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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(083), 1 de agosto de 2003

POLÍTICA HABITACIONAL E URBANIZAÇÃO NO BRASIL

Rita de Cássia da Conceição Gomes
Anieres Barbosa da Silva
Valdenildo Pedro da Silva
UFRN, Brasil

Política habitacional e urbanização no Brasil (Resumo)

O ensaio sobre política habitacional e urbanização no Brasil sinalizou para o fato de que tal política não ter atendido, na íntegra, a seu objetivo maior, isto é, o de solucionar o problema da moradia para a população carente, mas viabilizou a expansão capitalista nas áreas urbanas, definindo um mercado urbano de terras, segregando áreas e valorizando-as. Desse modo, o espaço urbano tem sido reconstruído, concretizando o rápido processo de urbanização vivenciado nas grandes e médias cidades brasileiras. Natal é um exemplo dessa realidade. O processo de urbanização, em muito acelerado, pelas políticas habitacionais implementadas pelo poder público brasileiro, contribuiu para melhorar as condições de vida de parcela da população, aquela que pode viver na cidade legal, mas não podemos afirmar que a vida da população do país melhorou, de um modo geral, e que tal melhora está ligada a esse processo. A evolução de outros indicadores sociais e econômicos e urbanísticos evidencia contradições nas cidades brasileiras.

Palavras-chaves: política habitacional, urbanização, cidade.

Housing Policy and urbanization in Brazil (Abstract)

This paper pointed to the fact that the brazilian housing policy has not fully achieved its objectives, in particular that of providing shelter to the poor. Nonetheless, it has paved the way to the establishment and the consolidation of an urban land market, by segregating some areas and valueing them. In this way, the urban space has been rebuilt, materializing the rapid urbanization of large and medium size cities in Brazil. Natal is here an example. Urbanization has been speeded up by national housing policies and has contributed to enhance living conditions said that, it is not possible to argue that living conditions in general have improved in the country. The analysis of other social and economic indicators reveals the contradictions of the brazilian city.

Key words: housing policy, urbanization, city.

Reflexões introdutórias

O ato de morar faz parte da própria história do desenvolvimento da vida humana. Isso significa dizer que não podemos viver sem ocupar lugar no espaço. Entretanto as características desse ato mudam de acordo com cada contexto sociopolítico e econômico. Podemos dizer, então, que o ato de morar tem um conteúdo político, social, econômico e, principalmente, espacial. No contexto dessa espacialidade, podemos observar características diversas da habitação e, por conseguinte, formas espaciais diferentes, concretizando uma produção diferenciada da cidade.

Tomando por referências essas dimensões, é que produzimos este trabalho, que tem a intenção de analisar a política habitacional brasileira, desencadeada após a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Federal de Habitação (Sefhau), em 1964, e sua importância para o processo de urbanização das cidades médias brasileiras. Partimos do pressuposto de que ela não somente se desencadeou em decorrência do déficit habitacional existente no Brasil naquele momento, mas se constituiu também numa resposta do Estado ao capital, no sentido da reprodução deste aos interesses externos – além de ter servido como instrumento de controle econômico e político, auxiliando, em certos momentos, a amenização dos conflitos pela posse do solo urbano.

Desse modo, devemos entender a política habitacional brasileira a partir de sua inserção no contexto maior do desenvolvimento econômico. Por isso não podemos efetivar uma leitura da política habitacional que emergiu, principalmente a partir dos anos 1960, no Brasil, como expressão de uma preocupação do Estado Brasileiro centrada no problema da moradia, que se agravava, tendo em vista o rápido movimento migratório que se desencadeou após 1964.

Depois da Segunda Guerra, ocorreram várias mudanças na economia mundial, a qual passou a ser comandada pelos Estados Unidos, tendo por fito a expansão da grande empresa capitalista. Assim sendo, o consumo em massa constituiu um dos vetores básicos para a reprodução do capital, apoiando-se principalmente no desenvolvimento do Welfare State, que passou a proteger o salário mínimo, o desemprego, o sistema previdenciário, o sistema de saúde, o sistema habitacional, além de outros serviços sociais.

