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Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 94 (50), 1 de agosto de 2001

MIGRACIÓN Y CAMBIO SOCIAL

Número extraordinario dedicado al III Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

"SÓ VOLTO LÁ QUANDO PUDER COMPRAR UM ÓCULOS ESCUROS".
HISTÓRIAS DE VIAGENS DO NORDESTE A SOROCABA.

Paulo Celso da Silva
Universidade de Sorocaba – São Paulo, Brasil

Neide Maria Pérez
Escola Mundo Novo – Sorocaba, Brasil

Eduardo Marco Antonio da Costa
Licenciando em Geografia pela Universidade de Sorocaba


"Só volto lá quando puder comprar um óculos escuros". Histórias de viagens do Nordeste a Sorocaba(1) (Resumo)

O presente texto aborda a problemática da migração, do nordeste brasileiro ao Estado de São Paulo, através da história de vida de algumas personagens que se fixaram na cidade de Sorocaba, distante 100 km da capital São Paulo. As histórias narram as dificuldades das pessoas durante o trajeto e de adaptação em vários momentos históricos do Brasil nas décadas de 60 a 90 com grande contingente de nordestinos buscando melhores condições de vida no Estado de São Paulo. Sonhos, pesadelos, sucessos, e mesmo doenças psiquiátricas, marcam essa migração.

Palavras-chave: Sorocaba / Nordeste Brasileiro / sonhos / fixação / lugar.


"I only get back there when I can buy a spy-glass". Voyage stories from Nordeste to Sorocaba (Abstract)

The present text approaches the problem of the migration, of the Brazilian northeast to the State of São Paulo, through the life history of some characters that noticed in the city of Sorocaba, distant 100 km of capital São Paulo.The histories narrate the people's difficulties during the itinerary and of adaptation in several historical moments of Brazil in the decades from 60 to 90 with great contingent of native of northeastern Brazil looking for better life conditions in the State of São Paulo. Dreams, nightmares, successes, and same psychiatric diseases, they mark that migration.

Key-words: Sorocaba / Brazilian Northeast / dreams / fixation / place.


O imaginário popular brasileiro sobre a migração, principalmente dos Estados Nordestinos (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia), apresenta muitos mitos e estórias. Alguns criados pelos próprios migrantes, para valorizar a verdadeira "odisséia" que empreenderam, viajando em torno de 3.000 km, às vezes mais, para atingir, depois de vários dias, em ônibus ou caminhões, o Estado de São Paulo, na região Sudeste. A façanha individual, daquele que conta suas dificuldades desde a saída até a adaptação do novo lugar, encobre a situação de classe que esse deslocamento implica.

O Nordeste Brasileiro não é uma área homogênea, nem física e nem socialmente. Fisicamente, podemos dividi-la em quatro grandes zonas: o meio-norte, a zona da mata, o agreste e o sertão. Sendo: meio-norte: abrangendo os Estados do Maranhão e do Piauí, onde predominam características amazônicas, zona da mata: próxima a faixa litorânea, segue desde o Rio Grande do Norte até a Bahia é a área mais ameaçada, ecologicamente falando, e onde se concentra o maior número de populações, de todas elas é a mais produtiva e agreste: é uma faixa de transição entre a Zona da Mata e o Sertão com uma vegetação muito esparsa e, finalmente, o Sertão. Nessa área mais interiorizada do Nordeste, as chuvas são esparsas com longos períodos de seca. Por isso, sua vegetação é formada por resistentes arbustos.

No plano social, o Nordeste brasileiro foi marcado historicamente pelo predomínio de grandes latifúndios, uma classe social mais abastada e pouco numerosa e um contingente muito grande de pessoas nas classes mais baixas.

