Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XVII, nº 989, 25 de agosto de
2012
[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

CONFLITOS AMBIENTAIS EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: DILEMAS DA GESTÃO TERRITORIAL NO BRASIL

 

Andreza Martins
Bióloga, mestranda no Programa de Pós-graduação em Geografia (PPGGeo) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
andrezamartins@hotmail.com

Recibido: 16 de febrero de 2012. Aceptado: 5 de marzo de 2012.


Conflitos ambientais em unidades de conservação: dilemas da gestão territorial no Brasil (Resumo)

Com a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) em julho de 2000, as Unidades de Conservação (UCs) ganham destaque na política brasileira de gestão territorial. Atualmente, 14,65% do território nacional pertence à UCs. Se as metas assumidas pelo Brasil durante a 15ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 15) forem cumpridas, em 2020 aproximadamente 21% do território brasileiro estará sob regime especial de gestão ambiental. Desde a criação do SNUC, conflitos ambientais tem sido objeto de estudo de diversas pesquisas centradas nas interfaces entre populações humanas e espaços naturais protegidos. Este trabalho pretende efetuar uma síntese dos principais resultados da literatura que recorre à categoria conflito ambiental em áreas protegidas do Brasil associando-os ao tema da gestão territorial.

Palavras-chave: unidades de conservação, conflitos ambientais, gestão territorial.


Conflictos ambientales en unidades de conservación: dilemas de la gestión territorial en Brasil (Resumen)

Con la creación del Sistema Nacional de Unidades de Conservación de la Naturaleza (SNUC), en julio de 2000, las Unidades de Conservación (UCs) se destacan en la politica brasileña de la gestión territorial.  En la actualidad, 14,65% del país pertenece a las UCs. Si las metas establecidas por Brasil en la 15ª Conferencia de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático (COP 15) se cumplen, en 2020 tendremos aproximadamente 21% del territorio brasileño bajo un régimen especial de gestión ambiental. Desde la creación del SNUC, los conflictos ambientales han sido objeto de estúdio de diversas investigaciones centradas en las interfaces entre las poblaciones humanas y los espacios naturales protegidos. Este artículo busca efectuar una síntesis de los hallazgos clave de la literatura que recurre a la categoria conflictos ambientales en espacios protegidos de Brasil en asociación con el tema de la gestión territorial.

Palabras clave: unidades de conservación, conflictos anbientales, gestión territorial.


Environmental Conflicts in Conservation Units:  dilemmas of territorial management in Brazil (Abstract)

The Conservation Units (CUs) became highlighted in the Brazilian policy of territorial management with the National System of Nature Conservation Units (SNUC) promulgation. Currently 14.65% of the country is comprised by CUs. If the targets set by Brazil during the 15th UN Conference on Climate Change (COP 15) are met, in 2020 about 21% of Brazil's territory will be under a special regime of environmental management. Since the SNUC promulgation, environmental conflicts have been largely studied focused on the interfaces between human populations and protected areas. This work intends to present a synthesis of the main literature findings regarding environmental conflict in protected areas, in Brazil, associated with the issue of territorial management.

Key words: conservation areas, environmental conflicts, territorial management.


As ações do campo ambiental no Brasil começaram a ganhar destaque entre o final dos anos de 1960 e início de 1970, como resultado de uma combinação de elementos conjunturais externos e internos ao país. As primeiras associações formais de cunho ambiental estavam localizadas nos estados do sul e sudeste e se constituíram sob uma agenda de reivindicações por preservação ambiental como forma de sobrevivência da espécie humana. Com o retorno dos exilados políticos da ditadura militar, instaurada em 1964, que voltaram influenciados por protestos ambientalistas internacionais, e a publicação, em 1972, de alguns estudos que alertavam para o esgotamento iminente das principais fontes de recursos naturais, estava completo o cenário político que deu origem à trajetória do ambientalismo no país [1].

Até o final dos anos de 1980, a tônica do movimento ambientalista brasileiro e das políticas públicas relacionadas à gestão ambiental, em geral, pautava-se por uma visão centrada na superioridade da natureza sobre a espécie humana. A criação de espaços naturais protegidos, ou Unidades de Conservação (UCs), já era uma das principais estratégias da política ambiental brasileira baseada no modelo biogeográfico de “ilhas de diversidade”. Dito de outra forma, as UCs desse período eram criadas sob um regime de “proteção integral”, onde não se admite a permanência humana de nenhuma natureza. De acordo com Orlando (2009), até o final dos anos de 1980, foram criadas setenta e quatro UCs com essas características.

Com a difusão da noção de desenvolvimento sustentável, a partir da RIO 92, o debate sobre populações humanas e UCs ganha relevo e processa-se uma mudança de foco nas políticas de criação de espaços naturais protegidos. A admissão de alguns tipos de interações entre esses espaços e a sociedade começa a ser difundida. O Brasil, seguindo a tendência global, porém sem abandonar a estratégia anterior, adota o modelo de UCs de Uso Sustentável (UUS) como principal ferramenta política para gestão da biodiversidade. O modelo de UUS tem por objetivo compatibilizar conservação da natureza com uso sustentável de parcela dos recursos naturais (BRASIL, 2000). Segundo Orlando (2009), entre o início dos anos de 1990 e de 2008, foram criadas cento e dezessete UUS contra apenas quatorze UCs de Proteção Integral (UPIs).

