MILTON SANTOS: INTELECTUAL, GEÓGRAFO E CIDADÃO INDIGNADO

Marcos Bernardino de Carvalho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil


Milton Santos: intelectual, geógrafo e cidadão indignado (Resumo)

O geógrafo Milton Santos foi um desses raros pensadores brasileiros cujas reflexões e produção teórica repercutiram não só além das fronteiras de seu país, como também além do âmbito de sua comunidade profissional. Intelectual comprometido com os grandes problemas e questões de seu tempo, sobretudo com aquelas parcelas da população marginalizadas pelo perverso processo de globalização ora em curso, deixou sua marca de indignação e revolta por todos os meios e instrumentos nos quais teve a oportunidade de manifestar suas idéias, fossem eles textos acadêmicos, aulas na universidade, artigos de jornais ou entrevistas nos programas de televisão.

Palavras-chave: Milton Santos, Intelectual, Indignação, Filósofos, Geografia


Milton Santos: intellectual, geographer and indignated citizen (Abstract)

The geographer Milton Santos was one of those rare Brazilian thinkers whose reflections and theoretical production had echoed beyond the borders of his country and also beyond the scope of his professional community. An intellectual compromised to the great issues and contemporary problems, mainly with the situation of the victims of the perverse globalization process, nowadays in course, he left his mark of indignation and revolt by all ways and instruments -academic papers, university lectures, articles in newspaper or interviews in TV- through which he had the chance to express his ideas.

Key-Words: Milton Santos, Intellectual, Indignation, Philosophers, Geography


"Outrora, os intelectuais eram homens que, na Universidade ou fora dela, acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com o seu tempo e não devem traí-lo." (Milton Santos)



Edgar Morin em seu livro autobiográfico, Os Meus Demônios, no capítulo dedicado à memória e à reflexão de sua trajetória intelectual, indaga:"Que é um intelectual? Quando é que uma pessoa se torna intelectual?" E é o próprio Morin quem responde:"Quer seja escritor, universitário, cientista, artista ou advogado, só se passa a ser intelectual, no meu sentido, quando se trata por meio de ensaio, de texto de revista, de artigo de jornal de forma especializada e para além do campo profissional estrito dos problemas humanos, morais, filosóficos e políticos. É então que o escritor, o filósofo, o cientista se auto-instituem intelectuais."[1]

Ou seja, segundo essa ótica, o "título" de intelectual só deveria ser concedido aos que tomam partido no tempo em que vivem, aos que falam para fora do âmbito das academias e das universidades, aos que prestam atenção ao que se passa além dos muros corporativos, aos que colocam o seu"instrumento de trabalho" -a formulação teórica, a reflexão, o discurso e o ensaio reflexivo-, muito a favor da existência humana e muito pouco a favor de sua própria profissão.

O intelectual verdadeiro, portanto, dedica-se, na maior parte do seu tempo, às grandes questões e a dialogar com pessoas que não seus "colegas de profissão". Por conseguinte, sua atuação e seu grau de excelência não se avaliam mais pelas contribuições prestadas à essa ou àquela corporação profissional. Sua contribuição dá-se numa escala mais ampliada.

Condições como as de pertencer à qualquer parcela da elite pensante ou a fragmentos da intelligentsia institucional não lhes são motivo de orgulho. Prefere ver ressaltada a sua condição de intérprete e cúmplice de seu tempo, do que ser reconhecido apenas através do título profissional que eventualmente ainda ostente. Seus títulos acadêmicos e vínculos corporativos diluem-se naquilo que lhe é mais amplamente reconhecido: a condição de sábio e de pensador da contemporaneidade. Nesse sentido, lembram-nos mais os artistas e os filósofos de outras épocas, outros séculos, aos quais se recorria para ter ciência deste e dos outros mundos.

Milton Santos, personalidade que aqui se homenageia, foi um destes raros pensadores que por suas atividades, suas reflexões e pelos textos que produziu, adquiriu o direito de ser promovido a filósofo do nosso tempo. Essa rara condição, intelectual verdadeiro, aliada às posturas indignadas que normalmente lhe correspondem, são, em nossa opinião, algumas das principais características presentes na trajetória, na obra e nas diversas manifestações do velho professor de geografia. Ao realce, portanto, dessas características -de intelectual indignado-, pretendemos dedicar essa breve homenagem.

