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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(085), 1 de agosto de 2003

COOPERATIVAS HABITACIONAIS: DO SOCIAL AO MERCADO

Angela L. A. Ferreira
Maria Cristina de Morais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - RN, Brasil


Cooperativas Habitacionais: do Social ao Mercado (Resumo)

Com a retirada do Estado na promoção da moradia através de cooperativas – sistema BNH/INOCOOPs –, surgiu no Brasil, início da década de 1990, uma nova modalidade de cooperativa habitacional, em um contexto de profunda regressão do financiamento público e agravamento do déficit habitacional. Desse modo, a produção cooperativada da moradia através do sistema de autofinanciamento emerge como uma alternativa para atender os excluídos dos mercados imobiliários tradicionais e da provisão pública, tendo como objetivo proporcionar aos associados o acesso à casa própria a preço de custo. Nos últimos anos, em decorrência do agravamento das restrições aos empréstimos bancários e financiamento estatal, a classe média tem encontrado nas cooperativas habitacionais autofinanciadas, a saída para a aquisição da casa própria. Portanto, se no passado estas cooperativas eram direcionadas para atender as famílias de média e baixa renda, mais recentemente, esse sistema cooperativado de produção da moradia vem privilegiando os segmentos de maior renda.

Palavras Chave: habitação social, produção cooperativada, mercado imobiliário.

Habitational cooperatives: from the social to the market (Abstract)

Government’s retreat in the dwelling promotion through cooperatives- BNH/INOCOOPs system -, fomented a new modality of habitational cooperative in Brazil at the beginning of the 1990`s, in a context of profound regression of public financing and aggravation of habitational deficit. Thus, the cooperative dwelling production through the self-financing system emerges as an option to support population excluded from traditional real state markets and from the public provision. Its objective is to provide to the associates the access to their own house for cost price. In the lasts years, due to the aggravation of restrictions to bank loans and state financing, the middle class has been finding in the self-financed habitational cooperatives the solution for the own house acquisition. Therefore, if in the past these cooperatives were directed to support the average and low income families, more recently, this cooperative system of dwelling production has been privileging larger income segments.

Key words: social habitation, cooperative production, real state market.

No final do ano de 2001, os meios de comunicação da cidade de Natal – nordeste do Brasil – alardearam, fazendo uso de estratégias de marketing, a criação de uma nova cooperativa habitacional adotando o sistema de autofinanciamento. A Cooperativa Norte-rio-grandense de Habitação – CNH cujo lançamento ocorreu por ocasião da realização do V Seminário Brasileiro das Cooperativas Habitacionais, de 26 a 27 de novembro, na cidade de Natal -, se propunha oferecer imóveis de médio e alto padrão nesta cidade.

Nada de novo no fato. Apenas demonstra que a produção cooperativada da moradia, através do autofinanciamento, continuava se constituindo uma alternativa viável para o mercado imobiliário enfrentar as dificuldades de obtenção de financiamento público e privado. Essa modalidade de cooperativa habitacional surgiu em Natal e vem se desenvolvendo desde então. São quatro sociedades cooperativas habitacionais operando na cidade de Natal e em dois municípios de sua Região Metropolitana em processo de cornubação.

O interesse por este tema, foi despertado tanto pelo peso da participação dessa produção no mercado imobiliário de Natal – que ultrapassou 30 por cento do total produzido em 1999 – como pela divulgação ostensiva promovida pelas sociedades cooperativas.

O objetivo deste trabalho é fazer uma síntese da contextualização desse fenômeno no Brasil, buscando abordar as seguintes questões: como as cooperativas habitacionais se inserem na política habitacional brasileira e no mercado imobiliário? e se as cooperativas habitacionais podem contribuir para o combate ao problema da falta de moradia no país?

Para apresentar os resultados desse processo investigatório, estruturou-se o artigo em cinco itens. O primeiro expõe, sinteticamente, a questão habitacional brasileira, situando as várias dimensões do problema do déficit habitacional. Em seguida, é abordado a relação das cooperativas habitacionais com a política habitacional. O terceiro item trabalha a mais recente modalidade de produção cooperativada da moradia – as denominadas cooperativas habitacionais autofinanciadas. Na seqüência são apresentadas considerações sobre a legislação cooperativista, destacando a sua implicação no desenvolvimento do sistema. Por último, são explicitadas considerações que situam as cooperativas habitacionais no contexto do mercado imobiliário. Buscou-se, de forma breve e quando pertinente, mencionar no artigo algumas considerações sobre a experiência recente das cooperativas habitacionais na Espanha, em especial na Catalunha.

Vale registrar que este sistema de produção cooperativada da moradia, embora seja uma presença marcante no mercado imobiliário brasileiro, não está sendo objeto de pesquisa e discussão mais aprofundada da comunidade acadêmica.

