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Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 94 (24), 1 de agosto de 2001

MIGRACIÓN Y CAMBIO SOCIAL

Número extraordinario dedicado al III Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

O IMIGRANTE NO ESPAÇO URBANO: IMPASSES, ESTRANHEZA E PSICOSE

Ademir Pacelli Ferreira
Professor Adjunto do Instituto de Psicologia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro


O imigrante no espaço urbano: impasses, estranheza e psicose (Resumo)

A questão alterativa e subjetiva no migrante é analisada a partir do seu confronto com o lugar de estranho e da estranheza no novo espaço de vida. A aventura no campo do outro pode ser ameaçadora e fascinante para o migrante recente, que tenta responder rapidamente às exigências internas e externas. A fragilidade pelas perdas do deslocamento, facilita a emergência da crise. Com seu drama, o migrante expressa o lugar de deslocado nos espaços das metrópoles, com suas mutações e ritmos velozes. Analisa-se a tensão decorrente do desejo de inserção do sujeito, sua ligação com o passado e o sentimento de exclusão. A psicose aguda poderá surgir no ápice da vivência destes conflitos. Ressalta-se a importância dos aspectos sócio-culturais na assistência ao migrante, analisando o modelo asilar em confronto com novas possibilidades terapêuticas. Estas, ao acolherem o sujeito em sua diferença sócio-cultural e psicótica, favorecem a sua reorganização.

Palavras-chave: imigrante / psicose / metrópole / psicologia


The inmigrant in the urban space: impasses, strange place and psychose (Abstract)

Alterative and subjective migrant questions are analysed from their confront with the strange place that he takes in the new life. The adventure in the other field can be dangerous and fascinating for the recent migrant. He needs to respond quickly to his inners and externals deamands. The fragility for the migration losts, leads to the crisis. With his drama, the migrant express his displaced situation in the metropolis, with its quickly changes. The migrant tension is analysed in its relationship with the ambiquity for his desire to insert in the new reality, the link with the past and his out-sider feelings. The acute psychose, can emerges in the top of this conflict. On demonstrate the importance of the socio-culturals aspects to the migrant therapy, comparing the asylum model with the new therapeutics possiblities. These reordenate the individual offering him support to his socio-cultural and psychotic differences.

Key-words: migrant / psychose / metropolis / psychology


As controvérsias sobre a relação positiva entre a migração e os distúrbios mentais surgem desde os discursos dos alienistas americanos do século passado (Rozen, 1974), onde, dependendo da orientação ideológica, o deslocamento é visto como positivo ou como negativo (Ferreira, 1996). Entretanto, uma das formas de expressão de distúrbios mentais, classificada como Psicose Reativa Aguda, ainda no final do Século XIX (Lee [et.al.], 1991), foi observada como mais freqüente entre imigrantes As grandes massas de imigrantes que nesta época buscaram o Golden Gate da América do Norte, cheios de sonhos com um futuro diferente da miséria européia, despertaram a preocupação dos políticos e dos cientistas. Estes últimos, em seus estudos estatísticos, viam no deslocamento a causa para os danos mentais observados nos imigrantes. Esta correlação, estabelecida como variável natural por estes estudos, foi contestada por outros pesquisadores através de métodos mais críticos e de análises mais aprofundadas (Bastide, 1969 ; Almeida, 1987).

No entanto, a Psicose Reativa Aguda ou surto psicótico no migrante, continuou a chamar a atenção de vários pesquisadores e psiquiatras ao longo do século e passou a ser entendido como um tipo privilegiado de manifestação psicopatológica do migrante recente (Bastide, 1969; Lee [et. al.] 1992; Ferreira, 1999). Em nossa experiência em Emergências Psiquiátricas, a observação do aumento do número de crises psicóticas em migrantes recentes, nos levou ao estudo das relações entre suas vivências psicopatológicas e o lugar que ocupavam no espaço urbano, destacando a experiência da estranheza e do estranhamento (desrealização e despersonalização). Se o migrante aventura-se no espaço estranho visando ser um outro, esta abertura do eu é vivida com fascínio e temor, uma vez que o sujeito duplica-se, sofrendo a ameaça de não conseguir realizar o desdobramento subjetivo. No tumulto e à deriva, ele é tomado pelo outro. Desta forma, entendemos o surto psicótico como sendo este fenômeno de subversão do sujeito, onde o eu é tomado pelo outro.

