Scripta Nova  Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 45 (22), 1 de agosto de 1999
 

IBEROAMÉRICA ANTE LOS RETOS DEL SIGLO  XXI.
Número extraordinario dedicado al I Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

GLOBALIZACIÓN Y CRISIS DEL FEDERALISMO EN BRASIL

Nelson da Nobrega Fernandes
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Geografia-UFRJ 


O propósito deste trabalho é indicar algumas questões da crise por que passa o federalismo brasileiro. Partimos do suposto que a Constituição de 1998 proporcionou níveis de descentralização de receitas e competências inéditas no Brasil. Contudo, as exigências de "ajustes estruturais" impostos pela globalização afetam gravemente a soberania do Estado na gestão macroeconômica, impedindo o desenvolvimento de um tipo de federalismo baseado em reconhecimento dos direitos sociais e na solidariedade entre os membros da União Federal. Observa-se o aprofundamento de um federalismo considerado "pragmático ou reativo", no qual são supérfluos princípios como os de solidariedade, co-responsabilidades governamentais e projeto nacional, o que aumentam as tensões político-sociais e os riscos para a governabilidade democrática.
 

Aspectos gerais do federalismo
 

Para a compreensão desta problemática é importante desde logo reconhecer os fundamentos gerais do federalismo. O Estado federal surgiu no século XVIII e foi uma inovação posta em prática no contexto de formação e consolidação da independência dos Estados Unidos. A base jurídica da União Federal de Estados está na aceitação comum e soberana de uma Constituição que subordina todos os membros da União. O federalismo e o Estado Federal requerem o fim da soberania das unidades estaduais, processo que já foi descrito como "um suicídio de Estados"(1).

No sistema federativo a soberania enquanto poder supremo, uno e indivisível é prerrogativa exclusiva da União, a quem cabe gerir os assuntos de interesse geral. Aos Estados federados são garantidas aquelas competências e autonomia necessárias à gestão e decisão sobre assuntos locais e a eleição de seus governantes. Esta divisão de poderes entre os Estados e a União é o mecanismo geral que regula a dinâmica e a evolução dos Estados Federais, expondo os diferentes graus de descentralização político administrativa alcançados historicamente.

Para que exista o equilíbrio federativo três pontos são essenciais. O primeiro é que se evite a supremacia dos Estados ou da União na repartição das competências, o que levaria a situações de subordinação e de competição política entre os membros da federação. O segundo ponto resolve teoricamente este primeiro problema, ao consagrar as competências de interesse geral à União e deixando para os Estados aqueles temas de interesse local. A possibilidade de redefinição do que é geral e do que é local permite a atualização do pacto federativo de acordo com as circunstâncias históricas. O terceiro ponto prevê mecanismos de solução para as crises de competências entre os Estados e a União, garantido a ambos a igualdade política perante a Constituição. Para isto existe uma instância federal de justiça que, sendo a responsável em resolver divergências relativas à interpretação da Constituição, se constitui em árbitro dos conflitos de competências entre os Estados e a União.

Enquanto forma de Estado baseado na descentralização política, parece indiscutível que o federalismo norte-americano alcançou êxito na medida em que os Estados puderam gozar de um larga autonomia política. O sucesso deste sistema político influiu para que Estados centralistas que se estabeleceram posteriormente viessem a adotar a formula federativa como uma roupagem descentralizada, o que lhes permitiam ostentar uma imagem de maior representatividade e legitimidade política, como aconteceu no caso brasileiro.

Como qualquer sistema de organização estatal o Estado Federal surgiu e evoluiu segundo certas circunstancias históricas, permitindo a seus estudiosos identificarem alguns modelos como o federalismo dual e não-intervencionista e o federalismo cooperativo e intervencionista. O primeiro se desenvolveu até a década de 1920; o segundo dos anos 30 aos anos 70, quando a globalização criou condições para uma reedição atualizada do primeiro modelo.

A organização do "federalismo dual e não intervencionista" gira em torno de uma diretriz, muito nítida no caso dos Estados Unidos, que busca um forte equilibro de poderes entre os Estados e a União. Contudo, mesmo ali, observa-se que a partir de meados do século XIX, a União, baseada em decisões da Suprema Corte, foi retirando dos Estados diversas competências relativas a assuntos econômicos. O sentido de tais medidas foi desregulamentar o mercado interno para a livre atuação das corporações e "trusts" norte-americanos que estavam em formação. Para tanto foi suficiente extrair competências dos Estados e a União não legislar ou estabelecer controles sobre tais assuntos. Com isto se reafirmava o não-intervencionismo mas, por outro lado, era enfraquecido o pólo estadual dentro do dualismo federalista. Tal situação criou um 'reino de não poder', uma 'zona de penumbra', uma 'terra de ninguém', em que as grandes empresas puderam agir com liberdade quase ilimitada, fora de qualquer controle.

