Scripta Nova  Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 45 (49), 1 de agosto de 1999
 

IBEROAMÉRICA ANTE LOS RETOS DEL SIGLO  XXI.
Número extraordinario dedicado al I Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

RELIGIOSIDADE POPULAR EM COMUNIDADES ESTUARINAS AMAZÔNICAS: UM ESTUDO PRELIMINAR DO MARABAIXO NO AMAPÁ.

Maria do Socorro dos Santos Oliveira
Professora da Universidade Federal do Amapá
Doutoranda em Antropologia da Universidade de Barcelona. 


Este trabalho faz parte de um Projeto de Documentação e Estudos sobre a religiosidade popular do homem amazônico, mais precisamente daquele que vive no Estado do Amapá. Uma iniciativa do Centro de Investigação das Etnociências, Culturas e Línguas da Amazônia, da Universidade Federal do Amapá .

O homem que vive na Amazônia brasileira tem como principal prática religiosa o catolicismo. Apesar de ser eminentemente católico, acredita em superstições e crendices que fazem parte do seu cotidiano. Essa religiosidade se expressa através da devoção aos santos católicos, e da reunião de diferentes comunidades em momentos específicos para celebrarem seus padroeiros(1). Dessa maneira, várias comunidades passam grande parte do ano civil envolvidas com a preparação e ou participação em festas religiosas católicas. Ou seja, manifestações de fé, de agradecimento por benefícios alcançados, e renovação dos pedidos que fazem à imagem do santo protetor.

Considerando o grande número dessas celebrações religiosas católicas que acontecem no estado do Amapá, fiz a opção por estudar aquelas que se processam em comunidades negras que habitam a área de costa , na zona do estuário amazônico. Interpretar a religião popular de origem negra africana que se manifesta na cidade de Macapá em processo de desenvolvimento turístico e econômico. Ou seja, descrever fazeres religiosos tradicionais que convivem com a modernização urbana, destacando suas estratégias de reinterpretação e resistência.

Ademais essas festas não se caracterizam apenas por prestarem homenagens a santos do catolicismo, mas também por servirem de momentos de confraternização coletiva entre várias famílias e comunidades. Certamente são respostas simbólicas e religiosas às mudanças e secularização do sagrado produzidos pelos novos valores sociais em voga na cidade de Macapá. Maneiras de resistir e manter relações e identidades sociais diante de novas práticas e valores sociais.

O principal objetivo deste trabalho é realizar uma primeira leitura científica do fenômeno religioso no Amapá, em particular do marabaixo, que consiste numa prática religiosa de pessoas negras, remanescentes de quilombos, que expressam sua fé através da dança e do canto acompanhados por tambores, e da degustação da gengibirra (bebida alcoólica). O marabaixo consiste em uma reunião de práticas religiosas e profanas de iniciativa popular, que não têm nada a ver com os cultos católicos eclesiásticos, que o caracteriza enquanto catolicismo popular.

Certamente o que pretendemos compreender é a existência daquele fazer religioso restrito, exótico e marginal, que se mantém e se renova, através do tempo e de seus atores sociais com a prática de ritos bastante particulares, em um determinado espaço urbano, moderno e amazônico.
 

Localização geográfica da cidade de Macapá
 

A Zona de Costa do Estado do Amapá, localizada nas proximidades do estuário do rio Amazonas, possui uma extensão linear de aproximadamente 650 km e uma área de 67.518 km², dividida em dois grandes setores o atlântico e o amazônico ou estuarino.

Nosso trabalho está localizado na costa estuarina composta por quatro municípios, entre eles Macapá, sede administrativa do governo estadual, ou seja, capital do Estado. Macapá nos últimos anos possui uma população de aproximadamente 240 mil habitantes distribuídas por várias vilas, áreas de proteção ambiental, distritos e centro urbano.

Seus habitantes têm por principal atividade econômica o serviço público federal, estadual e municipal, devido seu passado recente de Território Federal do Amapá. Com a constituição de 1998 passou a Estado e em seguida as duas principais cidades : Macapá e Santana, que concentram maior parte da população estadual, foram transformadas em zona de livre comércio, o que sobremaneira contribuiu para mudanças muito rápidas e significativas na vida de seus habitantes, mudanças as quais contribuíram para o surgimento de novas maneiras de interpretar as práticas religiosas existentes na vida daquela população.