É no confronto entre as suas referências anteriores e a defasagem de seu sistema de representações para responder às solicitações atuais, que situamos a tensão inicial do migrante. Os efeitos da rejeição e da discriminação podem acentuar o seu sentimento de estranheza e facilitar a sua desarticulação. É nesta tensão frente ao espaço estranho e polissêmico da metrópole, que situamos a ruptura da psicose. Ilustraremos esta situação com a análise do drama de um estudante africano no Rio de Janeiro, que através de sua experiência e de suas manifestações psicopatológicas, poderá nos informar algo mais sobre a experiência do deslocamento, sobre a psicose e sobre a necessidade de pensarmos as modalidades de assistênciais atuais em saúde mental. Por isso, traçamos considerações sobre o ideal das cidades iluminadas e suas sombras, que bloqueiam os fluxos subjetivos e alterativos ao criar os espaço de enclausuramento e segregação.
 

Fluxos, refluxos e explosões no espaço urbano: fragmentações subjetivas e ruptura do eu

A experiência com o estranho pode ser entendida como sendo aquilo que provoca a desarticulação do sujeito, enquanto que a experiência com o que é familiar reforça os aspectos que referendam o eu. No lugar de deslocado, sem o nexo dos sentidos, o migrante perde suas referências e sua capacidade de resignificar e de ordenar o seu universo. Ao criar os espaços de segregação e de exclusão do diferente, daquele que contrapõe-se à ordem da racionalidade urbana, a sociedade erigiu o louco e a loucura como negatividade (Chaves, 1988) e, consequentemente, como invisibilidade. Um mundo de sombras passou a habitar os hospícios e os seus muros obliteraram a representação da loucura, produzindo a estranheza de todos frente ao louco. Os espaços de reclusão e os instrumentos de força utilizados pela racionalidade médica (Fremminille, 1977), contra os doentes mentais nos últimos duzentos anos, demonstram o furor da razão para excluir a desrazão da circulação. É neste lugar de exclusão, de invisibilidade e de diferença, que situamos as crises de loucura do migrante, que como o louco, é também percebido como negatividade, pois antes de ser percebido na positividade de sua diferença cultural, é visto como desqualificado instrumental e simbólicamente (Nathan, 1986).

Mas o outro insiste contra a ordem da racionalidade e o imprevisível da loucura irrompe no circuito urbano. Ainda na década de setenta, no início da nossa experiência em emergências psiquiátricas, nos deparamos com um intenso afluxo de trabalhadores migrantes da construção civil, apresentando crises psicóticas (Ferreira, 1994, Ferreira, 1999). Muitos destes operários, vindos principalmente do nordeste para o `sul maravilha’, principalmente para o Rio e São Paulo, não suportavam os efeitos da mudança e da tensão das novas relações de produção. Ao lugar de estranheza e de isolamento que ocupavam na cidade, respondiam com a crise ou surto psicótico.

O lugar do diferente, do estranho e da negatividade, destrona ou faz ruir o terreno que sustenta a familiaridade, já que estes imigrantes foram desconectados de seus suportes sócio-afetivos e culturais. A emergência da psicose reativa aguda é um quadro de invasão de idéias delirantes, alucinações e intensa agitação, onde a internação surge como recurso de contenção. O rompimento deste quadro, desperta nossa reflexão sobre o lugar que este sujeito habita na sociedade. Se habitar é uma experiência de amorosividade e de afetividade (Carvalho, 1998), os canteiros de obra que servem de moradia para o peão (operário da construção civil), são, na verdade, bastante agrestes - são cubículos contíguos que servem de dormitórios, situados no próprio espaço da obra, parecendo mais esconderijos, isolando os indivíduos entre si e do mundo da cidade.

