Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XV, nº 912, 28 de febrero de 2011

[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

ADAPTANDO-SE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS: LIMIARES, VALORES E GOVERNANÇA

ADGER, W. N.; LORENZONI, I.; O’BRIEN, K. L. (Eds). Adapting to Climate Change: Thresholds, Values, Governance. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. 514 p. [ISBN 978-0-521-76485-8]

 

Rafael D’Almeida Martins
Doutorando em Ambiente e Sociedade, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil.
Coordenador da Rede de Pesquisadores do Earth System Governance Project, International Human Dimensions Programme on Global Environmental Change (IHDP)
rafael@cepps.org.br

Recibido: 27 de mayo de 2010. Aceptado: 15 de septiembre de 2010.


Palavras-chave: adaptação, mudança climática, governança

Keywords: adaptation, climate change, governance


Preâmbulo

A rápida mudança do clima que se observa nas últimas décadas é, talvez, um dos maiores desafios a serem enfrentados pela sociedade moderna (Giddens, 2009). Suas dimensões físicas, ecológicas, econômicas, políticas, culturas e éticas apresentam claras implicações locais, nacionais, regionais e globais e os impactos resultantes dessas alterações já são evidentes em várias regiões do mundo, colocando sob riscos crescentes diversos grupos populacionais vulneráveis. Assim colocado, diferentes escolhas sobre como as sociedades poderão reduzir suas vulnerabilidades, apesar das incertezas inerentes ao próprio sistema climático, sua variabilidade interna e ao funcionamento do chamado sistema terrestre, deverão ser enfrentados com a devida urgência defendida pelos cientistas, sobretudo após a publicação em 2007 do Fourth Assessment Report (AR4) do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC em inglês; IPCC, 2007).


Mitigação e Adaptação

Já existem evidências científicas suficientes de que mesmo com agressivos cortes de emissões de gases de efeito estufa (GEE), pouco prováveis no curto-prazo após o fracasso das negociações internacionais verificadas na COP-15 em Copenhagen, Dinamarca, o clima continuará a ser alterado significativamente nas próximas décadas dada a inércia presente em vários sistemas sociais e físicos do planeta (Matthews & Caldeira, 2008; Parry et al., 2008; Smith et al., 2009). Como resultado, a adaptação a novos padrões climáticos não é somente uma realidade, como se torna, também, um imperativo. Isso significa que um foco maior deve ser dado em como cidades, regiões, países, comunidades e indivíduos em diferentes contextos podem aumentar sua capacidade de resposta, ou capacidade adaptativa, aos impactos atuais e futuros que não podem e, provavelmente, não poderão ser evitados nos próximos anos. Tais medidas de adaptação, por assim dizer, deverão ser complementadas por esforços claros na direção da mitigação do problema, pois, no longo-prazo, essas escolhas de redução de emissões é que determinarão fundamentalmente a gravidade e a intensidade da mudança climática, seus impactos e o grau de adaptação que será necessário no futuro, mesmo que essa também dependa de fatores conjunturais como, por exemplo, elementos geográfico-espaciais ou dinâmicas sócio-econômicas. Nesse sentido, mitigação também é essencial para evitar impactos que excedam a capacidade de carga dos diferentes sistemas sócio-ecológicos, garantindo que esses tenham a possibilidade de adaptar-se a nova situação imposta pela mudança climática, ou seja, sem ultrapassar os limiares de resposta desses sistemas, onde mudanças e perdas tornam-se irreversíveis (Adger et al., 2009; Mastrandea et al., 2010).