A partir dos idos de 1960, a recessão competitiva dos países central, decorrente da crise do Fordismo, desencadeada nos países desenvolvidos, propiciou a liberação de créditos para os países em desenvolvimento investirem em infra-estrutura, modernização e indústria. Assim, emergiu uma oportunidade para esses países, uma vez que, a partir de então, ocorreu uma intensificação da internacionalização das grandes empresas transnacionais, tendo em vista a necessidade de expansão dos mercados e a procura por insumos e mão-de–obra barata. Tal processo foi denominado por Alain Lipietz de Fordismo Periférico. Ou seja, as formas de regulação até então atuantes no mundo desenvolvido passaram a fazer parte também do mundo subdesenvolvido.

Em virtude desse novo contexto, o Brasil passou a vivenciar um certo dinamismo econômico, configurando-se o que foi denominado de milagre brasileiro. Nessa fase, profundas mudanças ocorreram na sociedade como um todo e, de modo especial, na estrutura produtiva, que passou a ser guiada pela indústria, embora sob uma forte intervenção estatal, principalmente no que se refere aos setores ditos estratégicos da sociedade.

Ocorrendo de forma expressiva em nível mundial, a urbanização se acentuou ao longo do século XX, variando de intensidade e de forma de um território para o outro, em decorrência das particularidades locais.

Partindo de uma visão socioeconômica em que a cidade se constitui no locus da reprodução do capital, a urbanização passou a ser vista “como um conjunto de relações sociais, que reflete as relações estabelecidas na sociedade como totalidade” (Harvey, apud França, 1999, p. 210). A nosso ver, constituindo-se num conjunto complexo de relações sociais, esse fenômeno assume novas dinâmicas a partir dos estágios do desenvolvimento capitalista e isso configura importantes aspectos de interesse geral.

Nesse cenário é que o processo de urbanização foi desencadeado no Brasil, passando as cidades brasileiras, especialmente as grandes e médias, a requisitarem uma série de serviços e equipamentos que se colocavam na pauta de reivindicação da população, a qual deixava o campo para morar na cidade. Nesse momento já estava presente a questão do déficit de moradia.

No caso brasileiro, a urbanização “já apresentou suas primeiras manifestações nos anos que se seguia a revolução de 1930” (Schimidt Faret apud França 1998, p.1). Mas foi a partir dos anos 60 que esse fenômeno se acentuou, atingindo, de forma diferenciada, todas as regiões do país. Em 1940, a taxa de urbanização brasileira era de 26,3%; em 1980, alcança 68,86%; e em 2000, ela passou para 81,2%, o que demonstra uma verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população do país. Esse crescimento se mostra mais impressionante ainda se lembrarmos os números absolutos: em 1940, a população que residia nas cidades era de 18,8 milhões e, em 2000, ela chega a aproximadamente 138 milhões. Constatamos, portanto, que em sessenta anos, os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais de 125 milhões de pessoas nos aglomerados urbanos.

Entender a questão da moradia na sociedade capitalista significa desvendar também as contradições inerentes ao acesso à moradia. Tal entendimento deve, antes de qualquer coisa, procurar desvendar o significado da terra, isto é, de um bem natural que não pode ser reproduzido e, assim sendo, não pode ser criado pelo trabalho. Portanto o fato de alguém trabalhar na terra não significa dizer que vai produzi-la, isso porque as edificações sobre ela  são produtos do trabalho, mas ela não o é. Para Tolosa (1978, p.16), “na sociedade capitalista a terra é, também, uma espécie de capital, que está se valorizando. É na verdade um falso capital, porque é um valor que se valoriza, mas a origem de sus valorização não é a atividade produtiva, investe-se capital – dinheiro em terra e espera-se a sua valorização”.

Portanto devemos pensar a terra como um equivalente do capital, que se valoriza sem trabalho, sem uso. Além de uma falsa mercadoria, ela também se apresenta como um falso capital. A valorização da terra acontece graças à monopolização do acesso a esse bem de extrema necessidade à sobrevivência, que, diante da realidade capitalista, torna-se caro e escasso (Tolosa, 1978).

