Menú principal                                                                                                                               Índice de Scripta Nova
 
Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 94 (73), 1 de agosto de 2001

MIGRACIÓN Y CAMBIO SOCIAL

Número extraordinario dedicado al III Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

O PROCESSO DE METROPOLIZAÇÃO EM FORTALEZA: UMA INTERPRETAÇÃO PELA MIGRAÇÃO

Ana Maria Matos Araújo
Economista e mestranda em Geografia
Universidade Estadual do Ceará - UECE, Fortaleza, Brasil

Adelita Neto Carleial
Professora Doutora da Universidade de Fortaleza e UECE, Brasil


O processo de metropolização em Fortaleza: uma interpretação pela imigração (Resumo)

O crescimento de Fortaleza tornou-se visível durante os anos 1970, quando foi constituída oficialmente a Região Metropolitana (RMF) . Entretanto, a criação da RMF é questionada, argumentando que tal região não estaria plenamente constituída. Este ensaio aprofunda esse questionamento, buscando os elementos históricos da organização espacial do território cearense, e  destacando a componente migratória dos processos de industrialização e urbanização. Antes das análises empíricas, apresentamos os conceitos de metrópole e metropolização, migrante e migração, urbanização e industrialização, visando fundamentar as discussões e subsidiar a interpretação dos dados.

Palavras-chave: metropolização / imigração / periferia urbana / Fortaleza (Brasil)


The metropolization process in Fortaleza (Brazil): an interpretation by the inmigration (Abstract)

The growth of Fortaleza became visible during the 1970s, when the Metropolitan Area (RMF) have been oficialized. However, the creation of RMF is questioned, arguing that such area would not be fully constituted. This paper analyses this question looking for the historical elements of the spatial organization of the Ceará state territory. We highlighting the migratory component of both industrialization and urbanization processes. Before the empiric analyses, we present the concepts of metropolis, metropolization, migrant, migration, urbanization and industrialization, seeking to base the discussions and to subsidize the data's interpretation.

Key-words: metropolization / immigration / urban periphery / Fortaleza (Brazil)


O crescimento da cidade de Fortaleza tornou-se visível, em termos de sua malha urbana e de verticalização dos seus solos, durante os anos 1970, quando a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) foi constituída oficialmente. Notava-se uma crescente disparidade na distribuição da população no território cearense, colocando a Capital em primazia absoluta, pelo avançado processo de expansão urbana e concentração demográfica, embora em relação às metrópoles nacionais, tais como Rio de Janeiro e São Paulo, houvesse um distanciamento negativo, pondo em dúvida sua natureza de metrópole.

Na literatura local, encontram-se diversas opiniões questionando a criação da RMF, argumentando que tal região ainda não estaria plenamente constituída, portanto, não justificando a força de um decreto nesse sentido. Entretanto, esses mesmos estudiosos reconheciam a existência de uma aglomeração urbana, sobre a forma de «macrocefalia», determinada essencialmente pelo intenso processo de migração do interior para a capital, muitas vezes diretamente proveniente das áreas rurais.

O aprofundamento desse questionamento é o que este ensaio procura desenvolver, buscando, primeiramente, os elementos históricos de explicitação da organização espacial do território cearense, em particular da RMF, a partir das relações sociais e dos deslocamentos internos da população (colonos brancos, índios e negros); em seguida, destacando a componente migratória na compreensão das novas espacialidades no início dos processos de industrialização e urbanização.

A expansão da cidade de Fortaleza é vista até o início dos anos 70, pouco antes da criação formal da RMF, instituída por Lei Complementar n.º14/73, compreendendo os municípios de Fortaleza, Caucaia, Maranguape, Pacatuba e Aquiraz.

Antecedendo as análises empíricas, apresenta-se os conceitos de metrópole e metropolização; migrante e migração; concluindo com aspectos sobre a urbanização e a industrialização, para fundamentar as discussões e subsidiar a interpretação dos dados.

Breve revisão conceitual

Na percepção de Ledo, citado por Amora, a metrópole contém diversificação funcional elevada, tanto econômica quanto cultural e é centro organizador de extensa região ou de um país, sem coincidir necessariamente com uma capital política-administrativa. Amora faz uma reflexão deste conceito e argumenta que uma metrópole pode ser considerada uma grande cidade resultante da modernização, desde que se constitua centro de produção e difusão de inovações, além de ser uma aglomeração (AMORA,1999:33).

Amora também distingue entre desenvolvimento da metrópole e metropolização, apoiada em Ascher, que identifica na metropolização um processo que transcende a metrópole. O desenvolvimento da metrópole se faz não só pela concentração populacional, mas pelo dinamismo das atividades e volume de riquezas. Lembra ainda, o que observa Ledo, quanto à região metropolitana, que inclui mais de uma cidade e possui um núcleo principal.

Para Santos, também citado por Amora, uma região metropolitana compreende áreas onde diversas cidades interagem com freqüência e intensidade, mostrando uma interdependência funcional baseada em infra-estrutura urbana e na divisão do trabalho (AMORA,1999:34)

Desses conceitos apreende-se a noção de forma e conteúdo de uma metrópole e de uma região metropolitana, bem como se percebe o fenômeno de metropolização enquanto processo inerente ao crescimento e à aglomeração urbana da metrópole. Por aglomeração urbana entendendo-se a concentração de pessoas e atividades, que torna o espaço físico relativamente reduzido, com tendências à verticalização e, simultaneamente, à expansão para territórios vizinhos, extrapolando fronteiras (MATOS,1998:1).

A migração, por sua vez, é um fenômeno social conceituado de diferentes maneiras conforme corrente teórica interpretativa, mas esses conceitos possuem elementos comuns de mensuração no espaço e no tempo, pois no geral se referem a um "movimento de pessoas através de uma fronteira específica para fixar residência", durante determinado intervalo de tempo, variável conforme fonte dos dados, Censo Demográfico ou pesquisa direta (SEADE, 1993:4).

Os migrantes são as pessoas que se submeteram a esses movimentos migratórios, por vontade própria ou não, muitas vezes distinguindo-se da população natural, como não naturais, podendo ser quanto ao tempo de residência, categorizado como recentes (de até dez anos de residência) ou antigos (com mais de dez anos).