A implantação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000, sinaliza a consolidação da política nacional de gestão territorial de espaços naturais. O SNUC organiza e estrutura algumas das áreas geográficas ambientalmente mais valiosas do país, a exemplo das UCs da Mata Atlântica e da Amazônia. Ele ainda estabelece critérios e regras para o manejo de áreas protegidas nas diferentes escalas da federação.

Em recente avaliação do SNUC, o Ministério do Meio Ambiente (2010) afirma que a criação de UC continua sendo uma das principais estratégias da política ambiental brasileira. Essa orientação está espelhada no fato de que a delimitação de áreas naturais protegidas é a mais antiga e efetiva iniciativa para a conservação da natureza no mundo. A mesma publicação disponibiliza alguns dados que refletem não só a importância dessa política, mas também seu impacto sobre o território nacional. Atualmente, cerca de 17% do território brasileiro encontra-se sob a proteção de UCs, o que equivale a, aproximadamente, 1,5 milhão de quilômetros quadrados. Para se ter um parâmetro de comparação, essa área corresponde à soma dos territórios da França, Itália e Espanha. Ademais, se as metas assumidas durante a 15ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 15) forem cumpridas, em 2020 teremos em torno de 21% do território nacional integrado à UCs.

Estes dados refletem a dimensão dos desafios embutidos nas políticas de gestão territorial de cunho ambiental e evidenciam a necessidade de aprofundar o conhecimento teórico e empírico sobre as áreas protegidas. Em anos recentes, as áreas naturais protegidas também vêm se consolidando enquanto tema de investigação científica, sobretudo por estarem inerentemente associadas à geração de conflitos e disputas pelo uso do espaço. Alguns estudos, em especial no campo da sociologia ambiental e ecologia política, adotam a categoria analítica conflito ambiental com o intuito de evidenciar os múltiplos sentidos atribuídos pelos atores às suas bases materiais, assim como as assimetrias sociais na distribuição de recursos, espaço e poder em UCs.

A partir desse enfoque, algumas pesquisas têm questionado a supremacia e eficácia da categoria “populações tradicionais” para discutir o papel das populações humanas na proteção da natureza. O tema da participação política também vem sendo revisitado mediante olhares que colocam em cheque a hierarquia entre Estado e sociedade civil, em especial no interior de UUS. Alguns estudos têm demonstrado que a simples participação popular em conselhos gestores de UCs não implica, necessariamente, compartilhamento de poder e diminuição do índice de conflitualidade. As UCs localizadas na Amazônia, sobretudo aquelas com sobreposição de reservas indígenas ou sob os auspícios de macroprojetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)[2],  também vem recebendo elevado aporte de estudos com o propósito de compreender as dinâmicas sociais estabelecidas entre populações locais, agentes públicos e empresas privadas em áreas dotadas de regime especial de proteção ambiental.

Dessa forma, o debate sobre a importância e eficácia das UCs numa política de contenção de perda da diversidade biológica se atualiza e ganha contornos mais realistas e menos românticos. Alguns estudos recentes representam, em alguma medida, uma alternativa aos tradicionais modelos analíticos de espaços naturais protegidos, que se baseiam em visões naturalizadas dos grupos sociais (prisma da “sacralidade” do meio ambiente) e/ou romantizadas das populações locais (“mito do bom selvagem”). Esses estudos sinalizam para uma mudança de foco no modo como as relações entre meio ambiente e sociedade em UCs têm sido abordadas e consolidam uma visão crítica e politizada dessa realidade. Nessa perspectiva, a noção de conflito tem sido apresentada como alternativa para evidenciar a heterogeneidade de interesses e relações que regem os processos societários nessas áreas.

Contudo, a grande maioria das publicações sobre espaços protegidos ainda apresenta um viés técnico de caráter aplicado. No geral, as análises são efetuadas por pesquisadores das ciências naturais, cujos pressupostos teóricos e abordagens metodológicas ancoram-se nas noções de biodiversidade e ecossistemas, tributárias da ecologia e da biologia da conservação[3]. Dentre os temas de interesse mais comuns estão os mecanismos de manejo de recursos naturais e a relação entre populações tradicionais e UCs. Essas pesquisas inserem-se em um debate clássico que divide o campo de trabalho em duas abordagens a despeito da relação entre sociedade e natureza: a abordagem ecocêntrica, centrada na submissão das atividades humanas às leis naturais, se contrapõe à abordagem tecnocêntrica, alicerçada em sistemas tecnológicos como soluções operativas para reverter os desequilíbrios ambientais e a escassez de recursos naturais. A estratégia espacial propalada pela visão ecocêntrica é a criação de UCs preferencialmente isoladas da ação humana, enquanto que, na visão tecnocêntrica, as UCs são tidas como passíveis de serem manejadas, desde que por meio de práticas compatíveis com a manutenção e continuidade dos recursos biológicos desses espaços[4].