Entretanto, até recentemente, o tema da adaptação às mudanças climáticas foi tratado de forma marginal em círculos acadêmicos e políticos e no discurso geral sobre a mudança do clima, levando alguns a chamarem de o “tabu da adaptação” (Pielke Jr et al., 2007). Muitos acreditavam que investir recursos e esforços na direção da adaptação aos impactos da mudança climática induzida por atividades humanas iria desviar o “foco principal” de resposta ao problema, historicamente definido em termos da mitigação das causas, ou seja, emissões crescentes de GEE, como CO2, CH4, e N2O no período pós-revolução industrial. Outros, mais céticos, ou mesmo mais cínicos, acreditavam que as adaptações necessárias aconteceriam de forma automática, natural, uma vez que as mudanças ambientais tornassem visíveis, convencidos da notável, e amplamente reconhecida, adaptabilidade da espécie humana. Tal pensamento, apesar de ter alguma validade e comprovação empírica, ignora as crescentes desigualdades presentes no mundo atual em termos de recursos, capacidade e responsabilidade sobre as causas e consequências do problema, tema esse que já foi tratado anteriormente com alguma profundidade na literatura internacional (Adger et al., 2006). Também ignoram a dependência de diversas sociedades em relação a vários recursos naturais e serviços ecossistêmicos que poderão ser extintos ou danificados caso nada seja feito para manter a mudança ambiental global, incluindo a climática, dentro de padrões seguros para vida no planeta (neste sentido, ver os recentes trabalhos de Rockström et al., 2009).

Impulsionados por novas evidências científicas sobre o aumento de temperaturas da superfície da Terra, o derretimento das geleiras no Ártico e, sobretudo, do aumento do nível dos mares, que vêm sendo regularmente publicadas e revisadas desde a divulgação do último relatório do IPCC (ver, por exemplo, Füssel, 2008, entre outros, para uma revisão), existe hoje consenso sobre a necessidade de informações e dados atualizados e pesquisas de alto nível na área da adaptação tanto em esferas políticas como cientificas. Essa demanda crescente por parte de cientistas, governantes e tomadores de decisão vêm impulsionando um aumento exponencial nas atividades que tenham como foco adaptação, sejam elas projetos de investigação ou a publicação de artigos científicos em revistas arbitradas (Arnell, 2010; Barnett, no prelo), resultado do aumento de recursos investidos em pesquisa e da urgência de respostas para questões que ainda não foram devidamente abordadas.


O livro: estrutura, autores e contribuição

O livro em questão, de forte orientação interdisciplinar, examina, em detalhes, se existem limites e barreiras para adaptação aos impactos das mudanças climáticas que foram observados até o momento e que são projetados para o futuro. Beneficia-se da contribuição de diferentes disciplinas, como a Geografia, Antropologia, Economia e Ciência Política, uma vez que a mudança ambiental e ecológica e alterações em políticas públicas e decisões que envolvem usos de recursos naturais, valores e prioridades societais não podem ser compreendidos de maneira restrita e disciplinar.

Divido em três partes, cada qual aborda um dos temas-chave identificados no subtítulo da obra, quais sejam, limiares, valores e governança, o livro ilustra em seus 31 capítulos distribuídos em mais de 500 páginas, várias abordagens teórico-metodológicas, bem como estudos de caso que compõem um rico repertório de ações no sentido da adaptação que navegam pelas escalas do espaço e do tempo, abrangendo perspectivas histórica, contemporânea e futura, de contextos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como se debruça na análise de iniciativas no âmbito da comunidade internacional.

Organizado por W.N. Adger, Irene Lorenzoni e Karen L. O’Brien, todos participantes do IPCC e reconhecidos internacionalmente na área por conta de sua extensa produção acadêmica e intelectual, o livro se beneficia da contribuição e capítulos de mais de 70 autores oriundos de instituições variadas. No primeiro capítulo, os organizadores analisam o papel dos diversos tipos de limiares que devem ser analisados para as medidas de adaptação. Estes limites são influenciados não apenas por fatores físicos, do meio natural, mas também por elementos sociais, culturais e cognitivos. Vários dos capítulos presentes no livro consideram as formas como tais limiares podem ser alterados ao longo do tempo por meio de ações adaptativas.


