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Scripta Vetera 
EDICIÓN  ELECTRÓNICA DE TRABAJOS PUBLICADOS 
SOBRE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
 
O SÍTIO: OCUPAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO
 
Jorge Gaspar
 

1. LOCALIZAÇÃO E ENVOLVÊNCIA

Lisboa vista de longe, do espaço ou simplesmente de outro País, talvez mesmo tão só da Província, aparece hoje como uma mancha difusa, em que se integram Arrábida e Sintra, e o Tejo é elemento central.

Lisboa como elemento cartográfico de qualquer mapa mental tem o Oceano e o Tejo que aí desagua, como atributos discriminantes. Lisboa faz parte do conjunto das cidades ribeirinhas, com uma história que se confunde com a dos mares, das grandes descobertas marítimas, das primeiras tentativas que fenícios e gregos fizeram para sondar os mistérios do Atlântico.

Mais recentemente Lisboa tem papel de destaque na navegação aérea transatlântica, como primeiro destino europeu dos clippers da Pan Am que ligavam as duas margens do Oceano. Hoje, quer-se que Lisboa venha a ser a "Capital Atlântica da Europa".

A sorte da capital portuguesa resultou do seu sítio admirável, em que as características dominantes são de natureza aquática: o maior rio da Península Ibérica, encontra aqui o Oceano Atlântico, não através de uma solução clássica, de delta ou de estuário, mas por um complexo sistema que podemos considerar misto - a cerca de 30 km do Oceano o Tejo espraia-se por entre ilhas (mouchões), confundindo-se com um dos seus principais afluentes (o Sorraia), os dois desaguando num vasto regolfo, o Mar da Palha, que por sua vez se estreita para contactar com o Oceano através de um apertado gargalo.

O Mar da Palha tem margens assimétricas. A Norte é menos recortado e nele desaguam algumas ribeiras, que têm a secção final estreita, encaixada, e a montante abrem-se para bacias hidrográficas de desenho condizente com as condições geológico-estruturais - o Trancão e a Ribeira de Alcântara são os dois melhores exemplos. Na Margem Sul, o Mar da Palha tem uma extensa margem de praias baixas, de areias douradas e penetra a terra através de esteiros, também baixos, mas que com a maré entram fundo na Península da Arrábida.

É a conjugação destes três elementos aquáticos que explica não só a centralidade de Lisboa no contexto da costa ocidental da Península Ibérica, como um elevado potencial endógeno, explorado ao longo dos mais de dois milénios da História de Lisboa.

O Mar da Palha é a "enseada" amena e ampla para todas as navegações marítimas que cruzam a Costa, desde os Fenícios em busca das Cassitéridas, aos petroleiros que descarregando nas refinarias do Mar do Norte, vinham (vêm ainda) fazer as reparações nos estaleiros da Lisnave.

Pelo Tejo o Portugal marítimo abraça o Portugal rural, como o escreveu Oliveira Martins. O Tejo, ao longo de séculos, até ao advento do Caminho de Ferro, drenou para o porto de Lisboa uma bacia económica mais ampla que a sua bacia hidrográfica - produtos da agricultura e pecuária, da mineração e da transformação de variadas matérias primas (cinzas, carvão, sabões...) desciam o Tejo por um integrado sistema de transportes - dorso de animal, carroças, flutuações nos afluentes e a montante no interior de Espanha, por jangadas e finalmente barcos de tonelagem crescente à medida que a foz (e as marés...) estava mais próxima. Sem o Tejo, Lisboa poderia ser um porto de pesca, eventualmente um porto oceânico, voltado para fora, mas nunca o pólo de comando de um vasto território, o íman que permitiu a configuração do estado-nação a que muito cedo correspondeu Portugal.

O Oceano permitiu a grandeza de Lisboa, desde referência maior nos autores clássicos (Estrabão...) e árabes (Edrici...), até ao apogeu das descobertas marítimas e comércio ultramarino. O estremecer da Europa e do Mundo civilizado com o Terramoto de 1755 é não só o resultado de uma grande catástrofe natural, mas também a consciência de que se perdia um património da Humanidade, de tal forma ainda estava viva a imagem de uma Lisboa que pelos caminhos marítimos dera novos horizontes aos Mundos.