A questão habitacional no Brasil

No Brasil, historicamente, o financiamento habitacional público, apesar de ter sido dirigido formalmente à população de renda média-baixa, na prática, atendeu segmentos de maior renda com condições de acesso à moradia. Isto é extensivo inclusive ao período de 1964 a 1986, quando a ditadura militar, procurando enfrentar o gigantesco déficit habitacional e garantir a legitimidade ao Estado ditador e repressivo, promoveu a produção em massa de habitação. Assim, se por um lado a produção de moradia para o mercado esteve sempre direcionada ao longo da história, para os setores de maior renda, por outro o Estado brasileiro não consegue suprir a demanda por habitação popular ou de interesse social.

O déficit habitacional brasileiro expressa o acima exposto. Os dados considerados oficialmente, oriundos de estudos realizados pela Fundação João Pinheiro sob encomenda da Presidência da República brasileira e do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, mostram que o déficit quantitativo presente em 1991 era de 5.374.380 milhões de unidades habitacionais, 3.743.594 milhões no meio urbano e 1.630.786 milhões na zona rural. Ao utilizar como critério a renda, 3,4 milhões de unidades habitacionais, que representam 85 por cento do déficit total, eram demandadas por famílias com renda mensal de até 5 salários mínimos, sendo cerca de 35 por cento no grupo com rendimentos até 2 salários mínimos e quase 30 por cento na faixa de 2 a 5 salários mínimos.

Esse mesmo estudo, com base no Censo Demográfico de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, demonstra que o problema da falta de moradia agravou-se entre os anos de 1991 a 2000. Houve um incremento absoluto do déficit habitacional neste período, constatando-se em 2000 a carência de 6.656.526 novas moradias, o que significa um acréscimo de 21,7 por cento no período considerado, a uma taxa de crescimento de 2,2 por cento ao ano. Bragon (2002) alerta que esta carência de unidades habitacionais no país, atinge diretamente 20,2 milhões de pessoas, o que representa 11,9 por cento do total da população brasileira. O maior índice de falta de domicílios é registrado nas regiões urbanas, 81,4 por cento. A maior incidência do déficit habitacional ocorre em áreas urbanas, 81,3 por cento. A região Nordeste lidera os números com 39,53 por cento. Se relacionado com as faixas de renda familiar, há 4.410.385 famílias urbanas no Brasil com renda familiar mensal inferior a 3 salários mínimos que se encontram em situação de déficit habitacional, sem condições econômicas de solucioná-la pelos mecanismos atuais de produção de moradia, tanto no setor público como no privado.

O quadro é mais grave e complexo ao se considerar o déficit habitacional qualitativo, no qual se considera a inadequação da moradia, a partir de parâmetros como densidade excessiva de moradores por dormitório, carência e precariedade de serviços urbanos (abastecimento de água, esgotamento sanitário, energia elétrica e coleta de lixo), renda familiar e inadequação fundiária urbana.

Esse déficit habitacional vem se evidenciando, principalmente após a extinção do Banco Nacional de Habitação – BNH, em 1986, e a drástica redução do financiamento estatal com forte impacto na promoção de habitação de interesse social. No entanto fica evidenciado que a atuação do Estado brasileiro no enfrentamento da questão da moradia a partir da última década do século XX, longe de atenuar os problemas nessa área, acentuou as contradições entre o capital e o trabalho, tendo em vista o encarecimento do produto – a habitação – e o empobrecimento da população.

Essas contradições se exacerbam, principalmente a partir de meados dos anos 80. A inserção do Brasil no mundo globalizado, no início dos anos 90, ocorre de forma subordinada e submissa com impacto nos centros urbanos. O Estado se desobriga, cada vez mais, do provimento de serviços públicos essenciais. Os reflexos desse processo despontam desnudando os abismos impostos pela livre escolha de mercado, preconizando a total liberdade de seleção e exclusão de regiões, países, cidades, a fim de viabilizar as novas formas de acumulação de capital. A busca desenfreada da lucratividade e da maior rentabilidade do capital pioram as condições sócioeconômicas com reflexos no cotidiano dos segmentos menos favorecidos da população.

Desse modo, o problema habitacional está inserido numa questão social mais acentuada e de caráter amplo e abrangente: o da não-efetivação das diversas políticas sociais, o que oportuniza a concretização das desigualdades, das contradições e da exclusão expressas na negação dos direitos sociais em todas as esferas. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Aplicada – IPEA, publicado em 2001, 53 milhões de pessoas no Brasil – 34 por cento da população – estão abaixo da linha de pobreza. Destas, 23 milhões estão na situação definida como de indigência ou de miséria, o que representa 14,5 por cento da população.

