Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XV, nº 865, 25 de marzo de 2010

[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


PAISAGENS DA NATUREZA, LUGARES DA SOCIEDADE:
A CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DO RIO DE JANEIRO COMO CIDADE MARAVILHOSA

 


Jorge Luiz Barbosa
Professor do Departamento de Geografia - Universidade Federal Fluminense
Coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Estágio Pós-Doutoral na Universidade de Barcelona


Paisagens da natureza, lugares da sociedade: a construção imaginária do Rio de Janeiro como cidade maravilhosa ( Resumo)

Este artigo busca colocar em causa as legendas simbólicas que consagraram o Rio de Janeiro como cidade maravilhosa. Essa imagem-força encontra seus fundamentos na estetização da natureza como paisagem, impondo-se como referência identitária de relações de civilidade e não civilidade na vida urbana. Há, portanto, a construção de hegemonias sociopolíticas que se legitimam em discursos aparentemente banais, mas que confessam sua prática discricionária na apropriação e uso da cidade. A utopia compulsória da cidade maravilhosa se faz e refaz em permanente duelo com seus anti-símbolos: as favelas. Asfalto e morro são suas metáforas recorrentes e, simultaneamente, a expressão de conflitos latentes em relação ao devir da cidade.     

Palavras-chave: paisagem, cidade, civilização


Landscapes of nature, society places: the imaginary construction of Rio de Janeiro as the wonderfull city (Abstract)

This paper seeks to call into question the symbolic labels that established the Rio de Janeiro as a “wonderful city”. This image-force finds its roots in the aesthetics of nature and landscape, imposing itself as the reference identity of relations of civility and not civility in urban life. There is, therefore, the construction of socio-political hegemony as legitimate discourse in seemingly banal, but who confess their discretionary practice on ownership and use of the city. The Utopia of the “wonderful city” is made and remade in its ongoing debate with anti-symbols: the slums. Asphalt and slums are recurrents metaphors, while the expression of latent conflicts in relation to becoming the city.

Key words: landscape, city, civilization




“Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma relação entre eles”.
(Italo Calvino, As Cidades Invisíveis)

 

A paisagem da cidade maravilhosa

Entre o mar e a montanha emerge uma cidade que se agiganta na direção do céu. Rio de Janeiro, Cidade de São Sebastião. Abençoada pelo Cristo Redentor, do alto do Corcovado, o Rio de Janeiro é uma cidade de todos os santos e todos os deuses. Os deuses romano-católicos e africanos. Os deuses da folia e do futebol. Os deuses do samba, da festa e da alegria. Todos Eles não pouparam os seus esforços na construção de uma cidade mágica e encantadora que nos convida permanentemente a contemplar a sua beleza. 

Cidade maravilhosa cheia de encantos mil, coração do meu Brasil. Refrão de uma das famosas marchinhas de carnaval que, ao exaltar a cidade bonita por natureza, criou uma imagem-força presente nas representações da cidade. Poetas, compositores, pintores, romancistas, cineastas e fotógrafos encontraram na paisagem natural a inspiração ímpar para suas obras estéticas (figura 1). Moradores e visitantes, brasileiros ou estrangeiros, estão sempre a admirar a beleza das montanhas que se erguem para céu azul, sob o qual a cidade amanhece brilhando ao sol e anoitece nas luzes cintilantes das ruas e dos edifícios. Admiram igualmente as línguas brancas das praias que saboreiam o mar e as calçadas, fazendo dos sábados e domingos o colorido dos dias desbotados pelo trabalho, pela pressa e pelo trânsito congestionado.

 

Figura 1 - Paisagem da cidade maravilhosa.
O morro do Pão de Açúcar: símbolo maior da Cidade do Rio de Janeiro.
Fonte: varejototal.zip.net

 

Para encontrar a Cidade do Rio de Janeiro é preciso atravessar esse portal: a paisagem da natureza. Seus encantos, sua magia e sua exuberância fizeram da cidade do Rio de Janeiro uma das mais representadas do mundo. Postais, fotografias, pinturas, gravuras, filmes de ficção ou documentários, entre outras formas pictóricas; capturaram a cidade emoldurada pela baía de Guanabara. Auroras e crepúsculos em suas múltiplas cores consagraram (e ainda consagram!) a beleza da natureza, que já não é mais natureza, mas sim um ícone. Montanhas, praias, lagoas, céu e mar são símbolos. Eles não falam de si. A montanha, o mar, as praias e o céu nos falam da Cidade do Rio de Janeiro. Ouvimos suas vozes. Elas dizem aos nossos olhos, pelas obras dos estetas, que o Rio de Janeiro é bonito por natureza.