O Oceano permitiu Portugal. Foi pela fronteira marítima que os primeiros portugueses poderam pôr em prática uma estratégia de alianças, políticas e económicas, que, atingindo o Norte e o Báltico, bem como o Mediterrâneo, pressionaram a potência continental da Península Ibérica, ao mesmo tempo que garantiam o processo de integração espacial e de identificação cultural. O Oceano permitiu, depois, os vários ciclos - da Índia, do Brasil, de África.

O Mar da Palha foi e, apesar de todos os atentados, ainda é um enorme e fabuloso viveiro de peixe, marisco e moluscos, cuja produção se projectou não só na sua própria riqueza pesqueira, mas sobretudo na permanente renovação piscícola da nossa costa. Assim, Lisboa (com o pequeno mediterrâneo - o Mar da Palha) começou por ser para os Romanos (quiçá também para Gregos, Fenícios e Cartagineses) um importante porto de pesca e de transformação do pescado. E o Mar da Palha, além de viveiro e área de pesca, fornecia também em distintas localizações as infra-estruturas adequadas para o desenvolvimento, ao longo de quase 2000 anos, deste complexo económico: pesca ou apanha (de moluscos), transformação (do garum aos enlatados dos séculos XIX e XX, passando pelos fumados, salmouras, secos e outras formas de conservação) e comercialização, que nos nossos dias se faz ainda, embora apenas para algum peixe fresco, mas que ainda há poucas décadas abrangia as ostras do Seixal.

Os vestígios arqueológicos dão-nos uma imagem do que deveria ser a especialização funcional das margens deste mediterrâneo, com as ânforas a serem produzidas na margem Sul (abundante em lenha), em instalações como a do chamado Porto dos Cacos (Alcochete) e a salmoura em Lisboa (cetárias da Casa dos Bicos), como mais tarde se instalaram secas de bacalhau de Alcochete à Praia do Alfeite, fornos de formas para o açúcar e para o biscoito no esteiro do Rio Coina ou fábricas de conservas na Trafaria e no Porto Brandão.

As riquezas do sítio eram ainda surpreendentes no reino mineral, e as gerações de lisbonenses souberam aproveitá-las. Desde as boas areias e argilas, para as fábricas de vidro, de faiança ou simplesmente para cerâmica de barro vermelho, aos calcários cretácicos, excelente pedra para construção ou para cal, e basaltos resistentes para calçadas e caminhos. Mas as riquezas minerais que deram fama, e proveito também, a Lisboa, foram o ouro - as areias auríferas, exploradas até finais da Idade Média que deram nome a Almada ("a mina") e cujos exploradores, os adiceiros, ainda são lembrados numa rua da cidade (Rua da Adiça); e as águas termais, exploradas desde os romanos até aos nossos dias e que nos recordam a natureza marcadamente tectónica do sítio. Também as termas deixaram vestígios na toponímia árabe: Alfama, a fonte termal.

O Tejo e o Mar da Palha permitem ainda a ocupação diferenciada do espaço agrícola e florestal, de molde a viabilizar e a dar competitividade a uma metrópole desde muito cedo integrada em redes de cidades internacionais, em diferentes momentos históricos: Génova, Pisa, Veneza, Barcelona, Cádiz, Sevilha, Bordéus, Bruges, Antuérpia, Amesterdão, Copenhaga, Lubeck, Hamburgo, Rostock ...

Assim, além da produção de peixe, marisco e moluscos, os esteiros da margem Sul, o Rio Trancão na bacia de Loures e o Tejo a montante, de Sacavém a Alverca, vão permitir a produção de sal, elemento importante para exportação para o interior do País e para o Norte da Europa, além de apoiar a conservação do pescado e, mais tarde, a instalação das primeiras indústrias químicas.

As reentrâncias, sobretudo na margem Sul, mas também na Norte, particularmente em Alcântara, permitirão, desde o século XIV o aproveitamento da energia das marés para a moagem de cereais, actividade que atingirá o esplendor nas vésperas da introdução da máquina a vapor, que levará ao seu declínio.