Ademais, as novas faces do dia a dia vivenciadas por comunidades negras no município de Macapá, de modo geral, não dizem respeito às suas práticas religiosas, não produziram intervenções ao ponto de enfraquecer ou tornar menos significativas e presentes suas manifestações de fé.

Na cidade convivem diferentes maneiras e crenças religiosas como umbanda, candomblé, espiritismo, catolicismo, entre outras. Todavia, os eventos de cunho católico são de maior aceitação e de maior participação popular.
 

Em que consiste o marabaixo
 

Para alcançarmos nosso intento de fazer uma leitura preliminar do marabaixo, enquanto fenômeno religioso, anualmente reinterpretado por pessoas negras na costa estuarina amapaense, carecemos de um breve relato do que vêm a ser tais fazeres. Trataremos especificamente do marabaixo urbano, que estamos acompanhando através de observações participantes por toda esta década de 90.

O marabaixo é um ritual que compõe várias festas católicas populares em oito comunidades negras da área metropolitana de Macapá e Santana. Acontece em louvor a santíssima trindade e divino espírito santo nos bairros da favela e laguinho no centro da cidade de Macapá, em louvor à santa Maria no Curiaú e nas várias outras comunidades como parte dos festejos a outros santos, em momentos distintos.

Segundo as poucas fontes bibliográficas existentes a respeito, o marabaixo tem suas origens desconhecidas. É um ritual eminentemente de negros, que foram trasladados por portugueses para a cidade de Mazagão, originários da África Ocidental, para consolidar a ocupação das áreas que atualmente correspondem aos municípios de Mazagão Velho e Macapá, foz do rio Amazonas, Amapá.

Para Canto em seu recente trabalho, " O termo marabaixo é provavelmente uma variação de marabuto ou marabut, do árabe morabit – sacerdote do malês. Portanto é apenas um resquício ou fragmento do ritual malê, do grande Império afro-sudanês do século XVI."(2).

A cada ano na casa de um devoto, por aproximadamente sessenta dias, é realizado o ciclo do marabaixo, como denominam seus intérpretes que compartilham a devoção ao divino espírito santo e a santíssima trindade.

Apesar de existirem dois ciclos do Marabaixo no centro de Macapá, somam como uma festa só, isto porque são concomitantes permitindo que alguns participantes possam estar presentes momentos num bairro e noutro, o que para nosso entendimento demonstra os propósitos de coletividade e confraternização que são marcantes naquele evento. As celebrações têm início a partir do domingo de páscoa nos bairros Laguinho e Favela, e se desenvolvem durante um espaço de tempo de aproximadamente sessenta dias através: da dança do Marabaixo, das missas, novenas, procissões, apanhada da murta, a busca de mastros e suas levantadas e derrubadas, bailes populares, oferenda de chocolate com pão e de almoço aos inocentes ( no bairro da Favela ).

O marabaixo também consiste no toque de caixas construídas com tronco de árvores e pele de animais, na dança das mulheres em círculo ao redor do salão, com dois ou três homens que tocam as caixas ao centro. Geralmente uma das mulheres ou um tocador "joga" os versos que são respondidos pelas dançadeiras que ao mesmo tempo dançam e fazem o coro ou cantam juntos todo o" ladrão", que são músicas ou trovas populares de autoria dos próprios devotos.

Como acompanhante ao canto e a dança é servida a gengibirra e vendida a cerveja. Dançam nos dias de marabaixo, segundo a programação da festa, desde o começo da tarde até a manhã do dia seguinte.

Seus participantes são devotos da santíssima trindade e divino espírito santo, que como agradecimento de favores recebidos desses santos, oferecem sua casa para a celebração da festa, que simbolicamente representa obediência e renovação do culto às imagens dos santos de devoção. Isto é " O devoto realiza a novena ou a simples reza em promessa de um benefício que pede ao santo. Do mesmo modo as festas maiores podem ser consideradas promessas coletivas , pois se acredita que, se o povo não cumprir com a sua obrigação realizando a festa na época e com o ritual apropriado, o santo retirará sua proteção"(3).

Em tempos passados o devoto anfitrião financiava bebida e comida através da associação dos festeiros que, atualmente perdeu seu papel estritamente religioso, passando a ser uma razão social através da qual solicitam recursos financeiros aos governos, para arcar com os gastos que os devotos a cada ano não conseguem pagar, nem se sentem na responsabilidade de fazê-lo de modo particular.

A perda do poder aquisitivo do funcionário público brasileiro afetou a vida dos devotos e realizadores do marabaixo em Macapá, fazendo com que tenham de solicitar ao próprio governo a manutenção financeira da festa.

