos e esquemas que o aluno possui para desenvolver respostas inéditas, criativas, eficazes para problemas novos que surgem no seu cotidiano.

Considerando que esta oficina estava amparada em princípios sólidos de uma prática pedagógica engajada na formação social dos alunos e preocupava-se com a construção de conhecimentos significativos para os estudantes, destacamos que esta proposta estava inserida nos conteúdos indicados nos planos de ensino das séries nas quais foi aplicada. Foi, portanto, uma proposta vinculada aos temas trabalhados ao longo do ano letivo e, por isso, adquiriu maior peso, no sentido de construir conhecimentos relevantes para a sequencia da escolaridade do aluno, contudo, de forma menos tradicional, porém efetiva.

A oficina proposta para os alunos tinha os seguintes objetivos:

·        construir a noção de cultura enquanto expressão dos modos de vida;
·        conhecer a formação do Brasil a partir das diferenças regionais culturais expressas pela culinária, associada à leitura de músicas dos mais variados gêneros;
·       
comparar aspectos da História e da Geografia das regiões brasileiras;
·        valorizar e preservar a pluralidade cultural que caracteriza nosso país;
·        desenvolver autonomia frente às atividades pedagógicas propostas;
·        conscientizar sobre  a importância de ser responsável quanto às suas obrigações frente às atividades propostas;
·        relativizar e refletir conceitos e informações, criticamente, trabalhados em sala de aula; e
·        interpretar diversas textualidades (músicas, textos, imagens e mapas).

Os objetivos propostos na oficina abrangiam o estudo dos seguintes conteúdos, como já dito, inseridos no plano de ensino das séries:

·        a formação territorial brasileira;
·        o povoamento do Brasil;
·        a cultura brasileira a partir da alimentação e musicalidade;
·        a composição étnica do Brasil e suas diferentes contribuições; e
·        as regiões brasileiras, suas paisagens e características.


A oficina “Aprendendo Geografia pelos sabores do Brasil” ocorreu no segundo semestre de 2007 (14/09 até 14/12), no Colégio de Aplicação, utilizando dois períodos nas sextas-feiras no turno da manhã, durante dez semanas. Os espaços utilizados para realização da oficina foram a cozinha, cedida pelas Séries Iniciais (Projeto Unialfas), e a sala de aula dos alunos. Nestes encontros, os dez alunos preparavam as receitas, degustavam-nas, descrevendo suas sensações e percepções a partir da experimentação, além de conhecerem aspectos culturais das diferentes regiões brasileiras.

Esta prática permitiu aos alunos aproximarem-se do universo da culinária e conhecer as receitas que marcam a trajetória da construção brasileira e as diferenças culturais. A agregação da música foi uma maneira de apresentar as mensagens e os testemunhos da realidade social que cada artista relata em suas poesias musicadas sobre o espaço pressentido, contribuindo, dessa maneira, para um saber geográfico crítico e facilitador de inclusão social e cultural.

Ao pesquisar as tradições culinárias das regiões brasileiras, os alunos estudaram aspectos da História e da Geografia em escala regional. Constituiu-se, inclusive, em uma atividade para que eles aprendessem a valorizar e a preservar a pluralidade cultural que caracteriza nosso país. A tabela abaixo expressa, em síntese, a receita típica e a música escolhidas para cada aula na ordem em que foram apresentadas (Tabela 1).

 

Tabela 1. Síntese das músicas e receitas típicas regionais apresentadas e elaboradas com os alunos durante a oficina

Região

Música

Prato

Sul

Desgarrados

(Sérgio Napp e Mário Barbará)

Arroz de china pobre e chimarrão

Norte

Sabor Açaí

(Nilson Chaves e João Gomes)

Castanha-do-pará, bolo de guaraná e suco de açaí

Centro-oeste

Saudade Brejeira

(José Eduardo Morais e Nasr Chaul)

Arroz com pequi

Sudeste

Boi

(Zeca Pagodinho)

Tutu de feijão, doce de leite com coco e caldo de cana

Nordeste

O vaqueiro e o pescador

(Antonio Nóbrega)

Castanha-de-caju, tapioca doce e suco de caju

 

Descrição da proposta metodológica da oficina

O desenvolvimento metodológico para a construção desta oficina seguiu três etapas que serão descritas a seguir. Normalmente em cada encontro de uma hora e meia desenvolviam-se a análise musical, a receita e os comentários do dia.