Enquanto via de transporte de elevado rendimento, o Tejo (e seu complexo deltaico-estuarino) permite não só a drenagem de matérias-primas e produtos manufacturados a Lisboa, para consumo local e exportação, como o permanente abastecimento - barato - em energia, através das reservas de mato, floresta e montado, que foram sucessivamente renovadas, por razões de herança histórica, mas acauteladas pela vontade política

Da Outra Banda, do Barreiro e Ribatejo (Montijo), até Salvaterra de Magos vinha sobretudo lenha, tojo e outras "acendalhas", de mais a montante, proveniente das charnecas alentejanas. Transportava-se também lenha, de qualidade, e carvão. A grande propriedade que persistiu até ao liberalismo nas mãos das ordens religiosas e de membros da Casa Real e que tem ainda hoje significativa expressão na Península de Setúbal (de Sesimbra a Canha), prevaleceu em grande medida porque se inseria estrategicamente numa área de fornecimento energético a Lisboa, aproveitando o custo barato do transporte fluvial (esteiros + Mar da Palha). Por isso, a Península de Setúbal será ainda na 2ª metade do século XIX uma das frentes de colonização interna(!): povoamento por contratos enfitêuticos para colonos (caramelos e ratinhos) que vinham do centro do País e que permitiram a implantação das grandes extensões de vinha, cuja produção se orientava para França, a compensar a grande queda da produção deste país, assolado pela praga da filoxera.

2. UM SÍTIO FEITO DE CENTRALIDADES DO SAGRADO

A localização no fim do Continente, o Oceano alteroso, mas também a abundância e amenidade do seu hinterland, desde cedo inculcam nos viajantes e nos estantes um sentido muito forte do espírito deste lugar, demarcado entre duas serras, Arrábida e Sintra, que são dois gigantes que "defendem" as portas das terras do Tejo.

As sucessivas vagas de imigrantes e invasores, de conquistadores e conquistados, vão descobrindo e valorizando os pontos mágicos adequados à sagração deste lugar que os deuses quiseram que fosse diferente.

Dos fogos que bárbaros do finisterra ateavam no Cabo Espichel e que gregos e romanos anotaram na toponímia até ao milagre da Senhora do Cabo, o fogo (o espírito...) não deixou de rondar a Arrábida (outro topónimo de conteúdo religioso, que atravessou fés contrastadas). Os muçulmanos vão marcando a toponímia com as suas azóias, do Cabo Espichel, do Cabo da Roca, de Santa Iria (Tejo acima) e de Santarém. As peregrinações (romarias) passam dos castrejos aos romanizados e cristianizados, destes aos mouros e destes novamente aos cristãos; algumas ainda restam, a marcar a memória dos lisbonenses e saloios: a Senhora do Cabo, a Senhora da Luz, a Senhora da Atalaia, o Espírito Santo do Penedo, vizinho da Azóia do ponto mais ocidental do continente europeu (o Cabo da Roca) -de um e do outro lado do Tejo, que também aqui une em vez de separar, e pelo qual se sobe também em peregrinação à Senhora de Alcamé ou ao São José das Lezírias, outras memórias de transfigurações, de adaptação a novas religiões, de permanência do sagrado neste lugar.

Mas será em Lisboa, acompanhando a concentração das gentes, da riqueza e do poder, que se irá potenciar a função religiosa. Mais do que isso, na memória dos seus habitantes e de todos que nela servem a pátria é a própria sagração da cidade que progressivamente se vai dando. E já no século XV se emigra para Lisboa, na busca da terra prometida, que começa aqui e se prolonga para lá dos oceanos.

3. A PERSISTÊNCIA DE UM LUGAR CENTRAL: LISBOA CRESCE E QUALIFICA-SE

Lisboa é uma daquelas grandes cidades que se vai construindo por acumulação de gerações, adaptando as virtualidades do sítio às novas solicitações dos contextos internacionais, nacionais e regionais. A inserção no espírito do tempo é uma constante da história de Lisboa e em boa medida são as potencialidades do sítio, permitindo respostas diversificadas e grande flexibilidade de usos, adaptações e recuperações, que o têm permitido.