Parte I - Limiares

No capítulo 2, G. Peterson discorre sobre os limites ecológicos para a adaptação. O autor argumenta que a interferência humana em serviços ecossistêmicos tem reduzido a capacidade dos ecossistemas em se auto-regular, aumentando, assim, as possibilidades de mudanças abruptas no funcionamento ecológico. Este declínio tem consequências importantes para a capacidade das pessoas se adaptarem à mudança climática, que Peterson exemplifica discutindo possíveis mudanças no regime da água, essencial para atividades agrícolas. Ele salienta que o declínio nos serviços dos ecossistemas pode levar a mudanças abruptas que colocam novos desafios para a adaptação. Restauração ou reforço de serviços ecossistêmicos oferece um mecanismo para o aumento de resiliência às alterações climáticas, e que deveria ser considerado como uma importante estratégia para adaptação.

Os impactos das mudanças climáticas destacados no primeiro capítulo envolvem tanto fenômenos físicos, como atividades ecológicas em sistemas como o de recursos hídricos, infra-estruturas e zonas costeiras. Os capítulos 3 e 4 analisam em detalhes dois temas onde soluções de engenharia são relevantes quando combinadas ao contexto social. N. Arnell e M. Charlton discutem a necessidade de adaptações como forma de responder a crescente escassez de água no Sul da Inglaterra. Os autores mostram como soluções viáveis economicamente e tecnologicamente, como a construção de novos reservatórios, é limitada pela legislação ambiental e pela ausência de áreas disponíveis para essas intervenções. O estudo de caso ilustra como mesmo quando recursos e tecnologia estão presentes, a adaptação pode ser impedida ou limitada por fatores sociais e institucionais.

No capítulo 4, T. Reeder e colaboradores apresentam um estudo sobre medidas de adaptação que são necessárias para proteger a cidade de Londres e o estuário do Rio Tamisa, que apresenta um dos melhores sistemas de defesa contra inundação por aumento de maré no mundo. O projeto no qual a pesquisa faz parte, The Thames Estuary 2100, aborda as opções de gerenciamento de risco que poderão proteger o estuário em um contexto de crescente elevação do nível do mar e maior incidência de ressacas marítimas e tempestades projetadas pelos cenários de mudança climática. Ao identificar novos limiares de risco de inundação no futuro, medidas antecipatórias e planejadas podem ser formuladas, adaptando o sistema e disponibilizando formas de gerenciar um novo nível de risco. Isto inclui a identificação do ponto em que soluções de intervenção através de engenharia são consideradas impraticáveis para controlar o risco de inundação. Uma das lições mais importantes deste estudo é que o tempo necessário para tomar decisões de adaptação é, muitas vezes, longo, e não se pode simplesmente esperar até que um desses limiares de adaptação seja atingido, ou ultrapassado, para começar a buscar soluções. Essas devem ocorrer em antecipação e não de forma meramente reativa.

No capítulo 5, S. Dessai e colegas investigam o papel da incerteza na adaptação às mudanças climáticas, questionando a hipótese de que previsões climáticas é o melhor pré-requisito para respostas adaptativas eficazes. Eles salientam que como o clima é apenas um entre muitos processos incertos que influenciam a sociedade, previsões climáticas não devem ser um instrumento central para orientar a adaptação. Em vez disto, estratégias robustas em relação a vários cenários climáticos futuros devem ser usadas como base para decisões de adaptação. Em outras palavras, os limites para a previsão do clima não devem ser interpretados como um limite para a adaptação. Melhores previsões baseadas em modelos climáticos desenvolvidos em supercomputadores podem vir em detrimento de melhor entendimento da vulnerabilidade de decisões sobre alternativas adaptativas tomadas em contextos rodeados por grandes e irredutíveis incertezas.