Estudadas individualmente, as migrações nordestinas para o Estado de São Paulo e, em nosso caso, a cidade de Sorocaba, distante 100 km da capital do Estado, a cidade de São Paulo, não dá conta da complexidade desse movimento populacional, não explica as maneiras como as pessoas conseguem se fixar numa cidade do interior paulista com quase 500.000 habitantes (censo provisório de 2000) e nem sua maneira de ali sobreviver.

A cidade de Sorocaba, desde o final do século XIX, recebeu levas de migrantes e imigrantes atraídos pelas indústrias têxteis instaladas na cidade. Nessa passagem de século, com cinco grandes indústrias – para a época – era conhecida como um importante parque industrial brasileiro, sendo chamada por um empresário, numa euforia desenvolvimentista, de Manchester Paulista, comparação com a cidade inglesa, importante por suas indústrias de tecidos.

Vale lembrar que a cidade de Sorocaba teve importante papel no fornecimento de transporte para o comércio brasileiro com as chamadas Feiras de Muares. Estas aconteciam nos meses de abril a junho e tiveram sua última edição na década de 90 do século XIX. Tais feiras eram acontecimentos importantes para a economia e a cultura da cidade: pessoas de todas as regiões do país vinham comprar o transporte, trazendo e deixando suas experiências, contribuindo assim na formação sócio cultural. A substituição pelo transporte ferroviário foi gradativa no território brasileiro. O eixo São Paulo – Rio de Janeiro foi pioneiro, principalmente nas áreas cafeeiras.

Os imigrantes chegados em Sorocaba eram, na sua maioria, qualificados para trabalhar na indústria de tecidos.Entre aqueles fixados na cidade, os espanhóis criaram um bairro, que concentrou essa colônia, chamado, até hoje, de Barcelona e que ainda guarda esse passado espanhol. Outras nacionalidades européias também vieram, porém sem concentrar-se espacialmente como os espanhóis.

A indústria têxtil sorocabana perdurou até a década de 70 do século XX, quando foi suplantada pela produção de outras regiões do Estado de São Paulo e do Brasil. Motivado pela falta de modernização dos meios de produção, esse ramo deu lugar à outra fase da industrialização da cidade, baseada na indústria pesada de bens de produção.

Esse novo momento fez parte de uma proposta de descentralização industrial do Estado de São Paulo, em especial, da cidade de São Paulo e seu entorno.

Diferente do momento da imigração, este recebeu muitos migrantes vindos do norte do Estado do Paraná, nesse momento fugindo das dificuldades da mecanização do campo, assim como da expulsão motivada pelo grande capital rural e da escassez de recursos para garantir a produção dos solos.

Junto com esses, grandes contingentes de nordestinos que haviam se deslocado de seus estados rumo a cidade de São Paulo, também começaram a diversificar seus destinos, fixando-se também em Sorocaba.

As histórias que formaram várias gerações de sorocabanos ligando-os a Europa, agora se misturam com histórias de regiões brasileiras diferentes. Não são mais europeus e nem brasileiros, de muitas regiões, chegando para comprar muares e partir. Agora eles chegam com suas famílias para ficar.

Para contar algumas histórias desses que vieram e ficaram, usaremos nomes fictícios. São muitas Marias e Severinos de nossa imaginação, optamos por não revelar seus verdadeiros nomes como forma de respeito à simplicidade com que nos contaram suas vidas.

História 1 - "Por que para plantar feijão, não volto mais pra lá. Eu quero é ser Cinderela, tocar na televisão".

Quem conta a primeira história é Iranilde, filha de Maria e Severino que partiu do Estado do Maranhão rumo ao Estado de São Paulo.
 

"No final dos anos 60, nós morávamos no Maranhão. Era uma cidadezinha pequena, sem nada. Não tinha luz, nem água, nem asfalto. Meu pai vendeu seu pedaço de chão, arrumou tudo e viemos para São Paulo. Lá do "norte" ele acertou para ficar num lugar chamado Pontal do Paranapanema (2). Ele sonhava com coisa melhor para a família, aquela miséria de lugar onde morávamos dava desgosto no pai. Conhecidos já tinham vindo e escrito para vir que tinha emprego para todo mundo. Ele não sabia o que era Pontal, mas achava que era melhor que lá.