Tal fato, no nosso entendimento, criou um vínculo entre os elaboradores do marabaixo e os poderes governamentais, uma relação até certo ponto bastante complicada, posto que de certa maneira o marabaixo tornou-se uma festa tutelada pelos recursos públicos locais.

Por um lado devotos que são eleitores, cidadãos, recorrem ao governo para o pagamento dos gastos necessários para manter alguns ingredientes do ritual. Por outro, candidatos a pleitos eleitorais utilizam para divulgação de suas propostas os espaços de elaboração do marabaixo, com o discurso de defensores das práticas culturais populares. Desta feita, a cada ano o marabaixo se passa na casa de um devoto que no ultimo dia da festa passada pegou as bandeiras no momento de derrubada dos dois mastros, o que simboliza que estará prestando sua homenagem aos santos no ano seguinte. Isto é, sua casa será a próxima sede do marabaixo.

Em cada um dos bairros há um rodízio praticamente fixo e previamente acordado entre os devotos quanto à festa que virá. No que concerne a organização e distribuição de tarefas desempenhadas antes, durante e depois do marabaixo está a cargo dos organizadores mais experientes e do festeiro da ocasião. Esse rodízio consiste num acordo estabelecido entre aqueles que mantém a devoção, se comprometendo em colocar sua casa disponível para a realização do marabaixo. Assim os devotos festeiros tanto no bairro da Favela como no Laguinho se resumem em quatro pessoas, ou seja, a cada quatro anos uma mesma casa volta a sediar aquela festa religiosa.

Como é possível perceber, esta é uma prática religiosa que tem encontrado alternativas, como as que descrevemos acima, para resistir ao processo urbano e às mudanças sociais que seus elaboradores tem que enfrentar.

Apesar dos câmbios sociais, o marabaixo, melhor dizendo os marabaixos - posto que são vários ritos existentes em Macapá, e em outros distritos do Estado - é considerado como uma das mais significativas festas folclóricas do Amapá. Claro que esta avaliação não tem nada que ver com estatística, até porque muito se houve falar sobre o evento, todavia consiste num culto restrito a poucas pessoas, para ser mais clara, a poucas famílias, parentes e amigos.

O marabaixo é marcado por dois grandes momentos: um primeiro que corresponde ao seu aspecto religioso e um segundo que conta com uma certa participação popular que são os bailes populares. Num mesmo ciclo realizam cultos católicos, dançam música popular brasileira e dançam o marabaixo, obviamente em dias diferentes. Existe uma grande programação na qual cada momento tem seus dias e lugar específico para serem interpretados.

Trataremos então de descrever o que ocorre em cada um desses momentos.
 

Descrição dos principais componentes da festa
 

Acontece em dois bairros a cada ano: no Laguinho em louvor ao divino espírito santo e santíssima trindade e na Favela (Santa Rita), onde a devoção de maior importância é para com a santíssima trindade, o que expressam através da oferenda de um almoço para as crianças, denominado "almoço dos inocentes".

Gostaria de destacar que neste trabalho ainda não temos dados que nos permitam tratar dos momentos que antecedem a festa do marabaixo, até mesmo por não possuirmos tais informações que demandam dedicação exclusiva do pesquisador. Esta fase da nossa observação participante está por ser realizada.

Outro aspecto muito importante do qual não trataremos, diz respeito às preparações individuais ou pessoais que antecedem o marabaixo, ou seja, o que comem ou evitam comer, passam no corpo, bebem, compram, usam ou deixam de usar, se descansam ou nada fazem de especial os participantes da festa.
 

A casa da festa
 

Na casa onde acontece o marabaixo é construído um grande pátio com bancos ao redor, que se prolonga da sua porta principal ao meio fio da rua. Tal espaço é destinado aos fazeres profanos e ao marabaixo. Ou seja, onde se dança nos dias de marabaixo, bem como nos dias destinados aos bailes populares. Corresponde ao espaço público daquela realização comunitária .
 

O oratório
 

Já no salão interior da casa é organizado um oratório com as coroas do divino espírito santo e santíssima trindade, velas acesas e imagens de outros santos que compõem o ambiente sagrado juntamente com a bíblia, que a cada dia está aberta numa página diferente para a reflexão dos devotos que eventualmente param para fazer orações.
 