O território próximo em que Lisboa se insere, não tem, como vimos, limites precisos. Os dois relevos mais pronunciados (Sintra e Arrábida) e o Tejo com o seu sistema deltaico-estuarino até aos limites das marés, constituem os limites físicos mais marcados e com dimensão histórica. Assim, já na pré-história, nomeadamente de finais do Paleolítico e Mesolítico, encontramos uma certa unidade cultural e uma ocupação densa do território que se estende das praias quaternárias de Sintra-Cascais e Caparica-Cabo Espichel até aos concheiros de Muge (sensivelmente o actual limite da maré - Sabugueiro).

Os romanos apoiaram-se no que seria um dos povoados castrejos mais dinâmicos e já com influências mediterrâneas e, a partir daí, bordejando as encostas do actual Castelo, desceram até ao pequeno esteiro que penetrava entre colinas até ao encontro de duas linhas de água, que correspondem hoje aos eixos Arroios-Anjos--Mouraria (Regueirão dos Anjos, mais tarde designado) e S. Sebastião-Sta. Marta-S. José-Portas de Santo Antão.

A segurança, nas terras e nos mares, que gozou por séculos o Império Romano permitiu que a nova urbe, voltada para o Mar da Palha, se esparramasse pelas encostas, até à praia (onde se desenvolveram as actividades piscícola e portuária) e ao fundo dos vales, numa ocupação esparsa, pontuada pelas infra-estruturas que mais marcavam uma civilização: as termas, junto ao esteiro da Baixa, o Teatro na encosta do oppidum que olhava o Rio, a fortificação principal no cimo da colina original.

A partir deste núcleo organiza-se, na escala local, um espaço de apoio e directamente subordinado, que é mais densamente ocupado, constituindo a um tempo uma reserva e parte não despicienda da base económica da já baptizada Olisipo. Esse território constituirá o vasto município, que pela sua importância e "romanidade", vai gozar o privilégio de ser regido pelo mesmo direito do município de Roma.

A primeira unidade administrativa que se cria na área de Lisboa, abrangia, o que hoje corresponde aos concelhos de Lisboa, Amadora e Loures, e partes dos concelhos de Oeiras, Sintra, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira. Espaço que vai ao longo de séculos construindo uma identidade original, incorporando novos contributos culturais, em que se destacam o dos muçulmanos que aí difundiram inovações e constituíram, da primeira metade do século VIII até à Reconquista Cristã de meados do século XII, uma típica comunidade agrária peri-urbana: os saloios, que progressivamente se difundiram para lá dos limites do município Romano, mas que tiveram neste o seu pólo original.

O Município de Olisipo acabou por constituir até 1836 sensivelmente o espaço do termo municipal de Lisboa, com uma regulação própria, o que também contribuiu para a preservação de uma identidade, bem expressa na ocupação e exploração da terra, nas práticas culturais e num relacionamento privilegiado com a urbe.

Embora administrativamente autónoma de Lisboa, a Margem Sul também reforça os laços económicos, sociais e culturais com Lisboa, constituindo-se como um espaço de complementaridade, compartimentado segundo as especializações que cada esteiro vai adoptando, ao longo de dois milénios. Assim, além da generalizada importância da pesca, de Alcochete à Trafaria ( constituiu-se no hinterland uma reserva de combustível vegetal (lenha, carvão), gerida a partir de Lisboa, com a intervenção da autoridade régia, em apoio das propostas do Senado da Câmara de Lisboa. É através desta gestão que em dado momento são proibidos os fornos de vidro na Margem Sul que faziam escassear e encarecer a lenha em Lisboa; mas permite-se, mais ou menos no mesmo local (Vale de Zebro, junto ao esteiro de Coina), a instalação de uma grande fábrica de biscoito de apoio às navegações oceânicas e uma unidade produtora de formas para o transporte do açúcar do Brasil ("os pães de açúcar", feitos em moldes cerâmicos, de que um dos fornos era na Mata da Machada, do actual concelho do Barreiro). Esta reserva de combustível esteve activa até ao século XIX. .

