A REGIÃO COMO PROBLEMA PARA MILTON SANTOS

Ina Elias de Castro
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Pesquisadora do CNPq


A região como problema para Milton Santos (Resumo)

Percorrendo alguns trabalhos considerados fundamentais na obra de Milton Santos, a questão que temos em mente para este percurso é: até que ponto suas reflexões sobre a região resultaram objetivamente das mudanças concretas deste objeto de análise geográfica; ou se estas reflexões foram prioritariamente influenciadas pelos parâmetros do modelo de análise de base materialista adotado pelo autor. Esta discussão será balizada pela corrente teórico metodológica que mais fortemente influenciou as reflexões e as posições críticas do autor e também pela tentativa de compreender de que modo a região, um conceito central da geografia, permaneceu como vocábulo em seus trabalhos mas esvaziou-se do seu conteúdo explicativo original.

Palavras chave: Milton Santos, região, geografia crítica, modo de produção, espaço geográfico.


Sendo aceito que a diferenciação espacial é uma questão central para a geografia, é possível ainda pensar a região como um recorte significativo para a reflexão, análise e pesquisa em geografia? Qual seria a resposta de MS para a questão? Um percurso através de alguns de seus trabalhos nos ajudaria a delinear as possíveis respostas. Este percurso será balizado pela corrente teórico metodológica que mais fortemente influenciou as reflexões e posições críticas do autor e pela tentativa de compreender de que modo a região, um conceito central da geografia, permaneceu em seus trabalhos como vocábulo mas esvaziou-se do seu conteúdo original. A questão que temos em mente neste percurso da obra de Milton Santos é: até que ponto suas reflexões sobre a região resultaram objetivamente das mudanças concretas deste objeto de análise geográfica; ou se estas reflexões foram prioritariamente influenciadas pelos parâmetros do modelo de análise de base materialista utilizados.

Os pressupostos conceituais da geografia crítica

Não é possível, pois, situar as reflexões de Milton Santos sobre a região sem situá-lo no paradigma da geografia crítica que se impôs à geografia brasileira a partir dos anos 70. Esta nova corrente realizou uma profunda crítica dos fundamentos positivistas tanto dos pressupostos naturalistas da geografia clássica como das pretensões teoréticas da revolução quantitativa a partir dos anos 60. Com forte influência da economia política de Marx, as divisões e diferenciações do espaço passaram a ser interpretadas como a materialização dos diferentes modos de produção.

Neste sentido, a análise da categoria de formação econômico social da vertente marxista tornou-se central na sua ambição de compreender o significado da dimensão espacial nela contida. A partir desta compreensão o autor pôde questionar o esquecimento, por tanto tempo, da "inseparabilidade das realidades e das noções de sociedade e de espaço inerentes à categoria da formação social" e desenvolver uma reflexão original, visando conduzir a uma teoria do espaço, apoiada nos supostos da construção intelectual de uma outra categoria: de formação sócio-espacial (Santos, 1979:p.19).

Na construção desta nova categoria para a análise geográfica, apoiada nos fundamentos da economia política e do materialismo dialético de Marx, "a seqüência de relações econômicas inelutáveis representavam o motor preponderante do desenvolvimento sócio histórico e a principal chave para compreendê-lo" (Elias, 1994:p.66). Na perspectiva do método marxista adotado então, "o espaço é fundamentalmente social e histórico, evolui no quadro diferenciado das sociedades e em relação com as forças externas, de onde mais freqüentemente lhes provém os impulsos" (Santos,1979:p.10). O autor coerentemente aponta que "todos os processos que juntos formam o modo de produção (produção propriamente dita, circulação, distribuição, consumo) são históricos e espacialmente determinados num movimento de conjunto, e isto através de uma formação social" (Santos,1979:p.14). Porém, apesar de determinado histórica e espacialmente, nas versões geográficas o modo de produção tornou-se cada vez mais determinante da história e da sociedade e, consequentemente, das diferenças no espaço. Pois, embora "o espaço não [seja] uma simples tela de fundo, inerte e neutro, [as suas] "formas-conteúdo são subordinadas e até determinadas pelo modo de produção" (Santos, 1979:p.16).