Sobre a urbanização e a industrialização, adotou-se o pensamento de Lefebvre, que a primeira vista surpreende um duplo processo para depois admitir se tratar de único:

"Temos à nossa frente um duplo processo ou, se preferir, um processo com dois aspectos: industrialização e urbanização, crescimento e desenvolvimento, produção econômica e vida social. Os dois aspectos deste processo, inseparáveis, têm uma unidade, e no entanto o processo é conflitante. Existe, historicamente, um choque violento entre a realidade urbana e a realidade industrial...este processo dialético, longe de ser elucidado, está também longe de ter terminado[...]"(LEFEBVRE, 1991: 9) Em seguida, Lefebvre faz uma ponderação sobre Atenas e suas situações problemas que parece muito apropriada para uma reflexão de Fortaleza no período histórico em apreço (anos 60 do século XX): "[...]o núcleo organizacional da cidade continua muito forte. Seus arredores de bairros recentes e de semifavelas, povoadas com pessoas sem raízes e desorganizadas, lhe conferem um poder exorbitante. A gigantesca aglomeração quase informe permite aos detentores dos centros de decisão os piores empreendimentos públicos. Tanto mais que a economia desse país depende estreitamente deste circuito: especulação com a terra, ‘criação’ de capitais por este caminho, investimento de capitais na construção e assim por diante. Circuito frágil que pode se romper a todo instante, que define um tipo de urbanização sem industrialização(grifo nosso)[...]" (LEFEBVRE, 1991:9-10) Após avaliar várias cidades européias, o filósofo conclui quanto ao processo de implosão-explosão da cidade sob fenômeno urbano, de conteúdo e forma similar ao processo de metropolização anteriormente conceituado, acrescentando sobre o modo de viver urbano: "Atualmente, portanto, aprofunda-se um processo induzido que se pode chamar de a ‘implosão-explosão’ da cidade o fenômeno urbano se estende sobre uma grande parte do território, nos grandes países industriais[...]Esse território está encerrado num tecido urbano cada vez mais cerrado, não sem diferenciações locais e sem ampliação da divisão (técnica e social) do trabalho para as regiões, aglomerações e cidades[...]as concentrações urbanas tornam-se gigantescas; as populações se amontoam atingindo densidades inquietantes [...]as pessoas se deslocam para as periferias distantes, residenciais ou produtivas[...]O tecido urbano[...]é suporte de um ‘modo de viver’ mais ou menos intenso ou degradado: a sociedade urbana[...]trazidos pelo tecido urbano, a sociedade e a vida urbana penetram nos campos[...]"(LEFEBVRE, 1991: 10-11). Outros conceitos referentes a urbanização são retirados de RÉMY e VOYÉ (1997), abordados no decorrer das análises.

Primeiras migrações e redefinição do território indígena

É tradicional nos documentos históricos sobre a ocupação do Ceará se referir a um processo de conquista tardio, no final do século XVII, introduzido pela pecuária, quando a economia açucareira se estendera pelo litoral da Paraíba à Bahia, com centro em Pernambuco no início do século XVI.

Em geral, esse fato é considerando uma desvantagem que explica o "atraso" na conquista do território com efeitos no atual desenvolvimento estadual, relativamente a outros estados nordestinos. Sem entrar no mérito da questão, pode-se afirmar que essa leitura é feita segundo a ótica de dominação portuguesa. Para os índios, naturais dessa região, entretanto, pode-se supor que veio a tempo. Além de adiar o confronto e ter melhores condições de se organizarem para o embate pelas terras, houve chance de manterem relação com outros europeus, mais tranqüilas e proveitosas, que se constituíram fatores determinantes na reorganização do território indígena, conforme se terá oportunidade de detalhar em seguida.

A relação comercial entre os povos indígenas sediados ao norte do Ceará e os franceses que se estabeleceram no Maranhão, durante 20 anos, entre o final do século XVI e início do seguinte, incomodou a Metrópole Portuguesa. Ao ponto de adotar estratégia de ocupação da Serra da Ibiapaba, para conter a entrada dos franceses em território cearense e ao mesmo tempo deter o processo de organização indígena. As investidas iniciais dos portugueses ao reduto dos nativos, entretanto, fracassaram, dando margem a que outras nações indígenas viessem a compor esse locus de refúgio e posteriormente de resistência (PINHEIRO, 2000: 38).

A maioria dos registros de migrações desse período de povoamento se constitui de informações sobre população branca e se detém na relação subsidiária da economia pecuária à canavieira, reportando-se ao aspecto extensivo da pecuária e a adequação das áreas sertanejas a atividade. Pinheiro traz outros elementos para a discussão, ao tratar do processo de resistência da população natural (índios) ao projeto do colono português, de convergência na disputa pelas terras, além de fazer referências sobre a mobilidade das populações indígenas no território nacional com o avanço da atividade pecuária.

O foco da análise quando centrado nos migrantes baianos e pernambucanos, faz com que se defenda as primeiras ocupações no território cearense no sentido do sertão para o litoral. Compõem essa corrente ideológica historiadores renomados como Capistrano de Abreu e seu seguidores, João Brígido, por exemplo. Quando a atenção se volta para o sentido da defesa do território, seja contra franceses, ou seus aliados indígenas, a explicação para o início da ocupação é dada no sentido litoral-sertão. Para dirimir o impasse, outros resguardam a segunda tese, tomando por recurso a temporalidade, isto é argumentam que até 1678 somente era habitado pontos litorâneos, além disso a primeira Vila criada teria sido a de Aquiraz, também situada no litoral, em 1699. Ao sul do estado, no Cariri o povoamento somente se tornara regular nas primeiras décadas do século XVIII. A Vila do Crato teria sido instituída em 1764 (PINHEIRO, 2000: 38).

Novamente, sem aprofundar a questão, apenas chamando para o centro do debate o conflito entre colonos migrantes e nativos, pode-se argüir sobre os movimentos populacionais e sua determinação na organização do território. Do mesmo modo que, a partir da capitulação indígena perante os colonos percebe-se o início de um processo social de formação de uma classe de pessoas destituídas de poder e representação, empobrecida, violentada, que passaria a se deslocar constantemente no território, fixando-se em áreas restritas, de difíceis acessos e fora do interesse da pecuária.