Pelos esteiros penetrava a navegação, constituindo-se do outro lado as testas de ponte de ligação ao sul: Coina, já importante no tempo dos Romanos, a partir da qual se veio a navegar pela Vala Real até alturas de Azeitão e daí se seguia para Setúbal por terra; Aldeia Galega (Montijo), porto fluvial que aproveitou ao máximo a navegação no Mar da Palha e onde se iniciava a estrada para o Alentejo, Espanha e Europa, por via terrestre.

Por outro lado, a acessibilidade que esta navegação permitia veio a valorizar as terras agrícolas mais ribeirinhas: primeiro os vinhos, muitos produzidos em terras regalengas (as da Caparica, já famosas e conhecidas na praça de Londres no século XVI...), em terrenos arenosos e saibrosos de Almada, Seixal, Barreiro e Lavradio; depois os vegetais frescos e frutos que facilmente acediam ao mercado da Ribeira...

O período visigótico não foi determinante para o desenvolvimento de Lisboa, na medida em que se restringiram as ligações marítimas com a pulverização do espaço construído pelos Romanos. Assim, será só com os Muçulmanos que Lisboa vai retomar a sua vocação e explorar as suas virtualidades, embora num contexto distinto do período romano, na medida em que a instalação muçulmana não se fez (ou não conseguiu) como os Romanos um espaço amplo, marítimo e terrestre, desde cedo sujeito à Pax Romana. Se do lado da terra os cristãos empurrados para norte espreitavam uma oportunidade e de quando em vez desciam em rápidos ataques, do lado do mar a insegurança era muita, sobretudo a partir do momento em que os "homens do Norte", os vikings, se tornam senhores dos mares, desde os fiordes da Noruega até às sonhadas ilhas do Mediterrâneo - durante o domínio muçulmano, Lisboa sofre por várias vezes os ataques normandos, que chegam a tomar a cidade e aí exercer o saque durante vários dias.

Sobretudo por isso, a Lisboa muçulmana vai cerrar-se mais do que a Lisboa romana, envolvendo-se de uma poderosa muralha, que cercava a medina e o alcácer, ao todo nos escassos 15 hectares densamente povoados e a breve trecho insuficientes para albergar as gentes de uma cidade com uma economia activa, baseada numa rica área de influência e no comércio externo, sobretudo orientado para o Meditterâneo e Norte de África, mas também para as paragens setentrionais da Irlanda ao Mar do Norte.

É assim que rapidamente a cidade extravasa para lá das portas, desenvolvendo-se dois subúrbios, um a nascente - Alfama, dominado por gentes ligadas à navegação, pesca e garimpo do ouro do Tejo; outro a poente, mais "burguês", fazendo a ligação ao porto (Ribeira) e ao interior agrícola "saloio" e que pouco a pouco vai conquistando o esteiro da baixa, por aterros sucessivos, estendendo-se para o espaço agrícola peri-urbano, por hortas que preenchem os dois vales a que nos referimos (de Valverde para Benfica e do Borratém para Arroios...).

Foi esta Lisboa, fortemente urbana, mas onde o campo envolvente tinha um peso demográfico e económico muito importante, que os cristãos vindos do norte, os portugueses, conquistaram em 1140, com a ajuda determinante de uma frota de cruzados - a demonstrar a ambivalência funcional do sítio de Lisboa: terrestre e marítima.

A Reconquista pelos portugueses foi definitiva e para isso contribuiram certamente a estratégia de ocupação e desenvolvimento que se seguiu e que constitui talvez o melhor, por mais sensível e eficaz, processo de planeamento contínuo de um território, pela capacidade evidenciada de total aproveitamento das potencialidades e, ao mesmo tempo, construção de um espaço sentido ou assumido não só pelos seus habitantes, como pelo espaço(s) que comanda, que acaba por ser todo o território de Portugal e, mais tarde, mesmo extensões de comunidades além oceano que se revêem, ainda hoje, na sua capital, Lisboa.