O combate à"universidade de resultados" e seus"pesquiseiros"

A indignação e o compromisso com seu tempo levaram Milton Santos a esgrimir palavras e compor manifestações apaixonadas contra todo o tipo de injustiça, de desigualdade e, mais recentemente, contra o que ele próprio denominava de a grande e global"confusão dos espíritos"[2].

Em praticamente nenhuma dessas manifestações o professor foi leniente com o incômodo silêncio e a omissão conivente, diante dos grandes temas e urgências da atualidade, a que muitos de seus pares e as respeitadas (e lentas) instituições que os albergavam costumavam se entregar. Daí, sem muito esforço, é possível observar um traço comum às indignadas manifestações com que sempre nos brindou, pois mesmo que tratassem dos mais variados assuntos, produziam uma"geografia" que, antes de mais nada (e parafraseando o título que Yves Lacoste deu a um de seus mais famosos livros), travava batalhas em seu próprio território: o meio intelectual e as universidades.

Inconformado com certa intelectualidade, omissa e silente, que diante das injustiças se cala e diante da confusão global nada oferece, em uma de suas últimas obras declarava:

"O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o número de letrados e diminui o de intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade brasileira? Tais letrados, equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade, não a dizem. Nesse caso, não se podem encontrar com o futuro, renegando a função principal da intelectualidade, isto é, o casamento permanente com o porvir, por meio da busca incansada da verdade"[3].

Evidentemente, as universidades e os processos educacionais que as alimentam, dando guarida ou sendo dirigidos por (e para) essas mencionadas"deformações letradas", não seriam poupados desse mesmo tom de críticas

Há tempos, Milton Santos voltava sua"artilharia" contra as armadilhas produzidas pelas políticas e gerências equivocadas que, em sua opinião, haviam desviado a universidade, as escolas e toda a estrutura educacional, de propósitos mais nobres e conectados com os valores profundos da existência humana, para os itinerários amesquinhados pelas urgências do chamado mercado. Nesse desvio de metas se poderia encontrar, segundo o prof. Milton, uma das principais razões da inépcia intelectual e da inércia social que normalmente lhe é correspondente.

Em um seu livro de 1987, O Espaço do Cidadão, tais denúncias e análises praticamente costuram o conteúdo que ao longo de toda obra se expõe e podem ser muito bem sintetizadas pelo seguinte trecho:

"A educação corrente e formal, simplificadora das realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele se ponha à altura do seu tempo histórico."[4]

Por outros meios, diferentes da interlocução fria, com público incerto, que as páginas de livros e textos acadêmicos proporcionam, as denúncias e o combate não arrefeciam. Pelo contrário. Nas oportunidades em que podia expor suas idéias olhando nos olhos de seus interlocutores, muitas vezes seus pares, colegas, alunos e outros freqüentadores de seu espaço de trabalho cotidiano, Milton Santos, tornava-se ainda mais contundente nas críticas a uma universidade que se deixava corromper pela urgência dos"resultados" e nas denúncias de uma certa"intelectualidade" que a tudo assistia calada, pois, desse processo se beneficiava. Numa aula inaugural para alunos de sua faculdade na Universidade de São Paulo, disparou:

"Em nome do cientismo, comportamentos pragmáticos e raciocínios técnicos, que atropelam os esforços de entendimento abrangente da realidade, são impostos e premiados. Numa universidade de ‘resultados’, é assim escarmentada a vontade de ser um intelectual genuíno, empurrando-se mesmo os melhores espíritos para a pesquisa espasmódica, estatisticamente rentável. Essa tendência induzida tem efeitos caricatos, como a produção burocrática dessa ridícula espécie de ‘pesquiseiros’, fortes pelas verbas que manipulam, prestigiosos pelas relações que entretêm com o uso dessas verbas, e que ocupam assim a frente da cena, enquanto o saber verdadeiro praticamente não encontra canais de expressão."[5]