Na primeira etapa, os alunos iniciavam em sala de aula com uma atividade musical regional, em que ouviam e interpretavam perguntas sobre a música. Na seqüência será apresentada a música “Sabor Açaí”, de autoria de Nilson Chaves e João Gomes, que foi apresentada aos alunos e a partir da qual foram feitas problematizações que abordavam aspectos culturais, ambientais, sociais e econômicos relacionados à extração do açaí no norte do Brasil.

Sabor Açaí

(Nilson Chaves e João Gomes)

E pra que tu foi plantado
E pra que tu foi plantada
Pra invadir a nossa mesa
E abastar a nossa casa
Teu destino foi traçado
Pelas mãos da mãe do mato
Mãos prendadas de uma deusa
Mãos de toque abençoado
És a planta que alimenta
A paixão do nosso povo
Macho fêmea das touceiras
Onde Oxossi faz seu posto
A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso
E homem do sangue vasto
Tu te entregas até o caroço
E a tua fruta vai rolando
Para os nossos alguidares
E te entrega ao sacrifício
Fruta santa fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada
Uns te chamam de açaizeiro
Outros te chamam juçara
Põe tapioca, põe farinha d'água
Põe açúcar, não põe nada, ou me bebe como um suco
Que eu sou muito mais que um fruto
Sou sabor marajoara
Sou sabor marajoara


As questões propostas e colocadas em discussão no grupo de alunos foram as seguintes:

1) Qual é a região descrita na música Sabor Açaí. Justifique apontando elementos que corroborem a tua explicação.
2) Que atividades econômicas próprias da região estão representadas na música Sabor Açaí? Justifique.
3) Qual é o papel da comida na música Sabor Açaí? Justifique.
4) Que elementos culturais de cada região podem ser identificados nas músicas Sabor Açaí? Justifique.
5) Escolha trechos da música que melhor representem a imagem abaixo. Justifique.

Fonte: globorural.globo.com .
Acesso em 27/10/07.


Após a discussão da letra da música, os alunos recebiam um material sobre os aspectos culturais da região a ser estudada e a receita que seria desenvolvida no dia. O material sobre os aspectos culturais de cada região e a receita proposta para o dia eram lidos e comentados com o grupo, de modo a propiciar a troca de idéias e o esclarecimento de dúvidas. Ainda em sala, os alunos decidiam as funções que cada um desenvolveria para a produção da receita e limpeza da cozinha.

Na segunda etapa, os alunos se deslocavam para a cozinha uniformizados com avental e touca, lavavam as mãos e se organizavam para iniciar a receita. Na mesa da cozinha, separavam, lavavam, cortavam cada um dos ingredientes e ordenavam conforme o uso na receita. No procedimento inicial, cada aluno alcançava um dos ingredientes para professora que estava auxiliando na preparação, observavam o início do preparo e depois, individualmente, cada aluno desenvolvia a receita (Figuras 1a e 1b e Anexo 1).

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Figura 1 – Momento em que os alunos participantes, devidamente uniformizados, cortam os ingredientes (a) e preparam a receita (b).


A participação no preparo favorece as percepções dos aromas e texturas dos ingredientes, bem como a construção da autonomia e criticidade do aluno. Quando finalizado o preparo, os alunos serviam e degustavam a receita pronta (Figuras 2a e 2b).

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Figura 2 – Receita de arroz com pequi preparada pelos alunos que representou a culinária da região centro-oeste (a). Momento em que os alunos faziam a degustação (b).