Na perspectiva da determinação histórica, as diferenças espaciais explicam-se, portanto, como resultado inescapável

"do arranjo espacial dos modos de produção particulares. O <valor> de cada local depende de níveis qualitativos e quantitativos dos modos de produção e da maneira como eles se combinam. Assim, a organização local da sociedade e do espaço reproduz a ordem internacional" (Santos, 1979:14 apud Santos, 1974:8).

Neste sentido, cada forma geográfica é representativa de um modo de produção, mas estas formas tornam-se formas conteúdo, subordinadas e até determinadas pelo modo de produção. Este constitui, portanto, uma unidade que torna inseparáveis as noções de sociedade e o processo histórico de produção e "abarca a totalidade da unidade da vida social" (Santos, 1979:17)

Como pôde ser observado acima, na perspectiva materialista da análise geográfica do autor duas questões tornaram-se centrais: a formação econômico social como a totalidade da unidade da vida social e a possibilidade de apreensão do significado particular para cada lugar apenas ao nível desta totalidade (Santos, 1979:18). Nosso autor explicita esta subordinação quando afirma que a noção de lugar e de área se impõem, uma vez que "o acontecer sobre o espaço não é homogêneo". Mas, para compreender esta diferença impõe-se "a categoria da escala, isto é, a noção de fração do espaço dentro do espaço total, [pois] o acontecer próprio a um lugar não é indiferente ao acontecer próprio a outro lugar, exatamente pelo fato de que qualquer que seja o acontecer é um produto do movimento da sociedade total" (1978, p176). Neste sentido, a medida que a totalidade e o tempo eram eleitas como categorias fundamentais do estudo do espaço, mais complexa tornava-se sua tarefa de incorporar às suas reflexões um conceito de região com possibilidade explicativa para as diferenças do espaço. A categoria escala, por sua vez, tomada como uma fração do espaço dentro do espaço total reforça a perspectiva de um recorte espacial subordinado a um espaço total.

Os limites de um conceito de região na vertente marxista

Na realidade, ao considerar a totalidade espacial como uma das estruturas da sociedade, os lugares e os subespaços, foram considerados como as "áreas que na linguagem tradicional dos geógrafos chamam-se mais freqüentemente de regiões, [e] devem ser tratados em termos de subestrutura (são subestruturas para a sociedade como um todo; para a totalidade espacial são simplesmente estruturas)" (Santos, 1978:p.176). Continuando sua argumentação, o autor afirma que como o acontecer social depende da sociedade como um todo, cada acontecer particular representa uma determinação da sociedade como um todo em um lugar próprio que o define. Neste caso, é acrescentado "à sua dimensão social original, uma dimensão que é, de uma só vez, temporal e espacial. Lugares e áreas, regiões e subespaços são, pois, unicamente áreas funcionais, cuja escala real depende dos processos" (Santos, 1978:p.176).

Em suas reflexões mais recentes, Santos (1996:196-197) destaca a universalidade atual do fenômeno de região e critica a vertente que a nega, uma vez que "nenhum subespaço do planeta pode escapar ao processo conjunto de globalização e fragmentação, isto é, individualização e regionalização." Sua crítica se estende também àqueles que acreditam que a expansão do capital hegemônico por todo o planeta teria eliminado as diferenças regionais, o que impediria de se prosseguir pensando em região. Contra argumentando, ele aponta a velocidade das transformações mundiais deste século como causa do desmoronamento da configuração regional do passado e demonstra que esta mesma aceleração do tempo aumenta a diferenciação dos lugares, pois, já que "o espaço se torna mundial, o ecúmeno se redefine, com a extensão a todo ele do fenômeno de região". Continuando, ele acrescenta que "as regiões são o suporte e a condição de relações globais que de outra forma não se realizariam". No entanto, para ele, a região continua sendo "um espaço de conveniência", pois o que "faz a região não é a longevidade do edifício, mas a coerência funcional que a distingue das outras entidades, vizinhas ou não."

Estas reflexões contêm os problemas fundadores de um novo olhar para a região como categoria de análise da geografia. Como problema epistemológico a região é tomada como recorte espacial de reprodução da totalidade; como problema empírico ela é vista como expressão das diferenças entre os lugares, diferenças estas provocadas pelos eventos comandados pela globalização, e constitui um recorte espacial funcional às formas de produção. Afetada pela aceleração dos tempos atuais as formas e os conteúdos das regiões mudam repetidamente, sendo possível que a sua vida seja muito curta.