Os indivíduos que vêm de regiões rurais para trabalhar na construção da cidade, sentem-se estranhos a ela, principalmente porque são privados da circulação no espaço urbano pelos próprios canteiros (terreno circunscrito onde se desenvolve todas as atividades da construção do futuro prédio) das obras, onde moram e trabalham. Suas vidas ficam reduzidas ao próprio espaço da construção, já que perfazem longas jornadas de trabalho, restando dormir após a labuta. O trabalho é o que dá sentido a vida do migrante, como afirma Sayad (1998). Estes imigrantes de regiões distantes, se deslocam sem seus familiares, aumentando assim a sua solidão e a frustração pela falta de lazer, de prazer e de trocas afetivas. Os sentimentos de solidão e de isolamento, são intensificados em decorrência do lugar que os sujeitos ocupam no espaço urbano. Das obras, seus olhares podem contemplar a vida lá fora, nos bairros de classe média, onde as pessoas surgem como seres distantes, aumentando o sentimento de dissimetria e defasagem (Bagag/Chaouite, 1990). O afastamento físico e social, a vivência da discriminação e da falta de afeto e reconhecimento, pressionam o sujeito para o lugar de estranheza em relação ao meio e do sentimento de estranhamento em relação a si mesmo.

Esta é a trajetória comum que observamos na experiência dramática do sujeito migrante até o surto psicótico. Nas crises psicóticas (surto), as pessoas vão tornando-se estranhas, começam a desconhecer seus colegas de trabalho, falam coisas esquisitas, ficam agressivas e entram em agitação psicomotora ou explosão da ação, oposição e agressividade. São, então, dominadas e levadas para as emergências psiquiátricas. Toda esta manifestação subverte o sujeito, como se tivesse sido possuído pela alteridade, ou seja, o lugar do eu é subvertido pelo outro. Falas tais como: ele ficou estranho, não falava coisa com coisa, estranhava aspessoas, são comumente ditas pelos colegas perplexos que o acompanham.

Em nosso país, desde o rompante desenvolvimentista da década de cinqüenta, os movimentos migratórios predominantes são internos e interregionais, principalmente do interior para os grandes centros ou capitais. Durante várias décadas, a partir principalmente da década de 30, quando São Paulo surgiu como polo industrial, ao nordeste restou o lugar de reservatório de mão de obra (Calvacanti de Oliveira, 1987), e o intenso deslocamento da região nordeste para o sudeste, imprimiu a marca nordestina à migração brasileira. Desde o final do século XIX, a região nordestina vem sendo assolada pelas grandes secas. A sua saga de sobrevivência de seu povo, iniciou desde esta época, primeiro para o norte, e depois para o sudeste. Desta forma, o nordestino tornou-se o representante emblemático do migrante no imaginário nacional (Ferreira, 1999). Depois das colônias de migrantes europeus do final do século XIX e início do século XX, o Brasil voltou a receber um contingente significativo de imigrantes que fugiam do nazismo e da guerra. Com a reorganização do mundo - capitalista e socialista - este fluxo reduziu-se e o nordestino ocupou o seu lugar. Hoje, em relação o fluxo internacional, o país pode ser caracterizado como um país de emigração. Por ser também um país continental, com regiões de características geográficas e culturais bastante distintas (clima, realidade sócio-econômica, traços culturais, linguajar), os deslocamentos internos ganharam mais interesse político e científico. Nosso país apresenta um dos maiores índices de mobilidade interna do mundo (Carlos Weiner, palestra no NIEM-RJ, 11/2000).