A activação duma estratégia no terreno teve vários protagonistas decisivos que por facilidade de exposição podemos referenciar através dos monarcas que em cada momento histórico estiveram à frente dos destinos da Pátria e viram em Lisboa o locus físico de todo o sentido da nacionalidade.

Logo após a conquista de Afonso Henriques, os cristãos ocupam medina e alcácer e os muçulmanos que ficaram - em que avultavam camponeses, artesãos do barro e braçais - são deslocados para um valeiro a norte do Castelo, junto à ribeira que descia de Norte e junto à qual verdejavam hortejos (as almuinhas...): assim se constitui a Mouraria, que ainda hoje perdura.

Para a consolidação da posse da desejada urbe, vêm gentes do Norte do País, aliciam-se cruzados a ficar e muitos, com suas proles e clientelas vão povoar terras do termo, chamam-se judeus para específicas funções de base económica, artesanal e comercial, e, naturalmente, às ordens religiosas são também consignadas funções de territorialização.

Uma das medidas mais importantes e que vai marcar para sempre a forma urbana da Capital é a de, na tradição do urbanismo medieval - decerto com raízes clássicas - ocupar as colinas mais próximas com estabelecimentos religiosos, que funcionam como núcleos de estabelecimentos humanos, embriões de futuros bairros da cidade: Graça, São Vicente, Santana, São Francisco...

Se com os primeiros reis o centro de gravidade do País em formação ainda se situava a norte de Lisboa, até porque a fronteira sul e nascente era muito instável, sobretudo com as intervenções almoadas, com a conquista do Algarve em meados do século XIII, no reinado de D. Afonso III, Lisboa tornou-se naturalmente, no centro nevrálgico da nova realidade política do ocidente peninsular. Por isso D. Afonso III fez aqui grandes investimentos públicos e privados, sobretudo no arrabalde poente, a Baixa, onde a rua dos Mercadores, que liga a Oeste a cidade muralhada ao Rossio se torna rapidamente na principal artéria comercial, para o que contribuem não só a construção de novos prédios, como a transferência do mercado das Terças-feiras do Chão da Feira, à alcáçova, para aquele campo baldio, onde pouco a pouco o aterro tinha consolidado e o esteiro e seus afluentes eram encanados.

Estava assim redefinida a orientação já iniciada pelos muçulmanos do arrabalde poente, que seria a futura cidade dos mercadores e artesãos, a área em expansão, que se irá constituir como interface entre a cidade, o porto, o mundo rural e o estrangeiro: o futuro centro da cidade.

D. Dinis, que sucede a D. Afonso III, dará um impulso decisivo áquela orientação, utilizando Lisboa como instrumento decisivo, a comandar o desenvolvimento do País, segundo duas componentes principais: fomento da actividade produtiva no interior, promoção das relações com os países estrangeiros, favorecendo as rotas marítimas, mas agora também pensando na fronteira terrestre cujo povoamento e desenvolvimento promove através da criação de uma série de vilas novas e salvaterras, do Minho ao Guadiana. Também perto de Lisboa, no limite da navegação pelas marés, ainda na área de dependência imediata da "capital" promove um projecto integrado de desenvolvimento: a secagem, arroteamento e povoamento do Paúl de Magos, onde implanta uma vila nova, servida por um canal marginal de ligação ao Tejo - é uma Salvaterra (de Magos).

A política urbana para Lisboa é coerente com a estratégia global: a grande rua deixa de ser a dos Mercadores (orientada para o interior, para o Rossio), mas uma rua larga, a Rua Nova, que manda abrir paralela à ribeira das naus e em cuja promoção ele é actor privilegiado; mas para isso o arrabalde burguês tinha que oferecer segurança e assim D. Dinis promove a construção de uma nova fortificação, a muralha da Ribeira...

Lisboa internacionaliza-se mais, os Genoveses e os judeus vão terá- por séculos - um papel privilegiado, no comércio, nas artes e na navegação. Era o princípio de uma nova era, a que não faltou o apoio da infra-estrutura imaterial de maior nível: a Universidade, fundada em Lisboa na última década do século XIII. É, obviamente, mais que lisbonense, a universidade portuguesa - o Estudo Geral.