No capítulo 6, A. Patt analisa o potencial de previsões climáticas sazonais para aumentar a capacidade adaptativa. Estas previsões, desenvolvidas para enfrentar a variabilidade do clima como no caso do fenômeno El Niño, pode ser considerado um passo importante em direção à adaptação, uma vez que essa demanda flexibilidade de respostas. No entanto, o autor ressalta que embora a falta de flexibilidade possa ser incorporada culturalmente e ser difícil de alterar, essas previsão possibilitam a construção de laços entre cientistas, instituições públicas e usuários de informação climática. Em outras palavras, elas não só podem ajudar a melhorar a forma como se lida hoje em dia com a variabilidade climática, mas também estabelece uma base para boas práticas de adaptação no futuro. Um ponto-chave que merece ser destacado é que não se trata apenas dos aspectos tecnológicos das previsões, mas também das relações sociais e institucionais que são feitas entre as pessoas. Quando se trata de adaptação, colaboração e parceria entre pessoas e organizações aparecem como importantes para a implementação dessas medidas no futuro.

No capítulo 7, A. Dugmore e colaboradores investigam evidências históricas a partir de registros arqueológicos para apresentar algumas conclusões preocupantes sobre adaptação às mudanças climáticas em assentamentos humanas na Groenlândia. Eles mostram que embora essas comunidades nórdicas tenham adaptado seus modos de vida e de subsistência a condições de mudança do clima, tais grupos populacionais tomaram decisões que reduziram sua resiliência em relação a mudanças naturais e culturais, e, como resultado, os assentamentos entraram em colapso e desapareceram. Ao enfrentar múltiplos estressores, incluindo os desafios combinados da mudança econômica, contato cultural com os povos Inuit e mudanças do clima, eles não foram capazes de responder efetivamente a nova situação. Uma lição que pode ser tirada deste exemplo é que uma adaptação bem sucedida ao longo de uma determinada trilha de desenvolvimento pode, ao mesmo tempo, diminuir a resiliência e, eventualmente, levar a crises.

Um quadro mais otimista de adaptação é apresentado por J. Ford no capítulo 8. Baseado em evidências observadas e empíricas da comunidade Igloolik no território canadense de Nunavut, no Ártico. Ao explorar se há limites para adaptação em relação a mudanças do gelo do mar, Ford encontrou sinais de aumento da adaptabilidade e evidências de aprendizagem social através de formas de tentativa e erro, o que levou à evolução do conhecimento tradicional Inuit. No entanto, embora uma combinação de medidas de gestão de riscos, como prevenção e estratégias de partilha facilitadas pelo conhecimento Inuit permitiram o controle dos riscos resultantes de menor quantidade de gelo, o estudo de Ford também sugere que os limites de adaptação são mais dependentes de fatores culturais, onde alterações necessárias para manter a subsistência e a segurança alimentar podem comprometer os valores sociais e culturais dos povos Inuit.


Parte II - Valores

A segunda parte do livro inclui análises teóricas e empíricas sobre as implicações de diversos valores e visões de mundo na aplicação de adaptação. Os capítulos analisam a forma como esses valores se manifestam no comportamento observado em diferentes contextos e como esses valores são captados por diferentes modelos e marcos teóricos. Diversos valores são evidentes, por exemplo, nas atitudes de percepção do risco entre idosos no caso do fenômeno das ondas de calor ou em populações que sofrem com o risco de inundação. A descrição e a análise dos valores subjacentes e dos traços culturais é um dos temas centrais, se não o mais importante, nas ciências sociais. Nesse sentido, os capítulos desta parte exploram como os valores são descritos e abordados por meio de análises econômicas, de vulnerabilidades, assim como resultados da mudança demográfica. Esta parte do livro busca ilustrar que a análise das possibilidades de adaptação na escala global não consegue capturar facilmente a diversidade e a natureza conflitante desses valores, nem os padrões de suas mudanças ou transformações.