O federalismo cooperativo e intervencionista surge da crise dos anos 30, do conseqüente abandono das orientações liberais num capitalismo que se volta para o consumo de massas. As dimensões da crise levaram ao fortalecimento da União que progressivamente foi absorvendo competências estaduais e, principalmente, interferindo nas relações sociais e nas regras do mercado. Especialmente depois do ano de1937 as decisões da Suprema Corte deram o amparo constitucional a atos praticados pelo governo federal que estabeleciam controles sobres as atividades econômicas, de modo a limitar os abusos do poder econômico, a exploração da pobreza e a especulação que obstaculizavam a recuperação do país. Leis sociais estabelecidas pelo poder federal, como o salário mínimo e as regras para o trabalho de menores, tiveram tal conseqüência.

Para Fiori(2), existem três versões de federalismo. O primeiro é o caso norteamericano, que por ter sido construído a partir da união voluntária dos Estados é chamado de progressivo ou construtivo. A União Européia é o grande representante contemporâneo deste modelo. A segunda versão de federalismo é chamada de perversa ou defensiva. É praticada como último recurso para manter a unidade em Estados ameaçados de desintegração territorial, sendo típica de sociedades multiétnicas ou multiculturais. Dentro dela existem casos que apesar de algumas turbulências, aso reconhecidamente bem sucedidos como o Canadá e a Espanha das Autonomias (Bosque Maurel,1994), mas a maioria deles envolvem iniciativas fracassadas como na ex-Iugoslávia, ex-URSS e ex-Tchecoeslováquia. A terceira versão é o federalismo pragmático ou reativo, característico da América Latina dos anos 1980. Nestes países o federalismo esteve naquele período identificado às lutas contra os regimes autoritários e a uma via para a democratização e descentralização do Estado. Esta modalidade será discutida mais adiante.
 

Globalização e federalismo
 

A crise do "welfare-state", a globalização e os clamores, à direita e à esquerda, por descentralização, trouxeram novamente para a cena política o "federalismo dual e não intervencionista" nas décadas de 1980 e 1990. Nessa direção os americanos novamente saíram na frente com o "federalismo reaganiano". Os cortes no financiamento de programa sociais mantidos pela União, a desregulamentação dos mercados, a não cooperação com Estados e a redução de impostos delineiam um tipo de federalismo dualista, não-cooperativo e não-intervencionista, que reedita a engenharia política do Estado norte-americano na segunda metade do século XIX, conforme já apontamos. Na avaliação de Fiori isto confirma a intuição de Vilfredo Pareto, que há um século afirmou que as instituições políticas oscilam entre a centralização e a descentralização como um pêndulo, porque hoje há um consenso abrangente de que estamos sob o império de uma nova era descentralizadora. Prova disto foi a adoção generalizada de tal diretriz, independente das correntes político-ideológicas e em várias partes do mundo(3).

Os juízos mais críticos e menos afoitos apontam para o imperativo de que o conceito de globalização ainda está sendo "fabricado" pois a realidade que o inspira ainda não está plenamente constituída. Considerando tais limitações e lembrando que a palavra globalização tem origem na literatura anglo-saxônica da década de 1980, devemos ter em conta que ela obrigou aos envolvidos no debate teórico a focalizar a crise brasileira dentro de uma dimensão mais internacionalizada. De fato, essa ampliação do horizonte de análise e a manutenção da velocidade e dos rumos da economia mundial permitem um esclarecimento mais preciso e num quadro mais abrangente de aspectos da crise de uma semi-periferia como o Brasil(4). Além disso, definem melhor os fundamentos do reaparecimento de estruturas de natureza político-territoriais que pareciam pertencer ao passado como os regionalismos, nacionalismos e federalismos não-intervencionistas.

Como as demais modalidades de Estados-nacionais modernos, os Estados Federais passam por uma séria crise diante das novas escalas de acumulação que acompanham a terceira Revolução Industrial. As escalas privilegiadas na pós-modernidade são as transnacionais e as locais, o que tem espremido e acuado as escalas nacionais típicas dos Estados. As incertezas quanto aos rumos dos Estados-nacionais é algo sobejamente discutido na agenda política contemporânea e sem dúvida nenhuma é uma das manifestações mais candentes da "inquietude das paisagens capitalistas"(5). Por tanto, é cada vez mais evidente que tanto o funcionamento dos Estados nacionais quanto a viabilidade dos sistema federativos estão sob sérias ameaças, sobretudo naqueles países com territórios extensos e populações heterogêneas, como a Índia, a Rússia, o Brasil e a China(6).