Depois de tudo vendido, acertou o pagamento com o dono do Pau-de-Arara para a viagem. Isso é um caminhão com três ou quatro bancos na carroceria e coberto por uma lona. Dá para viajar umas vinte pessoas, contando com as crianças que eram pequenas. Na boléia ia o homem que organizava a viagem junto com o motorista. Interessante que se aparecesse alguém do Sul pedindo carona, o motorista mandava o outro homem para baixo da lona e o carona ia à boléia. As crianças sentadas nos bancos iam para o chão, deixando o homem sentar. Se as crianças estivessem dormindo no banco, alguma mulher sentava no chão da carroceria para dar lugar ao homem. Que viagem dura! Foram muitos dias, parando em bar de estrada, posto de gasolina, que eram poucos, vilarejos pobres. Quando alguém ficava doente, por causa da comida, tinha de esperar passar a diarréia, às vezes perdia o dia todo. Um calorão, criança chorando, homens reclamando e as mulheres tentando resolver com chá, ervas. O que achavam pelo caminho.

Depois de tudo isso, chegamos no tal Pontal do Paranapanema. Os conhecidos do pai foram nos encontrar, foi aquela "festa". Daí era arrumar lugar para ficar. Chegamos numa manhã. A casa que nos deixaram era de barro, mal feita, cheia de buracos na parede. Minha mãe olhava tudo aquilo assustada, com desgosto, com esperança. Sei lá, parecia não acreditar que existisse fazenda tão grande e com tanto algodão. Estava acostumada ao sertão.

Para pulverizar o algodão, eles tinham avião. Era o máximo para nós. Já pensou, avião passando pertinho da gente. Dos quatro que chegaram ao Pontal, a família aumentou para oito! Daí o pai falou que "com toda aquela gentarada ele não voltava mais. Imagine, viajar tudo de novo com oito pessoas". E nós ficamos.Todos foram para o algodão. Colher aquilo "vai lanhando a gente", mas é muito bonito. Era tanto algodão que perdia de vista. Ninguém estudou lá, não dava. Não tinha escola, não tinha tempo.

Depois que eu cresci, vim para Sorocaba. Outros tinham vindo atrás de emprego melhor, por que lá no Pontal a coisa estava ficando ruim. Os meus irmãos que ficaram não conseguiram nada. Eu estudei. Tarde, mas estudei. Hoje tenho minhas aulinhas, tenho geladeira, TV, micro-ondas, máquina de lavar, meu carrinho e estou fazendo faculdade. Isso aqui é um paraíso. Não dá para reclamar, quem passou tudo aquilo sabe o que é estar bem. Eu estou."


A história 1 já nos mostra que, desde a partida até o local de chegada, o caminho do migrante nordestino pobre não é fácil. Porém, diferente do que o senso comum acredita, eles não partem sem destino ou "aventurando". Existe um destino a ser alcançado, nesse caso o Pontal do Paranapanema, e pessoas para acolhe-los inicialmente. Assim, é um processo social o que coloca os grupos em movimento, tendo por motivação o fator econômico e não apenas uma decisão individual.

Utilizando a história individual, devemos separar aquilo que é pessoal do que é estrutural, pois, "Os motivos se manifestam no quadro geral de condições sócio-econômicas que induzem a migrar" (SINGER, 1981:51).

Nesse caso, os grupos que se deslocaram para o Pontal, vindos do Maranhão e outras partes do Nordeste brasileiro, seguiam um fluxo migratório que já havia iniciado anos antes em toda a região nordestina. Obviamente que esses fluxos se diferenciavam de lugar para lugar e seus tempos de duração também não foram homogêneos, assim como os locais de destino também não o foram. Muitos reforçaram as fileiras de operários da construção civil na cidade de São Paulo e nas cidades de seu entorno. A presença nordestina é tão forte na capital paulista que existe um Centro Cultural Nordestino, voltado para difundir e preservar as raízes culturais dos migrantes.