Diferentemente do mercado de compra e venda de outras mercadorias, no mercado de terras, a lei da oferta e da procura não funciona da mesma forma; ela só funcionava quando novos terrenos entram no mercado de terras. Na expansão do perímetro urbano ou dos loteamentos de glebas, o preço da terra, no geral, aumenta e não diminui. Isso porque essas novas áreas que são incorporadas nem sempre contam com uma infra-estrutura básica. Tal fato gera uma ampliação do valor nos terrenos que já estão disponíveis e que, por sua vez, se encontram em áreas que já possuem essa infra-estrutura. Desse modo, o preço da terra é definido segundo a localização dos terrenos, que, embora com dimensões semelhantes, possuem preços diferentes. Essa diferenciação proporciona ao dono da terra uma renda extra, propiciada pela produção social.

Diante dessa realidade, o preço da terra, enquanto mercadoria sem valor constitui uma renda, ou seja, parte do valor de troca, que se destina ao proprietário. A renda constitui um tributo que se paga ao proprietário da terra e que resulta do monopólio da terra por uma classe ou fração de classe.

Assim sendo, solucionar o problema da moradia no Brasil, ou em qualquer país de economia capitalista subdesenvolvida, não é uma tarefa fácil. Isso porque, no mundo capitalista, a terra, mesmo não sendo uma mercadoria produzida socialmente, tem um preço e confere ao seu dono o direito de auferir uma renda por posse. Assim, para se produzir uma casa para morar, é necessário, antes de tudo, que se tenha a propriedade do solo.  Não pode ser ignorado que, em virtude da sua condição de mercadoria, a terra passa a ser monopolizada por aqueles que têm dinheiro para comprá-la.

Produção social e apropriação individual

Pensando no processo de produção do espaço urbano, devemos pensar também nos agentes da produção desse espaço, que segundo Correa (1989), são os seguintes: os proprietários fundiários, os promotores imobiliários e o Estado. Este último se constitui em um dos agentes mais importantes desse processo, uma vez que promove a distribuição e a gestão dos equipamentos de consumo coletivos que são indispensáveis à reprodução da vida nas cidades, especialmente nas grandes cidades. A produção da cidade se dá de forma social. Ao contrário, a sua apropriação acontece de forma individual. E o poder político é chamado para exercer um papel extremamente ativo nessa produção.

No processo de produção do espaço urbano, os promotores colocam à venda os loteamentos, os quais normalmente possuem pouca ou nenhuma infra-estrutura, isso significa que, de várias formas, os compradores se organizam e lutam para obter equipamentos e serviços coletivos, como asfalto, transporte, luz, água, escolas, creches, posto de saúde, dentre outros, beneficiando, sem dúvida, aqueles que estão produzindo seu espaço, mas beneficiam sobretudo aqueles que deixaram as terras vazias aguardando a valorização.

Agindo assim, o Estado Brasileiro tem se constituído num especial produtor e consumidor do espaço, através de investimentos e implementação de infra-estruturas urbanas, criando mecanismos de créditos para financiamento de habitações e estabelecendo normas regulamentares do uso do solo. A nosso ver, não se pode negar que a atuação do Estado acontece de forma conflitante, uma vez que sua intervenção sempre está a privilegiar as classes mais favorecidas, o que reforça a sua participação no “processo de acumulação, funcionando como elemento de valorização do capital” (Mello, apud França, 1997, p1).

A intervenção do Estado Brasileiro, no que se refere à habitação, pode ser vista a partir das seguintes ações:

a) na década de 30 o Estado Brasileiro assume a responsabilidade da produção e oferta de casas populares, com a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadorias e Pensões - IAPs - , sendo o atendimento dispensado, principalmente, aos associados.

b) em 1964, ocorreram as criações do BNH, extinto em 1996 e do Serfhau. Esses órgãos tinham por pressuposto dar conta da política habitacional brasileira, perseguindo os seguintes objetivos: coordenar a política habitacional dos órgãos públicos; orientar a iniciativa privada, estimulando a construção de moradias populares; financiar a aquisição da casa própria, propiciando a melhoria do padrão habitacional do ambiente; eliminar as favelas; aumentar o investimento da indústria de construção civil e estimular a poupança privada e o investimento (Rodrigues, 1988).