Mas com o fim do milagre brasileiro – promessa da redenção do período militar – e com a maior circulação do capital industrial, que vem buscando áreas de oferta de mão de obra mais barata, ocorreu a diminuição dos grandes fluxos de deslocamento interregionais e acentuou os fluxos para centros urbanos mais próximos. Também, ocorreu uma modificação em termos de gênero, fazendo com que na atualidade as mulheres do interior migrem mais para as capitais, uma vez que encontram trabalho mais facilmente do que os homens. Outro fenômeno internacional que vem sendo observado, é o surgimento de migrantes, banidos, clandestinos, exilados, enfim, grupos estes que formam novas populações de deslocados do sistema de globalização mundial. Face a este último aspecto, optamos por ilustrar nossa análise através de um caso de crise psicótica em um estudante africano.

A eclosão da loucura no migrante

Entendemos que o deslocamento envolve a perda do espaço anterior de referência trazendo incertezas para o sujeito, aumentando seus temores, que poderão tomar uma conotação persecutória e levar a uma atitude de desconfiança generalizada e ao sentimento de inquietude. Neste estado, o sujeito sente-se premido e invadido por um espaço intrusivo e ameaçante. O temor despersonalizante mistura-se ao fascínio da experiência desrealizante, onde o eu se vê engolfado pelo espaço circundante. Este espectro de estranheza provoca uma duplicação do eu, onde o sujeito perde os seus limites em relação ao outro. Esta experiência de despersonalização, geralmente resulta na explosão psicótica, onde o eu se vê tomado pelo outro.

Para enfocar este efeito de desarticulação do sujeito e do funcionamento do seu psiquismo, analisaremos alguns aspectos da experiência de deslocamento e de seus desdobramentos a partir do drama de um estudante africano, de língua portuguesa, no Rio de Janeiro. Para tal, vamos privilegiar a experiência de mudança recente, enfocando elementos gerais do drama do sujeito nessa aventura e a importância da acolhida e do reconhecimento de suas vivências e diferenças sócio-culturais, seja pela comunidade receptora, seja pelas instituições assistenciais.

A análise deste caso, que chegou até nós em plena crise psicótica, tem o objetivo de realçar uma situação paralela à análise que realizamos do nordestino: também estes estudantes africanos, vivenciam uma situação análoga, pois participam da mesma comunidade semiótica mas possuem traços culturais bem diferentes. Apesar de encontrarem uma população negra numericamente predominante no Rio, eles encontram também o preconceito étnico e deparam com uma realidade espantosa, representam os poucos negros que têm acesso à universidade, já que são poucos os negros que galgam o ensino superior em nosso país. J foi transferido da segunda instituição, onde estava depois de passar pela emergência, para a Unidade Docente Assistencial de Psicologia e Psiquiatria do HUPE/UERJ, onde tivemos a oportunidade de acompanhá-lo até a sua saída da crise.

Sua migração foi temporária, veio para o Rio de Janeiro com a finalidade de cursar a universidade. Devido ao convênio com o Brasil, muitos jovens de países africanos, principalmente de língua portuguesa, vêm fazendo essa travessia. Deixam suas regiões, seus familiares e aqui encontram outros conterrâneos com quem compartilham habitações coletivas, por questões de economia, e geralmente não encontram núcleos culturais próprios para ampará-los. A chegada a um outro país - que apesar de falar a mesma língua apresenta diferenças sócio-culturais acentuadas - é vivida com ansiedade e ambigüidade, pois o Brasil é considerado um país irmão e de mesma comunidade semiótica, mas possui uma história nada edificante em relação ao negro. A presença de vários traços comuns não garante uma proximidade relacional. Apesar de serem estudantes universitários, que em nosso país ainda constituem sinal de status, ao circularem na cidade sentem a diferença no tratamento. Também na universidade representam uma presença rara, como já assinalamos. A nossa cultura recebeu uma rica contribuição africana, mas sabemos muito pouco sobre os povos africanos e suas culturas, seja pelo desconhecimento de sua realidade histórica e atual ou pelo recalcamento de nossa herança cultural africana.