Após este percurso através de algumas proposições de Milton Santos sobre como refletir e atualizar o conceito de região, dois problemas devem ser aqui apontados. Em primeiro lugar, a perspectiva do fenômeno regional como resultado de uma determinação do alto, o que estabelece por definição uma impossibilidade ontológica de qualquer nível explicativo do recorte regional. Neste caso não é possível falar numa natureza do fenômeno regional, uma vez que o fenômeno real é o modo de produção. A região seria então apenas um epifenômeno. Em segundo, a exigência de o recorte regional ser definido pela funcionalidade dos fenômenos, ou eventos, que podem ser breves. Duas questões surgem imediatamente: sofrendo mudanças na forma e no conteúdo e tendo vida curta, é possível pensar em região? Qual o valor explicativo para a geografia de um conceito que define um recorte espacial tão mutante e tão volátil?

Se a noção de região resultante dessa vertente analítica se propôs romper com o naturalismo da geografia clássica e com os modelos de análise regional da economia neo-clássica, incorporados pela geografia, deste último ela reproduziu o critério funcionalista de divisão do espaço, como bem percebeu Gomes (1995:65). A determinação da categoria de modo de produção, da forma como foi assimilada pela geografia crítica niltoniana, levou a romper-se também com qualquer possibilidade de densidade cultural, política ou histórica dos recortes regionais. Na realidade, a centralidade da noção de totalidade nas reflexões de Milton Santos impediu a possibilidade ontológica de pensar a região como um recorte significativo para qualquer nível de explicação em geografia. No entanto, a região tornou-se uma noção paradoxal: esvaziou-se como conceito empiricamente útil para explicar as diferenças, mas permaneceu como vocábulo indicativo de um recorte espacial tomado para um determinado fim analítico.

Na realidade, as reflexões do autor foram afetadas por dois cenários importantes: o da crise da geografia clássica, que coincidiu com uma grande rediscussão da noção região (Gomes, 1995:62), e com o aprofundamento das diferenciações espaciais num mundo globalizado, afetado pelo avanço tecnológico, pela competitividade e pela aceleração dos eventos. No primeiro cenário, na ambição de munir a reflexão geográfica de teorias e de modelos analíticos cientificamente consistentes, a região não mais podia ser aceita como uma evidência do mundo real, como produto de processos localizados, auto-referenciados e diferenciadores. No segundo, se não era possível ignorar as diferenças espaciais - antigas e recentes, não era mais possível, no modelo analítico materialista centrado no modo de produção adotado pelo autor, atribuir a esta categoria qualquer pressuposto fenomenal ou de temporalidade.

Há, porém, que se fazer justiça à originalidade da obra de Milton Santos, cujas questões centrais das suas reflexões diziam respeito à elaboração da categoria de formação sócio espacial e à discussão da idéia de meio-técnico-científico-informacional, ambos construtos analíticos enriquecedores da análise geográfica. Nesta corrente de preocupação com os macro processos que moldam a história da humanidade e consequentemente o seu espaço, a região não era um problema central. Muito ao contrário, ela já tinha se tornado, no debate entre as correntes positivistas e destas com a corrente crítica da geografia, um problema menor (Gomes, 1995), ou mesmo um não problema, ou seja, algo sobre o qual não vale a pena pensar.

Conclusão

Respondendo às questões propostas no início, acreditamos que, como um pensador da geografia, Milton Santos foi impactado pelos debates metodológicos ocorridos na disciplina ao longo das décadas de 1960 e de 1970; a partir da década de 1980 ele foi também confrontado com as profundas transformações da ordem econômica e política mundial, afetadas pelas mudanças tecnológicas. Consequentemente, ele foi sensível ao modo como estes macro processos afetavam o espaço, moldavam territórios e influenciavam os lugares e as sociedades locais (Santos, 1988).