 

Limpavam a cozinha e os objetos utilizados e retornavam para sala de aula. Lá, anotavam na pasta gastronômica suas opiniões sobre as receitas, indicavam no mapa a região percorrida e, sempre no final de cada encontro, sorteávamos a próxima região a ser estudada e dávamos as tarefas de casa para os alunos (Figuras 3a e 3b).

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Figura 3 – Momento em que os alunos registravam na pasta de receitas suas impressões sobre as degustações (a). Imagem da pasta produzida durante a oficina (b).

 

As tarefas de casa consistiam em pequenas pesquisas sobre lendas, costumes e curiosidades regionais, a exemplo da lenda do açaí, que vem da região norte através da visão de uma comunidade indígena. Ao pesquisarem sobre essa lenda, os alunos tiveram a oportunidade de explorar a riqueza literária de outros lugares e apresentá-las ao grupo. Veja a lenda pesquisada pela aluna Géssica no site www.portalamazonia.globo.com.

Antes de existir a cidade de Belém, capital do Estado do Pará na Amazônia, uma tribo muito numerosa ocupava aquela região. Os alimentos eram escassos e a vida tornava-se cada dia mais difícil com a necessidade de alimentar todos os índios da tribo. Foi aí que o cacique da tribo, chamado de Itaki tomou uma decisão muito cruel. Ele resolveu que a partir daquele dia todas as crianças que nascessem seriam sacrificadas para evitar o aumento de índios da sua tribo. Um dia, no entanto, a filha do cacique, que tinha o nome de Iaçã, deu à luz uma linda menina, que também teve de ser sacrificada. Iaçã ficou desesperada e, todas as noites, chorava de saudades de sua filhinha. Durante vários dias, a filha do cacique não saiu de sua tenda. Em oração, pediu a Tupã que mostrasse ao seu pai uma outra maneira de ajudar seu povo, sem ter que sacrificar as pobres crianças. Depois disso, numa noite de lua, Iaçã ouviu um choro de criança. Aproximou-se da porta de sua oca e viu sua filhinha sorridente, ao pé de uma esbelta palmeira. Ficou espantada com a visão, mas logo depois, lançou-se em direção à filha, abraçando-a. Mas, misteriosamente a menina desapareceu. Iaçã ficou inconsolável e chorou muito até desfalecer. No dia seguinte seu corpo foi encontrado abraçado ao tronco da palmeira. No rosto de Iaçã havia um sorriso de felicidade e seus olhos negros fitavam o alto da palmeira, que estava carregada de frutinhos escuros.O cacique Itaki então mandou que apanhassem os frutos em um alguidar de madeira, os quais amassaram e obtiveram um vinho avermelhado que foi batizado de açaí, em homenagem a Iaçã (invertido é igual a açaí). Com o açaí, o cacique alimentou seu povo e, a partir deste dia, suspendeu sua ordem de sacrificar as crianças.

A leitura e discussão do texto da lenda apresentada acima foi o mote para as atividades de degustação que envolveram suco de açaí e alguns produtos típicos da região Norte, como a castanha-do-pará e o bolo de guaraná, além de estimular um debate sobre a influência da cultura indígena na nossa alimentação e nosso vocabulário.

A terceira etapa foi realizada após o estudo de todas as regiões brasileiras pelos alunos. Foi apresentado um mapa do Brasil separado em cinco regiões com uma trilha em branco. Essa trilha partia da primeira região que tinha sido estudada e finalizava na última região onde os estudos culturais regionais foram realizados. Com isso, o grupo de alunos teve de formular questões e respostas sobre cada região a partir do material bibliográfico organizado durante os encontros, estruturar o tabuleiro, confeccionar o dado e criar as regras do jogo. Após, o grupo se reuniu, realizou o Jogo das regiões e seus sabores e fez a avaliação do trabalho (Figura 4).

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Figura 4 – Imagem do Jogo das Regiões produzido pelos alunos ao final da oficina. Neste jogo os alunos elaboraram as questões e as respostas sobre cada região a partir do material bibliográfico trabalhado em aula, além de confeccionarem o tabuleiro, as fichas e criarem as próprias regras.