Nesse contexto, a garantia da habitação não se restringe unicamente ao espaço físico para morar. Abrange a efetivação da cidadania com o acesso a serviços de consumo coletivo, a equipamentos públicos (água tratada, energia, escola, hospital transporte, segurança, lazer, saneamento) e ao mercado de trabalho, como condição essencial ao combate da exclusão sócioespacial.

Como conseqüência do término do BNH e da falta de financiamento estatal, surge, no final da década de 1980, uma nova fase na produção de moradia, mas nem sempre beneficiando segmentos populares ao não promover o acesso à habitação de interesse social. A crise no Sistema Financeiro de Habitação – SFH levou os promotores a empreenderem outras modalidades de promoção da moradia a partir do financiamento com recursos próprios das empresas promotoras ou dos usuários. É neste contexto que as cooperativas habitacionais autofinanciadas surgem e vêm se desenvolvendo, a partir dos primeiros anos da década de 1990, como uma das formas de produção da moradia e uma possibilidade de amenizar o problema habitacional brasileiro de uma parcela da população que "parece" excluída do mercado elitizado e dos escassos programas estatais. Esta nova modalidade de cooperativa habitacional, onde a produção da moradia é concretizada através da antecipação dos recursos dos usuários e buscando a redução de preços para propiciar o acesso à casa própria, se expandiu pelo território brasileiro operando em 19 estados.

O aparecimento dessa outra forma de produção cooperativada da moradia marca, também, o momento em que o Estado brasileiro se retira do papel de gerenciador das cooperativas habitacionais surgidas institucionalmente em 1966 sob outra modalidade, como se verá a seguir.

Como parte de um dos programas do BNH e do Plano Nacional de Habitação, essas cooperativas habitacionais, criadas em 1966, tinham, através do SFH, o objetivo de "proporcionar a aquisição da casa própria a preço de custo". Estas cooperativas proliferaram por todo o Brasil, perdendo vitalidade com a redução e mesmo a extinção do financiamento estatal.

No entanto, esse conjunto de ações não propiciou o resultado esperado, persistindo no Brasil a crise habitacional com grande parte sua população vivendo em condições precárias (favelas, barracos, cortiços, entre outros), apesar de iniciativas governamentais ao longo da história no trato com a questão. Intervenções estas repletas de boas intenções ao nível da retórica, mas esvaziadas na prática objetiva de promover o acesso à moradia.

A política habitacional e as cooperativas

A fim de combater as sucessivas crises no setor da habitação, o poder público brasileiro vem, desde o final do século XIX aos dias atuais, atuando das mais diversas formas e com níveis diferenciados de alcance social.

Uma das formas que desperta interesse e atenção, é a produção cooperativada de habitação, que surge institucionalmente, no Brasil, em 1964, com a criação do Banco Nacional de Habitação –BNH e do Sistema Financeiro da Habitação – SFH, através da lei Nº 4.380, de 21 de agosto de 1964. Investido nas funções de órgão central dos sistemas financeiros da habitação e do saneamento, o BNH tinha entre suas atribuições, orientar, disciplinar e controlar o SFH, objetivando a produção e aquisição da moradia, em especial pela população de menor renda. Nesse momento foi introduzido como inovação à política habitacional de governos anteriores a incidência da correção monetária para reajuste dos empréstimos como forma de garantir a sustentabilidade, ou melhor a "rentabilidade" do sistema. Fator bastante questionado face o caráter social da proposta. Assim, o BNH "constitui um sistema em que se buscava articular o setor público (na função de financiador principal) com o setor privado, a quem compete, em última análise, a execução da política de habitação" (Azevedo e Andrade, 1982, p. 61).

Sob a direção do BNH é implementada uma política habitacional de abrangência nacional que tinha como principal fonte de recursos financeiros o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (Lei Nº 5.107/1966). Instituído como fundo indenizatório para demissão, o FGTS é formado por poupança compulsória, equivalente a 8 por cento do salário do empregado. Uma outra fonte com que contava o SFH era proveniente dos recursos da poupança voluntária, constituída de letras imobiliárias e das cadernetas de poupança captadas pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE. Enquanto os recursos do FGTS se destinavam para os mercados "popular" e "econômico", os do SBPE eram direcionados para o mercado "médio".