Em anos recentes, as tensões entre essas abordagens vêm sendo fortemente alimentadas por situações empíricas que têm produzido análises de forte viés ideológico. A rápida perda da diversidade biológica com consequente alteração dos padrões de equilíbrio biótico do planeta, amplia o número de publicações dentro do primeiro grupo. Da mesma forma, cresce exponencialmente as análises que preconizam a compatibilidade entre atividades humanas e natureza, quase sempre, recorrendo à noção de desenvolvimento sustentável. Assim, o cenário geral da produção científica resultante dessa polarização se apresenta multifacetado e composto por um volume expressivo de pesquisas técnicas e estudos de caso, onde os pressupostos teóricos e escolhas metodológicas não dialogam entre si.

O objetivo deste artigo consiste em identificar as principais deficiências e lacunas presentes na literatura sobre conflitos ambientais e espaços naturais protegidos do Brasil. O trabalho está dividido em três partes principais, além desta introdução e das considerações finais: 1) breve apresentação do SNUC; 2) o campo teórico dos conflitos no Brasil; 3) conflitos ambientais em UCs, o cenário das pesquisas no Brasil e seus possíveis desdobramentos[5].

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação: limites e desafios

No Brasil, a gestão territorial de UCs e o consequente estabelecimento de tensões e conflitos pelo uso do espaço associados à sua existência representam temas atuais, cuja reflexão teórica ainda não se encontra consumada. Por um lado, com a criação do SNUC em 2000, o governo brasileiro inovou em termos legais na organização e proteção de recursos naturais, homogeneizando as políticas públicas sobre o tema e delimitando espaços geográficos específicos de relevante interesse biológico. Por outro lado, favoreceu a institucionalização de conflitos ambientais e disputas territoriais por recursos dentro dos limites e no entorno desses espaços.

A criação do SNUC foi um marco na organização política do sistema de gerenciamento de áreas ambientais protegidas. Embora com muitas lacunas, defeitos e imperfeições administrativas, o Sistema organiza e estrutura algumas das áreas geográficas ambientalmente mais valiosas, tanto em escala local quanto global. Ele também estabelece critérios e regras para o manejo das UCs nas diferentes escalas político-administrativas, desde os municípios até a federação, e as organiza em dois grandes grupos: UCs de Proteção Integral (UPIs), onde a interferência humana direta é proibida, e UCs de Uso Sustentável (UUS), que admitem a presença de populações humanas em seu interior. Esses dois grupos se subdividem em doze categorias de manejo (tipos diferentes de UCs), variando de acordo com o grau de proteção ambiental a que se prestam[6].

O grupo das UUS abrange sete das doze categorias de manejo previstas no SNUC. Seu principal objetivo é “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais” [7]. No entanto, cada uma das categorias reflete um conjunto de características socioambientais particulares com regimes de proteção territorial distintos. Dois critérios são levados em consideração para criação de UUS: i) acesso exclusivo aos recursos naturais por populações tradicionais e; ii) uso e ordenamento do território com vistas a conservar recursos naturais específicos. O primeiro grupo inclui as seguintes categorias de UCs: Floresta Nacional; Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Flora, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reservas Particulares de Patrimônio Natural. O segundo grupo é composto pelas Áreas de Proteção Ambiental e as Áreas de Relevante Interesse Econômico.

No grupo das UPIs, o objetivo primordial é preservar a natureza, sendo permitido somente o uso indireto dos seus recursos naturais, a exemplo de pesquisas científicas e algumas atividades turísticas e de educação ambiental. Esse grupo é composto pelas seguintes categorias: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre.

O cenário de impasses socioculturais e disputas territoriais em torno das UCs no Brasil ganhou mais complexidade desde a abertura democrática, no final dos anos de 1980. Ainda que, nessa época, parte significativa das áreas protegidas hoje existentes já estivesse criada, é somente a partir desse período que a sociedade passa a se manifestar abertamente sobre o tema. Com isso, inúmeros conflitos associados ao problema da imposição de novos mecanismos de comando e controle do uso do espaço em áreas previamente habitadas começam a ganhar visibilidade. A partir da Rio 92, o tema do desenvolvimento sustentável eclode na agenda pública e o debate sobre populações humanas e UCs torna-se expressivo.

Uma das principais causas de conflitos em torno dos espaços protegidos é o problema da regularização fundiária. A grande maioria das unidades de conservação de proteção integral, criadas desde a época da ditadura militar, ainda não apresenta uma situação fundiária regularizada. A desapropriação de áreas privadas no interior das UCs ainda hoje não foi concluída e não há indícios de que problemas dessa natureza sejam resolvidos tão cedo. Nessa situação, segundo Cattaneo (2004), se encontra a maioria das populações residentes em unidades de conservação que, diante de novas regras político-administrativas e da carência de recursos econômicos, vive em condições precárias sem permissão de realizar qualquer atividade extrativa, nem mesmo para reforma de residências particulares.

Mas os conflitos relacionados à desapropriação de terras privadas representam apenas uma parte do complexo quadro de tensões originadas com a criação de unidades de conservação. Disputas relativas ao uso dos recursos naturais ali presentes tais como, potencial energético de rios e mananciais para empreendimentos de geração de energia, insumos para indústria de extração de madeira, mineral (areia, carvão, minério de ferro, calcário, fosfato etc), recursos pesqueiros e de espécies nativas para produção de cosméticos e alimentos (recursos genéticos vegetais e animais), além da apropriação paisagística pela indústria de turismo e do mercado imobiliário, conformam a miríade de exemplos que nos permite dimensionar o problema.