A ação do BNH não se limitou apenas à habitação; atuou, também, no setor de desenvolvimento urbano, sendo considerado como um dos mais expressivos agentes financeiros do processo de desenvolvimento urbano. Esse banco financiou obras de infra-estrutura urbana: melhorou o sistema viário e pavimentou das cidades; bem como aperfeiçoou a rede de energia elétrica, de transportes e de comunicação, incentivou a educação e a cultura, melhorou os serviços públicos dentre outros. Podemos, então, afirmar que o BNH foi um dos importantes promotores das transformações urbanas no Brasil.

O Sistema Financeiro de Habitação - SFH -, gerenciado pelo BNH, foi de fato um instrumento oficial através do qual se estabeleceram as condições para a capitalização das empresas ligadas à construção civil, além de permitir a estruturação de uma rede de agentes financeiros privados, realizando, assim, o financiamento da produção.

Fica claro, para nós, diante dessas informações, que, até os idos de 1960, não existia uma política urbana nacional; o que existia até então se resumia a políticas urbanas aplicadas em áreas territoriais específicas, como é o caso do planejamento urbano implementado em Belo Horizonte. Porém, para muitos estudiosos da questão, a primeira fase do planejamento urbano brasileiro se dá paralelamente à atuação do Serfhau, que tinha por meta básica promover a elaboração e a implantação de planos de desenvolvimento local e integrado, de acordo com o planejamento nacional e regional, e, ainda, colaborar com os governos municipais na execução do planejamento local e integrado, inclusive na organização de serviços de natureza municipal, assistindo-os em assuntos de seu interesse e realizar estudos relacionados com a radicação de população e as migrações internas.

A partir do final dos anos de 1960, podemos perceber uma atuação mais efetiva do Estado sobre o espaço urbano, com a criação de todo o aparato institucional voltado para a reprodução do espaço urbano.

A política habitacional tem que ser vista como uma forma encontrada pelo capital, sob a égide do Estado, de imprimir ao espaço urbano uma valorização. A ocorrência dessa política traz consigo o aumento em demasia do preço da terra e dos impostos. Desse modo, parte daqueles que lutaram por essa transformação, pela impossibilidade de pagar essas taxas, é empurrada para longe, para recomeçar a produção social da cidade em outro lugar e, mais uma vez, vai propiciar a expropriação de renda que é feita por uma pequena parcela da sociedade - na qual a grande massa da população não está incluída - os incorporadores imobiliários, isto é, as empresas que, individualmente ou associadas aos proprietários de terra, devem lotear glebas para o uso habitacional, obedecendo, portanto, à legislação em vigor. No entanto nem sempre os loteamentos são efetuados por tais empresas.  Em diversas ocasiões, parte da população, que fora excluída não apenas do processo de moradia mas de diversos outros processos, produz a cidade de maneira clandestina, sendo a  autoconstrução a alternativa encontrada para suprir a demanda pela moradia.

A autoconstrução é um processo bastante demorado, uma vez que acontece a partir da utilização do tempo livre da família, a saber: os finais de semana e os períodos de férias. Assim, o ritmo da autoconstrução segue o ritmo do tempo livre do trabalhador, bem como a disponibilidade de dinheiro dos integrantes do grupo familiar. Normalmente, é feito um financiamento em um dos depósitos de material de construção existentes no próprio bairro. Os recursos utilizados na autoconstrução são resultantes dos extras do grupo familiar, como o terço de férias e o décimo terceiro salário.

Desse modo, o sobretrabalho é um elemento de grande significado no processo de autoconstrução, contribuindo para que a moradia não faça parte do cômputo do salário. Ou seja, essa realidade nos mostra que “o tempo de trabalho para auto construir não é calculado monetariamente, não entra no cômputo do salário, mas faz parte do tempo de trabalho necessário para a garantia de abrigo, faz parte do tempo de descanso que é usado para o trabalho e também do desgaste do trabalhador, e da super-exploração da força de trabalho.” (Rodrigues, 1988, p.32).  A autoconstrução é considerada viável, já que nela não contam os custos de mão-de-obra assumidos pelo trabalhador.