No que se refere à produção cooperada da moradia, o Plano Nacional de Habitação (Lei Nº 4.380/64) criou o Programa de Cooperativas Habitacionais direcionado, inicialmente, para atender os trabalhadores sindicalizados que compunham o mercado "econômico". Exigência que foi, posteriormente, abolida. Como uma das metas prioritárias da política habitacional, para a sua viabilização foi montada uma estrutura cooperativista. O Decreto Nº 58.377, de 9 de maio de 1966, cria o Plano de Financiamento de Cooperativas Operárias e determina que o BNH preste assistência às cooperativas habitacionais através dos Institutos de Orientação às Cooperativas Habitacionais – INOCOOPs, criados na ocasião (1966) para coordenar a estrutura cooperativista. O caráter tutelar do Estado brasileiro em relação ao sistema de cooperativas e, especificamente em relação às cooperativas habitacionais, está patente no Decreto-Lei Nº 59/66 ao destacar a competência normativa do BNH sobre as mesmas: "conceder autorização ou cancelá-la, baixar e ampliar normas disciplinadoras da constituição, funcionamento e fiscalização, além de fixar e aplicar penalidades e definir os casos de intervenção" (Bucci, 1994, apud Castro, 1999, p. 88).

Os INOCOOPs (entidades com caráter de Sociedade Civil sem fins lucrativos e regulamentados pelas Resoluções 68/66 e 95/66, ambas do BHN, foram instalados nos estados e tinham como atribuições prestarem assessoria técnica e política com a finalidade de orientar as Cooperativas Habitacionais, em todas as operações necessárias para a produção e aquisição da moradia.

As Cooperativas Habitacionais, formadas basicamente por categorias profissionais, trabalharam, inicialmente, com recursos de fontes públicas e sem intermediação de agente financeiro e atendiam o chamado mercado "econômico" – composto inicialmente por famílias com renda de 3 a 6 salários mínimos, limite este mais tarde estendido. Enquanto agentes promotores "atuavam" em consonância com os princípios do cooperativismo e, como foi mencionado, tinham como objetivo proporcionar a aquisição da casa própria a preço de custo.

No entanto, essas cooperativas habitacionais, criadas pelo BNH/SFH, apresentaram problemas de diversas ordens. Castro (1999) ao abordar esta matéria coloca que, embora as Cooperativas Habitacionais fossem sociedades civis sem fins lucrativos, o dirigismo estatal as subordinou. Elas não se desenvolviam senão com autorização e tutela do Estado. Acrescenta, ainda, que atuavam como meras delegadas do BNH e INOCOOPs além, de sofrerem a "interferência dos interesses de frações especializadas do capital que atuam na produção imobiliária" (Castro, 1999, p. 89).

Na mesma direção, Silva (1992) acrescenta vários problemas. Afirma que as alterações introduzidas no Programa de Cooperativas Habitacionais acarretaram, a partir de meados da década de 1970, a total descaracterização da proposta inicial. Foram modificados, entre outros, os critérios de acesso às Cooperativas Habitacionais, prazos de execução da obras, faixa de renda mínima familiar exigida, além de ser introduzida em 1972 (RC 04/72 do BNH) a figura do agente financeiro (Silva,1992). A falta de participação dos cooperados no processo decisório contribuiu para atestar o caráter formal e burocrático a que foram reduzidas as Cooperativas Habitacionais.

Quanto a participação, em termo quantitativo, das Cooperativas Habitacionais na produção da moradia promovida pelo BNH/SFH, no período de 1964 a 1984 foram concedidos 487.471 financiamentos através das mesmas, representando 11,3 por cento do total contratado pelo SFH. Sobre estes dados, Castro (1999, p. 95) acrescenta que 60 por cento desta produção ocorreram entre 1976 e 1982, período em que as Cooperativas Habitacionais perdem seu caráter social. Aliás, Silva (1992, p. 116) reforça este fato ao colocar que se na década de 60 (a partir de 1964) as Cooperativas Habitacionais atuavam mais próximas aos interesses dos trabalhadores sindicalizados e com um cunho "social" (grifo do autor), a partir de meados de 70, os empreendimentos das cooperativas eram mais amoldados aos mecanismos de mercado, chegando a uma completa descaracterização da proposta inicial.

O Programa de Cooperativas Habitacionais começa a refluir nos anos 80 com a crise do financiamento público, que culminou com extinção do BNH em 1986. Mesmo assim, as Cooperativas Habitacionais permaneceram vinculadas, em sua quase totalidade, ao modelo desenvolvido sob a égide do BNH, apesar da Constituição Federal de 1988 ter conferido autonomia à cooperativas perante o Estado.

As cooperativas habitacionais perdem expressão e, em 1993 deixam de fazer parte do corpo de agentes financeiros do SFH através da Instrução Nº 1980/93 do Banco Central. No entanto, ao perderem recursos do FGTS, as Cooperativas Habitacionais deixaram de estar sob o controle e a fiscalização do Estado como agente financeiro.

Ao se fazer uma breve analogia com o que ocorreu na Espanha, em particular na história recente das cooperativas habitacionais da Catalunha, González (2001) coloca que

Es a finales de los anos 80 cuando se detecta la presencia de una actividad cooperativa en el mercado inmobiliario en generl. La puesta en marcha del Plan Plurianual de Viviendas 1.992-1995, el plan de las 400.000 viviendas, implicó un fuerte impulso a las cooperativas de vivienda, sobretodo a aquellas que estaban amparadas en el marco de las organizaciones sindicales. (González, 2001, p.19).