Estamos diante da imagem-força da Cidade do Rio Janeiro: a beleza da paisagem natural. Todavia, como nos alerta Horacio Capel (1973), a paisagem se origina de uma mirada consciente e intencional; ato humano que configura significados socioculturais à natureza. Essa linha de entendimento é retomada por Maurice Ronai (1976) ao afirmar que o olhar não é somente o exercício de um sentido (visão), é também uma produção de sentido (significação). A paisagem é, portanto, uma marca que exprime um significante (simbólico) e, ao mesmo tempo, é também uma matriz de significados (experiências de tempo e espaço), porque representa a expressão de uma “razão de existir” da sociedade. Nesse sentido, a paisagem pode ser definida como um campo de visibilidade, uma “mediação entre o mundo das coisas e aquele da subjetividade humana(Augustin Berque, 1995). Ou seja, um artefato estético sociocultural.

A paisagem assume o significado da relação das condições da história natural da natureza com história construída pela ação humana, porém percebida segundo as necessidades e possibilidades históricas de uma dada sociedade. Podemos falar, então, de uma percepção da Natureza construída como experiência sensível, segundo o modo cultural instituído socialmente. E, conforme assinala Raymond Ledrut (1973), a percepção das paisagens implica uma valorização simbólica e, com esta, uma valorização social do seu significado. Como transfiguração do físico no simbólico, a paisagem natural é portadora de representações explícitas e/ou implícitas de um modo de ser e estar no mundo.

A paisagem natural seria a primeira imagem da Cidade do Rio de Janeiro? Certamente! Apesar do arrasamento de morros e colinas, do aterro de lagoas e praias, da canalização de rios e regatos. Ao longo dos quase cinco séculos contados de existência da cidade do Rio de Janeiro, a natureza ainda aparece como matriz de seus símbolos e da respectiva valorização sociocultural de seus lugares de acontecimento. A primeira imagem vem do olhar que, debruçado sobre as formas e cores da Natureza, traçam o sentido da existência de homens e mulheres na cidade. Qual seria esse sentido? Alegria, festa, beleza, amor, paz e tudo que pode significar a expressão cidade maravilhosa.

Esse destino oferecido pela generosidade da natureza significa o próprio devir sonhado da humanidade. Assim, falamos de uma situação de paraíso terrestre, ou melhor, de uma utopia romântica de cidade que sinaliza os desejos humanos de viver a condição do maravilhoso. A paisagem é esse campo de relações, portanto, atua como um discurso que descreve e afirma significados da cidade do Rio de Janeiro. Marco Pólo, personagem do livro Cidades Invisíveis de Italo Calvino, advertia ao Imperador Kublai: "uma cidade só começa a existir a partir dos seus símbolos".  


Origens e difusão cultural da imagem da cidade maravilhosa

A construção da imagem Cidade Maravilhosa resulta de um complexo processo histórico e cultural. Seu marco inaugural pode ser localizado nas intervenções urbanas do inicio do século XX que buscaram erradicar a cidade colonial e insalubre para dar lugar a valores cosmopolitas e a modos urbanos civilizados. Em outra oportunidade buscamos desvelar as legendas simbólicas constitutivas de imaginários da modernidade nos trópicos, sobretudo a partir das reformas urbanas iniciadas com a paradigmática Reforma Passos[1]. Tratava-se não exclusivamente de dotar a cidade do Rio de Janeiro, a época capital da Republica, de uma funcionalidade urbana adequada aos padrões de produção e circulação do capital industrial e bancário, mas também de uma imagem que representasse a importância do Brasil no concerto das nações modernas.   

 A demolição do casario colonial transformado em habitações insalubres, a abertura de avenidas largas e bordadas por edifícios monumentais e a remodelação do porto, destacaram-se como as principais ações que definiram a reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro do inicio do século XX. Todavia, a criação da capital cosmopolita e civilizada era incapaz de solucionar, ou mesmo atenuar, um dos mais graves problemas da cidade: as demandas de moradia popular.

Apesar das ações discricionárias contra as casas de cômodos e cortiços, estas formas de habitação popular ganharam sobrevida[2], uma vez que estas faziam parte das reduzidas possibilidades de abrigo de homens e mulheres pobres da cidade, assim como se tornou mais visível a presença de favelas nos morros da cidade (Mauricio Abreu, 1994). Lima Barreto, um dos mais importantes romancistas e cronistas do Rio de Janeiro, chamava atenção dos seus leitores em Clara dos Anjos para as novas marcas na paisagem carioca: “Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e reuni-las por paredes duvidosas (...). Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas nos morros da cidade”. 

O Rio Desconhecido, artigo publicado na Revista Careta, (4 de dezembro de 1909), inaugurava uma das primeiras e mais severas campanhas contra os estranhos bairros no coração da cidade: “As suas casinholas bizarramente construídas de taboas, de pedaços de caixão, de latas e folhas de zinco dominam um soberbo panorama em meio do qual maravilhosamente avultam o viaduto da Central, a parte da cidade ornada pelas obras do porto e correspondentes avenidas, o Canal Mangue com suas palmeiras reais e as praças e as ruas circunvizinhas”.  

O artigo em destaque recomendava, em sua conclusão, que apesar de “possuir elementos honestos, a Favela é um antro de facínoras e deve ser arrasada para decência e higiene da capital federal”. Emergia um contraponto radical à paisagem moderna e cosmopolita reclamada pelos grupos sociais hegemônicos.