A reflexão teórica em torno das UCs, suas interações socioespaciais e impactos nas sociedades locais e extra-locais, entretanto, ainda não se encontra consumada. A maior parte dos estudos, em geral, é efetuada por profissionais que trabalham nessas áreas e não por pesquisadores desprovidos de vínculos profissionais e, portanto, melhor colocados para efetuar análises críticas. Da mesma forma, percebe-se uma incipiência de pesquisas que abordem as dimensões sociológica e geográfica na análise dos novos processos societários que emergem da criação de unidades de conservação.

O campo teórico dos conflitos

O tema dos conflitos ambientais no Brasil é considerado por alguns pesquisadores como polissêmico e impreciso[8]. De acordo com Vargas (2007), pode-se encontrar na literatura nacional significativa variedade de visões, abordagens e conceituações sobre o assunto. Contudo, essa diversidade de análises não foi eficaz em produzir, até então, uma agenda de pesquisas comum e integrada voltada para a formulação de princípios teóricos e pressupostos epistemológicos capazes de homogeneizar conceitos e ancorar os estudos empíricos na área. Para essa autora existem dois elementos explicativos dessa situação. O primeiro está relacionado a falta de rigor no uso de conceitos, sendo freqüente o emprego impreciso de termos como gestão, mediação e negociação de conflitos sendo tratados como sinônimos para apresentar o tema de pesquisa[9]. E o segundo diz respeito à baixa quantidade de esforços de síntese do estado da arte, o que resulta num universo de análises desconectadas entre si e desprovidas de uma orientação teórico-conceitual conhecida. Os poucos esforços de elaboração do panorama das pesquisas sobre a temática no país limitaram-se a mapear uma grande variedade de estudos em distintas disciplinas do conhecimento. Essas análises, por sua vez, estão polarizadas em torno de duas grandes matrizes conceituais, que compreendem os efeitos dos conflitos sobre as sociedades contemporâneas de maneira distinta[10].

Essas matrizes foram apresentadas por Ferreira (2005) como sendo orientadas pelas teorias denominadas conflict transformation e conflict resolution. Na primeira, os conflitos são entendidos como inerentes a qualquer sistema societário funcionando, inclusive, como propulsores de mudanças sociais. Nessa abordagem não é desejável e não existe a possibilidade de resolução definitiva de qualquer conflito, sendo o consenso apenas uma contingência. Na segunda, os conflitos são tidos como distúrbios nos sistemas equilibrados e, portanto, requerem a adoção de estratégias no sentido de neutralizá-los ou mitigá-los. As análises baseadas nessa teoria consideram o grau de desvio a partir de um estado original da sociedade considerado ótimo.

Essas duas formas de compreender os efeitos dos conflitos sobre as sociedades são apresentadas por Barbanti Jr. (2002) como tendo origem em escolas distintas: a do “conflito” e a do “consenso”. Assim, a escola do conflito reúne um conjunto de autores de formação predominantemente marxista e neo-marxista, enquanto a escola do consenso é constituída por autores das escolas funcionalistas e adeptos das teorias de sistemas. No Brasil, a escola do conflito influenciou de forma marcante as análises até a metade da década de 1980. Com a alteração da conjuntura política mundial provocada pela queda dos regimes socialistas, essa teoria diminui sua penetração entre os cientistas, cedendo espaço para novos marcos teóricos, com destaque para a teoria do consenso.

Uma formulação original do tema é dada por Hirschmann (1996) ao apresentar, de forma semelhante às interpretações marxistas, os conflitos sociais como “pilares das sociedades de mercado democráticas”. À diferença do marxismo, Hirschmann não vê a luta de classes como o conflito maior que desestabilizaria essas sociedades. Na sua construção emprega os termos “cola” e “solvente” a fim de ilustrar os distintos efeitos que os conflitos podem acarretar nas sociedades. Assim, o conflito pode funcionar como “cola” quando seus efeitos produzem alterações positivas nos sistemas sociais. Ainda que as crises, que os originam, não sejam finalizadas com sucesso (a exemplo de guerras ou crises econômicas), os conflitos tendem a produzir transformações ou inovações (sociais, políticas, técnicas, econômicas etc) em alguns aspectos desses sistemas, fortalecendo-os. Em contrapartida, os conflitos podem agir como “solvente”, dissolvendo laços sociais, bloqueando o progresso e a renovação dos sistemas societários. Para esse autor, definir se os conflitos funcionam como cola ou solvente não é uma conclusão a que se possa chegar a priori e/ou através de generalizações. Cada caso precisa ser analisado mediante um exame mais atento das interações de cada tipo de sociedade e seus conflitos característicos.

Para Guivant (2002), a dicotomia analítico-interpretativa expressada por modelos conceituais que consideram os efeitos dos conflitos a partir de pontos de vistas polarizados pode ser mais bem compreendida através do estudo dos seus princípios de referência. Ou seja, das visões de mundo ou posturas filosóficas e epistemológicas que lhes dão suporte. Tais princípios estão relacionados às diferenças entre posições teórico-epistemológicas “construtivistas” e “realistas”, que refletem diferentes concepções sobre as relações entre sociedade e natureza, entre leigos e peritos e entre indivíduos e sociedades. A autora analisa os pressupostos ligados às concepções “construtivistas” e “realistas” para entender as diferentes visões de mundo que moldam o contexto societário diante de situações de conflito ambiental.