A complexidade da discussão exige a organização de idéias básicas que torne possível dar mais clareza aos fatos e as tendências desenhadas no avanço da globalização, especialmente aqueles que dizem respeito a redivisão do trabalho social, do poder e da riqueza que aso relevantes para a redivisão nas diversa escalas de poder. Uma primeira idéia é aquela apresentada por Wallerstein de que o capitalismo sempre foi uma questão de economia-mundo e ano de Estados, já que o seu impulso original é a desterritorialização e a internacionalização.

A segunda idéia básica é que a globalização deve ser concebida como o resultado das crises e "choques" desenvolvidos desde a década de 70 e também das respostas dadas pelas grandes corporações e os Estados hegemônicos. Reações que são definidas pelos chamados "ajustes estruturais" e suas conseqüências, formando grande parte da globalização, um processo cuja forma resultou da combinação e realimentação das transformações tecnológicas e decisões políticas como a desregulamentação dos mercados financeiros, especialmente impulsionadas a partir do eixo anglo-saxão, ao longo dos governos Tatcher e Reagan.O que esta idéia realça é que esse processo não é uma fatalidade pois, pelo menos do ângulo das relações entre os Estados e a economia, não houve apenas um tipo de resposta e participação dos países na economia mundial, particularmente no tocante a reestruturação industrial, cujos paradigmas estão no o tipo liberal e de origem anglo-saxônica e os do tipo organizado encontrados em países asiáticos.

A terceira idéia básica sobre a globalização é que ela aprofunda e reafirma a estrutura hierarquizada da economia mundo entre centro e periferias. Dados relativos ao ano de 1989 mostram que oitenta por cento dos investimentos estrangeiros foram realizados nos países da "tríade" (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão). A direção da globalização foi dada essencialmente por gestores políticos e econômicos sediados nestas regiões. Ali, não mais de cem empresas e bancos controlavam 1/3 desses capitais. O nível de concentração é tamanho que Chesnais (1994) qualificou esta situação de "oligopólio mundial" e Huntington (1993) um "diretório mundial'.

Pode-se argumentar que o mundo está sujeito a uma hierarquia de poder político, econômico e tecnológico hegemonizada por três ou cinco governos e algumas centenas de empresas que formam aquilo que vulgarmente é chamado de mercados, tidos como os responsáveis oniscientes pela alocação ótima dos recursos mundiais. Como um diretório ou oligopólio fazem e refazem a hierarquização de países e regiões inteiras, levando em consideração apenas o interesse de seus países e de suas firmas constitutivas, tecendo redes interligadas e desterritorializadas da produção, das finanças e dos serviços.

Mas isto ano significa que o sentido hierarquizado da globalização possa prescindir do Estado como muitas vezes se diz, especialmente no núcleo do sistema, já que ele ano deixa de ser conduzido pelas e para as economias da "tríade", cuja expansão dita as tendências mundiais que atingem e destroçam as economias e os Estados das periferias. O mapa da globalização apresenta um forte interdependência entre os países da "tríade" e inclui algumas semi-periferias, deixando à margem uma massa de países cada vez mais excluídos dos circuitos mundiais. Enfim, o que se conclui é que globalização e interdependência não estão em contradição com o aumento da polarização mundial. No limite globalização e interdependência estão longe da busca de convergência, cooperação e muito menos de solidariedade.

Dentro das tendências mestras que orientam a globalização o maior desafio para o federalismo está na incapacidade do controle macroeconômico dos mercados nacionais e a polarização social que vem se agigantando, com o desemprego globalizado que se agrava no centro e na periferia do sistema. Aqui bem perto de nós, a Argentina, é um dos exemplos nítidos de descontrole macroeconômico que a levou inclusive a abdicar da autoridade monetária com a dolarização de sua moeda, receita que agora, nos momentos mais agudos da crise cambial do real, foi insistentemente sugerida ao Brasil. Descontando-se as decisões internas de cada país, este problema resulta diretamente do tamanho e agilidade alcançado pelo capital financeiro nos anos 1980 e 90, inflado pelas altas taxas de juros, desregulamentação dos mercados, endividamento público e do fim da ameaça socialista. Assim, as condições de domínio e segurança do capital financeiro sobre as economias nacionais é tamanha que Fiori o chamou de "capital universalmente rentista".