Esse mesmo autor acrescenta que os convênios firmados entre as organizações sindicais e as administrações públicas expandiram a atividade cooperativa, limitando a iniciativa privada. A iniciativa dos sindicatos no sentido de incorporar em suas ações um projeto cooperativo para facilitar o acesso dos trabalhadores à habitação, foi decorrente do impulso dado pelo 4rt Congrés de la Comissió Obrera Nacional da Catalunya (Habitatge Entorn, 1999, p. 9).

Quanto a política pública para produção cooperativada de moradia, González (2001, p.11) coloca que este sistema

presupone la dedicación de la actividad al segmento del mercado inmobiliario en el que se sitúa la demanda potencial a la que las administraciones públicas destinan las ayudas y beneficios económicos, directamente a través de sus presupuestos. En otras palabras, es el segmento que corresponde a las viviendas protegidas dirigidas a las familias cuyos ingresos anuales no superan los 5,5 millones de pesetas.

Uma nova modalidade de cooperativa habitacional

A partir de 1990 o financiamento público de moradia sofreu drástica redução, além do alto custo para a aquisição da moradia no mercado das incorporações imobiliárias. A crise no sistema que acarretou inicialmente o arrefecimento da produção levou, por outro lado, o mercado a adotar o autofinanciamento para a produção da moradia com recursos dos usuários, através da criação de planos por promotores (privados) imobiliários ou por Cooperativas Habitacionais sob nova modalidade. Castro (1999, p. 99) afirma que

esta novidade no setor habitacional foi identificada como uma tendência de 'popularização' do mercado na década de 90, embora a forma de produção e circulação de moradia autofinanciada não fosse ainda acessível à grande maioria das famílias de baixos rendimentos.

Assim, em 1991, em meio ao colapso gerado pela quase total suspensão, pela Caixa Econômica Federal – CEF, dos financiamentos através de recursos do FGTS, surgiram, sob a égide da Associação Brasileira dos INOCOOPs – ABICOOP, as Cooperativas Habitacionais Autofinanciadas. Elas são criadas enquanto uma contrapartida à essa escassez de recursos e aos altos preços da moradia no mercado de incorporações, que se constituíam em obstáculo para a aquisição da casa própria pela população de menor renda. Assim, esse sistema cooperativado de produção e financiamento de moradia emergiu como solução para atender os excluídos dos mercados tradicionais e da provisão pública, organizando-se em um modelo diverso ao implantado pelo BNH/INOCOOPs. Dados do último Censo das Cooperativas Brasileiras de 1997, organizado pela Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB, demonstram que apenas 7,62 por cento das cooperativas habitacionais estabeleciam relações de parceria com o governo e instituições de financiamento.

Essa nova modalidade de Cooperativa Habitacional, centrada numa proposta de autofinanciamento, consiste na construção de imóveis, com a antecipação de recursos do próprio grupo de associados - dispensando o concurso da intermediação financeira - a custos operacionais e mediante um sistema solidário de caráter cooperativo. São abertas ao público em geral, mesmo que as organizações sindicais tenham desempenhado significativo papel na criação dessas cooperativas habitacionais, a partir da identificação das dificuldades que os trabalhadores de renda média e baixa tinham para aquisição da casa própria. Além das cooperativas classistas (não excluem a possibilidade de adesão de sócios que não pertençam à categoria) e das abertas ao público em geral, há também cooperativas criadas e geridas por empresas de assessoria técnica, como os antigos INOCOOPs que, ao serem privatizados, utilizaram a estrutura física e técnica do período anterior.

Um outro aspecto a ser destacado é que, ainda de acordo com o último Censo das Cooperativas Brasileiras - 1997, 46,0 por cento dos cooperados já possuíam casa própria, uma vez que esta condição não é um impeditivo para ser sócio da cooperativa, diferentemente do sistema BNH/INOCOOP.

Ao adotar os princípios do cooperativismo, as Cooperativas Habitacionais podem não operar como pólo privado de acumulação ou se articularem com objetivos não lucrativos. No entanto, Castro afirma que a inserção das Cooperativas Habitacionais "na estrutura econômica capitalista as obrigue a atuar dentro de parâmetros definidos pelo mercado" (2001, p. 1484). As empresas de assessoria técnica às Cooperativas Habitacionais tem responsabilidade sobre este fato, pois segundo, ainda, a autora, a mediação/atuação destas empresas pode transformar o caráter não mercantil da produção cooperativa (Castro, 2001).