Fica patente que a autoconstrução tem sido uma alternativa freqüentemente utilizada pelo trabalhador, como forma de “resolver” um dos mais cruciais problemas familiares, que é ter onde morar. “Ao produzir casas em lugares sem infra-estrutura alguma e com um sobre-trabalho individual, a autoconstrução reproduz as condições gerais de reprodução do espaço urbano, definindo e redefinindo o lugar de cada um na cidade” (Rodrigues, 1988, p.34). O que mais nos chama a atenção é o fato de que o próprio Estado Brasileiro tem sido um incentivador da autoconstrução, através da implementação de programas, tais como: João de Barro, Aliança para o progresso, Multirão-autoconstrução.

Desse modo, emergem, com grande intensidade, as chamadas áreas clandestinas, onde predominam as favelas, os cortiços e as vilas, que não oferecem condições dignas de moradia a uma boa parcela da população.

A política habitacional desencadeada a partir dos anos de 1960 contou com recursos oriundos da Caderneta de Poupança, e dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviços (FGTS).

Nos primeiros anos de atuação do BNH, a política habitacional foi direcionada para atender à demanda das classes menos favorecidas. Por volta do ano de 1975, os segmentos populares foram relegados a um segundo plano, pois a política habitacional direcionou os programas habitacionais existentes para atender à classe média. Desse modo, ficou evidente que a quantidade de moradias, inserida na proposta do Estado de atendimento ao interesse social não correspondeu às expectativas.

No intervalo temporal de 1970 a 1980, os recursos do BNH ficaram escassos, tendo em vista, principalmente, a inadimplência dos mutuários já contemplados com a casa própria e a diminuição dos recursos oriundos do FGTS, mediante o aumento do desemprego e a retirada dos fundos por parte dos trabalhadores que ficaram desempregados. A partir de 1986, quando ocorreu a extinção do BNH, a Caixa Econômica Federal ficou com a atribuição de desenvolver a política habitacional do país.

Desde 1980, que, no Brasil, 68,6% da população, segundo dados da Fundação IBGE moram na cidade. Esse fato, cada vez mais exige uma ação positiva do Estado no ato da construção da moradia. Dessa forma, o Estado Brasileiro, ao promover a distribuição e gestão dos equipamentos de consumo coletivo, indispensáveis à reprodução da vida nas cidades - no caso particular, a moradia - tem contribuído, também, para a expansão urbana, criando condições favoráveis para que outros setores da sociedade ligados diretamente ao capital se reproduziam. É o caso das empresas de transportes, empreiteiras etc.

Com a extinção do BNH, o sistema habitacional brasileiro passou a vivenciar intensas crises, que resultaram num alto endividamento desse sistema, sem falar na incapacidade de implementação de novos projetos. As crises tiveram sua origem na inadimplência dos mutuários, tendo em vista o aumento crescente das prestações, que não era acompanhado pela política salarial. Nesse contexto, houve uma paralisação na dinâmica da política habitacional, ficando esta limitada a secretarias e ministérios criados ao longo de vários governos.

Com a elaboração da Constituição de 1988, a sociedade brasileira passou a contar com um respaldo legal importante no trato do planejamento e gestão urbanos, o capítulo da política urbana, principalmente através dos artigos 182 e 183, que estabelecem a gestão da política urbana brasileira. Mesmo assim, não se garantiu a efetiva justiça social e a gestão democrática nas cidades brasileiras.

No governo de Collor de Melo, nos anos de 1990, com o confisco das Cadernetas de Poupança, deu-se a estagnação na poupança e no FGTS, comprometendo severamente a política habitacional do Brasil. Por seu turno, o Estado reduziu sua participação no mercado de terras, o que dificultou, ainda mais, o acesso das classes menos aquinhoadas à moradia. Isso porque a especulação imobiliária, que ocorreu graças ao monopólio fundiário, constituiu-se no principal fator gerador da crise habitacional. A ausência do Estado acentuou-se cada vez mais, tendo em vista que o acesso à terra passou a ter como referência tão somente as leis de  mercado.

No final dos anos de 1990, o governo brasileiro criou o Programa Carta de Crédito, que tem proporcionado o financiamento de construção sob a forma associativa, propiciando uma nova maneira de morar, na qual as pessoas são agrupadas e coordenadas por entidades organizadas, que constroem os conjuntos habitacionais e condomínios fechados.