 

Resultado obtidos

O desenvolvimento desta oficina trouxe resultados significativos para o constructo do ensino de Geografia e para formação pessoal e psicopedagógica dos alunos. Os alunos que participaram da oficina demonstraram muito dinamismo, participação e interesse na realização do trabalho. A postura observada era de valorização do trabalho a partir do acolhimento da proposta e iniciativa em trazer dicas sobre os ingredientes, outras receitas e, principalmente, os relatos feitos para os familiares e outros colegas sobre a oficina. Neste sentido, houve a participação efetiva das famílias, uma vez que estas auxiliavam nos momentos de elaboração das tarefas propostas e também oportunizavam, em casa, a prática das receitas aprendidas na oficina, incentivando posturas autônomas e criativas dos alunos.

Outro resultado importante foi a mudança de comportamento dos alunos percebida pelas professoras. No início da oficina, o grupo mostrava-se agressivo e pouco disposto a aceitar a opinião dos colegas e a trabalhar em conjunto. No decorrer dos trabalhos as atitudes modificaram-se, no sentido de estimular uma maior união e solidariedade entre eles e valorizar os diferentes pontos de vista. Essa transformação foi relevante para o fortalecimento dos laços afetivos e inclusão de alunos anteriormente excluídos do grupo por apresentarem dificuldade de aprendizagem e de relacionamento.   

Durante o período da oficina os alunos foram muito assíduos e participativos. A aprovação deste tipo de proposta pedagógica ficou evidenciada no momento que os alunos começam a expor seu desejo de realizar uma nova atividade com essas características, propondo novos horizontes a serem pesquisados, como por exemplo, as regiões do mundo através das músicas e pratos típicos.

No que tange o entendimento de conceitos geográficos, o resultado foi plenamente satisfatório. A pasta produzida pelos alunos funcionou como um portfólio das atividades desenvolvidas, permitindo, através do registro seqüencial dos trabalhos, a avaliação das construções do aluno durante os encontros, bem como seu comprometimento para com a disciplina. Juntamente com a prática desenvolvida na cozinha, as contribuições orais e a postura em sala de aula, este portfólio compôs a avaliação dos alunos durante a oficina. 

Os objetivos propostos foram atendidos através da compreensão das influências e contribuições de diferentes etnias na formação do espaço geográfico brasileiro e valorização das diferentes expressões regionais.

A culinária regional brasileira é rica, saborosa e variada. Cada um dos estados brasileiros possui pratos típicos, preparados de acordo com antigas tradições, que são transmitidas a cada geração. O significado da comida ultrapassa o simples ato de alimentar-se. São muitas as tradições que consideram o preparo e as refeições um momento semi-sagrado que favorece a confraternização das pessoas.

Assim, a prática culinária, além de contribuir para a ampliação do entendimento de hábitos e costumes regionais através da utilização de diferentes técnicas e ingredientes, oportunizou ao aluno uma experiência gastronômica diferente da do seu cotidiano, apetecendo para a descoberta de novos sabores.  

A apresentação para o grupo de alunos da oficina de diferentes realidades gastronômicas corrobora a idéia de apurar o paladar, despertar a curiosidade por conhecer novos sabores, prepará-los e fazer da degustação um momento prazeroso e educativo. Juntamente com a preparação dos pratos regionais a música foi utilizada para dar mais ludicidade e alegria para ensinar e aprender.

Os alunos, a partir da apreciação musical, construíram o significado do conceito de paisagem sonora e sua importância para composição de cada uma das regiões estudadas, bem como conheceram as diversidades regionais mostradas em músicas ou ritmos diferentes daqueles valorizados pela mídia. Neste caso, ficou evidente o afloramento de sensibilidades fundamentais para um ouvinte inteligente, apto em selecionar ritmos e usar a escuta para (re)criar linguagens e interrelacionar lugares e culturas (Schafer, 1991).