Reportagens e crônicas publicadas em jornais e revistas, assim como diversos relatórios de autoridades públicas e sanitárias, assumiam uma leitura extremamente negativa das favelas e exigiam sua erradicação. A imprensa fazia das favelas "um espelho invertido da civilização" (Zaluar, 1998) ao endossar e legitimar o projeto de cidade civilizada, ordenada e disciplinada.

 Em meados da década de 1920, mais de cem mil pessoas já habitavam os bairros estranhos do Rio de Janeiro. A expressão favela generalizava-se, passando a designar todas as habitações pobres e precárias que surgiam, geralmente nos morros circunvizinhos às áreas centrais da cidade.

É deste novo cenário social da paisagem que Mattos Pimenta elabora um dos primeiros documentários fílmicos sobre as favelas cariocas (Como vivem os habitantes da Favela, 1927). De acordo com os comentários publicados na revista A Semana (27 de fevereiro de 1927), o documentário apresentava, em suas contundentes imagens, a corrosão da linda capital pelas favelas: “A exibição do filme deixou bem patente uma das grandes chagas que corroem a nossa linda capital, localizada em múltiplos e inacreditáveis locais, que transformam em verdadeiras células da miséria e do crime (...). O filme põe à mostra a miséria desses focos de imundície, de promiscuidade e horror, que se multiplicam assustadoramente, ameaçando o sossego da população e a estética da capital”. 

A cidade linda ameaçada pela presença das favelas se tornava uma das imagens mais significativas do devir da cidade do Rio de Janeiro. Sua notória força discricionária alimentou posições e ideologias conservadoras que atravessaram décadas e, infelizmente, ainda se fazem presentes no senso comum reproduzido sem cessar entre muitos dos moradores da cidade.

Na década de 1930, uma nova e singela imagem passaria a designar o Rio de Janeiro: cidade maravilhosa.   Atribuída ao romancista, deputado e professor Coelho Neto, a expressão cidade maravilhosa se tornaria uma imagem enaltecedora das belezas naturais e de um forte apelo romântico do significado da cidade.

Neste período, em particular, se fazia presente no Brasil um processo de modernização urbano-industrial conhecido como a Era Vargas. A cidade do Rio de Janeiro na condição de capital federal tornava-se o centro político de um projeto nacional de transformação econômica, institucional e social.   

À diferença da cidade cosmopolita e civilizada das elites, o Rio de Janeiro deveria encarnar uma imagem popular e suficientemente consensual para representar o ideário de uma nação moderna e integrada nas suas diferenças. É importante salientar a importância do advento do rádio como poderoso meio de comunicação e difusão cultural largamente mobilizado pelo Estado para consolidar a hegemonia política e conferir ao Governo Vargas a sua legitimidade popular.

 É justamente em um programa radiofônico que a imagem cidade maravilhosa ganhou sua ampla difusão cultural. Criada em 1927, a Rádio Mayrink Veiga levava ao ar, para seus milhares de ouvintes, as Crônicas da Cidade Maravilhosa, programa apresentado e dirigido pelo locutor César Ladeira. Redigidas pelo jornalista e teatrólogo Genolino Amado, as Crônicas abordavam o cotidiano dos cariocas e eram lidas com a voz solene de Ladeira.

Todavia, a maior difusão popular da imagem cidade maravilhosa viria de uma marcha de carnaval composta por André Filho em 1937, e gravada pela primeira vez pela cantora Aurora Miranda (irmã da então já famosa Carmem Miranda). O sucesso espetacular da marcha de carnaval a transformou em um hino da cidade e, mais do que um hino, uma alma encantada do ser carioca. Nos seus versos finais Cidade Maravilhosa proclama a utopia romântica do devir do Rio de Janeiro:

“Terra que a todos seduz
Que Deus te cubra de felicidade
Ninho de sonho e de luz”

A ingenuidade docemente presente na composição inspirava consensos em termos de atributos particulares da cidade, dentre eles a belezas naturais abençoadas por Deus. A beleza incomparável das paisagens naturais da cidade servia como moldura para o sentido pleno do maravilhoso e prova incontestável da beleza n’a alma da gente carioca. Todavia, é importante registrar o papel do cinema na difusão da cidade maravilhosa, principalmente no plano internacional.

 É na década de 1940 que estúdios cinematográficos de Hollywood passam investir nas belezas das paisagens cariocas como cenários para suas películas comerciais . Trata-se, sobretudo, dos filmes protagonizados por Carmem Miranda e que alcançaram imenso sucesso nos Estados Unidos e no Brasil. O Rio de Janeiro do Corcovado e do Pão de Açúcar se tornava um cenário exótico para a produção cinematográfica norte-americana, onde o samba e o carnaval criavam uma cidade alegre e sedutora (Tunico Amancio, 2000). O cinema assumia um papel extraordinário na consolidação das paisagens naturais como síntese do sentido do Rio de Janeiro e sua difusão nas mais diversas latitudes. A legenda atravessava as fronteiras de continentes e de oceanos e, através das telas do cinema, se tornava um produto estético conquistador de imaginários.