Na realidade, por todos os impasses conceituais e metodológicos da dimensão regional dos fenômenos, a região deixou de ser um problema para uma parte importante da comunidade geográfica (Castro, 1993:60). Alguns geógrafos chegaram mesmo a propor sua substituição por outros termos. Ann Markusen (1981), integrante da corrente marxista, propôs substituir o termo região por regionalismo; Roger Brunet, geógrafo francês, organizador da enciclopédia francesa Géographie Universelle, sem qualquer identificação com essa corrente de pensamento, definiu região comoun mot vide (uma palavra vazia) e propôs substituí-la porcontrée, cuja etmologia designa "um espaço diferente". A palavra origina-se decontre(contra), opposé(oposto), immédiate(imediato), isto é, colocado em frente, sem mediação (Apud Castro, 1993:61).

A região, como problema para a reflexão geográfica, esteve portanto no centro das críticas, tanto da corrente que elegeu os pressupostos da economia política como daquela da renovação positivista. No caso da primeira, a qual se filiou nosso autor, concordamos com Gomes (1995:66) quando aponta que "do enxerto dos instrumentos teóricos do materialismo dialético não surgiu um conceito de região efetivamente operacional e, muitas vezes, a idéia evolucionista e mecanicista predominou revestida de um vocabulário marxista."

Porém, a realidade é sempre mais complexa do que nossa capacidade de apreendê-la e tomar modelos conceituais como unívocos resulta sempre em empobrecimento disciplinar. Neste sentido, a região, definida pelas práticas sociais duráveis em um território, está longe de estar conceitualmente e empiricamente esgotada, mesmo se estas práticas são definidas por pertencimentos simbólico em múltiplas escalas.

Como a complexidade do real nos coloca cada vez mais diante do particular que se articula com o geral, da unidade contida no todo e do singular que se multiplica, problematizar o espaço geográfico implica considerar estes paradoxos. Na realidade, a identidade sócio espacial, o espaço do cotidiano, o espaço da participação, da mobilização e da decisão política, o espaço da administração pública e outros mais definem novas questões para a investigação e estabelecem o desafio metodológico da escala dos fenômenos que dão sentido ao território regional (Castro, 1993:61).

Desde a década passada, o retorno ao individualismo, a existência de múltiplas escalas de relações de poder, o aparecimento de novas estratégias de centro-periferia, os novos arranjos espaciais das solidariedades propiciadas pelas mudanças tecnológicas, o fortalecimento dos novos poderes regionais e locais como interlocutores das relações supra-nacionais, a valorização do meio ambiente nas escalas planetária e do cotidiano, reclamam da geografia um novo olhar para o território regional, não apenas como uma engrenagem de uma totalidade impositiva, mas como o continente de um conteúdo significante.

Respeitando a coerência dos engajamentos filosóficos e metodológicos das reflexões de Milton Santos, bem como sua militância como cidadão, é compreensível o lugar secundário reservado em sua obra para o conceito de região. No entanto, para avançar a partir do seu legado, melhor que discutir se há ou não validade explicativa para o conceito de região, pois este é um falso debate circunscrito pelas correntes metodológicas da disciplina, é fundamental buscar um olhar capaz de visualizar fatos novos que nos permitam compreender a realidade, projetada em diferentes escalas e que se reflete em cada uma delas, configurando "campos experimentais" (Ferrier, 1984) para a análise regional.



Referências bibliográficas

CASTRO, Iná Elias de. Problemas e alternativas metodológicas para a região e para o lugar. In: SOUZA, M.A. et al. (Orgs.).Natureza e sociedade hoje: uma leitura geográfica. São Paulo: HUCITEC/ANPUR, 1993:56-63.

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FERRIER, Jean-Paul. La géographie, ça sert d'abord à parler du territoire, ou le métier des géographes. Aix-en-Provence: EDSUD, 1984.

GOMES, Paulo César da Costa. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO,I.E. et al. (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, pp. 49-76.

MARKUSEN, Ann. Região e regionalismo. Um enfoque marxista. Espaço e Debates, São Paulo, 1(2), 1981, pp. 63-100.

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SANTOS, Milton. A natureza do espaço habitado. São Paulo: HUCITEC, 1996.



© Copyright Ina Elias de Castro, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002

Ficha bibliográfica:

CASTRO, I. E. de. "A região como problema para Milton Santos". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]


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