A experiência positiva desta oficina estimulou o desenvolvimento e a realização de dois cursos de formação de professores desenvolvidos no ano de 2008. O primeiro aconteceu no XXVIII Encontro Estadual de Geografia, na cidade de Bento Gonçalves e o segundo, no curso de extensão “O mundo na sala de aula: temas contemporâneos e construção de recursos de ensino” ministrado no Colégio de Aplicação para alunos de graduação e professores da rede pública e privada.


Avaliação

Ficou visível que este tipo de iniciativa oferece muito mais do que um momento de descontração e estabelecimento de laços afetivos entre professores e alunos no momento da aprendizagem. Também possibilita todo um trabalho de inter-relações entre os conteúdos escolares e sua aplicação prática no cotidiano dos alunos. O entendimento dos conteúdos pelos alunos ficou evidente a partir dos textos construídos em sala de aula, das apresentações orais de tarefas ou de curiosidades regionais, das interpretações musicais e da elaboração do Jogo das regiões e seus sabores.

A oficina proporcionou a união do lúdico com a construção conceitual dos saberes. O sucesso das atividades esteve balizado pela forma de abordagem da temática, que apresenta questões da nossa diversidade regional que muitas vezes perpassam ou não obedecem às convenções geopolíticas, mas que devem ser respeitadas e preservadas por formar a cultura brasileira e então fazer parte do cotidiano dos alunos.

Entendemos que a avaliação dos trabalhos desenvolvidos na oficina deveria ser feita em conjunto, após cada oficina, onde os alunos e as professoras pudessem trocar informações e percepções sobre o trabalho feito.

A avaliação aqui proposta está embasada na perspectiva pedagógica inovadora onde o professor deixa de ser o centro do processo de ensino e aprendizagem e o aluno também passa a compor esse lugar, e os conhecimentos que o aluno trás são fundamentais na construção da sua aprendizagem. Fernandes (2005, p. 68) entende que “um dos papéis do professor na avaliação é de contribuir para o desenvolvimento das competências metacognitivas dos alunos.”

Cabe aos professores construírem instrumentos que possibilitem uma prática pedagógica mais condizente com a realidade de seus alunos. Hoffmann (1998, p. 112) afirma que “a avaliação da aprendizagem deverá encaminhar-se a um processo dialógico e cooperativo, através do qual educandos e educadores aprendem sobre si mesmos no ato próprio da avaliação”. Dessa forma, a importância das conversas durante a realização da oficina foi fundamental para uma prática avaliação mais formativa e somativa.

A avaliação dos trabalhos realizados foi feita através da construção, em conjunto com os alunos, de um portfólio que consistia numa pasta em que os registros das atividades da oficina eram armazenados. Para a constituição deste portfólio foram feitas algumas combinações com os alunos: registrar informações consideradas importantes; pesquisar sobre as tarefas extra-classe individualmente; ilustrar os textos e as receitas de cada região; fazer pequenas sínteses das temáticas estudadas e as palavras desconhecidas; selecionar a região que será estudada na próxima oficina e indicar o trajeto no mapa; incluir relatos dos familiares sobre alguma receita ou música e elaborar a auto-avaliação das suas atividades durante a oficina.

Na educação, o portfólio apresenta várias possibilidades de uso, sendo uma delas a construção personalizada da pasta feita pelos próprios alunos. Nesse caso, o portfólio pode ser compreendido como uma coleção de suas produções, as quais apresentam as evidências de sua aprendizagem. Nessa organização é importante que o próprio aluno e o professor, em conjunto, possam acompanhar o desenrolar de seus progressos. O portfólio rompe com a avaliação tradicional e pré-estabelecida, pois permite aos alunos participar da formulação dos objetivos de sua aprendizagem e avaliar seu progresso. Eles são, portanto, participantes ativos da avaliação.

Segundo Arter e Spandel (apud Villas Boas 2004, p.38), portfólio é (...) uma coleção proposital do trabalho do aluno que conta a história dos seus esforços, progresso, ou desempenho em uma determinada área. Essa coleção deve incluir a participação do aluno na seleção do conteúdo do portfólio; as linhas básicas para a seleção, os critérios para julgamento do mérito e evidência de auto-reflexão pelo aluno.”