Podemos afirmar que os meios de comunicação, como jornais e revistas, contribuíram efetivamente na celebração do imaginário da cidade maravilhosa. Deve-se também destacar, todavia, o papel do rádio, da música popular e do cinema no processo de afirmação da hegemonia cultural de legendas da paisagem do Rio de Janeiro.

Entre nós, os cariocas, a força imagética da cidade maravilhosa se impós como um abrigo de um senso comum do significado do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, um recurso instrumental mobilizado diante de suas contradições socioespaciais. Tal legenda simbólica é permanentemente atualizada no imaginário da cidade, como componente indissociável de sua história pregressa e futura, ou melhor, como parte inerente de sua própria natureza. Qual natureza?


Paisagem da natureza bela e generosa

A natureza bela e generosa que emoldura o Rio de Janeiro é, na verdade, uma promessa civilizatória. Estamos diante de uma matriz simbólica que exprime um estatuto de civilização que afirma um modo de vida desejado. Observa-se, portanto, uma estetização da natureza, cujos ícones principais alcançaram - como Pão de Açúcar e o Corcovado, ou mesmo as rainhas e princesinhas do mar (Copacabana e Ipanema) – o significado do maravilhoso na representação do Rio de Janeiro. Vivemos curiosamente (para não dizer dramaticamente) essa contradição da produção do espaço urbano carioca: negar e afirmar permanentemente a presença da natureza como expressão de uma civilização. Não devemos esquecer que determinadas formas naturais foram preservadas em função do seu apelo simbólico, enquanto outras foram destruídas para deixar passar o progresso sob a forma de edifícios, fábricas, shoppings centers, túneis, avenidas e viadutos. O Rio de Janeiro se fez metrópole admirando e devorando a própria natureza!

A cidade bonita por natureza apresenta, como tantas outras cidades, graves problemas socioambientais em função do modelo de urbanização que fez da Natureza um obstáculo a ser vencido. Contudo, é interessante notar que os ícones da cidade do Rio de Janeiro são obras da Natureza. Por outro lado, é igualmente relevante apontar que esses ícones se localizam, em sua imensa maioria, na Zona Sul da cidade. Define-se, então, uma geografia das paisagens naturais que recorta a cidade e atribui valores simbólicos aos lugares.

A geografia caprichosa da Natureza possui uma parceria mais ou menos oculta com o significado do modo de vida considerado civilizado, digno, respeitável e desejável? Uma geografia do belo, como imagem do civilizado, desponta na cultura hegemônica e estabelece clivagens demarcadoras de modos de vida, como a indicada em um dos trechos da letra de uma famosa música popular: "Palmeira do mangue não nasce na areia de Copacabana."

As paisagens da natureza possuem suas diferenças servindo como recortes de valores socioculturais hegemônicos e não hegemônicos. Há os que são diretamente beneficiados, pois moram nos lugares onde a Natureza se torna pródiga em suas simbologias atribuídas. A Zona Sul, por exemplo, aparece como o grande ícone do Rio de Janeiro, por vezes até se tornando a imagem da própria cidade.

Uma parte da cidade se torna representativa do todo, fazendo emergir a “paisagem carioca” que domina o imaginário cultural urbano. Compreende-se o papel preponderante de determinadas paisagens como representativas da cidade do Rio de Janeiro, pois essa preponderância muitas vezes tende a se confundir com a hegemonia cultural das representações de mundo de determinadas classes sociais. A paisagem natural traduz, sob a clivagem de valorizações simbólicas, uma geografia particular dos lugares.

Nos subúrbios e periferias da cidade não há paisagens da natureza para reafirmar o significado de grandeza, beleza e sucesso para seus moradores. Em outros lugares da cidade do Rio de Janeiro as paisagens não falam de maravilhas. Falam de pobreza material vivida por imensas parcelas de homens e mulheres habitantes da cidade. São anti-símbolos?

Os morros, planícies, manguezais e margens de rios e lagoas habitados pelas comunidades populares ganharam historicamente significados muito distintos dos atribuídos à cidade maravilhosa. Eles representam uma paisagem a ser negada. Algo que macula o culto ao maravilhoso da paisagem carioca. Os signos da natureza estilizada e os lugares da sociedade desigual se encontram e se afrontam na paisagem urbana. Símbolos e anti-símbolos em duelo na paisagem urbana revelando distinções de ordem sociocultural e econômica. 