As missas
 

Alguns dos devotos costumam participar das missas realizadas na igreja do bairro em três oportunidades previstas no programa do ciclo do marabaixo : domingo de páscoa, no domingo dedicado ao divino espírito santo e a última e terceira missa no domingo da santíssima trindade.

A partir de conversa anterior com o sacerdote paroquial, na noite dos sábados que antecedem as missas, duas pessoas, geralmente quem esteja disponível no momento na casa, levam as imagens para a igreja , que ao terminar cada missa são devolvidas para o oratório.
 

As novenas
 

Durante dezoito noites as mulheres se reúnem na casa de um outro devoto para rezarem a ladainha que é conduzida por um homem mais idoso da comunidade que sabe rezar e conduzir aquele rito, numa linguagem que afirmam ser o idioma latim. Trata-se de algo um tanto difícil de compreender. Entretanto, nos parece ser aquela maneira de rezar bastante particular daquelas pessoas, que guardam consigo símbolos e significados que necessitam manter entre o grupo específico. Ou seja, uma das alternativas que criaram para manter a identidade grupal e ao mesmo tempo as peculiaridades daquela prática religiosa é certamente a reza singular das ladainhas em louvor às imagens sagradas para com as quais têm devoção.

As novenas são distribuídas em nove noites para cada um dos santos, sendo geralmente realizadas fora da casa onde está se passando a festa, o que interpreto como uma separação que fazem entre os espaços destinados aos cultos sagrados e os aspectos que prefiro denominar menos sagrados ou para-sagrados. Sim, porque ao nos dedicarmos a uma compreensão mais detalhada do marabaixo, como de qualquer um outro culto católico popular amazônico, nos damos conta da dificuldade ou impossibilidade de identificação dos seus aspectos sagrados e seculares. Quando começa e termina a intenção de louvor daqueles rituais, são interpretações complexas elaboradas no imaginário simbólico das pessoas que realizam aquelas práticas religiosas.

Desta maneira entendo que as danças , o canto, a bebida, a comida e os demais momentos somam as intenções de fé e homenagens sagradas que oferecem ao santo protetor. Através da alegria e da fé celebram coletivamente a vida, no caso dos idosos, e a resistência daquela particularidade que os caracteriza enquanto negros, famílias e pessoas que se reconhecem e se fazem reconhecer pela sociedade, através do marabaixo.
 

Procissões, murta, mastro
 

As procissões são realizadas pelas ruas do bairro de maneira rápida e acompanhadas de marabaixo ( tocam, cantam e dançam ), em dois momentos sendo o primeiro no domingo do mastro quando saem às ruas com as ramas de murta, e o segundo no último dia da festa para levar as bandeiras dos santos para a casa da festa que virá. Esses ritos simbolicamente anunciam respectivamente, o início e o encerramento da festa em louvor ao divino espírito santo e santíssima trindade em Macapá.

A murta corresponde a uma ramagem verde que é apanhada por mulheres que se deslocam para as matas próximas da cidade na quarta – feira da murta, e cantando e se confraternizando apanham vários galhos que serão utilizados como revestimento dos dois mastros. Estes últimos são dois troncos finos de árvores que também são retirados de matas das cercanias, por homens, alguns dias antes do começo da festa.

Cada um dos mastros é erguido em frente da casa da festa, um no domingo do mastro e o outro no domingo que antecede o domingo da trindade. São enfeitados com a murta e as bandeiras no dia dedicado especialmente ao louvor a um dos santos. No último dia da festa os dois mastros são derrubados às 18 horas exatas, sendo um dos ritos mais importantes de todo o evento, também é acompanhado com o dobrado das caixas e se caracteriza como uma atividade estritamente masculina.
 

Dança, canto, caixas, bebidas e bailes populares
 

A dança das mulheres ao redor do salão, forma um círculo com os tocadores ao centro e os homens que se determinam a acompanhar o fazem pelo lado de fora da roda através de alguns gestos de capoeira. Os homens se comportam dessa maneira desde há muito, pois segundo os mais velhos a dança do marabaixo é coisa para mulher como sinal de respeito tanto para com os santos como para com as próprias dançadeiras Não consideram moralmente permitida a dança de homens e mulheres juntos no salão de marabaixo. Esta interpretação permite aos homens outras atividades que podem realizar no espaço da dança como jogar capoeira e tocar caixas. As mulheres que têm filhos pequenos costumam dançar com a criança no colo ou segurados pela mão.