Vários movimentos populacionais, considerado como "migração"(1) interna, realizados pelos índios em seu próprio território foram forçados. Pode-se dizer que de uma população natural se transformaram em migrantes, por força da violência simbólica (sobre seu modo de vida, sua autoestima e identidade) e de violência física (contra a sua vida). Começou quando saíram expulsos das faixas litorâneas e se embrenharam nas serras, que além de serem ambientes naturais propícios ao esconderijo tornaram-se locus de confronto com os portugueses. As primeiras "migrações" indígenas inter-regional provieram do litoral da Bahia, no início do século XVII. Entretanto, novo fluxo de migrantes ocorreu em meados desse mesmo século, formado pelas nações fugitivas do território pernambucano, aliadas dos holandeses, quando se deu a expulsão dos mesmos da Capitania de Pernambuco (PINHEIRO, 2000: 17 e 39).

A resistência indígena à conquista européia no território cearense permitiu à manutenção de parte de suas terras originais, que ficou circunscrita, inicialmente, a algumas ribeiras e, depois somente as áreas serranas. Segundo Pinheiro a restrição do povo indígena se deu por três mecanismos simultâneos: extermínio, aldeamento e expulsão para áreas não ocupadas por "colonizadores"(PINHEIRO, 2000: 28).

Na forma de violência física, percebe-se que o extermínio aconteceu ao longo do processo de colonização, com episódio grotesco registrado durante ano de 1699, com as atrocidades cometidas (400 mortos e 300 prisioneiros escravizados) pelos bandeirantes paulistas contra os paiacus, que habitavam o Vale do Jaguaribe (Bezerra e citado por Pinheiro). Ainda assim, a resistência indígena armada permaneceu por duas décadas, tendo sido vencida em 1720, quando o desrespeito à ordem régia(2) consistiu no segundo momento de expropriação do seu território e parte das nações indígenas estava subjugada à cultura do colonizador. Ou seja, percebe-se o enfraquecimento da resistência indígena, quando os próprios índios submetem-se às exigências da metrópole e solicitam terras, que foram suas, utilizando os mesmos argumentos do colono branco em detrimento de seu próprio povo, face às condições materiais de pauperização a que chegaram. Por exemplo, índios da Aldeia de Paupina (Messejana) solicitavam sesmarias de uma légua quadrada, quando seus antepassados foram possuidores de léguas e léguas de terras, que se estendiam da Serra da Pacatuba a Jererahu e até o Cocó.

O confronto entre os nativos e os colonizadores passou por diversas modalidades de violência simbólica, intermediadas por representantes do Estado e da Igreja luso-brasileira, mas foi materializada nos sistemas de relação estabelecidos na catequese e no aldeamento. O antagonismo entre os modos de vida e a dominação aos interesses do colonizador faziam-se presente no processo de evangelização, que tentava justificar e persuadir a favor da lógica mercantil de produção, trabalho e mercado, uso e propriedade da terra, acumulação de riquezas e posição social, completamente contrária à cultura indígena.

Ao mesmo tempo, o trabalho dos missionários desmoralizava os valores e crenças indígenas, ao considerar as práticas religiosas e curativas do pajé, por exemplo, como sendo de superstição e charlatanismo. O sistema político de decisão dos anciãos também foi abolido, ridicularizado e subjugado, pela cultura européia, como se fosse socialmente inferior, mesmo que reconhecido como mais democrático relativamente ao regime metropolitano de poder centralizado e déspota do Capitão-mor e outros representantes da Coroa Portuguesa.

O território para os índios tinha um significado para além da ótica utilitarista do mercantilismo europeu. Possibilitava a sobrevivência, tinha valor simbólico diferente, no qual se definia a própria identidade das nações. A terra era fator de integridade física e sociocultural. Sua expropriação corroborou para dominação portuguesa, mas antes justificou o prolongado movimento de resistência armada adotado pelos índios, que se estendeu de 1603 a 1720 e só findou com seu extermínio ou etnocídio.

O primeiro aldeamento indígena, na Serra da Ibiapaba, se deu quase dois séculos após o descobrimento do Brasil, em 1691. Mas logo foi seguido de outros igualmente importantes, por sua dimensão e resistência, em 1696, os dos tapuias dos jaguaribaras e tapuias dos paiacus, ambos localizados no Vale do Jaguaribe, área de extensão da pecuária. Pinheiro faz questão de frisar que o aldeamento "foi essencial para consolidar a conquista portuguesa e redefinir o espaço cearense" (PINHEIRO, 2000:37).

A organização territorial do Estado do Ceará iniciou-se com única unidade administrativa- Comarca, dado que o sistema de impostos(3) não requeria aparato burocrático estatal e evoluiu para o sistema de Ribeiras, que acompanhava as bacias dos rios, tal como as atividades econômicas e os aldeamentos indígenas. No desdobramento, as unidades evoluíram para Vilas e Municípios.

Cabe destacar, que a transformação das Aldeias indígenas em Vilas teve a mesma finalidade daquelas Vilas criadas para fins de controle social no contexto de desenvolvimento da economia algodoeira, que necessitava de relações de trabalho regulares e subordinadas, submetendo a população livre- de indígenas, mestiça(4), cafuza e mulata(5)- a código de postura e regime de trabalho controlados por feitor. Foram transformadas em Vilas os aldeamentos de Parangaba, Messejana, Caucaia, Baturité, Pacajus, Viçosa do Ceará e Miranda (atual Crato). Assim como foram criadas as vilas de controle social em Quixeramobim, Sobral, São Bernardo das Russas (atual Russas) e São João do Príncipe (atual denominação de Tauá).

Em seqüência na organização do território, a criação dos dezoito primeiros municípios(6) passou-se na seguinte ordem: Aquiraz (criado em 1699, incluindo a Vila de Pacajus), Fortaleza (1725, incluindo as Vilas de Parangaba e Messejana), Icó (1735), Aracati (1747), Viçosa do Ceará (1758); Caucaia (1759), Baturité (1763), Crato (1764), Russas e Quixeramobim (1766), Sobral (1772), Granja (1776), Guaraciaba do Norte (1791), Tauá (1801), Jardim (1814), Lavras da Mangabeira (1816), Jucás e Itapipoca (1823) (IPLANCE; 2000).

Percebe-se desse período de formação das Vilas, que Aracati, Icó e Sobral, apresentam-se como centros comerciais e de serviços de apoio a atividade do campo. Aracati se destacando por seu contato direto com o mercado nacional e com a Metrópole Portuguesa. Sobral, ao canalizar a produção do Piauí. Icó, por sua localização estratégica na rota das boiadas e comércio da carne salgada, do centro-sul do Estado, inclusive da Paraíba.