Podemos afirmar que a força da imagem atribuída à cidade do Rio de Janeiro vem da apropriação e do uso da Natureza como paisagem, ou seja, de uma representação estética do espaço socialmente construído. A partir de suas formas, volumes e cores foram criados significados de um modo de ser e viver do carioca, ou melhor, do deve-ser da cidade. Essa imagem urbana muita vezes serviu de aparato ideológico para processos brutais de deslocamento e destruição de formas e modos de vida não condizentes aos valores e tradições espelhadas na paisagem natural do maravilhoso. A tessitura da beleza da natureza e o sentido sociocultural da cidade nos conduzem, contraditoriamente, a aceitar a utopia compulsória do maravilhoso como nosso devir e, ao mesmo tempo, da negar tudo e todos que fogem ao padrão estético do que se considera como civilizado. A paisagem nos revela e nos denuncia naquilo que escondemos?

Essa imagem instituída pela estetização da paisagem carioca é, no fundo, abstrata, pois oculta desigualdades sócio-espaciais sensíveis. Desigualdades que observamos diariamente na distribuição quantitativa e qualitativa de bens, de equipamentos e de serviços públicos entre os bairros que compõem o espaço urbano carioca. Desigualdades que se reproduzem com a violência da discriminação cultural e das condições socioeconômicas de parcelas significativas dos habitantes da cidade. Porém, a força icônica das paisagens da natureza exprime um imaginário cultural que nos domina e nos excita. Afinal, quem não se encantou com as belezas do Rio de Janeiro? O mar, o céu, as montanhas nos prometem maravilhas. São formas, volumes e cores que anunciam causas primordiais de uma cidade. Qual cidade? 


Paisagens dos lugares desiguais

A paisagem é epiderme da cidade. Percebemos a vida urbana através do seu manto. Mesmo que suas perspectivas sejam enganosas e que todas as suas faces visíveis escondam outras faces, indesejáveis. A paisagem é a pele da cidade e traduz o chão das vidas do nosso cotidiano. Na paisagem são expressos nossos sonhos e medos, nossos segredos e desterros, nossas esperanças e nossos dramas. Assim plena de vida, a paisagem é a experiência concreta do viver com o outro, mesmo que as suas regras sejam absurdas. Por isso, a pele exprime a diversidade e a pluralidade de nosso estar-no-mundo.

No balanço da canção de Tim Maia (cantor e compositor carioca), vamos percorrendo diferentes lugares da cidade:

“Leme ao Pontal
não há nada igual
Leme ao Pontal
não há nada igual
no mundo.
Sem contar com Calabouço, Flamengo, Botafogo.
Urca, Praia Vermelha.
Leme ao Pontal.
não há nada igual
ao mundo”.

Se do Leme ao Pontal não há nada igual no mundo. Da Vila Kennedy à Central do Brasil também não há nada igual. A diversidade é marca da cidade do Rio de Janeiro. São muitas as cidades do Rio de Janeiro. Porém, cada uma delas é um fragmento de um espelho que reflete as demais. Falamos, então, de uma espacialidade diferencial construída por lugares particulares que constituem a cidade como uma totalidade em movimento.

Para o senso comum – reproduzido, geralmente, sem nenhuma crítica pelos meios de comunicação de massa – vivemos em uma metrópole partida em duas: de um lado uma cidade e de outro uma não-cidade (as favelas). A partir dessa consideração multiplicam-se as antinomias. Formal e informal. Legal e ilegal. Civilização e barbárie. Ordem e violência. Evidente que tal clivagem expressa um modo de olhar para a cidade que identifica e denomina características como particulares a determinados lugares. Uma forte naturalização das desigualdades se afirma, como se fossem inerentes às pessoas e a seus modos de vida definidos em hierarquias de civilidade e cidadania.  

 Quando olhamos para cidade para além da paisagem do maravilhoso, podemos identificar que do Leme ao Pontal (bairros da Zona Sul carioca) há diferenças profundas nas formas e conteúdos da apropriação e uso do espaço urbano. Surgem outros nomes dentro dos nomes: Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, Chapéu Mangueira, Vidigal, Rocinha (favelas localizadas nos bairros da Zona Sul). Outra paisagem urbana emerge da voz, dos sonhos, dos dramas, das esperanças e paixões dos seus habitantes. A diferença aparece teimosamente, porém profundamente marcada pela desigualdade social presente na cidade maravilhosa (figura 2).

As favelas surgiram como moradas possíveis de homens e mulheres pobres em uma ordem socioeconômica que se impôs ao processo de produção do espaço urbano carioca. Embora uma obra de todos os seus habitantes, a cidade nem sempre é o espaço do de apropriação e uso de todos. Morro e asfalto são metáforas desse conflito social latente e suas implicações no cotidiano urbano, pois confessam a distinção espacial de direitos sociais na cidade.

 

cidade e favela
Figura 2: Morro e asfalto na paisagem carioca.
A
Favela da Rocinha em primeiro plano, ao fundo a Lagoa Rodrigo de Freitas e o bairro do Leblon (Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro).
Fonte: www.vivafavela.com.br

                                         

A notória a clivagem morro-asfalto exprime uma divisão do estado de natureza vivido por de certas populações em contrapartida ao civilizado domador da natureza. De um lado, os que permanecem em condições de subalternidade, pobreza e distância dos padrões hegemônicos de civilidade. De outro, os que vivem a experiência do progresso, da cultura e da civilização como estilo de vida urbano.