É neste contexto que as cooperativas habitacionais autofinanciadas se desenvolvem, nos anos 90, expandido-se por todo o país como uma das formas de produção de moradia e uma possibilidade de amenizar o problema habitacional brasileiro para um determinado segmento social. No entanto, o público alvo das cooperativas habitacionais vem mudando, priorizando-se a classe média.

De acordo com Aoqui (2002), em 2001 as cooperativas habitacionais apresentaram um crescimento de 50 por cento ao se comparar com dados da Organização das Cooperativas Brasileiras de 1999, contrariando as previsões de que o sistema não voltaria a ter o fôlego que apresentou em meados de 1990, quando foram responsáveis "por quase metade dos lançamentos imobiliários no país, a maior parte de baixo padrão" (Aoqui, 2002, p. E 5). O incremento na produção imobiliária por este sistema se dá em decorrência das restrições que continuam a acontecer em relação aos empréstimos bancários e ao financiamento público, levando a classe média a utilizar as cooperativas habitacionais para viabilizar o acesso à casa própria.

Dados mais recentes confirmam a situação de cortes, cada vez maiores, no financiamento imobiliário. Em 2002, as várias modalidades de financiamento imobiliário tiveram um desempenho pior do que em 2001. De acordo com Informe Publicitário do SindusCon/ São Paulo – maior sindicato da indústria da construção civil no Brasil - houve redução de 27,5 por cento (dados até setembro de 2002) no número de moradias financiadas com recursos da Caderneta de Poupança (modalidade do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE). Em valores essa redução correspondeu a 12,4 por cento (Caem..., 2003, p. A-12). Nos recursos para crédito imobiliário da Caixa Econômica Federal, do FGTS, do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT e do Orçamento da União, a queda, até outubro de 2002, foi de 22 por cento. Acrescente-se a este quadro o fato de que os cortes ocorridos no Orçamento da União/2002, posterior ao período considerado, atingiram também o setor habitacional.

Por último, é importante salientar que o crescimento do ramo das cooperativas habitacionais vem ocorrendo em um contexto de fortalecimento do cooperativismo em geral no Brasil e com cenário propício à sua continuidade.

Ao se fazer um paralelo com a produção cooperativada da moradia na Espanha, de acordo com González, a regulamentação das condições de acesso ao financiamento estatal para a promoção de moradias populares através das cooperativas habitacionais, que se deu a partir do Real Decreto 2.028/1995 "es fruto de una coyuntura de profunda crisis del modelo cooperativo en toda a España, aún cuando en Cataluña su incidencia fue poco relevante...". (2001, p. 11).

Sobre o desempenho da ação cooperativa, na década de 1990, as atividades das cooperativas habitacionais na Catalunha demonstram a capacidade destas em facilitar a moradia para os seus cooperados, propiciando o acesso à moradia que em outras condições seria impossível (González, 2001).

A legislação cooperativista

A Constituição Federal, de 1988, no que diz respeito às cooperativas representa um avanço para o movimento cooperativista, ao garantir inclusive princípios cooperativistas tais como livre acesso e adesão voluntária; controle, organização e gestão democrática; autonomia e independência. Todavia, a não regulamentação da matéria, dificulta o surgimento e funcionamento das cooperativas, além de desvirtuar a concepção cooperativista. Na falta da regulamentação, no geral, prevalece a Lei N° 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que rege o sistema cooperativista. Rech (2000, p.19) bem sintetiza esta questão ao colocar que a forma atual de cooperativismo, sendo consolidada pela legislação em vigor e anterior à Constituição Federal de 1988,

é a imagem do intervencionismo governamental centralizador, paternalista na perspectiva de Getúlio Vargas, brutal e anacrônico a partir de 1964 com a ditadura militar, controlado e centralizador a partir do monopólio da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Embora a Constituição Federal tenha aberto perspectivas de liberação do sistema cooperativista, a falta de regulamentação do Texto Constitucional e a legislação específica que entrou em vigor após 1988, mantém as dificuldades para a criação e funcionamento das cooperativas. O superintendente da OCB Valdir Colatto (2000, p.9) coloca que a "principal batalha é pela modernização. Esperamos, há quase uma década, por uma nova lei. A legislação que rege o sistema é de 1971 e funciona como uma camisa-de-força. [...] E porque o excesso de tributação sobre um sistema que, por definição, não se pode visar lucro?". Atualmente, encontram-se no Congresso Nacional 12 Projetos de Leis sobre cooperativas habitacionais, sem nenhuma previsão de término de tramitação. Alguns desses projetos são polêmicos, inclusive já com posição contrária da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB.

Quanto ao regime tributário das cooperativas, o problema acima se repete. Apesar da Constituição Federal ter determinado tratamento tributário adequado ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, falta uma legislação que esclareça os casos em que ocorreria o tratamento adequado. De acordo com Perius (2001, p.217), em decorrência disso "o fisco não tem tido suficiente compreensão com as empresas cooperativas".