O uso do portfólio permite promover o desenvolvimento reflexivo dos participantes, estimula o processo de enriquecimento e o aprofundamento conceitual continuado. Promove uma melhor organização individual, fundamenta os processos de reflexão para a ação, favorece o estímulo da originalidade e criatividade individual. No que tange aos processos de intervenção educativa, contribui para uma construção personalizada do conhecimento, regula tempo útil de conflitos, garante o desenvolvimento progressivo da identidade e facilita os processos de auto-avaliação.

Pensamos que a atividade proposta e desenvolvida no CAp pode ser amplamente aplicada por professores, mesmo que em nossa experiência tenha sido desenvolvida com um número pequeno de alunos, o que não é realidade para a maior parte dos professores do país. Esta proposta pode ser adaptada para turmas maiores, não sendo necessária a utilização de uma cozinha. O professor faz a escolha dos ingredientes e receitas a serem desenvolvidas com base na realidade da sua escola e de acordo com os temas que deseja abordar.

Outro ponto importante refere-se à abrangência espacial da oficina. Mesmo que esta proposta seja direcionada às regiões brasileiras, também é possível fazer adaptações para qualquer região que se queira trabalhar, no Brasil, ou em qualquer outra parte do planeta.

Acreditamos ser fundamental, na construção pedagógica, propor desafios aos educandos que possibilitem o exercício da cidadania e participação ativa na construção da sua cultura. Tal proposta auxilia na desmistificação junto ao jovem de que uma forma cultural pode sobrepor-se ou ser melhor que outra, atualmente, muito visualizada na mídia.

Este trabalho favorece uma reflexão sobre as modificações e adaptações que a nossa cultura e culinária sofreram com o passar do tempo, em decorrência da mistura da herança indígena com a negra e européia (Chaves & Freixa, 2007), bem como a influência dessas mudanças na formação da identidade dos sujeitos e da nossa sociedade. Pensamos que através deste trabalho possamos descortinar a grandiosidade do nosso país e resgatarmos uma maior participação social e valorização das origens por parte de nossos alunos.

A prática desenvolvida na oficina propiciou a construção da noção de cultura enquanto expressão do modo de vida e de região enquanto espaço de construção de identidade cultural comum. A leitura e interpretação das letras de música escolhidas trouxeram para sala de aula aspectos das paisagens, dos hábitos, dos costumes, das lendas e das transformações pelas quais passaram cada região do Brasil. A elaboração dos pratos e posterior degustação levou ao entendimento do contexto de surgimento das receitas, do porquê do uso (ou não) de determinados ingredientes, desenvolvendo, assim, um olhar diferenciado acerca das diferenças culturais, enquanto representação de modos de vida diferenciados.

Positivamente, esta experiência permitiu o exercício de uma proposta de educação que, conforme Moran (2006), articula o sensorial, o racional, o emocional, o ético, o pessoal e o social e, portanto, torna-se mais efetiva no que se refere aos objetivos alcançados e conteúdos construídos. Aqui, quando mencionamos os objetivos e os conteúdos estamos falando, sim, em Geografia, mas também, estamos destacando a superação de problemas cognitivos e de relacionamento, problemas que fazem parte do contexto escolar e com os quais o professor precisa aprender a lidar e pensar sobre.



Bibliografia

CHAVES, G.; FREIXA, D. Larousse da cozinha brasileira: raízes culturais da nossa terra. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007.

CLAVAL, P. A geografia cultural: o estado da arte. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z(org.). Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 59-97.

CORREA, R. L. Geografia cultural: passado e Futuro: uma introdução. In: CORRÊA, R. L. ROSENDAHL, Z (org.). Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.p. 49-58.

CORREA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

CORREA, R. L.; ROSENDAHL, Z. Cinema, Música e Espaço – uma introdução. CORREA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. P.7-13.