A segunda metade do século XIII e inícios do XIV, até à Peste Negra, é um período de grande desenvolvimento para o País, o que se reflecte, de forma multiplicada, em Lisboa e na sua envolvente imediata, tanto no termo, como no sistema de apoio que renascia à volta do Mar da Palha e subia Tejo acima, apoiado em terras novas que floresciam, da já referida Salvaterra, a Vila Franca de Xira, Azambuja, Alenquer, entre outras..

O século XIV, não obstante todos os acidentes, em que avultam a Peste Negra e as guerras com Castela é ainda assim um período de expansão e fortalecimento de Lisboa, quer como principal cidade do reino, quer como posto e lugar de trato internacional.

Lisboa cresce agora de forma mais sobressaltada e menos ordenada. A crise dos campos empurra muitos rurais para a cidade, que não consegue responder-lhe às expectativas e o empobrecimento da agricultura reflecte-se naturalmente na cidade. Os conflitos com Castela acentuam os problemas. Não obstante, ainda existem energias para levar a cabo o que foi a principal obra deste período: a construção de uma nova muralha, a chamada Cerca Fernandina.

O perímetro (5.350m) das novas fortificações, que encerra uma área de 100 hectares, dá-nos uma ideia do quanto a cidade crescera em dois séculos, desde a Reconquista Cristã, não obstante termos presente que a Cerca, continha também explorações agrícolas de tamanho razoável, como nos dá conta o cronista Fernão Lopes.

A Oeste a muralha arrancava do lado do Rio, em Cata que Farás (Corpo Santo/Cais do Sodré), subia até São Roque, descia envolvendo o Rossio, para daí subir para norte, de molde a conter o novo arrabalde da colina de Santana, descia de novo, atravessando o vale do Benformoso/Rua Direita da Mouraria e ia bater ao alcácer, deixando de fora o subúrbio dos mouros, a mouraria. A leste, a partir do alcácer flectia novamente para norte, circundando os arrabaldes da Graça e de S. Vicente, deixando de fora um novo rossio (Campo de Santa Clara), descendo para o rio, de maneira que continha o denso bairro de Alfama.

Pode assim verificar-se que o crescimento tinha sido mais acentuado a poente que a nascente, maior e mais qualificado, do ponto de vista funcional e social: aí se concentrava o comércio e a indústria mais significativa, bem como os principais equipamentos públicos. Refira-se apenas, que neste sector intra-muros ocidental (actuais Baixa e Chiado) vai funcionar, viabilizado pela reconstrução pombalina após o Terramoto de 1755, o Centro de Lisboa, no essencial, até aos anos 40-50 do século XX.

Consolidada a independência, inicia-se o período que maior projecção deu Portugal no conspecto das nações: as descobertas, o comércio e colonização ultramarinos. O desenvolvimento de Lisboa, seu Termo e área envolvente do Mar da Palha é correlativo: crescimento demográfico, novas actividaes, maior integração funcional.

Lisboa torna-se definitivamente capital de Portugal e cidade internacional que nos alvores do século XVI comanda o comércio mundial das especiarias do Oriente. A mancha urbana estende-se quase continuamente de Xabregas, onde começam por ser construídos com D. Afonso III e D. Dinis, respectivamente um Palácio e um Convento, ao Mocambo (Madragoa). Para o lado da terra a principal expansão será, no século XVI a de uma urbanização planeada (Vila Nova de Andrada), correspondente ao Bairro Alto, além de desenvolvimentos lineares ao longo das principais vias de acesso ao Centro: Caminho da Penha de França - Graça, eixo Arroios - Anjos - Mouraria, caminho que da Porta de Santana seguia para a Cruz do Tabuado e para Albalade, eixo das Portas de Santo Antão a São Sebastião da Pedreira, caminho que de São Roque seguia para Campolide.