Apesar destas denúncias e temas -a instrumentalização da universidade, a educação simplificadora, a conivência e a omissão dos falsos intelectuais-, serem, como dissemos, assuntos recorrentes e obrigatórios em muitas de suas obras, raramente se constituiam nos seus temas centrais. As referências e citações que aqui fizemos, por exemplo, foram extraidas de contextos dedicados à discussão de temáticas específicas, tais como, as características gerais do atual processo de globalização, uma avaliação geográfica da condição da cidadania no Brasil e reflexões sobre a questão ecológico-ambiental na atualidade.[6]

Globalização reversível, cidadania por inteiro e um convite a filosofar

Os assuntos recorrentes e a forma contundente com que a eles Milton Santos se refere, em cada contexto e a cada nova vez, parecem querer produzir o efeito de compartilhar o profundo desapontamento com algumas instituições, lugares e personagens dos quais se esperariam papel protagonista no encaminhamento de soluções e idéias mobilizadoras, mas que, ao contrário, vinham crescentemente convertendo-se em alguns dos principais obstáculos a serem enfrentados.

A combatividade e a indignação do professor, no entanto, não se esgotavam na abordagem dos assuntos recorrentes e, é claro, não arrefeciam, nem mesmo quando ele se dedicava ao desenvolvimento dos tais temas centrais que os contextualizavam. Apenas com mais algumas referências aos exemplos que já mencionamos seria possível constatar isso.

Em O espaço do cidadão, por exemplo, numa época em que muitos acreditavam estar trazendo grandes contribuições, apenas por enaltecer a conquista e a promoção do respeito aos chamados"direitos do consumidor", Milton Santos denunciou o reducionismo e as consequências nefastas de tais atitudes. Para começar, chamou-nos a atenção para o fato de que por trás desse enaltecimento e dessa adesão a um conceito vazio, estava em curso uma tentativa avassaladora de reduzir o sentido da cidadania e a luta por sua conquista (com suas implicações jurídicas, políticas e sociais), a um mero jogo de relacionamentos de mercado e de conexões comerciais:"Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário"[7]. Mas, tomar uma coisa pela outra, seguia dizendo o velho professor, reduz a idéia de cidadania a uma mera realização pessoal e, conseqüentemente, esvazia seu sentido e desmobiliza as pessoas, que abdicam dos seus relacionamentos sociais, da construção e aprimoramento dos seus espaços coletivos (países, Estados, nações, comunidades etc.), em prol de um falso e irrealizável jogo de conquistas individuais:

"Quando se confundem cidadão e consumidor, a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas pessoais e não como direitos sociais. Até mesmo a política passa a ser uma função do consumo. Essa segunda natureza vai tomando lugar sempre maior em cada indivíduo, o lugar do cidadão vai ficando menor, e até mesmo a vontade de se tornar cidadão por inteiro se reduz."[8]

Já, na mencionada aula inaugural, 1992: A redescoberta da natureza, Milton Santos aproveitou o ensejo para nos alertar quanto ao perigo de banalização do tema, a superficialidade midiática que se tem emprestado ao seu tratamento, além do servilismo oportunista com que muitos têm se entregado ao filão ambiental, prenhe de verbas, de possibilidades empregatícias e comerciais. De saída, anuncia que abordar a sério o tema proposto, significa, ao contrário do que muitos poderiam pensar, predispor-se a abraçar um nível profundo de reflexão. Nesse sentido, convida-nos, antes de mais nada, a filosofar -"estamos chamados a filosofar e a filosofia não é mais um privilégio dos filósofos"[9]-, e justifica o convite:"O tema (1992: a redescoberta da Natureza) é um desses que a atualidade nos impõe, mas deve ser abordado cautelosamente, já que nesse assunto a força das imagens ameaça aposentar prematuramente os conceitos. Por isso, cumpre, urgentemente, retomá-los e , eventualmente, refazê-los. Nessa tarefa, não nos devemos deixar circunscrever pelos ditames de uma pesquisa automática, instrumentalizada, nem aceitar o pré-requisito de nenhum enunciado."[10] Ao encerrar sua aula, após desenvolver as críticas, a que já fizemos referência, ao oportunismo e à superficialidade com que muitos tem se entregado ao tratamento do tema, apela para a capacidade heróica, que ainda acredita resistir em alguns dos seus pares, de desviar esse tratamento para uma rota mais coadunada com o espírito da Casa que os emprega:

"O empenho com que nos convocam para tratar, seja como for, as questões do meio ambiente, sem que um espaço maior seja reservado a uma reflexão mais profunda sobre as relações, por intermédio da técnica, seus vetores e atores, entre a comunidade humana assim mediatizada e a natureza, assim dominada, é típico de uma época e tanto ilustra os riscos que corremos, como a necessidade de, em todas as áreas do saber, agir com heroísmo, se desejamos poder continuar a perseguir a verdade."[11]

Por fim, concluindo essa breve série de exemplos, ilustrativos da combatividade com que Milton Santos se entregou ao tratamento acadêmico de determinados temas, como haviamos nos proposto, voltemos ao seu último livro, individualmente elaborado -Por uma outra globalização. Aí, em um momento de quase rendição de tudo e todos ao processo de globalização, que muitos já consideravam inexorável, inelutável e irreversível, Milton Santos chama a atenção para o caráter perverso e totalitário do processo em curso -"vivemos numa época de globalitarismo muito mais que de globalização"[12]-, e, ignorando todos os modismos, aposta e deposita suas fichas de esperança na criatividade dos pobres em conduzir-nos ao conhecimento de uma saída alternativa para a perversidade globalmente instalada:"Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho e de luta. Assim, eles enfrentam e buscam remédio para suas dificuldades. Nessa condição de alerta permanente não têm repouso intelectual."[13] Como não podia deixar de ser, nesse momento da abordagem, Milton Santos, retorna ao seu tema recorrente, acusando a incapacidade dos setores pensantes e vigilantes em perceber o potencial de criatividade dos pobres:"A socialidade urbana pode escapar aos seus intérpretes, nas faculdades; ou aos seus vigias, nas delegacias de polícia. Mas não aos atores ativos do drama, sobretudo quando, para prosseguir vivendo, são obrigados a lutar todos os dias."[14] Na conclusão dessa sua derradeira obra, sugere já haver, em parte graças ao curso da própria globlalização, os meios, as técnicas e as idéias para, se quisermos, subverter a tal"irreversibilidade" do processo global contemporâneo, dotando-o de caraterísticas efetivamente mais globalizadas, isto é, menos"globalitárias", e mais sintonizadas com aspirações que conduzam a espaços de vida decentes para todos:

"É muito difundida a idéia segundo a qual o processo e a forma atuais da globalização seriam irreversíveis. (...) No entanto, essa visão repetitiva do mundo confunde o que já foi realizado com as perspectivas de realização. (...) O mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das nova técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso. A dialética entre essa universalidade empírica e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela ideologia dominante, e a possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. (...) Diante do que é o mundo atual, como disponibilidade e como possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada mutação, mas seu destino vai depender de como disponibilidades e possibilidades serão aproveitadas pela política. Na sua forma material, unicamente corpórea, as técnicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista existencial, elas podem obter um outro uso e uma outra significação. A globalização atual não é irreversível."[15]

Além dos muros da universidade, o circuito se completa

Por outros meios, não propriamente acadêmicos, mas apropriados e obrigatórios para completar o circuito de difusão das idéias e reflexões que identificam o intelectual de verdade, Milton Santos seguia ousando e debatendo com igual rigor e seriedade as suas convicções. Seguia"casado com seu tempo".

Na conversa com o grande público, em debates e diálogos com outros campos do conhecimento, outros poderes e outras instituições, ou em artigos de jornal e, até mesmo, em entrevistas concedidas aos programas de TV, o inconformismo, a indignação e a combatividade emprestada aos temas jamais arrefeceram.

E apenas considerando as suas manifestações dos últimos anos, já se poderia ter uma ampla confirmação disso, tanto com relação àqueles temas que há pouco chamamos de recorrentes, como em relação a diversos outros assuntos sugeridos pelos momentos ou pelos espaços de divulgação que o instavam a se manifestar.

Em diversos artigos e ensaios publicados especialmente em jornais de grande circulação no Brasil, a questão da educação, da universidade e do papel dos intelectuais, jamais deixou de merecer aquele mesmo tratamento, de seriedade indignada, que poderíamos encontrar nas manifestações e produções chamadas acadêmicas.