Fortaleza à época não participava dessa atividade econômica, mas por ser a Capital e concentrar as atividades político-administrativas, começa a ser palco de alguns investimentos públicos que vieram a beneficiar mais o local que ao território cearense. A maioria dos aldeamentos indígenas (Parangaba, Messejana, Caucaia e Pacajus) ficavam nas adjacências de Fortaleza, e, posteriormente, fizeram parte da periferia da região metropolitana.

Para concluir essa fase histórica, é importante chamar atenção para o intenso processo de representação social porque passou essa população nativa. De donos da terra, foram primeiro considerados "invasores", "gentios", "bárbaros" e "preguiçosos", para depois se tornarem em "vadios", "facínoras" e "vagabundos", e transformados socialmente em escravos. Isto apenas por resistirem a expropriação de seu território, por lutarem contra a degradação de suas representações coletivas e de suas condições materiais de sobrevivência. Do mesmo modo que a violência física foi naturalizada, o estigma e o preconceito denegriram a imagem dos nativos e dos seus descendentes perante a sociedade, que ainda hoje permanece como cultura inferior. Remanescentes dos originais índios cearenses encontram-se na população dos tabebas e tremembés, cujos territórios não foram demarcados, que vivem em condições insalubres e de extrema miséria.

Questiona-se, finalmente, se esse grupo social não se constituiu historicamente o segmento da população propensa à emigração, menos por seus antecedentes como povo sedentário e mais por sua relação social enquanto excluídos do sistema produtivo (como trabalhadores e como proprietários dos meios de produção) e dos sistemas de poder e representação política e social. Acredita-se que passaram a compor um grupo social vulnerável ao fenômeno da seca, que impulsionou levas de emigrantes- retirantes e flagelados- do interior para a Capital.

Imigração negra e mulata provoca reorganização no território cearense

Na revisão da literatura de ficção sobre o sertão nordestino brasileiro, Ivone Barbosa oferece novos elementos que reforçam o questionamento levantado a respeito desse grupo social vulnerável.

A visão dominante do colonizador é reproduzida na literatura, quando:

"[...]se observa é que se desenvolveu todo um esforço de interpretação historiográfica e literária para justificar, ou simplesmente legitimar, o processo de ocupação pela pecuária, como um preenchimento de vazios demográficos e não como usurpação do espaço territorial indígena, conforme têm apontado estudos recentes"(BARBOSA, 2000: 65). Mais do que uma questão ideológica, a negação do índio remete para sua condição social de excluído. Barbosa se referenda em Barreiro, para fazer alusão ao fato de "uma recusa deliberada da presença indígena no espaço sertanejo" que em conjunto com outros grupos étnicos fazem parte do grupo dos excluídos: "a desqualificação dos indivíduos que compunham as camadas pobres da população, que por essa razão não tinham um lugar reservado na sociedade colonial [...]"(BARBOSA, 2000: 65).

É muito comum a referência pejorativa a população "vagabunda de aventureiros", sendo explicada por Barbosa por se constituir um segmento composto de índios "reduzidos, vencidos e mestiçados", além de negros fugitivos, aforrados, mulatos e brancos pobres. A submissão desse grupo da população teve valor fundamental para o patriarcalismo da sociedade sertaneja, não apenas econômico, mas em termos de poder do senhores de fazenda. É o que conclui Barbosa a respeito do valor simbólico de dominação, representado pela posse de escravos, que eram mais numerosos no sertão que no agreste e na marinha, segundo Capistrano de Abreu, citado por Barbosa (2000:72). Eurípedes Funes resgata toda uma experiência social dos negros no Ceará e encontra em grupos étnicos miscigenados (pretos, mulatos e pardos) marcas da sua sociabilidade, no mundo do trabalho, mas sobretudo na cultura e nas lutas contra a discriminação e o preconceito (FUNES, 2000:104).

A imigração negra começou atraída pela a suposta existência de terras desocupadas que poderiam ser aproveitadas pela pecuária. Diz-se suposta porque conforme visto, ao mesmo tempo em que se produzia a negação do índio produzia-se também uma "fartura de terras", embora essas terras tenham sido tomadas a fogo e sangue de seus nativos. Trabalhadores livres, escravos e prepostos de proprietários de terras residentes em outras Capitanias, alguns negros se introduziram no espaço cearense na condição de vaqueiro outros como agregados das fazendas. O fluxo maior de imigrantes aconteceu, entretanto, durante os dois períodos de maior surto da lavoura algodoeira: meados do século XVIII e meados do século XIX.

Em junho de 1804, os dados populacionais indicavam um contigente total de 77.369 habitantes no Ceará, com predominância de pretos e pardos (61 %) sobre os brancos (39 %) e que na sua maioria (74%) viviam na condição de livre (7). Cerca de 70 anos depois, em 1872, a população residente no Ceará foi elevada em oito vezes o número de habitantes do início do século, chegara a 721.983 pessoas (8). Verifica-se nesse último ano a presença absoluta e relativa dos pardos (50 % do total da população), que somados aos pretos e caboclos chegaram a 63%, perfazendo um contigente de 453.120 pessoas. Os brancos decresceram relativamente (37%), embora em termos absolutos houvessem incrementado quase na mesma proporção que da população total, pois passaram de 30.336 pessoas para 268.863.

Esses dados expressam a evolução da força de trabalho do homem livre pobre, que foi incrementada não só pela imigração, mas também pelo crescimento vegetativo. A população cativa africana declinou consideravelmente e segundo Artur Ramos, citado por Eurípedes Funes, manteve-se nesse patamar de 4% da população até1883/1884.

Sobre os índios não há um registro sequer nas estatísticas históricas, mesmo nas oficiais, tal como o censo. Será que todos foram miscigenados? Haveria possibilidades do cruzamento de índios com brancos ou apenas com pretos, formando os caboclos? Quantos deles ou dos seus descendente mantiveram-se cativos? Silêncio absoluto, repete-se mais uma vez a negação do povo nativo.

Os índios e seus descendentes, juntamente com os negros, certamente, formaram a classe dos submissos dos pobres, "vagabundos", volantes sem terra e dos escravos, tendo em vista que o preconceito de cor e de etnia juntava-se ao preconceito social de classe.