A situação de crise de J foi trazida por uma estagiária do Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira, que era sua conterrânea e o conhecia, mas antes que pudéssemos trazê-lo para nosso Serviço, sua psicose eclodiu e ele foi levado para a Emergência Psiquiátrica após grande alteração de conduta em via pública, com delírios persecutórios, agitação psicomotora e oposição, tendo sido conduzido pelo corpo de bombeiros, após destruir várias objetos dentro do quarto onde ficou contido.

Ao retornar das férias em seu país, seus colegas observaram que ele não parecia o mesmo, estava tenso, brusco com os colegas e inadequado no meio universitário. Apresentava certa agitação, falava alto e, às vezes, de forma desconexa. As atitudes estranhas foram aumentando: não falava com ninguém em casa, deixava de tomar banho, não se alimentava direito, só bebendo algumas cervejas. Saía para o trabalho e, ao retornar, dirigia-se para o seu quarto sem falar com ninguém. Às vezes, o encontravam sentado nu e falando sozinho. Passou a querer entrar à força no quarto dos colegas, falava alto, chamava-os de "veado, bicha", quebrava objetos e tentava agredi-los a partir de qualquer discussão trivial. Ainda, Esbanjava dinheiro, dizendo-se rico. Alguns dias depois, J. dirigiu-se para o Aeroporto Internacional levando apenas a mala de mão, dizendo que queria embarcar para a Europa, a fim de encontrar seu irmão que vive lá, sendo barrado pelos policiais e mandado embora para casa.

Sua internação ocorreu após a alteração de comportamento em via pública. Foi para o meio da rua e deitou-se no chão; depois, tentou invadir um prédio vizinho, dizendo que ali moravam alguns patrícios seus. Em seguida, agrediu fisicamente o colega chamado para socorrê-lo. Tratava-o por outro nome e afirmava que este "trouxera o mal", idéia que vinha repetindo desde que voltou de férias. Chorava muito e perguntava porque as pessoas queriam fazer-lhe mal.

J. tinha, na época de sua internação, 25 anos, era solteiro e dividia um apartamento com outros patrícios. O pai, migrante, passou quase toda a infância de J. distante dele e da família, indo visitá-los somente de vez em quando. Sendo assim, J. viveu grande parte de sua infância, e praticamente toda a juventude, ao lado da mãe, o que levou-o a ficar muito ligado a ela até a sua a morte. Quando seu pai retornou definitivamente para casa, J aumentou sua hostilidade em relação a ele. O pai abusava de bebida alcólica e era exigente com os filhos, gritando e discutindo muito com eles e com a mãe, quando isto acontecia, J. sempre defendia a mãe e recriminava o pai. A mãe de J morre, devido a um câncer no seio, pouco tempo antes dele receber a bolsa de estudo do governo brasileiro, o que realçou a sua acusação contra o pai pelo sofrimento e morte da mesma. É neste tempo da perda da mãe e da espera pela bolsa de estudos, que ele apresenta pela primeira vez sinais de perturbação, mas sai a bolsa e ele parte com esperança de se afirmar e triunfar com o curso universitário.

Já no Brasil, apresenta excitação psíquica e alteração de conduta. Gastava mais do que podia, falava sozinho como se estivesse falando com sua mãe. As vezes achava que estava em sua terra natal além de apresentar fala desconexa e conduta excêntrica. Foi levado ao ambulatório de psiquiatria do HUPE/UERJ, onde fez um tratamento psiquiátrico breve, desaparecendo os sintomas. Retornou aos estudos e deixou o tratamento. Durante três anos mantêm-se bem, sua segunda crise ocorre ao retornar das férias em seu país. Foi então internado na emergência e trazido para nossa instituição, a Unidade Docente Assistencial de Psicologia e Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ (UDAPP-HUPE/UERJ), ou VILA DA FRATERNIDADE, que é uma unidade de atendimento em anexo ao Hospital Geral. No campo do atendimento a indivíduos psicóticos, sua particularidade espacial e arquitetônica (vila) oferece um importante elemento de acolhimento e circulação interativa. O Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira (EAC-NS) é um dos projetos da unidade. Funciona em interação com as suas várias interfaces, atuando como elo de ligação ou espaço intermediário entre a enfermaria, o ambulatório e o hospital dia. Conecta, assim, a face interna com a externa, já que os internos encontram no EAC-NS ofertas de circulação e interação de sua subjetividade com o outro, com seus familiares e amigos e com o meio externo. Desta maneira, o espaço da enfermaria e o modelo de internação tem objetivo diferente daquele do modelo asilar, onde predominam a prática do isolamento e a ênfase no leito.