Os jovens e adolescentes não participam em bom número, por se sentirem envergonhados e não quererem sofrer discriminação pelos colegas de escola e do bairro que não conhecem nem entendem o marabaixo.

Cantam canções de autoria deles mesmos que tratam da fé mas também do dia a dia, são "ladrões", que durante o marabaixo são cantados pelas mulheres e eventualmente por homens.

Segundo a tradição uma das dançadeiras mais antigas joga os versos e as outras fazem o coro ou refrão, com os tempos atuais esta tarefa já é desempenhada por homens, na ausência das mulheres que sabem cantar. Para exemplificar apresentamos dois trechos de dois " ladrões" citados por Canto(4).
 

Dobrado do divino espírito santo
 

"A pomba do divino já voou, já foi embora
chegou na quarta-feira ,chegou no dia da hora
na quarta-feira , na quarta – feira
chegou no dia da hora
no dia da hora quando a missa entrou
no dia da hora
quando a missa entrou
Jesus Cristo lá no céu se alegrou..."
 

Rosa branca
 

"Rosa branca açucena lê, Lê
Case com a moça morena Lê, lê
Amanhã é dia santo o lê, lê dia de corpo deus ô lê, lê
Quem tem roupa vai a missa quem não tem faz como eu
Rosa branca açucena lê, lê
Case com a moça morena lê, lê "
 

As caixas são tambores confeccionados por um "mestre", homem que vive no bairro e que sabe a arte de fazer tambores. Tocar aqueles instrumentos num ritmo acelerado e constante por mais de dez horas, não significa somente o domínio de um saber artístico, mas um gesto de fé e louvor.

Como tratamos em momentos anteriores tocar as caixas é papel masculino no contexto do ciclo do marabaixo. Desta feita faz se necessário enfatizar que só estão presentes nos dias de marabaixo, posto que são momentos dos quais só participam devotos e curiosos, que somam numericamente muito pouco.

Com os bailes populares acontece o contrário, são festas das quais participam muitas outras pessoas do bairro, pelo fato de não precisarem pagar ingressos para dançar musica popular e regional.

Durante os sessenta dias de festa acontecem vários bailes populares nos intervalos e períodos de descanso para aqueles que dançam, tocam e cantam marabaixo. Podemos afirmar que a maioria dos freqüentadores dos bailes não têm nada que ver com a devoção, o fazem por lazer. As pessoas que dançam nos bailes bebem cerveja que é vendida pelo dono da casa num bar improvisado no salão. Não obstante, são programas que se constituem em atividades tradicionais do ciclo do marabaixo que reúnem a juventude dos bairros nas casas onde as festas do divino e da trindade. Ademais, por ocasião dos bailes criaram uma fonte a mais de complementação salarial para o festeiro ou festeira com a improvisação de um bar onde comercializam bebidas.

A gengibirra é a bebida tradicional do marabaixo como dos demais rituais de negros que acontecem naquela área do estuário amazônico. Consiste numa infusão preparada com cachaça e gengibre que é servida gratuitamente e atua com um excelente efeito calmante sobre a garganta daqueles que cantam e dançam por muitas horas. Apesar de muitas mulheres e homens beberem preferentemente a gengibirra, outros já compram e bebem a cerveja enquanto participam do marabaixo.
 

Algumas conclusões preliminares
 

Nosso intento de apresentar esta leitura do marabaixo no Amapá, mais precisamente na cidade de Macapá nos oportunizou algumas reflexões sobre os aspectos simbólicos que o marabaixo encerra em seus meandros e a importância que adquire no contexto social e urbano amazônico.

Durante esta ultima década do milênio, a cidade de Macapá passou por transformações significantes do ponto de vista social, transformações provocadas pelos programas de desenvolvimento implementados pelos poderes governamentais. Trata-se de políticas e ações que visam o desenvolvimento da economia, do turismo e das práticas culturais locais. Considerando tais políticas compreendemos ser de fundamental importância a elaboração de estudos acerca das manifestações culturais existentes no estado, tanto para uma tomada de consciência das mesma, quanto para tentar contribuir com os programas administrativos dos governos, posto que os mesmo não têm demonstrado sensibilidade e conhecimento científico dos fazeres locais, o que está explícito na definição das ações voltadas para a cultura.

Por outro lado nossa inquietação diz respeito também aos efeitos daquelas políticas sobre as maneiras de elaboração cultural que os diferentes grupos e comunidades manifestam tanto na cidade como nas áreas rurais. Há uma distância muito grande e significativa entre a interpretação científica do marabaixo e as políticas culturais governamentais.