Como os índios, a população negra foi violentada física e simbolicamente, bem como resistiu e procurou estratégias de superação dessas condições. Uma delas seria a mobilidade espacial, que muitas vezes engrossava as correntes migratórias intraestaduais e inter-regionais, na medida em que representava possibilidades de invisibilidade da sua condição de cativo e de refúgio. As constatações de Funes são ilustrativas a respeito:

"Aproveitando-se da complexidade da região, os escravos ao evadirem das propriedades de seus senhores tinham como opção ir para os centros urbanos. Nesse sentido, havia uma grande mobilidade espacial praticada pelos cativos em fuga, que procuravam passar por libertos, misturando-se às camadas populares um tanto matizadas, onde o mulato podia passar por um tapuia, por um curiboca, por um cafuzo.[...] Francisco, mulato, 21 anos, fugiu de Cascavel e ‘presume-se que tenha procurado para o Norte, ou tenha-se misturado com os imigrantes e embarcado para o Pará ou Amazonas’, onde a possibilidade de manter a invisibilidade de sua condição social era bem maior.[...]" (FUNES, 2000:126 E 127) Verifica-se na citação anterior que os escravos juntavam-se às camadas populares, supõe-se que fizessem não apenas para se manterem invisível, mas também por uma questão de identidade e de proteção social. Os locais escolhidos para refúgio de um número maior de evadidos eram de preferência as serras, antigos aldeamentos indígenas e de forma mais isoladas as periferias urbanas, notadamente de Fortaleza. É o que dá para perceber de outras passagens no artigo de Funes: "No Ceará, há fortes indícios de quilombos na Serra do Pereiro, onde se refugiavam os escravos do Ceará e das províncias vizinhas- Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e mesmo da Bahia- e, ainda, na Serra Grande, para onde corriam os escravos cearenses e do Piauí e Maranhão. Vários deles foram apreendidos no município de Viçosa. Mesmo na periferia de Fortaleza são identificados vários lugares de ‘acoutamento’ de escravos fugidos como em Tauape e Parangaba"(FUNES, 2000:128 e 129). Com a libertação dos escravos aumentou a mobilidade espacial, mas esta não veio acompanhada de mobilidade social, ao contrário reforçou o grupo social dos excluídos. Novamente, Funes oferece elementos para essa constatação: "[...]o processo abolicionista, não só no Ceará, permite ao cativo recuperar a sua liberdade, ser homem livre; mas vem acompanhado de uma série de medidas controladoras, que colocam esse indivíduo no seu (in)devido lugar, fecha-lhe todas as possibilidades de ascensão social e direitos à cidadania. É colocado à margem da sociedade, reforçando o distanciamento social, político e econômico entre a população negra (morena) e branca (galega). Termos que nos fazem refletir sobre a construção de uma ideologia racista, que faz desaparecer do nosso processo histórico outras etnias, negros e indígenas, e outras histórias"(FUNES, 2000:132). A escassez das estatísticas limitam a análise da distribuição da população negra no território cearense. Durante o século XIX, dispõe-se apenas de dois momentos: 1804(9), 1813(10) com informações segundo grupos étnicos e municípios. Esses dados são suficientes para se perceber que os negros vieram concentrar mais população nas antigas Vilas formadas a partir do aldeamento indígenas e aquelas de criadas com a finalidade de controle social, enumeradas anteriormente, assim como a força de trabalho livre e escrava foi mobilizada para áreas de expansão do capital agrícola investido no algodão e/ou na pecuária.

Em 1804, constatava-se por exemplo: Crato (antiga vila indígena) concentrava 30% da população preta e parda dos 47.033 pessoas residentes no Ceará; Sobral e Icó (centros de produção pecuária e algodoeira) detinham 15% e 11%, respectivamente; São João do Príncipe (antiga vila de controle social) com 11% dos pretos e pardos. Na data seguinte, em 1813, aparecem como principais concentrações negras os municípios de Crato e Jardim, que juntos correspondiam a 52% do total de 59.371 pretos e mulatos; seguidos de Fortaleza (13%) e Aquiraz (10%), condizendo com o depoimento de Funes a respeito da mobilidade espacial da população negra para Capital.

Os dados de 1860 estão agrupados, mas através deles verifica-se um processo de crescimento populacional acentuado para Fortaleza, inclusive de escravos, iniciando um processo de disparidade da Capital em relação aos demais municípios cearenses. Fortaleza contava com 35.373 habitantes totais, representando 7% da população estadual, que era estimada em 504.419 pessoas. A Comarca de Fortaleza, incluindo Maranguape e Aquiraz, que se consistiam no embrião da RMF, possuía contingente populacional expressivo, de cerca de 64 mil habitantes ou 13% da população estadual. No município de Icó residiam pouco mais de 13 mil pessoas, o equivalente a 2,7% do total e sua Comarca com 12,0% do total tinha quase o mesmo porte da Comarca de Fortaleza, cujo destaque estava no Município de Lavras da Mangabeira cujo percentual de população chegara a 5,51%. Tauá apresentava contingente populacional pouco maior do que Icó com 2,73%, mas a Comarca dos Inhamuns era cerca da metade da população da Comarca de Icó, representando apenas 6,5% do total dos cearenses. Ou seja na ordem decrescente de população situavam-se: Fortaleza com 7%; Lavras da Mangabeira com 5,5%; Aracati e Crato com, respectivamente, 4%; Sobral com 3,8% e Icó com 2,7%. (BRASIL;1997).

Se em todo o Estado há atualmente apenas dois núcleos de população indígena, os negros conseguiram delimitar território em pelo menos seis localidades, antigos lugares de concentração dessa população (Aquiraz, Tauá, Cariri, Tururu) ou de refúgio (Serra Grande, Iracema), a partir das informações divulgadas por Funes:

"[...] Temos hoje no Ceará vários núcleos de população negra nos centros urbanos, bem como comunidades negras rurais, entre elas: Conceição dos Caetanos, em Tururu; Bastiões, em Iracema; Goiabeiras, em Aquiraz; Colibri, em Tauá;. Comunidades similares são encontradas nas regiões do Cariri e da Serra Grande"(FUNES,2000:132). Migrações para Fortaleza acentuam periferização urbana e social

A primeira reflexão a respeito das migrações que se deseja fazer está posto no seguinte questionamento: Será que essa população livre (branca, indígena e negra), mas excluída socialmente, sem terra, sem trabalho, sem proteção social e com fome, via como solução o roubo e o saque, para realizar sua segurança alimentar, de reprodução simples? Ou a emigração para Fortaleza, que possui outras atividades que a da economia agrícola seria a alternativa a considerar para uma mobilidade social? Ou ambas as decisões, em diferentes momentos e circunstancias podem serem tomadas?