Estudos sociológicos, já na década de 1960, indicavam a dificuldade dos migrantes em enfrentar as pressões de uma cidade grande como São Paulo (3), concluindo que a mulher estaria mais propensa aos problemas mentais do que os homens devido à rigidez da formação social rural de suas origens. Isso dificultaria a ressocialização em uma estrutura muito complexa para o entendimento imediato do migrante, atingindo a psique feminina por uma frustração maior.

Seja como for, esse estudo da década de 60 citado analisava a migração campo-cidade e hoje, a relação é outra, com origem-destino diferentes daquele momento. Porém, assim mesmo é importante para não perdermos de vista que as dificuldades da migração não estão apenas relacionadas às questões econômicas e financeiras das populações. Fatores subjetivos também devem ser levados em conta, já que falamos de uma sociedade capitalista onde o conseguir e o ter são valores fortes, mas que não devem ser atingidos por todos para manter o funcionamento do processo de acumulação.

O título da história 1 alude ao sonho das meninas de ser Cinderela em um programa de televisão chamado Boa Noite Cinderela, do apresentador Sílvio Santos. Nesse programa, de grande sucesso na década de 1970, três meninas tinham suas histórias contadas pela produção do programa em forma de vídeo, mostrando quem eram seus familiares, o que faziam, qual era o sonho da menina, etc. Ao final do programa apenas uma menina era coroada Cinderela e ganhava muitos brinquedos, eletrodomésticos e as outras duas os brinquedos que escolheram antes. Sempre a ganhadora do programa era a menina que tinha a família mais humilde e a história de maior dificuldade das três.

História 2 – Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio. Só volto lá quando puder comprar um óculos escuros, com um relógio de pulso que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo cantando coisas do mundo pra tocar.

Quem conta a segunda história é Irani, filha de Maria e Severino que partiu do Estado de Pernambuco rumo ao Estado de São Paulo.

" Vim de Pernambuco faz uns sete anos. A viagem não foi ruim, viemos de carro. Minha família mora ainda em Recife e tem um supermercado na cidade. Todo ano eu passo as férias de dezembro com eles. A vida aqui em Sorocaba é diferente, mais corrida. A turma me chama de ‘Patricinha do Sertão’(4) por que eu não passei as dificuldades que muitos passam. Isso não quer dizer que tudo foi fácil. Ter uma situação econômica melhor facilita, mas não deixa tudo mais fácil. Deixar a família para trás, morar em casa de parentes quando chega, desconhecer o lugar, não "dominar o espaço", não é verdade?

Agora eu estou fazendo faculdade e eles ficaram contentes em saber disso lá em Recife. Estudar sempre é bom. Fiz até o colegial lá em Recife, depois vim para cá e fiquei uns anos sem estudar, dando aula para o ensino fundamental. Acho que é isso, não foi muito diferente da turma daqui".


Também na história 2 a personagem não aventurou, tinha lugar para ficar em Sorocaba. Não quis relatar em detalhes sua trajetória afirmando que não era diferente daquela vivida em Sorocaba. Na verdade, ela está se colocando como uma representante da classe média local. Também nesse caso, o movimento de deslocamento é de classe.Exemplos da classe média e alta partindo do nordeste brasileiro rumo ao sudeste não são incomuns. Buscando na história colonial brasileira, vamos encontrar exemplos de jovens das elites nordestinas partindo para a Europa, Portugal e Espanha principalmente, em busca de formação acadêmica não disponível no Brasil naquele momento.