É uma cidade buliçosa onde começam a acentuar-se as desigualdades e a inscrever-se a insegurança, quer a proveniente da turbulência social, quer a decorrente da escassez de meios sanitários - cidade portuária, com deficiente abastecimemto de água e sem um sistema de esgotos (alguns canos na zona central e despejos a céu aberto nas linhas de água periféricas). Na periferia Oeste crescia, descontrolado, o bairro do Mocambo, junto à enseada de Santos (que ainda não sofrera os primeiros aterros), encostado ao Convento dos Beneditinos, bairro que, na sua multitude de gentes de raças e credos variados, sintetizava o reflexo negativo da função ecuménica de Lisboa.

Na periferia imediata algumas aldeias saloias "urbanizavam-se" e no seu entorno construíam-se excelentes moradas senhoriais, de Sacavém a Belém. Esta, mais perto da foz, não só cresce em gente e casario, como em embelezamentos monumentais (Jerónimos, Torre de Belém), constituindo-se no símbolo da ligação de Lisboa aos Oceanos.

No período filipino (1580-1640), sobretudo na primeira metade, Lisboa não deixou de aumentar, densificar e afirmar a sua vocação atlântica. Se perde algum peso por deixar de ser sede da corte real, ganha por outro lado importância no contexto de uma Península Ibérica unificada, beneficiando do trato das Américas e do Oriente.

No início do século XVII Lisboa disputa, a primazia urbana das Hespanhas e nesse contexto são-lhe dedicados dois livros que nos dão a ideia da sua importância. Cervantes e outros autores europeus referem-se-lhe amiúde de forma elogiosa, quer pela sua beleza, quer pela sua grandeza.

Em 1640 Lisboa recupera a Corte e, com ela, são construídos palácios e conventos, mas a duradoira guerra com Espanha, num contexto de instabilidade política e militar da Europa (Guerra dos 30 Anos, Guerra da Sucessão de Espanha...), não facilitam a retoma das grandezas dos finais do século XVI.

Com D. João V (1706-1750) e com o ouro do Brasil, a capital enriquece, sobretudo em monumentalidade e ostentação da Nobreza e da Igreja, mas não se actualiza nas conquistas europeias da Ciência, da Técnica e das Artes. Consolida-se e embeleza-se o núcleo urbano, que mantém a sua dimensão ribeirinha - o desenvolvimento do espaço que vai de Alcântara - Calvário (Palácio a que Filipe I tinha introduzido grandes melhoramentos) a Belém, genericamente designado por Junqueira, urbaniza-se e o continuum edificado completa-se com as Necessidades, Trinas e consolidação urbano-portuária de Santos - Mocambo - Poço do Negros.

Todavia, estranhamente, a obra majestática de D. João V, do ouro e das pedras do Brasil, não se faz em Lisboa, nem em qualquer das cidades secundárias do País, mas junto a uma pequena vila adormecida a mais de 40 km da capital: o Convento de Mafra.

Em contrapartida, Lisboa além dos vários palacetes, igrejas e conventos novos ou melhorados, vai iniciar uma grande obra, de futuro, a principal marca de actualização: o Aqueduto das Águas Livres, que aumentando significativamente o caudal de abastecimento à capital, irá permitir uma melhoria sensível nas condições sanitárias e a introdução de novos comportamentos societais.

Também do lado do fomento económico se faz algo, embora insuficiente e insignificante comparado com a verdadeira evolução que a Europa entretanto iniciara. Destaque para a Real Fábrica das Sedas e para algumas manufacturas, no têxtil, no vidro e na cerâmica. Mas a primeira tentativa séria de industrialização e de modernização de base económica de Lisboa e do País, só se iniciará, numa perspectiva integradora, na segunda metade do século XVIII.

Lisboa chega assim ao Terramoto de 1755, como uma cidade em que se encavalitavam as diferentes épocas históricas, se misturavam as funções, dominavam comportamentos sociais obsoletos - desde o sanitário ao religioso - era difícil a renovação. O Terramoto, para lá do cataclismo que fez estremecer os espíritos da Europa, é, assim, uma grande oportunidade de actualização para a Cidade e, por essa via, para o próprio País.

BIBLIOGRAFIA

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