Das análises anteriores apreende-se que os determinantes da migração são diversos. Entende-se que o fenômeno da migração é eminentemente social e determinado por condições históricas de processos e conflitos nas relações de poder. Questões de ordem estrutural são importantes, mas isoladamente não revelam a real dimensão dos movimentos populacionais no espaço. Fatores conjunturais e crises periódicas abalam uma relação social estabelecida em bases frágeis, sempre com prejuízo das pessoas mais submissas, ou destituídas de poder, mas ainda assim não revelam a dinâmica populacional no espaço.

Explicitar, no momento os fatores determinantes da migração interna não é o objeto desse ensaio. Se houve a necessidade de reflexão a respeito foi apenas para examinar a ordem qualitativa da migração para Fortaleza, dado que em termos quantitativos é possível a mensuração a partir da década de 40 do século XX.

As estatísticas mostram uma crescente concentração de população nesta cidade, decorrente da migração da população interiorana, como se verá a seguir. É preciso considerar entretanto, a participação da mobilidade espacial de grupos da população pobre na formação das periferias urbanas, tal como concluiu Funes a respeito dos negros:

"[...] No Ceará, em particular na cidade de Fortaleza, há um aumento considerável daqueles indivíduos sujeitos à condição de agregados e empregados domésticos. É o momento em que o negro vê legitimar sua exclusão social. Consegue a condição de livre; mas lhe é negado o direito à cidadania. Excluído vai se aquilombando nas periferias, nas favelas, nas frentes de expansão, enclausurando-se no seu mundo rural, constituindo sua identidade a partir de sua historicidade.[...]"(FUNES,2000:132). Nas primeiras duas décadas do século XX, o processo de crescimento populacional de Fortaleza torna-se bastante visível no contexto estadual, cujo incremento populacional foi de cerca de 63%, passando de 48,4 mil habitantes em 1900, para 78,5mil em 1920. A migração desse período não chegou a ser registrada, mas nos anos seguintes (entre 1920/40) teve forte impacto no crescimento populacional de Fortaleza, haja vista o incremento de 101,7mil pessoas, sendo 55% (56,2 mil pessoas) decorrente da migração. Em 1940, a população migrante correspondia a metade da população economicamente ativa- PEA em Fortaleza, estimada em 112,5 mil. A cidade passou a ter uma população total de 180 mil habitantes, um contigente bastante expressivo, comparável com a contagem populacional feita em 1996 para Juazeiro do Norte, cidade interiorana de maior expressão populacional no interior, cuja população foi registrada em torno de 189 mil pessoas (IJPNS: 1967 e IPLANCE:2000).

Na década seguinte, em 1950, vê-se reduzir o fluxo migratório para Fortaleza, que foi politicamente desviado pela migração inter-regional. Os migrantes fizeram parte de 17% da população total residente, sobretudo corresponderam a metade do incremento populacional do período 1940/50 e um quarto da PEA de 1950. Em 1960 e 1970, percebe-se o aprofundamento das disparidades intraestadual. Fortaleza concentrava cerca de 15% da população do estado evoluiu para 20%. Em relação à população urbana, a concentração na Capital evoluiu de 53 para 60%. Nota-se que o crescimento populacional de Fortaleza permanece expressivo pela continuidade do processo migratório. O total de migrantes na população de Fortaleza que estava representado em 32%, em 1960, incrementou para 36%, em 1970, com o agravante de que essa população migrante foi responsável por 90% do incremento populacional de Fortaleza entre 1960/70.

Mas o que é interessante ressaltar é a qualidade dessa migração do interior para a Capital, pois incrementava a distribuição da população pobre, que se aglomerava nos espaços juntos com os naturais diante das limitadas possibilidades de sobrevivência, ocupando-se precariamente, quanto a remuneração e a proteção social, caso comum das empregadas domésticas e das professoras primárias, que representavam 55% da PEA.

A periferização da cidade na forma de núcleos de favelas é a mais contundente prova de que a «bela e moderna capital» não era suficiente para todos, ou não possuía condições de abrigar tantos cearenses. Datam de 1930-1955 os principais núcleos de favelas que ainda hoje têm expressão ou reminiscência: Cercado do Zé Padre (1930); Pirambu (1932); Mucuripe (1933); Lagamar (1933); Morro do Ouro (1940); Praça da Graviola (1940); Varjota (1945), Meireles (1950); Papoquinho (1950); Campo do América (1952); Estrada de Ferro (1954). Chama atenção ainda, que de uma amostra de 1.000 habitantes residentes em favelas de Fortaleza, nos anos 60, constatou-se a incidência de 827 migrantes, um índice de 82,7%. (SILVA 1997: 29 e IJPNS: 1967).

A migração registrada por pesquisa em 1961 foi predominante de mulheres (61%), que procederam, principalmente, das regiões litorâneas e serranas (Paracuru, Uruburetama Ibiapaba, Baturité). Portanto de áreas supostamente menos vulneráveis às secas pelas disponibilidades pluviométricas e hídricas. Entretanto, também eram áreas originariamente de refúgio, aldeamento e formação de Vilas indígenas. O que leva a supor, a existência e proliferação de pobreza, sem condições de reprodução simples da população enquanto força de trabalho. Quase metade desses migrantes (36%) passou por outras localidades antes de chegar à Capital, 52% foram provenientes de outras cidades interiorana. A maior parte dos migrantes (45%) chegou a Fortaleza nos anos 50, residindo menos de 10 anos na Capital, contudo foi expressivo o contingente de migrantes que continuaram residindo em Fortaleza, desde os anos 40 com cerca de vinte anos (23%), mesmo aqueles que chegaram nos anos 30 (14%) (IJPNS: 1967).

A subdivisão de dois fluxos de migração (campo-cidade e cidade-cidade) leva a inferir sobre a fragilidade dos demais núcleos urbanos do Ceará, relativamente à Capital. Percebe-se que os pequenos núcleos urbanos, chamados de cidade por força política-administrativa, não conseguiam absorver a população proveniente do campo, que consequentemente migrava diretamente para a Capital. Reforça a inferência a respeito da mobilidade espacial dos pobres e da provável junção à mesma classe social, quando os pesquisadores indagaram aos migrantes sobre as dificuldades para exercerem uma atividade ocupacional e para se instalarem em termos de moradia em Fortaleza nota-se que os migrantes foram amparados inicialmente por parentes e amigos, numa rede de solidariedade e apenas 37% tiveram certa dificuldade de ocupação e 21% de instalação(IJPNS: 1967).