B. Orlove, no capítulo 9, demonstra como a adaptação é usada pelo governo e por agências que trabalham como a temática das mudanças climáticas, discutindo valores inerentes a essa utilização. O autor defende que a evolução do uso do termo “adaptação” nas últimas três décadas no interior de comunidades científicas, reforça correntes que defendem um intervencionismo no processo de desenvolvimento, muitas vezes em detrimento das prioridades e percepções dos agricultores e populações rurais de países em desenvolvimento que efetivamente enfrentam os riscos climáticos no dia-a-dia. K. O’Brien, no capítulo 10, faz uso da teoria social para tratar da mudança de valores. Mesmo que a ciência social possa capturar a presença de valores nos processos de tomada de decisão, esses valores (como o que as pessoas se preocupam e qual sua relação com os lugares onde vivem) são passíveis de mudar ao longo do tempo, o que pode influenciar as maneiras pelas quais as futuras gerações vêem as medidas de adaptação. Muitos noruegueses, por exemplo, mantêm valores tradicionais, modernos ou pós-modernos que influenciam entendimentos do que é ser norueguês e o que é ser um cidadão. Alguns desses valores, incluindo valores referentes à cobertura de neve, são desafiados por um clima em mudança. A discussão sobre os aspectos econômicos da perda potencial de dias de esqui pode, portanto, ser irrelevante para pessoas que valorizam a cobertura de neve como algo intrínseco à identidade norueguesa. Idéias semelhantes são oferecidas por J. Wolf e seus colegas no capítulo 11, que analisa as diferenças na percepção de risco em relação à onda de calor em populações idosas que são expostas a maior risco devido a sua idade e seu estado de saúde. Eles mostram que algumas pessoas se definem por sua independência e, portanto, resistem a qualquer ajuda externa para reduzir a sua exposição ao risco, mesmo em relação a pessoas próximas e com forte vínculo social. O estudo revela importantes questões relativas à intervenções governamentais efetivas, sobretudo na área de saúde pública, onde as vulnerabilidades são persistentes e enraizadas em valores profundamente arraigados.

Também é evidente que há limites para forma como a economia lida com os valores sociais que não aparecem nos mercados. Esta limitação é amplamente reconhecida, inclusive no Relatório Stern, documento liderado pelo economista britânico, Sir. Nicholas Stern, sobre a economia das mudanças climáticas. A. Hunt e T. Taylor argumentam no capítulo 12 que a economia continua a fazer progressos no sentido de incorporar tais valores sem representação de mercado em termos de levantamento de custos e avaliações de risco. Eles usaram metodologias específicas para, por exemplo, obter o valor de bens históricos e culturais (uma igreja e uma cervejaria em Sussex) que estão sob risco de inundações e mostram que a incorporação de preferências afeta os resultados sobre decisões que seriam tomadas meramente sob bases de eficiência e racionalidade econômica. O estudo sugere que essas técnicas devem ser complementadas por outros instrumentos de análise para incorporar valores em processos de tomada de decisão. Todavia, H. Eakin e colegas, no capítulo 13, investigam mais diretamente as bases da eficiência como diretriz para tomada de decisões de adaptação. Eles mostram que não há equilíbrios entre eficiência ou abordagens de vulnerabilidade ou de resiliência para adaptação. Abordagens de vulnerabilidade, em especial, carregam uma visão radicalmente diferente da ética do que a presente na avaliação de valores em termos de eficiência, já que a perda de alguns não pode ser compensada pelo ganho dos outros (como em abordagens utilitaristas). No capítulo 14, J. Ensor e R. Berger descrevem os princípios para tomada de decisão em termos de uma ação coletiva por parte da comunidade com base em noções de comunitarismo e capital social, que contrastam com as noções utilitaristas da agregação de preferências individuais e de utilidade. Suas ilustrações de adaptação à mudança climática no nível da comunidade demonstram que a cultura e o bem coletivo são centrais para a forma como as pessoas valorizam o seu próprio bem-estar.