Podemos citar ainda o grupo de artistas brasileiros e conhecidos internacionalmente, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé Os Novos Baianos, Raul Seixas, entre outros, saídos da Bahia para São Paulo e Rio de Janeiro, que eram jovens provenientes das classes médias baianas. Esses partiram de seu local de origem durante a década de 1960 para "tentar a sorte" como músicos no eixo São Paulo - Rio de Janeiro. Posteriormente, outros artistas como Elba Ramalho, Amelinha, Fagner, Belchior, Alceu Valença, Zé Geraldo, Zé Ramalho de outros estados nordestinos vieram se juntar aos conterrâneos baianos, já instalados nesse eixo. É o caso de Moraes Moreira, Baby Consuelo (agora Baby do Brasil) e Pepeu Gomes, que formavam com outros músicos, o grupo Novos Baianos e, com o final deste, todos saíram em carreira solo. Outro grande expoente do mundo artístico brasileiro é o cineasta baiano Glauber Rocha, assim para relatar o deslocamento de classes, os exemplos são muitos.

Apesar das dificuldades no "domínio do espaço", conforme afirma Irani, na história 2, a possibilidade de não se fixar em áreas mais pobres das cidades no Sudeste e o acesso aos bens culturais oferecidos, garante a continuidade da acumulação do capital cultural doméstico para essa classe média.

Ocorre, porém, a prevalência de uma grande massa de migrantes nordestinos, de classes pobres, fugindo da difícil sobrevivência nas áreas do sertão, muito secas e áridas.

Na literatura brasileira temos na obra de João Cabral de Melo Neto, "Morte e Vida Severina", onde o personagem, saindo do sertão atinge a Zona da Mata e comenta, admirado, que é uma área tão bela, é até feminina de tão verde e produtiva.

Tanto nas histórias de migrantes, quanto na literatura de João Cabral de Melo Neto, estamos diante de um fato que podemos chamar de desterritorialização que "... é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização" (Santos, 1996:262).

A desculturização se faz presente nos valores, modificados à medida que o estranhamento e a noção de morar ficam mais fortes no migrante. É o que veremos na história 3.

História 3 – "Botar filho no colégio, dar picolé na merenda, viver bem civilizado, pagar imposto de renda. Ser eleitor registrado, ter geladeira e tv, carteira do ministério, ter CIC, ter RG".

 
"Quem conta a terceira história é Iraci, filha de Maria e Severino que partiu do Estado da Bahia rumo ao Estado de São Paulo".Eu vim da Bahia, do lado lá da Serra do Tabatinga, um lugar lindo com muita criação de gado. Meu pai é dono das terras, são muitos hectares, você olha e vai embora, parece sem fim. Todo ano eu vou para lá passar as férias. Essa última vez estava fria em julho, nunca tinha visto aquele lugar tão gelado. A noite é só céu azul e barulho dos bichos. Um silêncio que não acostumo mais. Começa a dar desespero àquela escuridão e silêncio. Também têm muitos bichos que rastejam, cobras, lagartos, escorpiões. Você escuta os gizos da cascavel, conforme anda por lá. Escorpião é daqueles vermelhos, os venenosos mesmo.Eu vim para cá pelas condições de vida na cidade, Sorocaba não foi a primeira parada. Fiquei em São Paulo um tempo, casei, meu marido foi transferido e nós viemos para Sorocaba. Gosto do conforto daqui. É diferente do conforto de lá. Aqui não tem as dificuldades de uma fazenda de criação de gado, a comunicação é mais fácil, você encontra muitos produtos diferentes, muita coisa diferente para a alimentação, vestimenta e coisas assim. O conforto de lá é a natureza, que é muito bela, o descanso e a tranqüilidade de uma vida ligada a terra e aos animais. Sem correria, sem compromissos de última hora.Hoje, eu prefiro ficar aqui no Estado de São Paulo."


Essa história confirma, uma vez mais, que são as classes sociais que se deslocam no espaço. Também aponta para o fato da novidade, do impacto que os novos valores oferecem para o migrante. "Ao contrário do que deseja acreditar a teoria atualmente hegemônica, quanto menos inserido o indivíduo (pobre, minoritário, migrante...), mais facilmente o choque da novidade o atinge e a descoberta de um novo saber lhe é mais fácil" (Santos, 1996: 264).