Entendemos que tanto as formas de manifestar o desatino quanto as formas de acolhê-lhas, envolvem elementos da cultura. Os recursos utilizados no EAC-NS visam esta articulação, visitas diárias de familiares e amigos, acompanhamento diário do interno, saídas para passeios, programas culturais, educação física, atividades grupais, teatrais, criativas-expressivas e abordagem dos familiares. Estas atividades são oferecidas também aos pacientes com quadros de psicose crônica, após a internação, com o objetivo de oferecer-lhes um suporte e uma preparação para romper com a tendência à reinternação constante, visando encaminhá-los para um serviço de atenção continuada (Hospital Dia, NAPS, CAPS). Também para pessoas que sofreram crises psicóticas, ao saírem da internação, oferecemos a oportunidade de freqüentarem as atividades oferecidas pelo EAC-NS, o que favorece sua continuidade terapêutica em regime externo.

O atendimento ao sujeito psicótico tem pouca chance de sucesso, quando restrito ao modelo de consulta ambulatorial rápida ou meramente medicamentosa (SILVEIRA, 1982). O sujeito sofre a ruptura dos vínculos sócio-afetivos e produtivos, as condições subjetivas e alterativas estão muito perturbadas, dificultando a comunicação verbal e o relacionamento com o outro. Por isto, o EAC-NS tem funcionado como um intermediário para estes sujeitos, ao oferecer-lhes um elo com os objetos, com o outro e com o meio, ajudando-lhes a diferenciarem-se dos familiares e de seus fantasmas. Com a experiência em serviços de emergência, observamos que a maioria dos pacientes que chegam em crise, mesmo psicótica, ao receberem um atendimento que leve em consideração também o referencial grupal - dispositivo que funciona como suporte e norteamento do sujeito (CORBISIER, 2000), estes podem ressignificar suas vivências subjetivas e manter suas vidas fora da internação. Com uma recepção semanal e tempo suficiente para que pudessem ser escutados, evitávamos a internação de grande parte das pessoas levadas para a Emergência. O que é importante, pois a internação é quase automática no modelo calcado no leito hospitalar.

O acompanhamento de J foi iniciado através de visitas da estagiária de psicologia do EAC-NS na Emergência e na segunda instituição onde esteve. Recebeu-a pedindo a sua ajuda, e ficou muito contente em saber que ela estava cuidando de sua transferência para o HUPE/UERJ. Sentia-se bastante perseguido, sendo os colegas de moradia seus principais perseguidores. Reagiu de forma carinhosa com a estagiária e conterrânea, mas rechaçou o colega que veio com ela. Achava que este "estaria de marcação cerrada" com ele. Sentiu-se protegido pela estagiária, estabelecendo-se rapidamente um laço de confiança.

Alguns elementos de análise do caso: recalcamento, culpa e estranheza

Ao migrar, J tenta assumir um lugar fora deste vínculo familiar intrincado, mas é atropelado pela identificação com o pai, que, antes, era o objeto de suas acusações, por ter partido e o deixado só com a mãe, desprotegidos, o que favoreceu seu forte vínculo com esta. Suas acusações contra o pai voltam-se, agora, contra ele mesmo Ao afastar-se do vínculo de fidelidade materna (mãe – terra natal), torna-se culpado pela traição e morte da mãe. Circular em outras terras é assumir o lugar do pai, da emancipação, lugar que ele não pode suportar. Vimos que, ao acionar o dispositivo imaginário da mudança, começou a ser tomado pelo outro, seja pela aderência materna (vê vultos da mãe, escuta mensagens desta, que recomendando-lhe atenção e cuidados), seja pelas influências estranhas.