De acordo com Guivant (2002), dentro da sociologia ambiental, a corrente realista aborda os problemas e conflitos como entes objetivos que existem independentemente da forma pela qual os agentes sociais os percebem. Nessa perspectiva, a poluição do ar, por exemplo, é uma realidade objetiva e sua solução deve ser perseguida por meio de medidas técnicas adequadas que levem em consideração, sobretudo, os agentes físico-químicos que a constituem, bem como as condições sócio-materiais para sua erradicação. Já a visão construtivista concentra-se nas representações sociais, não oferecendo igual importância à realidade objetiva. Nessa abordagem, o que dá significado e concretude aos conflitos é o modo como eles são definidos e os significados atribuídos a eles pelos diferentes atores. Para os construtivistas, os conflitos são demandas construídas socialmente. Assim, interessa-lhes entender como as pessoas atribuem significados a seus mundos e como e por que elas constroem determinadas demandas em detrimento de outras. Ou seja, como e por que alguns conflitos ganham publicidade e interesse e outros não e quais são os impactos desses conflitos para as sociedades contemporâneas. Não se trata, somente, de validar a existência concreta dos conflitos e buscar solucioná-los, como na visão realista, mas compreender que sua emergência e notoriedade são construídas pelas sociedades, dentro do contexto social, espacial e momento histórico em que se encontram inseridas.

Esse debate nos impele a avaliar como os conflitos ambientais estão sendo abordados nos estudos relacionados às unidades de conservação do Brasil.

Conflitos ambientais em UCs do Brasil: principais autores e abordagens

Uma primeira tentativa de organizar a produção teórica nacional sobre conflitos ambientais em unidades de conservação revelou uma situação difusa e preocupante. Difusa porque as publicações são dispersas e desconexas no que se refere às orientações teóricas e matrizes epistêmicas que dão suporte às escolhas metodológicas. Isso impossibilita o estabelecimento de tendências comuns com o mínimo de elementos de análise que tornem viável pensar em um campo de estudos sobre conflitos em áreas naturais protegidas. Preocupante porque, embora a temática ambiental, no geral, tenha ganhado relevo e conteúdo entre a comunidade científica, assim como os estudos que abordam a interface entre conflitos sociais e recursos naturais, o conjunto das pesquisas sobre conflitos em UCs parece não ter acompanhado essa tendência. Em uma primeira análise, a produção acadêmica revelou-se deficitária, superficial e frágil para acompanhar a complexidade social e espacial que se manifesta diante de um contexto empírico de crescentes tensões e embates sociais ligados à gestão territorial e ao uso de recursos naturais em UCs.

Uma investigação preliminar da produção acadêmica sobre a temática revelou, no entanto, um acervo bibliográfico expressivo, proveniente de matrizes disciplinares e filiações analíticas diversas. Em geral, as pesquisas encontram-se isoladas e desprovidas de filiação teórico-metodológica com grupos ou linhas de pesquisa acadêmica. Assim, o quadro geral de referência sinaliza que, embora o volume de estudos e o incremento na variedade de disciplinas do conhecimento interessadas pelo tema indiquem um aumento na produção bibliográfica, a qualidade dessas pesquisas, salvo exceções, ainda é bastante deficitária. Para Vargas (2007), a relação entre teoria, pesquisa e prática presente nos trabalhos, ainda é muito frágil e pode explicar o significativo descompasso entre as pesquisas empíricas e as abordagens teóricas que dão suporte às escolhas metodológicas. O demasiado peso imputado aos métodos de pesquisa sugere que essa situação se origina de um aprendizado tácito que considera de forma não explícita que o estudo dos conflitos ambientais não necessita de teorização, apenas de êxito empírico.

Outro aspecto que merece atenção diz respeito à natureza das pesquisas. A maior parte das análises ainda é efetuada por profissionais vinculados ao movimento ambiental e/ou às próprias UCs. Dessa forma, as pesquisas derivadas são marcadas por análises engajadas e discursos de empatia com os pressupostos ambientalistas. Esses fatores contribuem para a preponderância de uma literatura do tipo técnico e descritivo com forte viés ideológico de defesa da natureza.

Contudo, mesmo que o aspecto geral do conjunto das pesquisas na área mantenha um perfil técnico e de análises com viés político engajado, é possível rastrear um crescente aporte de pesquisas voltadas para a compreensão das variáveis e processos socioespaciais particulares, que influenciam e recebem influência das tensões e embates deflagrados com o processo de criação de unidades de conservação.

Esses dois perfis de análises, com características e objetivos distintos, nos permitem aferir correspondência com a situação descrita por Ferreira (2005) para o campo de estudos dos conflitos sociais e uso dos recursos naturais. Essa autora identificou uma clivagem no campo de trabalho, organizando os pesquisadores em dois grandes grupos: a) aqueles que investem no potencial explicativo da teoria geral dos conflitos, compreendidos como fator propulsor de mudanças, preferencialmente composto por cientistas sociais; b) aqueles, provenientes de distintas disciplinas do conhecimento, que abordam o tema de forma tangencial, pois sua proposta de pesquisa centra-se em outros objetos, mas enfrentam dilemas empíricos perpassados por situações conflituosas concretas. Portanto, na análise de Ferreira (2005), o primeiro grupo encontra orientação na teoria conflict transformation enquanto que o segundo está embasado na teoria conflict resolution.