Dos intelectuais, por exemplo, seguiu cobrando atitudes menos fugazes, menos conjunturalmente partidarizadas, e mais fundadas nas estruturas de permanência que interessam às aspirações de conjuntos mais ampliados da população:

"Como no mundo atual nada se faz sem o respaldo de idéias, é aí que aparece o novo papel do intelectual na reconstrução democrática do Brasil. O intelectual não pode ser dúbio nem oportunista. Mas, nas circunstâncias atuais, a intelectualidade é chamada a exercer uma militância ambigua, quando voltada a repetir discursos fátuos, slogans e palavras de ordem mais destinados à mobilização do que à produção gradual de uma consciência coletiva. (...) Aí entra o papel independente dos intelectuais. Na medida em que estes façam eco às demandas profundas das populações, expressas pelos movimentos populares (organizados ou não), servirão como vanguarda na edificação de projetos nacionais alternativos."[16]

Dos projetos educacionais subordinados às lógicas perversas do"pragmatismo triunfante", com sua pressa por resultados e suas perspectivas mercantis, Milton Santos seguiu denunciando suas conseqüências nefastas para as escolas e as universidades, transformadas por esses projetos em verdadeiros"celeiros de deficientes cívicos."[17]

Mas, além dos chamados temas recorrentes, diversos outros também foram abordados nesses meios não acadêmicos, particularmente em artigos de jornal. Entre eles, a questão da linguagem, do território, da tecnologia, da globalização, da população negra, da história ou da geografia, enfim[18]. Para todos eles o professor seguiu imprimindo sua marca registrada: denúncia, combatividade e indignação, aliados ao necessário tratamento de rigor e de reflexão aprofundada que os assuntos exigiam.

O tema do preconceito racial, particularmente sobre a questão do negro no Brasil, não mereceu por parte do professor nenhum tratamento especial. Apesar das expectativas, muitas delas alimentadas por vieses preconceituosos, em poucas ocasiões esse tema foi alçado à condição de assunto preferencial. E, quando isso acontecia, recebia o mesmo tratamento dispensado aos demais, apenas acrescido de alguma referência direta às tais expectativas que alguns preconceitos ainda alimentavam.

Ambos -tratamento e acréscimo-, podem ser conferidos em um artigo -"Ser negro no Brasil hoje"- em que Milton Santos faz referência ao mea-culpa da Igreja Católica, por suas atitudes com relação à população negra e indígena durante o período colonial, e também aos convites oportunistas que crescentemente vinham sendo dirigidos ao próprio professor. Com relação ao mea-culpa Católico, afirmou:

"Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da República considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas indígenas."

E, com relação aos convites oportunistas, acrescentou:"Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro - imagem fácil- e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva."[19]

Esse espírito, avesso às tergiversações, franco e certeiro quanto aos alvos, pode ser conferido também nas manifestações diretas, proporcionadas por outros meios que não só a imprensa escrita. Em seminários, palestras ou entrevistas na TV e outros veículos, a presença de Milton Santos passou a ser também bastante requisitada nos últimos anos.

Nesses casos, dependendo do contexto e da interlocução, o velho professor temperava suas manifestações com estilos que poderiam variar da ênfase cortante à afabilidade, segundo as contradições ou identidades que os diálogos permitissem apurar.

Houve situações que o professor foi bastante duro no diálogo, tanto para defender seus pontos de vista, sobre quaisquer um daqueles temas acerca dos quais costumava dissertar, como para criticar o próprio papel da mídia ou da instituição que o acolhia.