O financiamento individual ficou mantido na faixa de doze salários mínimos, com tratamento diferenciado para os mutuários com renda familiar de até seis salários mínimos, sob o discurso da redistribuição de renda. Com relação à taxa de juros praticados pelo Programa, variava de 3% a 9%, de acordo com as diferentes faixas de renda.

Um exemplo da política habitacional aliada ao processo de urbanização em cidade média: o caso de Natal

Natal, como as demais cidades médias brasileiras, apresentou intenso processo de urbanização, especificamente a partir da segunda metade do século XX. Em tal processo, a ação do Estado tem sido uma constante e ganhando expressividade a partir da dinâmica e dos recentes estágios do desenvolvimento capitalista nacional, considerando determinadas peculiaridades locais, o que confere ao crescimento dessa cidade uma identidade própria.

Podemos dizer que Natal passou a ter crescimento de forma mais significativa a partir da 2ª Guerra Mundial, quando foi instalada na cidade uma base aérea americana. Como decorrência, houve a demanda por habitação e, por conseguinte, um crescimento significativo do espaço urbano, fazendo emergir um processo de valorização fundiária.

Com a implementação da política habitacional, desencadeada após 1960, aconteceu, nessa localidade, uma expansão urbana dinâmica e bastante diversificada, propiciada pela expansão de atividades ligadas ao comércio e aos serviços. Emergiu, nesse contexto, uma das mais importantes atividades econômicas do Estado do Rio Grande do Norte, da atualidade, que é a atividade turística.

Em Natal, a exemplo das demais cidades do país, a política habitacional implementada promoveu a construção de grandes conjuntos habitacionais, localizados estrategicamente nas áreas periféricas da cidade. Essa localização proporcionou o surgimento de externalidades positivas para a expansão do capital, uma vez que, com a criação da infra-estrutura para atender a esses conjuntos, ocorreu a incorporação, ao mercado de terra urbano, de diversas áreas, até então desocupadas aumentando, assim, o perímetro urbano da cidade do Natal.

Mesmo por meio de políticas públicas e legislação que reforçam a exclusão e a segregação socioespacial da cidade, a política habitacional implementada foi importante no processo de expansão do espaço urbano, dado o fato de que, até o início dos anos de 1960, o perímetro urbano de Natal limitava-se praticamente aos bairros tradicionais, a saber: Cidade Alta, Alecrim, Quintas, Tirol e Santos Reis. A partir desse período, passam a ser construídos inúmeros conjuntos habitacionais, os quais vão dar uma nova alteração na dimensão espacial dessa cidade.

 O primeiro conjunto habitacional construído, além das vilas militares, foi o da Cidade da Esperança, edificado na década de 1960. Já na década de 1970, com a implantação do Distrito Industrial de Natal, situado em Igapó, a zona norte da cidade passou a ser contemplada com recursos da política habitacional vigente, sendo então construídos diversos conjuntos habitacionais. Esses conjuntos apresentam moradias com um padrão arquitetônico de qualidade mais simples, já que o propósito era atender a uma demanda da classe trabalhadora da área industrial do Estado. Mas não foi somente a zona norte a área contemplada com o surgimento de conjuntos habitacionais. Alguns também foram construídos nas demais zonas da cidade, destacando-se os da Zona Sul, Candelária, Ponta Negra, Potilândia, Mirassol e Cidade Satélite. A diferença nesses conjuntos edificados está nas condições socioeconômicas das populações residentes em relação às das demais áreas.

Observando a localização de tais conjuntos, podemos fazer algumas inferências importantes e significativas. Todos eles foram construídos em áreas distantes do centro da cidade, criando assim, as externalidades urbanas.  Desse modo ao serem construídos em áreas periféricas da cidade, eles contribuíram para aumentar o perímetro urbano da cidade, a partir da incorporação de novos terrenos urbanos, que ficaram “disponíveis” para o mercado de terras.