FERNANDES, D. Avaliação das aprendizagens. Desafios às Teorias, Práticas e Políticas. Lisboa: Texto Editores, 2005.

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HOFFMANN, J. Avaliação: mito e desafio. Porto Alegre: Mediação, 1998.

MCDOWELL, L. A transformação da Geografia Cultural. In: GREGORY, D. (Org.) Geografia Humana: Sociedade, Espaço e Ciência Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996

MORAN, J. M. Caminhos para a aprendizagem inovadora In: MORAN, J. M.; MASETTO, M. T.; BEHRENS, M. A. Novas Tecnologias e Mediação Pedagógica, 12ª ed. São Paulo: Papirus, 2006. p. 22-24.

Perrenoud, P. 10 novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.

Saviani. D. Saber escolar, currículo e didática. 3 ed. Campinas: Autores Associados, 2000.

ROSSI, D. R.; ROSSATO, M. S. Geografia (em)canto. In: Encontro Estadual de Geografia, 27, 2007, Santa Maria. Anais do XXVII Encontro Estadual de Geografia AGB/Porto Alegre: Santa Maria, 2007.

RUA, J. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: a atualidade do estudo regional. In: RUA, J.; WASZKIAVICUS, F. A.; TANNURI, M. R. P.; PÓVOA NETO, H. Para ensinar Geografia: contribuição para o trabalho com 1º e 2º graus. Rio de Janeiro: Access, 1993. p. 229-234.

SANTOS, M. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio-técnico-cientifico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.

SAUER, C. The Education of a Geographer. In: LEIGHLY, John (ed.). Land and Life – a Selection from the Writings of Carl Ortwin Sauer. Berkeley: University of California Press, 1963, pp.389-404.

SCHAFER, M. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991.

TEIXEIRA, A. A reconstrução do programa escolar. Escola Nova. São Paulo, v. 1, n. 2, p. 86-95, nov./dez. 1930.

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VIGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

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VON ZUBEN, M. De John Dewey a Anísio Teixeira: o pensar reflexivo como tarefa educacional. Revista de Pedagogia Brasília, v. 2, n. 3, jan/jul 2001. Disponível em: http://www.fe.unb.br/revistadepedagogia/numeros/03/artigos/Revista%20de%20Pedagogia%20-%20numero%2003%20artigo%2001.pdf

ZANATTA, B. A. A Abordagem Cultural na Geografia. Temporis(ação) (UEG), v. 1, p. 249-262, 2008.


ANEXO

Registro fotográfico da oficina

Fotografias 1 e 2 – Alunos participantes da oficina já uniformizados para dar início à preparação da receita do dia.

 

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Fotografias 3 e 4 – Preparação da salada de fruta no dia 28/09/2007.

 

Fotografias 5 e 6 – Preparação do “Arroz de China Pobre”, prato da Região Sul no dia 05/10/2007.

 

Fotografias 7 e 8 – Degustação do suco de açaí, castanha do Pará e bolo de guaraná, típicos da Região Norte no dia 19/10/2007.

 

Fotografias 9 e 10 – Preparação e degustação do “Arroz com pequi”, prato típico da Região Centro-Oeste no dia 26/10/2007.

 

Fotografias 11 e 12 – Praparação do “Tutu de feijão”, prato típico da Região Sudeste no dia 09/11/2007.

 

Fotografias 13 e 14 – Preparação e degustação da “Tapioca”, prato típico da Região Nordeste no dia 23/11/2007. 

 

Fotografias 15 e 16 – Momento de trabalho com letras de música a elaboração das atividades para compor a pasta gastronômica.

 

 

[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]



© Copyright Maíra Suertegaray Rossato y Dariane Raifur Rossi, 2010
© Copyright Biblio3W, 2010


Ficha bibliográfica:

ROSSATO, Maíra Suertegaray y ROSSI, Dariane Raifur. Um pouco do Brasil através de ritmos e sabores: uma proposta para o ensino de geografia. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 864, 15 de marzo de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-864.htm>. [ISSN 1138-9796].


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