Em pelo menos duas ocasiões, mais ou menos recentes, que ficaram marcadas até pela repercussão que provocaram, essas situações de aspereza puderam ser verificadas. Uma delas, num famoso programa de entrevistas da TV brasileira[20], e, outra, em uma palestra proferida na Câmara dos Deputados, quando esta promoveu uma série de seminários por acasião dos 500 anos de descoberta do Brasil. Desta última, vale à pena, para ilustrar, destacar os seguintes trechos:"(...) com a globalização, não são os políticos que fazem política. A política é feita pelas grandes empresas. Os políticos são, de maneira quase geral, porta-vozes. Eles elaboram os discursos de interesse da grande empresa, sobretudo porque muitos estão convencidos, outros são convencidos, e outros sem estar convencidos, falam assim mesmo. Só há uma solução na cabeça e no coração dessas pessoas: é essa globalização perversa, que modifica o caráter da nação."[21]

Aproveitando o ensejo para reforçar o papel das atitudes e dos personagens nos quais mais acreditava afirmou, nessa mesma ocasião:"Que os deputados não nos ouçam, está bem, mas os intelectuais não são feitos para audiência dos poderosos. Jamais houve conciliação, por mínima que fosse, entre alguém que se imagine um verdadeiro intelectual e o trabalho cotidiano do homem de poder. Há mesmo uma contradição. O trabalho do intelectual é feito para ser entregue à população, se possível, por meio da sociedade civil e organizada, que inclui os partidos, e, se não possível, de forma selvagem como a presença aqui..."[22]

Estilos mais afáveis e receptivos, Milton Santos reservava para aqueles momentos em que os diálogos, meios e interlocutores pareciam conspirar para a construção de caminhos favoráveis às novidades, aos vínculos com as tradições e necessidades populares, às conexões dos intelectuais e seus tempos e às percepções integrais dos seres humanos. Exemplos bastante ricos e ilustrativos dessas situações, podem ser claramente observados nas ocasiões em que Milton Santos teve a oportunidade de dialogar com artistas de expressão no Brasil. Em um desses diálogos o próprio Milton Santos sintetiza as razões dessas sintonias: "Quem pensa o novo são os homens do povo e seus filósofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes artistas e alguns intelectuais."[23]

* * *

Hoje, completa-se já quase um ano da morte daquele que foi um do nossos principais intelectuais. O impacto de sua morte, a triste perspectiva de sua ausência e a interrupção do fluxo normalmente impactante de suas idéias, além, é claro, da volumosa produção que deixou registrada em dezenas de livros e centenas de artigos, geraram, ao longo desse último ano, inúmeras e justas homenagens. Nelas, diversos aspectos da contribuição teórica de Milton Santos foram examinados: a condição de geógrafo, a carreira acadêmica brilhante, as láureas recebidas, a discussão metodológica, o rigor científico e a dedicação à reflexão epistemológica.

Sobretudo, como sói acontecer nessas ocasiões, destacou-se reiteradamente a contribuição que o ex-advogado trouxe para a sua comunidade profissional de adoção, os geógrafos, e, conseqüentemente, a perda que sua morte significou para a ciência que praticam.

Na sua"cerimônia de adeus", à beira de seu túmulo, no entanto, os geógrafos se calaram. Respeitosamente escutaram artistas, políticos, sindicalistas e militantes de movimentos sociais, falarem da importância do velho professor.

Para quem, como Milton Santos, em várias ocasiões fez questão de deixar clara sua opção pela conduta intelectual que mais admirou, a do filósofo Jean-Paul Sartre, a amplitude dos setores sociais ali presentes e representados, bem como as manifestações que a partir daí se seguiram, indicam claramente que nessa opção, sartriana, ele logrou sucesso. E lograr sucesso nesse caminho, como aprendemos nas próprias aulas do prof. Milton, equivale a ser reconhecido como alguém que foi"casado com seu tempo" e com as grandes causas da existência humana, a serviço das quais os intelectuais de verdade colocam suas melhores idéias e convicções.

Intelectuais assim não existem a rodo. Pelo contrário. Nos tempos que correm, pressionados pelo chamado mercado, pelas"universidades de resultados", pela confusão global, pelo desprestígio dos valores da existência, pela hegemonia da economia, pela ditadura das grandes corporações, pela urgência da instantaneidade, pelo pragmatismo irresponsável, etc., grassam os oportunistas, manipuladores de verbas e pensadores de ocasião. Tudo que almejam, esses "acadêmicos de resultados", com suas reflexões rápidas, superficiais e descartáveis, é o reconhecimento midiático e o sucesso financeiro, que aos mais competentes (quer dizer, aos mais competitivos), o tal mercado oferece de bom grado e instantaneamente.