O segundo desafio está no fato de que, pela primeira vez, as grandes corporações têm à disposição todo o planeta e sua população para desenvolver de forma desigual e combinada a produção industrial. A flexibilidade dos processos produtivos e as facilidades de realocação de plantas industriais permitem a constante barganha e imposição aos governos de condições fiscais, leis sociais, regulamentação do trabalho e exigências de infra-estrutura de interesses das grandes empresas.

Finalmente, o terceiro desafio ressaltado está na dívida externa, particularmente grave no caso latino-americano, e nos já referidos ajustes estruturais neo-liberais orientados pelo não-intervencionismo descentralizante que dão o formato básico do modelo geral de federalismo no presente.
 

Descentralização e tendências do federalismo no Brasil contemporâneo
 

Uma avaliação do processo de descentralização implica reconhecer duas orientações que disputaram a direção do pacto federativo no Brasil dos anos 90. De um lado temos os militantes do "Estado mínimo", para os quais a descentralização representa a oportunidade de despir o governo central de sua função intervencionista na economia e de prestação de serviços públicos, o que permitirá a redução do déficit publico, o enxugamento da máquina administrativa, maior atração de investimentos externos pela flexibilização do mercado, maior produtividade e competitividade e outros ingredientes da receita neo-liberal que, ao nos sintonizar na ordem da globalização, gerarão a riqueza necessária para resolver os diversos problemas sociais e políticos que nos colocam nos últimos lugares das estatísticas mundiais de indicadores sociais. Do outro lado estão os grupos que defendem a descentralização como elemento institucional indispensável para realização da democracia social. Eles reconhecem no Município uma instância fundamental de representação política moderna e altamente legitimada, porque o governo municipal é aquele que está mais próximo da escala do cidadão. Em termos ideais o poder local está mais capacitado para atender certas desmandas, julgando de forma mais precisa o que é prioritário, conseguindo assim eleger soluçoes mais adequadas para situaçoes especificas, além de ter maiores meios de mobilizar as comunidades na implementaçao de políticas e projetos.

A descentralização tem avançado na década 1990 concedendo vitórias de diferentes magnitudes a ambas as correntes, demonstrando um impasse evidente nos rumos do pacto federativo. Os adeptos de uma descentralização dentro do marco neo-liberal já lograram êxito bastante visível com o programa de privatização, o ataque aos direitos sociais e varias outras medidas. Por outro lado, registrou-se também uma crescente descentralização baseada no aumento do atendimento das demandas sociais pelas instâncias estaduais e municipais, que foi conseqüência direta da aplicação de princípios firmados pela Constituição de 1988. Dentro dos limites deste trabalho apreciaremos apenas os avanços desta segunda corrente porque nos parece óbvio que somente ela detém uma identificação coerente com a idéia de descentralização como um amplo pacto político moderno e com dimensões realmente federalistas, enquanto a corrente neo-liberal quer, essencialmente, um federalismo não intervencionista para as regras de mercado.

Tomando a redistribuição dos recursos entre os três níveis de governo como o ponto chave da descentralização, os estudiosos do assunto fazem severas correções aquele discurso recorrente na mídia e nos meios políticos mais conservadores de que a Constituição de 1988 transferiu apenas as receitas da União para os Estados e Municípios, esquecendo de fazer o mesmo com as competências . Um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPEA) e do Instituto Brasileiro de Administraçao Municipal (IBAM)(7), mostra que tanto as receitas quanto o gasto público dos Municípios e Estados aumentaram efetivamente no início dos anos 90. Assim por exemplo, considerando-se os anos de 1988 e 1991, as receitas correntes da União decaíram de 60 por cento (1988) para 53 por cento (1991), as dos Municípios subiram de 12 (1988) por cento para 17 por cento (1991), e a dos Estados de 28 (1988) por cento para 31 por cento (1991).

Quanto aos gastos, Afonso(8) observou que na divisão das despesas governamentais aumentou a presença dos governos estaduais e municipais após o ano de1988. Além disso nota que tal redivisão das despesas ocorreu de maneira mais acentuada do que a redistribuição das receitas. Ele mostra que entre os anos 1988-1991 a participação da União no total das despesas dos três níveis de governo declinou de 68 por cento para 51 por cento, enquanto no mesmo período os Estados aumentaram seus gastos de 22 por cento para 33 por cento e os Municípios de 10 por cento para 17 por cento.