As implicações dos diversos valores são ainda mais exploradas nos capítulos de T. Jennings (capítulo 15), S. Coulthard (capítulo 16) e T. Heyd e N. Brooks (capítulo 17). Cada um destes demonstra como valores mantidos por aqueles que apresentam menos poder, ou cujos valores não se encaixam facilmente nas ferramentas analíticas estabelecidas, são subordinados ou simplesmente ignorados. Jennings demonstra como os habitantes locais e visitantes constroem e gerenciam seus riscos. No caso da comunidade de Boscastle, Sudoeste da Inglaterra, a implementação de medidas de risco contra inundação após uma grande enchente, em 2004, excluíram de seu escopo conhecimentos e práticas locais, em detrimento do planejamento inclusivo e do compromisso com os riscos envolvidos. A autora argumenta que comunidades de pescadores e pessoas que praticam a pesca como fonte de subsistência já gozam de notório saber para poderem ser considerados “adaptadores profissionais”, já que lidam continua e historicamente com recursos flutuantes e variáveis. Ela mostra como valores comuns enraizados em comunidades de pesca, neste caso no Sul da Ásia, apresentam formas inovadoras para manter a atividade pesqueira. Mas, uma vez que sua identidade está intrinsecamente ligada a esta atividade, espera-se que será difícil para que esses pescadores “abandonem suas redes”, por esta ser uma adaptação que está muito distante dos sistemas de valores dessas pessoas e lugares. Tal afirmativa se reflete na discussão proposta por Heyd e Brooks, talvez umas das principais lições que possam ser tiradas deste livro, de que a muitas medidas de adaptação às mudanças climáticas não serão facilmente implementadas, e mesmo aceita, por muitos dos envolvidos nesses processos de mudança.

Uma fronteira importante da pesquisa sobre adaptação é a forma como valores relativos ao conhecimento das pessoas e do sentido do lugar dizem respeito à sua adaptação no processo de tomada de decisão. Os capítulos apresentados por R. Balstad e colegas (capítulo 18) e por R. McLeman (capítulo 19) buscam uma resposta a este problema através da aplicação dos conhecimentos disponíveis em ciências como a psicologia, a geografia cultural e a demografia. Balstad e colaboradores mostram, através de uma análise histórica das secas da década de 1930 em Great Plains, Estados Unidos (EUA), que estratégias diversas de adaptação realizadas por grupos populacionais diferentes (pequenos colonos e agricultores) foram processadas de maneiras diferentes devido às suas experiências anteriores. Este descompasso promoveu um bloqueio das estratégias e alternativas individuais para contornar o problema. Assim, ao serem confrontados com um extremo climático que nunca haviam enfrentado, muitos colonos de Dakota do Leste decidiram abandonar atividades ligadas à agricultura como única saída à seca. Uma das mais importantes decisões transformadoras em termos de adaptação que pode ser tomada por qualquer indivíduo é mudar sua localização, ou simplesmente migrar. A teoria demográfica oferece alguns insights sobre como essas decisões são tomadas e com quais motivações. McLeman, novamente com base na experiência dos residentes rurais de Great Plains, EUA, mostra como capital social, redes sociais e senso de pertencimento a um lugar específico são determinantes de como essas adaptações acontecem.


Parte III - Governança

A terceira parte do livro aborda questões de governança no âmbito dessas adaptações abrangendo um leque de escalas de análise, a partir do nível internacional até as contribuições locais, baseando-se em estudos teóricos e empíricos de regiões como Europa, Oriente Médio, África e Américas do Norte e do Sul. S. Moser, no capítulo 20, oferece uma visão sistemática do papel central das estruturas de governança e dos processos de tomada de decisão neste contexto. Orientando-se por referências teóricas e questões centrais sobre o tema, Moser avalia os processos de tomada de decisão avaliando se esses contribuem para decisões de adaptação bem sucedidas. Ela enfatiza a compreensão limitada verificada atualmente entre perspectivas teóricas de estruturas de governança com dinâmicas sociais complexas que resultem em mudanças concretas. A autora é reticente em relação ao imaginário de que seja possível abordagem de “governança perfeita” para as medidas de adaptação, dado que a noção de governança, entendida por ela como diferentes estruturas, processos e mecanismos, pode tanto inibir, quanto incentivar e apoiar a adaptação.