Portanto, diante de um ambiente nada propício para os adeptos de uma conduta sartriana e diante da crescente escassez de pensadores que assim se conduzem, a consciência de que se perdeu mais um deles é dolorosa. Talvez para amenizá-la é que nos propusemos a ressaltar aqui, nesta breve homenagem, a faceta de indignação, presente nas obras e nas manifestações apaixonadas do professor Milton Santos. Essa indignação, sobretudo contra a perversidade e a injustiça que submetem grande parte das pessoas, é que conduz alguns pensadores a abraçarem as grandes causas de seu tempo e se tornarem perenes nos corações e nas mentes daqueles que costumam vivê-lo e sofrê-lo com mais intensidade.

Em tempos fugazes, de desvalorização das atitudes mais reflexivas, de baralhamento e inflação de signos, de confusão produzida, de banalização dos conceitos e de desrespeito aos que pensam e aos que existem, observar as trajetórias percorridas e indicadas por alguns daqueles raros pensadores, que ainda ousaram propor a desconfusão, subordinar-se aos seus próprios relógios, estabelecer seus próprios caminhos, reabrir a história e reafirmar utopias, é nossa obrigação.



Notas

[1]Morin, 1995, p. 176.

[2]Milton Santos em uma de suas últimas obras, em um capítulo destinado à crítica do conteúdo totalitário do atual processo de globalização, exortava:"Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um novo discurso, capaz de desmistificar a competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos." (Santos, 2000, p. 55).

[3]Ib., p. 74.

[4]Santos, 1987, p. 42

[5]Santos, 1992, p. 11.

[6]São esses os três conjuntos de assuntos que caracterizam os contextos de onde extraímos as três últimas citações mencionadas neste artigo. Os temas referem-se, respectivamente, aos textos mencionados nas útlimas três notas.

[7]Santos, 1987, p.13.

[8]Ibid. p. 127.

[9]Santos, 1992, p. 3

[10]Ibid.

[11]Ibid., p. 11 e 12.

[12]Santos, 2000, p. 55.

[13]Ibid., p.132.

[14]Ibid.

[15]Ibid., pp 160, 168, 173 e 174.

[16]Jornal Folha de São Paulo (FSP), 07/12/97:"As duas esquerdas". Ver também FSP, 20/06/99:"A vontade de abrangência"

[17]FSP, 24/01/99:"Os deficientes cívicos".

[18]ver, por exemplo, os artigos publicados ao longo dos anos 90, 2000 e 2001, no jornal FSP, especialmente"O recomeço da história" (09/01/2000) ,"Ser negro no Brasil hoje" (7/5/2000),"O tempo despótico da lingua universalizante" (5/11/2000),"O novo século das luzes" (14/01/2001) e"Elogio da lentidão" (11/03/2001)

[19] FSP, 7/5/2000.

[20]Aqui nos referimos especificamente a uma entrevista concedida por Milton Santos a um dos mais famosos jornalistas da televisão brasileira, Boris Casoy, exibida em rede nacional pela TV Record em 23/04/2000.

[21]Santos, M."Que parlamento para o século XXI? Desafios e perspectivas frente à mundialização", 04/04/2000 . Disponível em: http://www.camara.gov.br/

[22] Ibid.

[23]Declaração extraída de entrevista concedida a Gilberto Gil, compositor e cantor popular brasileiro, disponível em http://www.gilbertogil.com.br/. V. também diálogo entre Denise Stoklos, atriz e dramaturga brasileira, e Milton Santos, disponível emhttp://www.teatrobrasileiro.com.br/entrevistas/stoklos-santos.htm.



Bibliografia

MORIN, E. Os Meus Demônios. Lisboa: Publicações Europa-América, 1995. 233 p.

SANTOS, M. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 142 p.

SANTOS, M. 1992: A Redescoberta da Natureza. São Paulo: FFLCH/USP 1992, (mimeo). 12 p.

SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000. 174 p.



© Copyright Marcos Bernardino de Carvalho, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002

Ficha bibliográfica:

CARVALHO, M. B. "Milton Santos: intelectual, geógrafo e cadadão indignado". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]


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