Assimilar o novo não é tarefa fácil, muitas vezes pode levar anos para o lugar ser incorporado. Nesse aspecto, a circulação que a migração proporciona – circulação de gente, de produtos e idéias, principalmente – pode ser um fator favorável a quem se desloca.

Incorporar um novo lugar é participar de sua construção enquanto representante da classe a qual faz parte. Nesse aspecto, a memória é uma aliada forte: se não tem memória no e do novo lugar, tem a memória do local de partida. Memória que segue junto, não está esquecida, nem adormecida, mas congelada a espera do momento de colocar-se como ingrediente da mistura cultural no novo lugar.

A memória congelada é uma espécie de consciência (Santos, 1996:264). Fundida na experiência espacial nova, podemos dizer que essa consciência – de classe certamente – adquire um novo papel nessa necessária construção do lugar. Implica que a nova consciência olha para o futuro, para o fazer-se.

A circulação dessa nova consciência para o futuro é o ingrediente para a transformação, que as classes menos inseridas na hegemonia das classes globalizadas têm para "vencer" as distâncias que as separam das demais. Esse vencer é um vencer-se, no sentido de que a velocidade proposta pela hegemonia será incorporada, não como velocidade reproduzida das classes altas, mas como velocidade e ritmo ditados de baixo para cima, uma espécie de freio, não para a história, e sim para a anestesia consumista das classes médias e altas da sociedade brasileira.

Atentando para a experiência social latino-americana apenas, e a brasileira especificamente, o novo paradigma está posto: o paradigma de uma velocidade mais lenta. Essa lentidão envolve aqueles excluídos, como já foi dito, sem que estejam fora da globalização. Ao contrário, ela, nesse momento, os venceu. Essa velocidade e ritmos, antes apenas lentos, agora são projetos de uma alternativa social tanto para a não exclusão como para a justiça social. "Vencidos" pela globalização e vencedores de uma proposta social que as classes mais baixas, dos países subdesenvolvidos, conseguem dar.

Porém, a dificuldade desses "homens lentos", como Milton Santos os identifica, está no fato de não estarem ligados às classes médias locais. Estas, também, passam por momentos difíceis hoje, por não estarem representadas pelas classes dominantes do poder, como acontecia nas décadas de 1970 - 1980, quando a ditadura militar ofereceu ganhos sociais à essas classes médias. Representadas e ascendendo socialmente, massas e massas de pessoas puderam ser esquecidas nas periferias das grandes e médias cidades sem conflitos sociais aparentes, para a maioria das pessoas das classes médias.

Compunham essas massas, trabalhadores menos qualificados, migrantes, desempregados, enfim minorias urbanas sem acesso aos serviços que cresciam em oferta e qualidade.

No caso de Sorocaba, os migrantes, principalmente nordestinos, fixaram-se na zona Norte da cidade. Ao contrário da zona Sul, que se tornou área de reserva do capital durante vários anos e onde hoje prevalecem os condomínios residenciais e bairros de classe alta e bairros também dessas classes. A zona Norte, eminentemente popular foi, num passado recente, local de chácaras que as segundas e terceiras gerações de herdeiros venderam para imobiliárias ou lotearam em pequenos lotes (5mX25m ou 125m²) tornando a concentração de pessoas muito alta.

A falta de uma aproximação das classes baixas com as classes médias e altas, estando as últimas ‘anestesiadas’ pela possibilidade de crescimento social e econômico, fez com que o deslocamento de classes obedecesse a uma trajetória para a Zona Norte acrescendo os problemas urbanos já existentes pela falta de estrutura.