Barreiras à adaptação materializadas na forma de diferentes estruturas de governança são assinaladas por S. Nicholson-Cole e T. O’Riordan (capítulo 23) na análise do gerenciamento costeiro da Inglaterra. O estudo revela o descompasso entre políticas nacionais e diferentes estratégias regionais e locais de adaptação. O contraste entre estratégias nacionais e locais cria um estado de governança disfuncional, ao invés de adaptável, desafiando as possibilidades futuras de desenvolvimento sustentável e adaptação das zonas costeiras desse país. No capítulo 24, A. Drieschova e colegas analisam o papel da cooperação internacional para a governança de recursos hídricos que extrapolam divisas geográficas e políticas à luz dos impactos esperados pela mudança do clima. Os autores ressaltam que atributos como flexibilidade e regras claras para cumprimento dos contratos são costumeiramente defendidos na gestão desses recursos que envolvem diferentes atores. Todavia, argumentam que flexibilidade pode aumentar a incerteza e que algumas dessas regras de cumprimento de contratos podem aumentar os custos de transação e de negociação do tratado. Por conta disso, defendem a adoção de regimes de governança híbridos que podem combinar esses dois atributos em um único desenho institucional capaz de garantir requisitos ambientais e políticos.

Mas como é que mecanismos de governança podem superar barreiras estruturais de ação na direção da adaptação? No capítulo 25, M. Brockhaus e K. Hermann descrevem como um processo de descentralização só pode resultar em uma governança efetiva da adaptação se limitações de recursos, estruturas e comportamentos são superadas através da utilização do conhecimento local e da capacidade de resposta institucional vis-à-vis as realidades locais. A inadequação de alguns objetivos de governança, orientados por paradigmas particulares, está ilustrada no estudo de realidades nacionais proposto por E. Reinert e colegas no capítulo 26. A pesquisa investigou uma possível inadequação de conhecimentos tradicionais e práticas locais em relação às prioridades da economia de mercado e das próprias economias nacionais. A evolução recente das estruturas de governança permitiu o reconhecimento das formas tradicionais de conhecimento e know-how, superando gradualmente barreiras arraigadas relativas à adaptação sustentável em decorrência da mudança ambiental.

Às vezes, porém, mesmo com estruturas de governança transparentes e adequadas, recursos não são suficientes para fornecer proteção social e os bens públicos necessários para enfrentar os riscos derivados da mudança climática. Este é certamente o caso de muitos países em desenvolvimento. R. Klein e A. Möhner (capítulo 29) desafiam a capacidade dos fundos internacionais para a adaptação em relação às necessidades dos países em desenvolvimento, propondo uma redução da complexidade administrativa, a integração de temas e prioridades para as instituições de coordenação, bem como promover a transparência de procedimentos e diretrizes.

Os capítulos 21, 22 e 28 nesta parte apresentam como processos de governança, estruturas e mecanismos podem ser modificados e aprimorados para superar algumas das dinâmicas observadas que limitam a capacidade de adaptação. O trabalho de T. Finan e D. Nelson (capítulo 21) na região do Ceará atingida pela seca, Nordeste do Brasil, ilustram como uma inovação metodológica a partir da integração de pesquisa participativa com sistemas geográficos de informação (SGI) pode melhorar a persistente desigualdade estrutural criada por um século de procedimentos arcaicos, resultando em planejamento preventivo local. G. Marisa e colegas (capítulo 28) e A. Agrawal e N. Perrin (capítulo 22) examinam o papel das instituições locais na adaptação dos grupos rurais, no contexto das novas estratégias nacionais de adaptação. Agrawal e Perrin revelam a falta de atenção por parte dos governos nacionais às estruturas institucionais que permitem algum tipo de ação dos mais pobres. Eles apontam a necessidade de intervenções focalizadas e da integração de processos com estruturas institucionais a fim de traduzir o investimento público em ações bem sucedidas e que promovam a adaptação. Embora Goulden e colaboradores analisam diferentes mecanismos de adaptação, a comparação dessas estratégias em três localidades diferentes também apóiam a idéia de que o sucesso de estratégias de adaptação depende da compreensão e do reconhecimento de vários fatores que levam a situações de vulnerabilidade por meio de estruturas de governança adequadas, acompanhadas por acesso aos recursos necessários.