No entanto, o problema não se restringe apenas a falta de regulamentação do Texto Constitucional. De acordo, ainda, com Rech (2000) é extensivo à legislação referente ao assunto aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso - 1994/2002. Como exemplos dessa legislação pós-Constituição de 1988 registra-se a Lei Nº 9.532/97 e a Resolução do Conselho Monetário Nacional/Banco Central, que diz respeito ao funcionamento e tributação das cooperativas em geral.

Em síntese, tendo como referência a legislação pertinente ao sistema cooperativista brasileiro, as cooperativas habitacionais são marcadas por duas fases. A primeira abrange o surgimento - institucional - das cooperativas habitacionais, em 1966, sob a égide do BNH/INOCOOPs passando pela promulgação da Constituição Federal em 1988 e, culminando em 1993 quando deixaram de fazer parte do corpo de agentes financeiros do SFH. Nesse período, as cooperativas habitacionais funcionavam como meras delegadas do BNH e INOCOOPs, mantendo-se dependentes do poder público. Embora fossem organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, eram subordinadas ao Estado e não estavam imunes de intervenção, como mencionado anteriormente. Em última instância, o BNH (Decreto Nº 58.377/1966) tinha poderes para fixar normas sobre a constituição e funcionamento da cooperativas habitacionais, bem como poder de fiscalização.

A segunda, a partir da Constituição Federal de 1988, quando, por força desta lei, o controle sobre as cooperativas, em geral, saiu da esfera dos agentes públicos. A Constituição Federal garante a autonomia das cooperativas frente ao Estado, equiparando-as às outras associações civis, realçando seu sentido social e garantindo o princípio democrático que está na base do cooperativismo ao dispor que todos podem aderir livremente, têm poder igual e podem exercer efetivo controle sobre a administração via Assembléia Geral (Castro, 2001). No entanto, como já visto, a falta de regulamentação da lei maior, dificulta o desenvolvimento das cooperativas habitacionais e, em geral, do sistema cooperativista.

Para citar um caso espanhol, no que se refere a legislação, "las sociedades cooperativas catalanas de vivienda están reguladas en lo que se refiere a los aspectos mercantiles por los preceptos legales que son de aplicación com carácter general a todas las sociedades cooperativas en cataluña" (González, 2001, p. 1). As cooperativas habitacionais são consideradas fiscalmente protegidas, desfrutando de vários benefícios fiscais. No caso brasileiro, como já foi visto, esta questão se constitui um impasse.

As cooperativas habitacionais e o mercado imobiliário

Ao se abordar na sociedade capitalista qualquer forma de produção da moradia e seu funcionamento, o que não poderia ser diferente para a produção cooperativada, duas questões se apresentam como fundamentais. Uma é a apontada por Silva e Castro (1997 apud Castro, 1999, p. 134) quanto fato de que "a casa própria constitui-se historicamente na forma desenvolvida de moradia adequada ao conjunto de princípios que regem as sociedades capitalistas". A outra, é a importância do financiamento para a produção da moradia, principalmente por esta ser um produto diferenciado. É cara e demanda tempo para sua realização, imobilizando um volume significativo de capital por longo período e o capital financeiro exige remuneração com altas taxas de lucros. Esta característica do mercado imobiliário dificulta e mesmo torna impeditivo o acesso à moradia para a população com menor renda.

Na fase do BNH/INOCOOPs, de acordo com Castro (1999), os interesses imobiliários foram predominantes no desenrolar dos planos direcionados para o mercado "econômico", que era atendido pelas cooperativas habitacionais. Assim, com estas ocorreu o mesmo que em outros programas da área social do BNH/SFH, predominando os interesses do capital privado na execução da política habitacional, alijando segmentos populares que não auferiam renda mínima para a aquisição da casa própria.

Houve uma progressão da interferência dos interesses das frações especializadas do capital que atuam na produção imobiliária sobre o cooperativismo habitacional. O programa perdeu seu caráter associativista e os associados foram conduzidos à função de meros mutuários do BNH, não se distinguindo dos demais. A clientela passou a ser a classe média melhor remunerada... (Castro, 1999, p. 89).

Como não poderia ser diferente, as cooperativas habitacionais que atuam, a partir do início da década de 1990, no mercado imobiliário produzindo habitação sob o sistema de autofinanciamento, também vivenciam no seu interior as contradições inerentes à sociedade capitalista. Dessa forma, se propõem a implementar empreendimentos habitacionais com custos operacionais e, mesmo assim, segmentos menos favorecidos da população são excluídos dos seus programas de autofinanciamento.