Para talvez dismistificar um pouco e contribuir para a diminuição dessa questão, pensamos que aquilo que se considera ciclo do marabaixo, é certamente este conjunto de rituais que totalizam o que cada momento significa : a reinterpretação a cada ano do culto às imagens dos santos protetores. Ou seja " O santo padroeiro, ou mais propriamente, uma determinada imagem que o representa e a qual se atribui grande capacidade milagreira, é objeto de culto especial"(5).

São rituais que têm início no domingo de páscoa, descansam por quatro domingos e retornam com o domingo do mastro quando é dado início aos festejos aos santos. Na quarta-feira seguinte é o dia da murta, as mulheres vão à mata apanhar uma ramagem que revestirá os mastros. Estes mastros são levantados cada um num domingo destinado a um dos santos quando são ornamentados com a murta e as bandeiras dos santos no topo. Este ritual acontece no domingo do senhor e no domingo da trindade..

No último domingo da festa são derrubados os dois mastros ao mesmo tempo, tarefa desempenhada por homens, e o festeiro do próximo ano se posiciona perto das bandeiras para recebê – las. É o momento que o marabaixo sai pelas ruas até a casa do festeiro ou festeira seguinte, como que anunciando o local da festa que virá. O fazem naquele momento por ser o último dia festa.

Todos os componentes do ciclo do marabaixo que descrevemos acima são acompanhados com marabaixo, gengibirra e cerveja, exceto as missas e novenas. Os descrevi resumidamente, mas existem intervalos entre eles quando são rezadas as novenas, realizados os bailes e reservados os dias para descanso.

Compreendo o marabaixo como uma manifestação religiosa católica popular, que sobrevive enquanto devoção de poucas famílias negras que moram nos bairros do Laguinho e Favela, que mesmo com o passar dos anos, com a pressão urbana e o preconceito social , celebram seus protetores ou de seus pais e avós, com danças, cantos, bebidas fogos e muita alegria e confraternização, bem como através de missas, novenas, oratórios e demais componentes que os remetem ao lamento do negro em tempos passados .

Também podemos dizer que é folclore, posto que se repete e se mantém. Consiste numa prática popular católica, que acontece sem a intervenção do catolicismo oficial. É folclore não apenas pelas saias floridas das dançadeiras ou por suas danças, mas por ser o marabaixo um fazer próprio daqueles que o realizam e, ao mesmo tempo, por se "repetir " e se renovar se tornando tradição, não de todos os amapaenses, mas de alguns dos muitos negros que vivem em determinadas comunidades do Amapá.

Podemos afirmar que é popular pelo fato de seus agentes pertencerem as classes baixas da sociedade brasileira e que, portanto éfolclore porque mantém vivos lamento e fé do negro que resiste à discriminação , ao preconceito e marginalização social desde tempos passados, como canta Zé Miguel " O nego velho toca marabaixo e chora e planta sonhos nas sandálias da futura geração."
 

Notas
 

1. GALVÃO, E., 1983 , p. 4

2. CANTO, F., 1998, p. 19

3. GALVÃO, E., 1983, p. 4

4. CANTO, F., 1998, p. 39

5. GALVÃO, F., 1983, p. 4
 

Bibliografia
 

ALVES, ISIDORO. O Carnaval Devoto .Petrópolis : Vozes, 1980.

BRANDÃO, CARLOS RODRIGUES. O que é folclore. São Paulo : Brasiliense, 1982.

CANTO, FERNANDO. A água benta e o diabo . Macapá – Amapá : Fundação de cultura do governo do estado do Amapá, 1998.

COSTA, ANA ALICE & ALVES, IVIA I. Ritos, Mitos e Fatos. Salvador : 1997.

FERNANDES, RUBENS CESAR. Os Cavaleiros do Bom Jesus. São Paulo : Brasiliense,1982.

GALVÃO, EDUARDO. A Religiosidade do Caboclo da Amazônia . Rio de Janeiro : Religião e Sociedade,1983.

RABELO, BENEDITO & CHAGAS, MARCO A.A. Aspectos Ambientais do Amapá. Macapá: Secretaria de Estado de Planejamento, 1995.

ROGNON, FRÉDÉRIC . Os Primitivos Nossos Contemporâneos. São Paulo: Papirus, 1991.
 
 

© Copyright: Maria do Socorro dos Santos Oliveira, 1999

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