Com a construção desses conjuntos habitacionais, expandiu-se a infra-estrutura urbana indispensável: telefonia, coleta de lixo, água e luz. Isto é, o Estado financiou toda a infra-estrutura dessas áreas, valorizando, assim, os terrenos desses novos espaços urbanos construídos, os quais passaram a se constituir em áreas de solo urbano mais caro da cidade. Assim, ao serem criadas as áreas de externalidades, os espaços que ficaram desocupados entre os conjuntos e áreas ditas centrais passaram a ser ocupadas com estabelecimentos comerciais e de serviços, além de residências de alto padrão de construção, destinadas às populações de maior poder aquisitivo.

Como visto, a expansão urbana está, até certo ponto, vinculada à especulação imobiliária, que é praticada de forma bastante diferenciada. Normalmente, são vendidos, em primeiro lugar, os lotes de pior localização. A partir da ocupação do loteamento as outras áreas circunvizinhas vão sendo colocadas à venda e, nesse caso, com um valor agregado, referente ao espaço até então já construído.

Outro aspecto a ser considerado são as áreas que, estrategicamente, são deixadas desocupadas para fins de instalação de serviços e comércio, ou mesmo de conjuntos comerciais. Em Natal, isso se tornou cada vez mais evidente, uma vez que a construção dos conjuntos habitacionais da zona sul da cidade, como Ponta Negra, Candelária, Pirangi, Mirassol, Potilândia, Neópolis, Cidade Satélite, produziu inúmeros espaços vazios, que, posteriormente, foram ocupados com atividades importantes ligadas ao comércio e à prestação de serviços.

A produção de habitações em Natal foi também a produção da cidade. A partir da construção da casa, com sua diversidade e heterogeneidade, uma nova paisagem passou a emergir e, por conseguinte, as contradições da produção do espaço urbano na sociedade capitalista passaram a ter uma maior visibilidade. Estamos nos referindo à produção das áreas segregadas, que são ocupadas pela população excluída do processo produtivo. Ou seja, a política habitacional implementada pelo Estado Brasileiro, ao mesmo tempo que propiciou a moradia para uns, propiciou renda para outros e também segregou outros. Estamos pensando nos condomínios fechados, que proliferam nas franjas geográficas da cidade, como é caso do Green Village e tantos outros. São essas, portanto, as diversas faces dessa política.

Para não concluir

Eis uma indicação importante para continuar a reflexão: existe realmente uma política habitacional no Brasil? Parece-nos que esta é uma primeira questão a fazermos, no sentido de que não deixemos de lado o estudo de uma problemática tão grave, que aflige milhões de brasileiros que não têm onde morar ou que, quando encontram esse lugar, ele está situado em áreas de riscos ou em áreas impróprias à construção de moradias. Constantemente, recebemos em nossas casas, através dos noticiários da televisão, a informação de que inúmeras pessoas estão desabrigadas em virtude de desabamento de morros ou transbordamento de rios, ou nos deparamos com a presença, cada vez mais acentuada, dos espaços de segregação sócioespacial das cidades: suntuosos edifícios, condomínios fechados, ao lado de favelas, cortiços e mocambos, um verdadeiro espraiamento da perversão socioespacial das cidades neste limiar de século.

Isso retrata as péssimas condições em que boa parte da população das grandes e médias cidades brasileiras vive. Na sociedade o preço do solo urbano torna-se cada vez mais raro e, ao mesmo tempo, mais caro. A conjugação dessas duas condições leva as pessoas de menor poder aquisitivo a ocupar áreas de riscos e insalubres.

Portanto, tendo em vista que, para ter acesso à casa, é necessário pagar juros, taxa de administração e de crédito, seguros por morte, invalidez, danos físicos do imóvel, correção monetária, a grande maioria dos cidadãos brasileiros não conta com uma política habitacional. A nosso ver, isso reduz a acumulação capitalista, pois é através da compra da casa própria que os trabalhadores geram lucros para os bancos e seguradoras e, ainda, para as empreiteiras, contribuindo, dessa forma, para a reprodução do capital, o que não vem ocorrendo, diante das dificuldades de acesso dos mais pobres à habitação.