Percebe-se, por outro lado, que os primeiros assentamentos na Capital não eram satisfatórios, pois a mobilidade espacial neste período fazia parte da vida de número significativo de migrantes e naturais. A vontade de mudar-se estava claramente explicitada no desejo de 3% dos migrantes e nativos. Por sua vez, apenas 31% dos migrantes e 24% dos naturais residiram em único bairro de Fortaleza. A grande maioria havia residido em pelo menos dois bairros (33% dos migrantes e 28% dos naturais), assim como eram expressivos os índices dos que residiram em três (21% dos migrantes e 32% dos naturais) e quatro bairros (migrantes 10% e naturais 8%)(IJPNS: 1967).

Finalmente, e ainda conforme Souza, a população favelada em Fortaleza expandiu consideravelmente, sendo constituída essencialmente de pessoas pobres e migrantes. As informações da SUDEC utilizadas pela pesquisadora para 1970, indicavam uma população de 223mil pessoas em 73 vilas marginais, distribuídas em todas as zonas da cidade, mas se concentrando no litoral e ao sul de Fortaleza. Comparando com as informações pesquisadas pelo IJPNS, em 1967, nota-se uma triplicação da população favelada, que na época era estimada em 59.300 pessoas, distribuídas em 16 núcleos de favelas (SOUZA, 1978:88-89).

O estudo de Martine e Peliano, em 1970, sobre migrações em regiões metropolitanas, sugere que havia intensa mobilidade desses migrantes nas Regiões Metropolitanas e calcularam a taxa de retenção dos migrantes que se mostravam mais seletivos, mais qualificados para permanecerem em cada uma delas. No comparativo entre Salvador e Fortaleza vamos encontrar nuanças que sugerem melhor retenção e, portanto, maior seletividade de homens migrantes em Fortaleza e de mulheres em Salvador.

Um diferencial em termos de renda também vai ocorrer entre o tipo de migração: inter-regional, interestadual e intraestadual. Constata-se que a estrutura de mercado de trabalho do sudeste, por exemplo é bem mais diferenciada e possibilita melhores vantagens para os migrantes interregionais que o mercado de trabalho nordestino. Apenas para referendar essas conclusões, apresenta-se o percentual de migrantes interregionais em São Paulo com menos de um salário mínimo (9%) quando em Salvador o migrante proveniente de outro Estado neste grupo de renda chegava a 14% e em Fortaleza a 30%, havendo uma concentração maior de migrantes baixamente remunerados quando provenientes do próprio Estado em Salvador ( 20%) e sobretudo em Fortaleza (39%).

Conclui-se também que os diferenciais intraestaduais e interregionais posicionam Fortaleza numa situação inferiorizada que remete à sua expansão capitalista, considerando a relação entre migração e mobilidade do capital, tal qual concluem os pesquisadores:

"...observa-se que o tamanho e a distribuição da população sobre o espaço refletem, em grande parte, a evolução da organização econômica e, portanto, que as realocações espacial e setorial das atividades econômicas são os principais determinantes da direção, intensidade e características das migrações internas. Nesta perspectiva, as migrações não podem ser avaliadas simplesmente em termos de sua suposta deterioração do meio social nos lugares de destino senão, organicamente, em termos de todo o processo de deslocamento populacional. Assim os movimentos migratórios são estruturalmente moldados pelo processo de acumulação de capital que penetra e se reproduz em espaços diferenciados de forma desigual." ( MARTINE e PELIANO, 1978: 5-6) Reflexões sobre a Metrópole e Metropolização de Fortaleza

Em 1970, Fortaleza não se comparava economicamente a metrópoles nacionais, porém ela se mostrava em patamar médio da realidade regional e no nível local e microrregional colocava-se em patamar superior acima de vários outras cidades e núcleos urbanos.

De acordo com estudos do IBGE, citados por Souza, Fortaleza teria, em 1972, uma área de influência relativa a outros 52 centros regionais, perfazendo um raio de ação de 400 mil quilômetros quadrados de área e uma cobertura populacional para quase 7 milhões de pessoas residentes no Ceará, Maranhão e Piauí. (SOUZA, 1978:74)

Em termos urbanos do Estado, Souza se refere a um outro estudo de sua autoria, no qual identifica uma rede de centros regionais composta de: três centros de abrangência regional (Sobral, Crato-Juazeiro, Iguatu); dezoito centros secundários; e trinta e cinco centros locais, que juntos perfaziam, em 1970, uma população de 1.460hab., ou 32,5% da população estadual. (SOUZA, 1978:74)

As relações mantidas por Fortaleza no espaço interno e externo ao território cearense remetem para uma subordinação: da Capital em relação aos grandes centros nacionais, ou ao contrário das pequenas localidades em relação a Fortaleza. Deste modo, a inter-relação que caracterizaria melhor uma metrópole parece ser a principal característica que Fortaleza ainda não apresentava nesses inícios dos anos 70, quando foi institucionalizada como metrópole. Mas não apenas esta característica faltava para cidade vir a ser uma metrópole conforme se pode apreender das considerações teóricas a seguir.

Na perspectiva da diversificação funcional poder-se-ia argumentar a favor da metrópole de Fortaleza caso as relações fossem vistas de dentro para fora, das microrregiões interioranas com os Estados vizinhos mais pobres. Quanto ao papel de produtora de inovações não há o que salientar positivamente, salvo na difusão dessas inovações e na medida em que as mesmas foram repassadas por centros produtores do sudeste do país.

Sem dispor de muitos elementos quanto à metropolização, pode-se escusar de aplicar o termo cidade para as demais sedes municipais do entorno de Fortaleza, na medida em que não figuraram historicamente como cidades nem como centros urbanizados, salvo pela localização de grandes conjuntos habitacionais entre Caucaia e Fortaleza, bem como do eixo ferroviário Fortaleza-Maracanaú, que determinou localização industrial e uma aproximação populacional, mas com bastantes vazios em cada um dos casos. De qualquer modo, não se trata de uma inter-relação, mas uma espécie de "invasão".