T. Inderberg e P.O. Eikeland (capítulo 27) desenvolveram uma abordagem institucional para explorar as barreiras de capacidade adaptativa de um sistema nacional de energia, sugerindo que fatores institucionais podem dificultar a adaptação às mudanças climáticas por conta de trajetórias dependentes de desenvolvimento, indo de encontro às conclusões de Reinert e colegas, no capítulo 26. M. Winsvold e co-autores (capítulo 30) exploram diferentes modos de governança e sua influência na coordenação de medidas de adaptação, relacionando a análise com teorias sobre a aprendizagem organizacional. Os autores identificam como diferentes formas de coordenação podem interagir com as características dos atores, influenciando as respostas e os resultados da ação.

No capítulo final, D. Nelson busca apresentar as principais mensagens do livro. O autor assinala que mudanças no comportamento humano, sejam elas realizadas de forma consciente ou não, influenciam o nível de adaptabilidade da sociedade, independente da escala de tempo. Este é um ponto central, seja pela crise financeira atual, ou para as medidas e respostas futuras às mudanças climáticas. Nelson ressalta, ainda, que novos padrões climáticos, a princípio, não significam o fim do mundo. Porém, estes podem significar a necessidade de uma avaliação profunda na forma como os seres humanos compreendem a natureza e buscam viver em harmonia com ela.


Para não concluir

O livro revela as muitas facetas que são relevantes para a adaptação e que ainda não foram totalmente inseridos ou abordados em debates sobre as mudanças climáticas. Também, os temas levantados nesta obra apresentam motivos reais de preocupação. Se os seres humanos devem aprender a viver com um clima diferente, algumas questões essenciais devem ser abertamente debatidas. Os capítulos apresentados acima discutiram os limiares ecológicos, sociais, culturais e institucionais da adaptação. Eles levantam questões sobre a disposição e a capacidade das sociedades em se adaptar, já que esses processos são confrontados por limiares subjetivos em várias dessas dimensões.

O desafio parece residir na necessidade e na capacidade da sociedade se adaptar de forma sustentável no longo-prazo, tanto à mudança do clima, quanto a um futuro alternativo, diferente, que limite a quantidade e magnitude de mudanças globais ao planeta, garantindo a continuidade da sociedade no futuro. Nesse sentido, talvez a principal lição que fica dos capítulos seja a necessidade de aumentar a resiliência, tanto dos ecossistemas, como das sociedades. Como parte da mudança climática é inequívoca e inevitável, este deve ser considerado um imperativo, um fundamento central, para as ações de adaptação que começam a ser discutidas agora e que certamente serão implementadas ao longo deste século.

Fica claro pelas linhas deste livro que a adaptação é um processo social, imperfeito, influenciado por uma compreensão limitada, e pouco consenso sobre como agir em conjunto. Essa constatação leva a implicações severas para serviços ecossistêmicos, estabilidade econômica e política, e, também, para determinados valores culturais. No entanto, também é claro que a ciência da adaptação ainda não avançou o suficiente para oferecer uma compreensão robusta do que realmente está envolvido nesses processos, quais as incertezas envolvidas e as possíveis perdas e oportunidades, bem como possibilidades de transformações radicais que não poderão ser evitadas.

Fica o convite aos geográficos e a comunidade científica como um todo, para que se engajem no desafio de oferecer caminhos que possam auxiliar a busca de respostas a essas questões.


Bibliografia

ADGER, W. N.; LORENZONI, I.; O’BRIEN, K. L. Adaptation now. In: ADGER, W. N.; LORENZONI, I.; O’BRIEN, K. L. (Eds). Adapting to Climate Change: Thresholds, Values, Governance. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

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© Copyright Rafael D'Almeida Martins , 2011
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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]


Ficha bibliográfica:

MARTINS, Rafael D'Almeida. Adaptando-se às mudanças climáticas: limiares, valores e governança. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 912, 28 de febrero de 2011. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-912.htm>. [ISSN 1138-9796].