As experiências tenebrosas do eu frente aos espaços de estranheza e duplicação, foram bem ilustrados por Hoffman [1815] em seus belos Contos Fantásticos. Foi a partir de um de seus contos, O Homem da Areia, que Freud [1919]) cunhou seu conceito de estranho (unheimlich), ou estranheza inquietante. Freud acompanhou este termo na língua alemã, observando que ele vai sofrendo uma transformação, onde o familiar (heimlich) torna-se estranho (unheimlich). A própria palavra familiar tem também a conotação de íntimo ou secreto. Para Schelling, citado por Freud [1919, 1976:281]), unheimlich é "o nome de tudo que deveria ter permanecido (...) secreto e oculto mas veio à luz". Para Freud, a transformação sofrida por este termo traz a marca do recalcamento, o prefixo `un' é o sinal do recalcamento.

A circulação do eu sem os seus contornos, no espaço do estranho, é perigosa. O eu se vê ameaçado pelo arrebatamento do estranho de dentro e de fora, já que a aventura migrante inclui também o desejo de ser outro (Affergan, 1987). Polanski (Ferreira, 1994) soube explorar muito bem esta subversão do sujeito no filme O Inquilino, um indivíduo de origem polonesa em Paris, vivencia um processo de despersonalização. A trama se inicia quando o sujeito, depois de muita dificuldade, consegue alugar um apartamento. Ao mesmo tempo, fica sabendo que a ex-inquilina está agonizante no hospital, para onde foi levada após tentar suicídio. Este fantasma da outra moribunda serve de disparador do espanto inicial. Ocupar o lugar dessa outra ou o espaço por ela habitado, que preservava ainda seus sinais e seus objetos (feminino-morte-estranheza), representou uma ameaça para os domínios do eu do sujeito. A condição mesma da casa alugada, do lugar de inquilino, já assinala a falta do próprio habitat. Longe do espaço familiar, o indivíduo sente-se sem o seu invólucro e, ao perder o seu espaço mínimo de referência, fica aberto à incidência ameaçante e arrebatadora do outro (Kristeva, 1988).

Portanto, a experiência migrante nos ensina com seu drama, que não estamos protegidos em nossa própria casa. Para se afirmar, o sujeito deve fazer seu percurso migrante de deslocamentos e desdobramentos, realizando e elaborando permanentemente o luto pela perda de seus objetos preciosos, abrindo-se ao outro e estabelecendo alianças de convivência (Grimberg/Grimperg, 1984). Mas nas condições de vida regidas pelo isolamento, pelo silêncio, reduz-se o campo da relação eu-outro, o que leva a redução da existência ao exercício diário de criação de táticas de sobrevivência (Zamora, 1992).

As emergências psiquiátricas e o hospício podem representar o próprio espectro da despersonalização. Portanto, As manifestações psicopatológicas dos migrantes em seu confronto com a cidade, despertam para a reflexão sobre os espaços de acolhimento destinados aos doentes mentais. Estes lugares historicamente carregam a marca da `linha de montagem' do sistema de segregação asilar. A emergência psiquiátrica, que é a porta de entrada, é onde começa a primeira fase de montagem da carreira de paciente psiquiátrico (cf. Brody, 1973; Silveira, 1992), já que os tratamentos propostos para as situações de crises, reduzem-se basicamente ao "controle dos sintomas sufocados pelos neurolépticos" (Silveira, 1992, p. 13).

O migrante acossado pelo isolamento, violência e desarticulação de suas referências no espaço urbano, encontra na maioria desses serviços a retratação do próprio espectro de sua condição despersonalizante. Com a tendência às reinternações, o processo de alienação pode aprofundar-se: a memória tende a se eclipsar, o pensamento a se entorpecer e a identidade, reduz-se a frangalhos.