Entretanto, a literatura sobre áreas naturais protegidas apresenta algumas especificidades, que justificam um esforço particular de síntese, não se limitando a considerá-la como um sub-grupo dentro dos estudos sobre conflitos sociais e meio ambiente. Um ponto a ser sublinhado refere-se aos limites, ou fronteiras, entre os dois grupos descritos por Ferreira (2005). Na literatura sobre espaços naturais protegidos e conflitos, essas fronteiras não são rígidas e absolutas. Alguns autores transitam entre os dois grupos, empreendendo análises focadas nos conflitos enquanto agentes potenciais de mudança social, típicos do primeiro grupo, assim como pesquisas aplicadas, relacionadas aos mecanismos de gestão e resolução de conflitos. Esse é o caso de trabalhos de Vieira; Vivacqua (2003, 2010), Vieira (2005) e Diegues (1995, 2000, 2004). Assim, as caracterizações descritas a seguir não pretendem estabelecer uma tipologia ou classificação estanque. Ao contrário, o objetivo é encontrar as correspondências entre os estudos e organizar a produção literária para fins didático-pedagógicos.

O primeiro desses grupos, significativamente menos denso em volume de publicações, é composto por cientistas sociais que têm como particularidade a condução de pesquisas com viés propositivo. Os pesquisadores desse grupo empreendem análises teóricas consistentes, quase sempre conectadas a estudos de caso específicos, para investigar os problemas e limites dos pressupostos teóricos e práticas de gestão tradicionais que norteiam as tomadas de decisão dentro das UCs. Cabe ressaltar que essa situação é distinta daquela encontrada por Ferreira (2005), que associa a teoria conflict transformation às pesquisas que tomam os conflitos como chave analítica. Nossa compreensão é da existência de um contexto acadêmico híbrido composto tanto por pesquisas focadas nas unidades de conservação, mas que se valem dos conflitos ambientais como elemento explicativo central, quanto por estudos pontuais que focam na análise dos conflitos ambientais, mas não nas UCs. Assim, o grupo de autores identificados por nós como partidários da teoria conflict transformation pode não expressar clara filiação à ela, mas as escolhas analíticas empregadas sinalizam para uma percepção dos conflitos orientada por essa abordagem. Não se trata, portanto, de um grupo homogêneo formado fundamentalmente por pesquisas sobre conflitos ambientais.

Diante dessa caracterização geral e levando em conta a clivagem teórica mais ampla que subdivide a produção acadêmica sobre conflitos e áreas naturais protegidas é possível empreender uma distribuição por linhas temáticas. Na verdade, os estudos teóricos sobre UCs ainda carecem de aprofundamento analítico e, por este motivo, uma primeira tentativa de organizá-los certamente padecerá de precisão. Assim, nesse primeiro esforço de síntese foi possível identificar as seguintes linhas de pesquisa: a) políticas públicas e participação; b) populações humanas e UCs; c) gestão territorial na Amazônia e; d) conservação de ecossistemas e biomas.

Os estudos mais significativos dentro da primeira subcategoria foram produzidos por Teixeira (2004 a,b; 2005) e Teixeira; Limont (2007), a partir da realidade da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, localizada no litoral do Paraná. Essas análises centram-se no impacto das políticas públicas de gestão ambiental sobre as populações locais de pequenos agricultores familiares e pescadores tradicionais, assim como na eficácia dos conselhos gestores como ferramentas de gestão participativa. Nessa linha, Camargos (2004) elaborou estudo sobre a influência da criação da APA Sul-RMBH, em Belo Horizonte, na organização política e social local. Também merecem destaques os trabalhos de Vieira, que coordena expressivo número de pesquisas sobre a APA da Baleia Franca, situada no litoral centro-sul de Santa Catarina. Esses estudos são orientados pelo enfoque da gestão patrimonial e pela teoria dos recursos de uso comum, associados à discussão em torno da noção de desenvolvimento territorial sustentável. Essas pesquisas focam nos impactos sociais produzidos pelos mecanismos de negociação de conflitos socioambientais, sobretudo para os processos de democratização da gestão de UCs[11]. Nesse caso, a negociação de conflitos é abordada de forma positiva enquanto agente indutor de transformação social, diferindo da abordagem discutida por Acselrad (2010), que entende os processos de negociação de conflitos como instrumento de barganha dos setores com maior poder político-econômico para “cooptar” setores socioeconômicos desfavorecidos.