Negando a possibilidade de que os aumentos dos gastos nas esferas subnacionais possam simplesmente manifestar ineficiência, observa-se que depois de 1990 houve uma sensível queda do déficit global do setor público brasileiro, sendo que os segmentos governamentais que mais melhoraram foram os Estados e os Municípios. As provas reunidas para demonstrar que houve descentralização pelo lado das despesas sao contundentes. Neste curto período os gastos dos Estados e Municípios tornaram-se duas vezes maiores que os da Uniao e, em termos de capital fixo, os investimentos dos primeiros foram quatro vezes superiores aos do governo federal..

Arrolando mais dados e avaliações feitas por outros autores, a conclusão do trabalho do IPEA/IBAM é que ocorreu realmente uma descentralização profunda das despesas e encargos públicos para os Governos subnacionais. Se os resultados não alcançaram níveis satisfatórios, devemos recordar que tal processo se desenvolveu nos anos de crise econômica e política dos governos Sarney e Collor, o que em grande parte justifica as descontinuidades e ausência de planejamento, a desconsideraçao das peculiaridades locais, somadas a descoordenaçao intergovernamentais que o caracterizaram. Não sendo estruturada em uma política coerente e negociada a descentralização alcançada tem sido identificada com a ausência de solidariedade e desarticulação entre as unidades da federação: "o Nordeste no bloco do Eu Sozinho"(9), "descentralização na base do cada um por si e Deus por todos"(10) e "federalismo reativo ou pragmático"(11).

Os estudos por nós analisados mostraram não só onde estão as dificuldade e os impasses da descentralização como diversas soluções para sua superação. Parte das soluções dependem ainda de estudos que façam o reconhecimento das novas desigualdades regionais, da redivisão do trabalho, da riqueza, da tecnologia e das novas identidades regionais. Mas, sobretudo, é preciso definir: Que Estado se deseja? Que papéis deve exercer? Como distribuí-los entre União, Estados, e Municípios.

A tendência para um federalismo baseado em reconhecimento de direitos e de solidariedade entre partes tem sido gravemente dificultada pelo aprofundamento da dívida interna e externa. A incapacidade financeira dos Estados restringe severamente uma descentralização de competências porque simplesmente existem cada vez menos recursos para o exercício de todas elas, sobretudo, se considerarmos que é sobre a União que pesam os maiores custos dos ajustes estruturais. A rigidez dos limites de manobra é tal que já se observa tendências de recentralização no Brasil e na América Latina. Este tipo de conclusao se baseia nos questionamentos à descentralização em curso e, mais ainda, às medidas concretas que visam o financiamento do governo central, cujo objetivo é atender os requerimentos dos ajustes estruturais e a estabilizaçao monetária. Seja por meios ficais, seja através da simples transferência de responsabilidades do governo central para os governos locais sem a correspondente previsao de recursos, multiplicam-se vozes e estratégias que, de fato, conduzem a uma recentralização(12).

A situação viabiliza o desenvolvimento de um federalismo "pragmático ou reativo" porque tem sido cada vez menor a possibilidade ou necessidade de exprimir como idéia política fundamental os princípios de solidariedade e co-responsabilidade governamentais. Assim, a barganha federativa não requer nenhum revestimento de projeto nacional, estando cada vez mais subordinada ao jogo dos interesses privados contrariando os princípios contitucionas vigentes.

Este tipo de federalismo tem provocado ou agravado problemas que dificultam um pacto com níveis mínimos de solidariedade e legitimidade, que já começa a ameaçar a estabilidade política. Um dos mais visíveis é a aceleração e renovação das desigualdades regionais pela inserção ou não das mesmas no circuito global, reforçando um federalismo mais frouxo e um Estado incapaz de gerar políticas compensatórias. Um quadro que se intensifica pela guerra fiscal entre Estados, Municípios e regiões que obstaculiza o pacto federativo, dando-lhe uma aparência de guerra de rapina ou de uma terra de ninguém que se afasta da possibilidade de um pacto de poder mais equlibrado e justo na sociedade brasileira, aumentando perigosamente os riscos para sua governabilidade democrática
 

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Notas
 

1. Dallari, 1986: 15, 16

2. Fiori: 1995a: 6, 7

3. idem: 4

4. Conforme Becker & Egler, 1993

5. Conforme Harvey, 1992; Soja, 1993

6. Fiori, op.cit: 15

7. IPEA/IBAM, 1994: 27

8. Afonso, 1994

9. Lavinas, 1996: 381

10. Afonso, 1994: 11

11. Fiori, 1995a: 13

12. IPEA/IBAM
 
 

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