Nesse contexto, o papel do Estado tem sido o de gestor e intermediário do capital financeiro, ultimamente andando contíguo ao capital imobiliário, assim como à indústria da construção civil. É desse modo que o espaço urbano vem sendo construído, através de uma articulação entre o capital e o Estado, a qual privilegia as classes mais bem aquinhoadas, deixando à mercê grande parcela da população pobre, uma vez que apenas um número ínfimo dessa população tem tido acesso ao crédito da casa própria, restando-lhe a alternativa da cidade clandestina, ilegal, que se reproduz pela favela, pelos cortiços, pela ocupação de áreas de riscos, etc.

Embora o BNH tenha sido extinto, o Estado Brasileiro se reestruturou no sentido da promoção de política pública habitacional, dessa vez sem os princípios de um Estado de bem-estar social ou assistencialista, como muitos o chamam. O Estado continuou a exercer um papel importante, assumindo a condição de intermediador de recursos entre o poder público e a iniciativa privada, no que se refere aos programas habitacionais. Houve, a partir desse momento, o surgimento de novos programas com base nos empreendimentos associativos, condomínios fechados, ou mesmo habitações isoladas, muito embora, na sua maioria, por meio de financiamentos ou de autofinanciamento de longa duração, através dos bancos, excluindo muitos cidadãos brasileiros.

Como exemplos, Natal teve sua reprodução espacial edificada, a partir do encaminhamento das políticas habitacionais vigentes no intervalo de 1960 a 1980. Dos anos de 1990 em diante, a (re)construção espacial da cidade passou a contar com a construção de condomínios fechados, de apartamentos e casas. Estes são produzidos com a intervenção de firmas construtoras. Possuem, como característica principal, a homogeneidade das edificações e do padrão de renda das famílias previamente escolhidas. Também se apropriam do espaço que seria público e expressam um modo de vida próprio. Os condomínios fechados são, na realidade, guetos locais, onde a classe média passa a viver confinada.

Atualmente, uma das áreas mais dinâmicas, no que se refere a construção e atuação da política habitacional, é a região que está numa das faixas de transição entre os municípios de Natal e Parnamirim. Ocorre, portanto, um novo momento de crescimento da cidade. No dizer de Singer (1978), o crescimento urbano implica a reestruturação do uso das áreas já ocupadas. Assim sendo, podemos dizer que esse crescimento acontece graças ao adensamento da área originalmente ocupada, ao aumento, intensificação e demanda dos serviços, como também, à ampliação do solo ocupado, tendo em vista a incorporação de novas terras que até então faziam parte da área rural. Nesse caso, há também a necessidade de aumentar a oferta de serviços.

O estudo sinalizou para o fato de que a política habitacional brasileira não atendeu, na íntegra, a seu objetivo maior, isto é o de solucionar o problema da moradia para a população carente, mas viabilizou a expansão capitalista nas áreas urbanas, definindo um mercado urbano de terras, segregando áreas e valorizando-as. Desse modo, o espaço urbano vai sendo (re)construído, concretizando o rápido processo de urbanização vivenciado nas grandes e  médias cidades brasileiras. Natal é um exemplo dessa realidade.

Nessa reta final da reflexão, estamos pensando que o processo de urbanização, em certa medida impulsionado pelas políticas habitacionais implementadas pelo poder público brasileiro, contribui para melhorar as condições de vida da população. Isso é inegável, se levarmos em conta alguns indicadores sociais, como a mortalidade infantil e a esperança de vida ao nascer. Entrementes, não podemos afirmar que a vida da população do país melhorou, de um modo geral, e que tal melhora está ligada a esse processo. A evolução de outros indicadores socioeconômicos e urbanísticos evidencia contradições socioespaciais nas cidades brasileiras. Somente a persistência na investigação científica levar-nos-á a conclusões mais definitivas; por isso vamos persistir.


Bibliografia

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CORREA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Atica, 1989.

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© Copyright Rita de Cássia da Conceição Gomes, Anieres Barbosa da Silva y Valdenildo Pedro da Silva, 2003
© Copyright Scripta Nova, 2003

 

Ficha bibliográfica:
GOMES, R. C. C., SILVA, A. B., SILVA, V. P.
Política habitacional e urbanização no Brasil. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(083). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(083).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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