A sub-categoria “Populações humanas e UCs” é, sem dúvida, a que agrega o maior número de pesquisadores e de trabalhos. Ela é constituída, fundamentalmente, pelos seguintes grupos, núcleos ou linhas de pesquisas: i) o Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB/USP), orientado por Antônio Carlos Diegues (1994, 1995, 1996, 2004), tem conduzido diversos estudos, sobretudo, em UCs litorâneas da Mata Atlântica; ii) os trabalhos de Arruda (1997) e Vianna (2008), que empreendem uma análise antropológica das populações tradicionais em UCs; iii) as reflexões de Fleury; Almeida (2008; 2010) sobre a influência das populações humanas no desenho territorial do Parque Nacional das Emas, a partir do enfoque da teoria das representações sociais e das arenas públicas e; iv) as pesquisas conduzidas por Creado e Mendes, que oferecem um contraponto às reflexões de Diegues, propondo uma nova maneira de refletir a relação entre populações humanas e áreas protegidas a partir da noção de direitos multiculturais12].

Na sub-categoria de pesquisas centradas na gestão territorial de áreas protegidas na Amazônia, merecem menção os trabalhos de Aquino; Rosa (2009), sobre conservação de recursos naturais e conflitos entre populações tradicionais e demais agentes locais, além de Barreto Filho (2002), sobre antropologia de conflitos. Por fim, na sub-categoria de investigações sobre conflitos decorrentes de medidas de conservação de ecossistemas e biomas, a linha de pesquisas “uso de recursos naturais (escassez e abundância): conhecimentos, conflitos e aspectos políticos institucionais” desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), da UNICAMP, se destaca pela rica e variada produção acadêmica, que incide sobre essa e outras sub-categorias. Esses estudos merecem atenção especial pela forma como relacionam teoria e empiria, além da inovação conceitual no tratamento de categorias tradicionalmente abordadas pelas pesquisas sobre populações e UCs[13].

O segundo grupo, composto predominantemente por pesquisadores das ciências naturais, que abordam os conflitos a partir da teoria conflict resolution, engloba a imensa maioria dos trabalhos sobre unidades de conservação. Aqui, o tema dos conflitos ambientais incide de forma tangencial ou indireta, figurando como um dos componentes explicativos dos processos de gestão e manejo territorial, mas não como uma chave de análise para compreensão da realidade social e espacial das UCs. No geral, predominam estudos técnicos e análises descritivas. Os pressupostos epistemológicos que norteiam essas pesquisas, em sua grande maioria, fazem referência a princípios da ecologia e biologia da conservação, quase sempre ligados às noções de ecossistemas e biodiversidade[14]. As análises aparecem dispersas e sem diálogo entre si. Como conseqüência, o panorama geral da produção bibliográfica desse grupo se apresenta frágil e insuficiente em densidade teórica.

Ainda assim, percebe-se algumas tendências que têm produzido resultados promissores. As publicações elaboradas a partir dessas pesquisas, de certa forma, vêm gerando subsídios para as análises e debates empreendidos pelo primeiro grupo. Nesse sentido, podemos identificar quatro focos de interesse principal: i) eficácia das políticas de criação e gestão territorial de áreas protegidas numa perspectiva de contenção da perda da biodiversidade, onde merecem destaque os trabalhos de Pádua (2000), Rylands & Brandon (2005), Bensusan (2006) e  Debetir & Orth (2007); ii) populações tradicionais e UCs, cujo debate se polariza em torno de duas posturas[15]: a) defesa da presença de populações tradicionais dentro das unidades de conservação, a partir do argumento que a sua retirada poderia prejudicar a dinâmica dos ecossistemas onde estão inseridas. Dentro desse grupo grifamos os estudos de Arruda, (1997), Diegues (2000) e Azevedo (2002); b) defesa da retirada de populações tradicionais, com o argumento de que suas práticas de extração e uso dos recursos naturais impactam negativamente os ecossistemas. Os trabalhos de Dourojeanni (2001), Olmos et al.(2001) e Galetti et al. (2004) representam esta postura ; iii) participação política e recursos naturais, com referências pulverizadas em diversos estudos de caso. Nesta categoria merecem destaque os trabalhos de Vieira et. al (2005); Macedo (2007; 2008), Santos (2008) e Magalhães (2010), que discutem os mecanismos de participação popular na gestão de conflitos ambientais em UCs. iv) legislação, processos jurídicos e áreas naturais protegidas, esse grupo, no geral, agrega pesquisadores ligados ao direito ambiental ou intelectuais envolvidos diretamente com a criação ou manejo de políticas públicas e instrumentos jurídicos de gestão de UCs. Os trabalhos de Benatti (1994, 2000, 2001a;b), sobre regularização fundiária e populações tradicionais na Amazônia, e de Mercadante (2001) centrado no processo histórico de elaboração do SNUC, são exemplos desse tipo de abordagem.

Considerações Finais

No geral, as publicações acadêmicas centradas no tema dos conflitos ambientais em espaços naturais protegidos caracterizam-se por estudos técnicos e/ou por análises descritivas voltadas para apresentação das características socioeconômicas e biofísicas da área e dos métodos de gestão e manejo territorial. Os conflitos aparecem entre os problemas a serem enfrentados e cumprem um papel central funcionando como argumento de pesquisa para justificar propostas de intervenção in loco. A preponderância de análises a partir de estudos de caso dificulta a generalização de conclusões e revela uma importante deficiência no campo de estudos: a quase inexistência de pesquisas comparadas e sínteses do estado da arte da literatura, que nos permitam rastrear quais são as principais deficiências do campo de estudos. As lacunas de pesquisa sobre as unidades de conservação do Brasil, sobretudo as que abordam a temática dos conflitos ambientais, são significativas e se encontram, dessa forma, defasadas em relação ao fortalecimento das políticas de criação de novas UCs.