Os residentes nos morros viveriam em situação de barbárie, delineadoras das práticas não-civilizadas, como o banditismo e a violência; ou como representativa da incapacidade e/ou do atraso das populações dos morros proverem sua vida social, cultural e econômica. Enquanto os habitantes do asfalto seriam os que vivem do trabalho, da cultura, da ordem e da lei. A cidade é vista como construída por paisagens/lugares incomunicáveis, separados por fronteiras rígidas que demarcariam relações de inclusão e exclusão social no espaço urbano.

Essas leituras foram - e ainda são - resultantes de uma espécie de naturalização da violência material e simbólica que se reproduz na forma pela qual a cidade foi construída e organizada. A diferença é tratada como atraso e a desigualdade é tratada como incapacidade. Na verdade, estamos diante de um não reconhecimento da pluralidade da cidade, sobretudo com a desqualificação de pessoas e de lugares e, de modo menos explícito, da atribuição aos próprios habitantes das moradas populares a responsabilidade pela situação de pobreza material em que vivem.


Estigmas do corpo na imagem da cidade

As leituras discricionárias inscrevem os estigmas que acompanham os habitantes das favelas e legitimam práticas autoritárias em relação às comunidades populares da cidade, incluindo a remoção de muitas delas para os subúrbios sem asfalto (sem saneamento, transporte ou escolas). Aos estigmas se somaram estratégias de banimento de pessoas indesejáveis, sobretudo durante as décadas de 1960 e 1970[3]. Os morros sempre representaram a contra-paisagem da cidade maravilhosa, portanto deveriam ser banidos para horizontes distantes.

Tal processo autoritário e violento imposto às famílias residentes nas favelas jamais escondeu o seu sentido de “limpeza” da paisagem e sobretudo o de apropriação por parte do mercado imobiliário de terrenos localizados em áreas valorizadas da cidade. Observamos, portanto, que relações autoritárias se impõem e definem conteúdos de opressão na forma de desmontagem dos lugares da vida e trabalho, além da anulação de laços de amizade e vizinhança necessárias à proteção social de famílias pobres da cidade.

 A relação com os chamados morros, ou melhor, as com favelas e seus moradores, é também marcada pela ambigüidade das relações por parte dos moradores do asfalto. O samba, e sua festa máxima, o carnaval, é exaltado como elemento fundamental de imagem do Rio de Janeiro. A força da imagem cidade maravilhosa se alimenta também de expressões culturais que tem sua origem na cultura afro-brasileira, portanto, invenção dos seres humanos chegados ao Brasil - e ao Rio de Janeiro - como escravos. Blocos carnavalescos, escolas de samba e gafieiras se tornaram os espaços primordiais de produção da música, da poesia e da dança consideradas genuinamente da cultura carioca.  

Considerado como uma das expressões mais ricas da cultura carioca e brasileira, o samba nasceu nos espaços populares e transformou-se em uma das mais importantes narrativas da vida na cidade. O samba e a cidade são inseparáveis. Uma generosa ligação parece existir entre as manifestações culturais de origem negra e a cidade maravilhosa. Contudo, a cultura do outro, do diferente - representada pelos negros - foi muitas vezes tratada como exótica e, no limite, mercadoria a ser vendida para os turistas vorazes. Entre esses extremos habitaram práticas discricionárias e arbitrárias, que consideravam os sambistas como marginais e preguiçosos, e seus espaços culturais como antro da malandragem e do perigo.

O samba sempre desceu o morro, principalmente no carnaval, para fazer a festa e alegria do asfalto. Sua provocação maior foi sempre a inversão, mesmo que provisória, de valores e práticas dominantes da cidade: a festa no lugar do trabalho, o corpo no lugar da razão, o prazer no lugar do negócio. Uma criação do mundo ao revés na sua originalidade estética e na produção de identidades culturais plurais na cidade[4].

Todavia, o carnaval vem sendo incorporado à cidade, apesar das suas tradições socioculturais valiosas, como uma empresa de espetáculos de exportação turística. Criou-se, inclusive, um espaço especial e permanente para o desfile das escolas de samba – o famoso Sambódromo – disciplinando e domesticando a festa aos interesses das emissoras de TV e restringindo a presença fugidia e imprevisível de sambistas e foliões nas ruas. Sob o domínio de interesses mercantis, o carnaval é tratado como uma festa para ser vista: mais imagem do que corpo, mais trabalho do que prazer e mais negócio do que ócio.