Desse modo, pode-se concordar com Amora, quando conclui que, no momento da institucionalização da RMF em 1973, "Fortaleza não se enquadrava rigorosamente na definição de metrópole, nem se constituía uma área metropolitana no sentido genérico desse conceito." Salvo, se naquele momento histórico, o interesse político houvesse priorizado diferentes categorias de metrópoles, pois "os efeitos diferenciados da modernização geraria também metrópoles diferenciadas até mesmo dentro de um mesmo país. Daí a construção do conceito de metrópoles incompletas e de metrópoles completas" (AMORA,1999: 35).

Observou-se para o caso de Fortaleza um período não-urbanizado no qual a Vila sequer participava da divisão social do trabalho existente. Enquanto Aracati, Sobral e Icó revelava características de cidade de alta mobilidade, de trabalho intelectual, fonte de inovações, relacionadas com a ordem distante e simultaneamente fazendo acontecer na ordem próxima. Noutro momento, é a vez de Fortaleza despontar com características urbanas, verificou-se inclusive uma rede hierárquica de centros formada pelas oligarquias agrárias de suporte a hegemonia de Fortaleza. A função administrativa reforçando a política-militar.

Com a política nacional de centralização do poder, a cidade se aglomera e começa a transcender o seu centro, a partir de sua função comercial, como centro distribuidor do produto nacional industrializado, subdividindo-se em duas grandes áreas de valor da terra, uma separação de classes bastante visível entre o leste (rico e dominante) e o oeste (pobre e subordinado).

Por outro lado, as considerações relativas a uma urbanização sem industrialização definidas por Lefebvre também parecem aplicar-se a realidade de Fortaleza do início dos anos 70, embora já exista uma tendência daquilo que ele chamou de implosão-explosão, de uma sociedade urbana que perpassa pelo tecido urbano para o campo, embora muito a princípio. De modo que, sem dispor para o momento de elementos suficientes para concluir sobre a metropolização, pode-se atestar, sem sombra de dúvida que Fortaleza estava em pleno processo de constituição de uma Metrópole.

A respeito da migração nesse processo tem-se a constatar que, a migração avoluma a expansão urbana e social para periferia e conduz a aglomeração urbana em favelas. Percebe-se que os pobres apresentam uma alta mobilidade espacial para além da mobilidade do trabalho, por sua condição de excluído social e politicamente. Os deslocamentos não são tão espontâneos como aparecem nas explicações neoclássicas, nem só determinados por atração do mercado de trabalho, conforme estruturalistas, mas tem um componente de violência que restringe a manutenção de um território, lugar de conflito e de exercício de poder.
 

Notas

1. É bastante discutível o termo migração para os indígenas, pois além de terem sido um povo nômade, que por vontade própria se deslocavam constantemente no espaço, na busca pela sobrevivência, essa suposta migração teria sido forçada para evitar seu extermínio, ou para garantir a manutenção da própria vida.

2. Por ordem régia parte das terras originárias dos índios foram destinadas a eles, na forma de sesmarias de uma légua quadrada. O desrespeito à essa ordem consistia na solicitação dos colonos para se apossarem dessas terras argumentando rebelião e falta de utilização produtiva, utilizando-se do critério mercantilista e da violência simbólica para denegrir a imagem dos nativos e seus descendentes.

3. O dízimo real era cobrado nas fazendas, inicialmente de forma anual e depois a cada três anos.

4. Proveniente do cruzamento das etnias branca e índia.

5. Fruto da miscigenação com o negro.

6. Células básicas da atual configuração territorial do Ceará.

7. A fonte dos dados originais é Revista do Instituto do Ceará. Tomo XXIX, p.279, apresentados por Funes, 2000, p.104.

8. A fonte dos dados originais é o Censo demográfico de 1872 in Revista do Instituto do Ceará. Tomo XXIX, p.279, apresentados por Funes, 2000, p.105.

9. A fonte dos dados originais é Revista do Instituto do Ceará. Tomo XXIX, p.279, apresentados por Funes, 2000, p.104.

10. A fonte dos dados originais é Revista do Instituto do Ceará, apresentados por Funes, 2000, p.110.
 

Bibliografia

AMORA, Z. B. O espaço urbano cearense: breves considerações. In O Ceará: enfoques geográficos. Zenilde Baima Amora (org.) Fortaleza: FUNECE, 1999.

ARAGÃO, R. B. Cronologia dos Municípios Cearenses. Fortaleza: Barraca do Escritor Cearense, 1996.

ARAÚJO, A M. M. e VIDAL, A M. P. (co-autora). População e desenvolvimento sustentável. Fortaleza: edições IPLANCE, 1997.

BARBOSA, I. C. Entre a barbárie e a civilização: o lugar do sertão na literatura. In. Uma nova história do Ceará.org. Simone de Souza. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.

BRASIL, T. P. de Sousa. Ensaio Estatístico da Província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997.

FUNES, E. A. Negros no Ceará. In. Uma nova história do Ceará.org. Simone de Souza. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.

IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. 16. Rio de Janeiro, 1959.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.

LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro DP& A, 1999.

LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo horizonte: Editora UFMG, 1999.

LEMENHE, M. A. As razões de uma cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus Comunicações, 1991.

MARTINE, G. e PELIANO, J. C. P. Migrantes no mercado de trabalho Metropolitano. Brasília: IPEA, 1978.

MATOS, R. Aglomerações urbanas, rede de cidades e desconcentração demográfica no Brasil.

PINHEIRO, F. J. Mundos em confrontos: povos nativos e europeus na disputa pelo território. In. Uma nova história do Ceará.org. Simone de Souza. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.

RÉMY, J. e VOYÉ, L. A cidade: rumo a uma nova definição? Lisboa: Afrontamento, 2.ª ed., 1997.

SILVA, J. B. da. Os incomodados não se retiram. Fortaleza em questão. Fortaleza: OAS, 1997.

SOUZA, M. S. Fortaleza uma análise de estrutura urbana. Fortaleza: IOCE, 1978.

SOUZA, S. (organizadora). História do Ceará, 2.ª ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994.

VAINER, C. B. Deslocamentos compulsórios, restrições à livre circulação: elementos para um reconhecimento teórico da violência como fator migratório. In XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP.
 

© Copyright: Ana Maria Matos Araújo e Adelita Neto Carleial, 2001
© Copyright: Scripta Nova, 2001



Volver al principio de la página

Menú principal