A fragilidade dos fundamentos teóricos que dão suporte à maioria das análises precisa ser contornada. Da mesma forma, o foco dessas pesquisas carece de ajustes para adaptar-se à tendência das novas políticas de gestão ambiental, centradas na inserção humana no manejo das unidades de conservação. A abordagem biocêntrica, com pressupostos alicerçados na preservação de ecossistemas intactos e sem contato com a espécie humana, já não atende as necessidades das situações empíricas analisadas. A recente inclusão da noção de direitos multiculturais no debate sobre áreas protegidas feita por Creado et al (2008) avança nessa perspectiva e confere novos ares ao campo de estudos teórico.

Outra questão que deve ser sublinhada é a preponderância de estudos engajados. O incremento da estratégia de criação de UCs no Brasil, assim como o aumento das atenções sobre a temática pela comunidade científica, sinaliza para conformação de um campo de estudos específico, que comporte uma agenda de pesquisas autônoma daquelas motivadas pelas preocupações do movimento ambiental ou das populações tradicionais. Embora algumas análises nessa direção já estejam ocorrendo, elas ainda são pífias perto das lacunas de conhecimento que envolvem a temática. As pesquisas, situadas na fronteira entre ambiente e sociedade, calcadas em pressupostos teóricos ajustados com essa nova realidade, ainda fazem figura de exceção. Da mesma forma, os trabalhos que pretendem, em alguma medida, conectar o tema dos conflitos ambientais ao contexto da gestão territorial de áreas naturais protegidas, em geral, ou estão focados nas pesquisas sobre UCs ou sobre conflitos ambientais, quase nunca na interface entre ambos.

O fato de a grande maioria da literatura sobre conflitos ambientais apresentar características mais técnicas do que explicativas, mais descritivas do que dialógicas e mais propositivas do que teóricas, se deve, em boa parte, à baixa produção de sínteses do estado da arte na matéria. Esse tipo de análise, no geral, tende a funcionar como uma ferramenta de consulta que disponibiliza um panorama geral da produção acadêmica, ancorada em enfoques teóricos e linhas de pesquisas correlatas, além de facilitar a identificação e seleção de opções metodológicas conectadas com determinadas matrizes teóricas. Os resultados desses esforços contribuem para o aumento de estudos focados nas lacunas de conhecimento, a exemplo de pesquisas empíricas com maior densidade teórica.

 

Notas

[1] Trajetória baseada em Viola, 1996.

[2] O Programa de Aceleração do Crescimento foi criado em 2007 pelo governo brasileiro e consiste em um conjunto de medidas econômicas, associadas a macro-ações estratégicas, planejadas para um período de quatro anos. Em março de 2010, o governo lançou a segunda fase do PAC, o PAC 2, que reorganiza os investimentos econômicos em infra-estrutura dando prioridade para áreas de transporte, energia, saneamento, habitação e recursos hídricos. O PAC tem sido alvo de inúmeros conflitos, sobretudo àqueles associados a sobreposição de projetos desenvolvimentistas de cunho estritamente econômico em confronto com interesses da coletividade associados ao bem estar social e ambiental.

[3] Para compreender os principais conceitos e temas mobilizados pela ecologia e biologia da conservação ver Odum (1959) e Primack; Rodrigues (2001).

[4] Uma excelente síntese da discussão das diversas correntes do movimento ambientalista, encontra-se em Jatobá et al. (2009).

[5] A autora manifesta especial agradecimento a profa. Leila Christina Dias, do departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). Além da leitura crítica e sugestões precisas à estruturação deste artigo, suas contribuições foram fundamentais para organizar o trabalho de revisão bibliográfica.

[6]  BRASIL 2000, p. 15 ; 18.

[7]  BRASIL, 2000, p.15.

[8] Alonso; Costa, 2002; Ferreira 2005; Vargas, 2007.

[9] As matrizes teóricas que estão por trás das diferentes metodologias de manejo de conflitos (gestão, resolução e transformação) encontram-se em Vargas (2007).

[10] Ferreira, 2005, 2007; Alonso; Costa, 2000; Acselrad, 2004.

[11] Vieira, 2003; Vivacqua, 2005; Vivacqua; Vieira, 2005.

[12] Creado, 2006; Creado et al. 2008; Mendes; Ferreira, 2009.

[13] Ferreira, 2005; Ferreira et al., 2001, 2007; Creado et al. 2008; Mendes; Ferreira, 2009.

[14] Para compreender os principais conceitos e temas mobilizados pela ecologia e biologia da conservação ver Odum (1959) e Primack; Rodrigues (2001). Para as noções de ecossistema e biodiversidade, buscar Pimm (1995) e Patrick (1997).

[15] Para uma revisão atualizada dos argumentos que movimentam esse debate acadêmico e técnico, ver Gerhardt (2008; 2010).


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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam Hermi Zaar]

 

Ficha bibliográfica:

MARTINS, Andreza. Conflitos ambientais em unidades de conservação: dilemas da gestão territorial no Brasil. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 25 de agosto de 2012, Vol. XVII, nº 988. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-989.htm>. [ISSN 1138-9796].

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