Há uma nova situação, entretanto, o sambista não é mais tratado como vagabundo ou potencial criminoso (esse estigma recai agora sobre os grupos populares de funk e hip-hop), como nas primeiras décadas do século XX. Não há mais repressão ou restrição à festa máxima do samba como havia até as primeiras décadas do século passado, mesmo porque agora os brancos das classes médias se inserem ao espetáculo. Mulatas flamejantes desfilam sua beleza, enquanto passistas e músicos exibem sorrisos e virtuoses. São admirados, fotografados, saudados e homenageados como os “donos” do samba. Esses artistas anônimos, sempre reverenciados nos carnavais, muitas vezes são os mesmos pretos e pardos tratados com rispidez e violência pela polícia quando estão nos morros. São os mesmos pretos e pardos (negros) considerados como incapazes e pouco afeitos ao trabalho pelos olhares preconceituosos que ainda permanecem entre muitos dos moradores do asfalto.

Revela-se outra face das relações perversas em nossa cidade, o tratamento desigual dado às pessoas, sobretudo aos negros, de acordo com o lugar que habitam e a paisagem que encarnam. O corpo e a imagem são combinados de acordo com as relações que se quer estabelecer sobre determinados grupos sociais e indivíduos. Portanto, não estamos diante de um tratamento meramente ambíguo de pessoas e práticas culturais. A discriminação tem um sentido explícito dos lugares diferenciados do corpo na cidade e, evidentemente, da imagem que os simboliza. 

Os lugares carregam o estigma das imagens, assim como os seus moradores carregam os estigmas no corpo.  Longe das favelas os preconceitos não se diluem facilmente, sobretudo em relação aos jovens negros. Basta que eles andem pelas ruas em grupo e se vistam com bermudas, bonés e cordões para serem tomados como uma provável ameaça. As imagens atravessam os lugares e acompanham os corpos. A discriminação social combina-se a discriminação étnica que reitera a violência física e discriminação simbólica em relação aos pretos e aos pardos oriundos dos morros da cidade.         

 
A Paisagem do Morro como mirada da Cidade

A construção de imagens dicotômicas, sintetizadas na relação asfalto/morro, exprime processos de hierarquização territorial de direitos sociais na metrópole carioca. Distinções autoritárias e arbitrárias que fortalecem, sem menor dúvida, as restrições ao uso pleno da cidade como espaço da realização da vida em sociedade.

As favelas cresceram, expandiram e consolidaram sua ocupação nos morros, nas orlas e nas margens dos rios. Seu ritmo foi vertiginoso. Na década de 1990, a taxa de crescimento anual dos habitantes das favelas atingiu a 2,4 por cento, enquanto na década anterior era 1,91. Atualmente, segundo as informações do censo 2000 do IBGE, 18,7 por cento da população da cidade do Rio de Janeiro reside em favelas localizadas ao sul, ao norte e ao oeste da cidade[5]. Cada uma delas - e em cada conjunto geográfico - guarda sua própria história, porém é necessário reconhecer que essas formas particulares são integrantes da construção de uma mesma cidade, pois são fruto e semente da urbanização carioca.

Em algumas situações as favelas acompanharam o deslocamento ou implantação de fábricas e o crescimento de atividades comerciais e de serviços. Em outras, a favela chegou primeiro, originando a geografia de novos bairros como mercados de terras, trabalho e consumo. Na maioria das vezes foi à procura por trabalho que originou a localização de muitas delas, além da busca de moradia. As favelas nos mostram que a paisagem é uma dimensão que exprime as condições sociais em que os homens e mulheres habitam o espaço urbano metropolitano.

Não se pode desconsiderar, entretanto, que o processo de crescimento e expansão das favelas está diretamente relacionado às condições sociais e políticas de regulação fundiária, de produção da habitação e de distribuição de serviços urbanos. Estas relações de poder assumiram a condição de instrumentos poderosos de distinção sócioespacial, empurrando a população mais pobre para as áreas de menor valor monetário e simbólico na metrópole.

Como afirmamos anteriormente, a incômoda presença das favelas na paisagem da cidade, sobretudo as localizadas na Zona Sul, foi um dos elementos decisivos para as políticas de remoções das décadas de 1960 e 1970. As famílias residentes nas favelas perderam, com as práticas de remoção do Estado, a relação mais cotidiana com parentes, amigos e vizinhos com os quais teciam uma vasta rede de ações de solidariedade e de proteção social indispensáveis à sua existência na cidade.

A construção de conjuntos habitacionais na periferia da cidade - Cidade de Deus (Zona Oeste); Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança (Zona Norte) – para abrigar as famílias removidas fazem parte desse processo de mudança da paisagem, cujo conteúdo autoritário e compulsório estava imerso nos interesses do capital imobiliário na construção de prédios e condomínios para classes de média e alta renda. Em contrapartida, esses mesmos conjuntos habitacionais - e seu entorno - se transformaram rapidamente em espaços favelizados, recaindo sobre eles os mesmos estigmas atribuídos às favelas (Figura 3).