Pelo exposto, comprovamos a necessidade de transformar os dispositivos psiquiátricos (sejam as chamadas emergências e enfermarias), em espaços de acolhimento que possam oferecer a esses sujeitos condições de resgatar sua experiência e produzir novos sentidos, possibilitando a sua rearticulação através da possibilidade de manter sua circulação social, sua fala e a construção de sentidos, onde sua trajetória possa atar novamente os suportes temporais e espaciais. Observamos que as crises surgem geralmente quando o sujeito sente-se oprimido pelas exigências do presente ao mesmo tempo que se encontra atado ao passado, seja pela atração que este exerce, ou como fuga da realidade ameaçante.
 

Considerações finais

Pensar a loucura do migrante recente nos levou ao caminho da reflexão sobre o outro, sobre aquele que não é eu. Tentar entender um ser que nos é estranho, nos faz pensar sobre a nossa da própria estranheza, pois como demonstrou Freud, o eu não é senhor em sua própria casa. Portanto, como afirma Konder (1999), "damo-nos conta, um tanto confusamente, de que precisamos entender os outros para tentarmos nos entender um pouco melhor, quer dizer, para podermos comparar o que somos ao que não somos . O que não somos, entretanto, nos ameaça".

Freud (1923) afirmou que o eu tende a ver como estranho e ameaçante, tudo que percebe como não eu. Também Primo Levy (Levy, 1988) afirma que no fundo do espírito, o estranho é guardado como inimigo, mas somente com a sistematização da ideologia racista, este latente toma a forma de extermínio do outro. Mas se a atitude de evitação do estranho, do que não é eu, é uma atitude de defesa do nosso modo de ser, ou uma forma de preservar nossa identidade (Konder, 1999), sem a relação com a alteridade não se sustentaria, pois a identidade não é idêntica a uma essência própria e natural, constrói-se ao longo da vida através das identificações, seja pela assunção de uma imagem ou pela incorporação de traços que são assimilados através de um processo de metabolização contínuo. Sem o estímulo, sem a presença da diferença, o organismo esvanece (FREUD, 1923) .

Se a loucura foi seqüestrada e separada dos espaços de circulação da cidade, hoje reivindicamos uma outra atitude social ao lutarmos para que o chamado doente mental possa resgatar sua cidadania, sendo acolhido e respeitado como ser humano com sua positividade. Portanto, a cidade precisa se preparar e oferecer condições para se livrar dos tristes e violentos espaços de reclusão. Várias iniciativas demonstram que é possível essa transformação. Nise da Silveira foi nossa precursora, com a dignidade de seu trabalho no Centro Psiquiátrico Pedro II e com a Casa das Palmeiras, esta, modalidade externa de mais de quarenta anos, vem demonstrando como é possível o chamado esquizofrênico viver fora dos hospícios. Hoje os CAPS, Hospitais Dia e Lares Abrigados estão construindo no imaginário social uma outra representação do louco. Temos que contrapor a representação estereotipada de que lugar de louco é no hospício.

A atitude de diálogo com o outro é fundamental, comprovamos isto à cada dia no cenário mundial. As conseqüências da recusa e da expulsão do outro – das etnias, do migrante – é apavorante (Viñar,1998), como ocorreu antes com o domínio nazista e recentemente no leste europeu, na África e no Timor Leste. Dependemos essencialmente do outro para a nossa existência feliz ou infeliz (Todorov, 1996), a convivência do eu e do outro é uma exigência para nossa sobrevivência. Como afirma Konder (idem),

"no diálogo, eu não harmonizo as diferenças, não supero as frustrações que me são impostas pelos limites (efetivos) da comunicação, não elimino os riscos, porém, aprendo a apreciar a polifonia, aprendo a ouvir a diversidade das vozes. (...)Desenvolvo a capacidade de combinar a preservação da minha identidade com uma abertura menos tímida para a alteridade".
Ainda, para lembrar Clarice Lispector (1977), viver é saber transitar entre a alegria e a dor.
 

Referências bibliográficas

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