Somando-se familiares já assentados nessa área com preços baixos e pagamentos em longo prazo, os novos migrantes, que chegaram e chegam, continuam a morar com seus familiares para, aos poucos pouparem o suficiente para adquirir um lote e construir uma casa. Normalmente a mudança de residência dos familiares para a casa própria acontece antes que a moradia esteja terminada. Também é muito comum que os lotes sejam comprados em parceria com outros parentes e, no lugar de uma casa térrea, constroem sobrados com uma família em cada pavimento.

Esses fatos, tirados da experiência sorocabana, são comuns na migração brasileira. Também é comum a omissão das dificuldades urbanas, em nenhuma de nossas histórias, suas protagonistas mencionaram o atual lugar de moradia em Sorocaba. Ao invés de citar o lugar, preferem quantificar os bens de consumo que conseguiram comprar.

Esta seja talvez a grande dificuldade para uma mudança, realmente radical, em seu sentido etimológico de raiz, nas sociedades capitalistas subdesenvolvidas: o fazer-se é nublado pelo ter. Dessa maneira, as distâncias das classes sociais são verdadeiros abismos, cada vez menos transponíveis.

Ainda assim, os espaços de esperança podem existir. A memória, as histórias, as mitologias, o imaginário fazem da circulação de pessoas e idéias hoje um re-pensar das posições sociais.

Utilizando a "dialética do Utopismo", David Harvey propõe que é possível um mundo mais eqüitativo socialmente e em equilíbrio com a natureza. Os dois temas, sugeridos pelo autor americano, como os principais do discurso social contemporâneo, Globalização e Corpo, são muito pertinentes para o debate da imigração. Atravessando a micro escala pessoal e do corpo e a macro escala da economia política globalizada, poderemos ser os arquitetos de um novo modo de viver em sociedade, fazendo as mudanças necessárias e imprescindíveis para esse viver.

"Eu fico aqui carregando o peso da minha cruz no meio dos automóveis. Mas, vai viaja, foge daqui, que a felicidade vai atacar pela televisão. E vai felicitar, felicitar, felicitar, felicitar, felicitar até ninguém mais respirar".
 

Notas:

1. O título foi tirado da música Menina Jesus, do compositor Tom Zé. O compositor e cantor migrou da Bahia para São Paulo na década de 1960.

2. O Pontal do Paranapanema é uma área do Estado de São Paulo onde predomina a grande propiedade. Nos últimos anos foi palco de conflitos entre o MST - Movimento dos Trabalhadores Sem-terra - e os latifundiários cada lado armado conforme suas possibilidades, ou seja, milícias pagas para garantir a posse da terra pelos latifundiários e, pás, picaretas, enxadas, ancinhos, pelo lado do MST. Em vários momentos foi necessária a intervenção do governo estadual para evitar tragédias maiores.

3. Estamos nos referindo ao estudo de LIMA, Influência da urbanização na saúde mental do homem e da mulher.

4. o apelido Patricinha é utilizado para meninas de classe médias e alta que andam nos Shoppings e, a qualquer hora do dia, estão produzidas e vestindo roupas de griffes famosas. A brincadeira das amigas chamando de Patricinha do Sertão, deve-se ao fato de que, no imaginário das pessoas em Sorocaba e em muitas cidades, a maioria dos migrantes nordestinos partem do sertão. Porém, como já dissemos, a origem e destino são muitos e isso é uma simplificação do processo social.
 

Bibliografia

HARVEY, David. Spaces of Hope (Califórnia Studies in Critical Human Geography). Califórnia: UCLA, 2000.

SANTOS, Milton. A natureza do Espaço. Técnica Tempo Razão e Emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.

SILVA, Armando Corrêa da.. De quem é o Pedaço? Espaço e Cultura. São Paulo: HUCITEC, 1986.

SINGER, Paul. Economia Política da Urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1981, 8ª ed.

ZÉ, Tom. Correio da Estação do Brás. São Paulo: Continental, 1973 (Compact Disc).
 

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