 

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Figura 3: Conjunto Habitacional da Cidade de Deus (1970)
A Cidade de Deus é um dos péssimos exemplos de aplicação do urbanismo racionalista. Blocos uniformizados para funções pré-determinadas sem levar em conta as expectativas de uso de seus moradores. Acrescenta-se, ainda, que o conjunto habitacional foi edificado sem a devida provisão de serviços básicos de qualidade e de transportes públicos, além da notória  desatenção às condições ambientais.  
Fonte: www.vivafavela.com.br

 

Revela-se, portanto, o processo de construção de uma identidade imposta à cidade do Rio de Janeiro: identidade que se fundamenta em critérios de sociabilidade expressos na paisagem natural simbolizada - e nos lugares que as reverenciam - como arquétipos de progresso e civilização. A força da imaginária redutora das diferenças e, sobretudo, legitimadora das desigualdades sócio-espaciais, permanece em conflito permanente, aberto ou latente, com recortes urbanos populares. Dentre eles, as favelas são, sem dúvida, os seus principais lugares contrapontísticos, constituindo duelos em causa na paisagem.  

 As favelas são, na realidade, moradas possíveis de invenção da vida, do trabalho, da cultura e da sociabilidade de homens e mulheres sem direitos plenos de apropriação e uso do espaço urbano carioca. Apesar de toda a sua expressão quantitativa e qualitativa na história da cidade, as favelas nunca foram reconhecidas na sua positividade e importância na construção do espaço urbano, no passado e no presente. A negação da sua presença na cidade e a ambiguidade perversa no tratamento de seus moradores são elementos matriciais das atitudes político-ideológicas e das práticas socioculturais dominantes que reproduzem relações discricionárias e, no limite, profundamente conservadoras, do significado da cidade. Esse não reconhecimento da alteridade dos demais habitantes do Rio de Janeiro tem produzido relações excludentes e intolerantes que, por sua vez, reproduzem a negação de um direito social primordial: o direito de ser paisagem.

 

Figura 4: Paisagem do Morro do Timbau (Favela da Maré, Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro)
Fonte: Rosilene Miliotti (Agência Fotográfica Imagens do Povo – Observatório de Favelas do Rio de Janeiro).

 

Conclusão

Para Walter Benjamim a cidade deveria ser lida como se fosse uma floresta de símbolos. Seus encantos e desencantos deveriam ser explorados. Ruas, becos, esquinas e vãos guardavam memórias recônditas que, para o filósofo alemão, deveriam ser despertadas como marcas do tempo e do espaço.  A cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada como uma geografia de fusão e fissão de imagens dos sentidos dos lugares que a compõem. Essas imagens exprimem, por excelência, os conflitos de marcações dos lugares que pertencem - ou que não devem pertencer - à ordem simbólica considerada e aceita como expressão de civilidade e do progresso. Por outro lado, o romantismo que muitas vezes envolve as leituras das belezas naturais da paisagem carioca oculta ideologias conservadoras, sobretudo as que discriminam sujeitos sociais e lugares da metrópole e, consequentemente, as condenam a invisibilidade social e cultural.

A identidade imposta da cidade maravilhosa revela seu sentido mais conservador ao naturalizar a desigualdade social, concretamente manifesta na lugarização diferencial das paisagens. Morro e asfalto há mais de um século compõem o processo da construção imaginária da cidade, são inseparáveis nos seus conflitos e contradições. São representativos de uma história social e política impressa nas formas urbanas. Reconhecer a existência de suas diferenças - e desigualdades - é fazer da floresta de símbolos um espaço/tempo para uma nova mirada consciente e intencional da paisagem e, a partir da construção de sua leitura crítica, outra referência para a utopia da cidade maravilhosa.

 

Notas

[1] BARBOSA, Jorge Luiz. Modernização Urbana e Movimento Operário. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Geografia. UFRJ, 1990.

[2] Os cortiços e as casas de cômodo continuaram a ser, pelo menos até as primeiras décadas do século XX, as principais possibilidades de moradia da população mais pobre nas áreas centrais da cidade. BARBOSA, Jorge Luiz. Olhos de ver, ouvidos de ouvir: os ambientes malsãos da capital da República. In: ABREU, Mauricio. Natureza e sociedade no Rio de Janeiro.  Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992.

[3] Durante as décadas de 1962 e 1973 foram removidas cerca de 140 mil pessoas residentes em favelas, principalmente das localizadas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (Ver SOUZA E SILVA, Jaílson de, e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela: alegria e dor da cidade. São Paulo/ Rio de Janeiro: SENAC / X – Brasil, 2005, p. 45/47)

[4]  Para o aprofundamento do tema, ver Nelson N. Fernandes, La ciudad y la fiesta. Orígenes, desarrollo y significado de las “escolas de samba” de Rio de Janeiro (1928 -1941). Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.Universidad de Barcelona, Nº 24, 1 de julio de 1998.

[5] A população total do município do Rio de Janeiro alcançava seis milhões de habitantes em 2000 (Censo 2000, IBGE).

 

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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]



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Ficha bibliográfica:

BARBOSA, Jorge Luiz. Paisagens da natureza, lugares da sociedade: a construção imaginária do Rio de Janeiro como cidade maravilhosa. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 865, 25 de marzo de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-865.htm>. [ISSN 1138-9796].