Um dos fatores que deve ser considerado e contribui para alijar a população de renda mais baixa, é a adoção de procedimentos mercantis tais como a cobrança de juros de mercado e utilização de índices de correção como o Índice Nacional da Construção Civil – INCC e o Índice Geral de Preços de Mercado – IGPM, desvirtuando os princípios cooperativistas. Sobre estes índices incidem todos os reflexos do mercado, como o aumento nos preços dos combustíveis. Aliado a isto, acrescente-se o fato de que, via de regra, as cooperativas habitacionais autofinancidas contratam – ou utilizando termo do mundo "moderno" ou melhor, globalizado –, fazem parcerias com construtoras para execução das obras. Esta terceirização onera mais ainda os valores dos imóveis, uma vez que sobre os custos incide o percentual referente ao lucro da construtora, sob forma de prestação de serviços (taxa de administração). Acrescente-se, ainda que a falta de credibilidade do sistema, a concorrência e a competitividade do mercado imobiliário leva essas cooperativas a adotarem campanhas publicitárias – tanto na TV, como em jornais, folders, entre outros –, o que significa mais um item a ser considerado no cálculo do valor do imóvel.

A produção cooperativada de moradia através do autofinanciamento, no seu momento de maior vitalidade – meados dos anos de 1990 –, produziu habitação, em sua maior parte, para famílias de baixa renda. No entanto, no final do século XX esse quadro começa a se inverter com as famílias de maior poder aquisitivo ganhado espaços na cooperativas habitacionais autofinanciadas. Manoel da Cruz (presidente da Confederação Brasileira das cooperativas Habitacionais – Confhab) afirma que "já se foi o tempo em que imóveis para cooperados eram sinônimo de baixa renda" (Aoqui, 2002, p. E 5). As vantagens com o preço, em média 30 por cento menor que o de mercado, e a pouca burocracia despertaram o interesse da classe média para as cooperativas. Além do que, é preciso capacidade de renda para ser cooperado, caso contrário a execução do empreendimento fica comprometida.

Aliás, sobre essa questão, Rech (2000, p. 17) afirma que:

a absorção da idéia cooperativa pelo sistema capitalista inviabilizou as possibilidades de cooperação total e, com exceção de algumas experiências em países com tradição cultural coletivistas, as cooperativas capitulam quase sempre ao predomínio do capital e acabam por pender muito mais em direção a empresas com características profundamente comerciais e pouco se importando com os interesses dos trabalhadores.

No mundo real, apesar do discurso e propaganda cooperativista que apregoa o sonho da casa própria a preço de custo, tem acesso à moradia através dessas cooperativas aqueles que constituem demanda solvável. O problema está na distribuição de renda da população brasileira – desde a alta concentração de renda em uma minoria da população à precariedade e mesmo ausência de renda para significativo segmento populacional – já que a cooperativa não se constitui em uma sociedade filantrópica. O preço da unidade habitacional pode ser de custo, entretanto é alto para quem não aufere renda ou esta é insuficiente para arcar com as mensalidades.

Considerações finais

As cooperativas habitacionais foram introduzidas na política habitacional brasileira em 1966, fundamentando-se no tripé: a ideologia da casa própria; o combate ao déficit habitacional; e a garantia da estabilidade social para legitimar o Estado ditador e repressor, instalado no Brasil em 1964. Aliás, os dois primeiros fundamentos alicerçam, ainda hoje, o objetivo do sistema de produção cooperativada da moradia através do autofinanciamento, como bem demonstra a propaganda adotada pela cooperativas habitacionais autofinanciadas.

Refletir sobre esses fundamentos significa buscar elementos que ajudem a entender e responder as questões a que este trabalho se propôs abordar. A casa própria e o controle sobre a força de trabalho não são apenas importantes como mecanismos de manutenção da ordem social e legitimação do Estado, mas também uma necessidade histórica do capital. Este último aspecto é fundamental para a análise e compreensão do mercado imobiliário e do papel exercido pelo capital na formulação e execução da política habitacional.

Sobre as características e funcionamento das cooperativas habitacionais, independente da diversidade de situações encontradas, algumas questões merecem ser pontuadas. Quanto a legislação, as cooperativas têm direito (Constituição Federal de 1988) a tratamento especial quanto a incidência de tributos sobre suas atividades, mas a falta de regulamentação faz com que a lei maior não seja aplicada, prejudicando a ação cooperada. Por lei não existe relação de compra e venda entre a cooperativa e o cooperado, sendo este o responsável pela produção e pelos riscos do empreendimento. Com relação a constituição de sociedades cooperativadas um fator relevante são as facilidades na formação da cooperativa que sem a tutela do Estado que, a partir da Constituição de 1988, passaram a ser instrumentos para captar recursos e financiar a produção da moradia. No que se refere a sua intrínseca função social, o sistema cooperativista apresenta a contradição de que se por um lado, de acordo com os princípios cooperativistas não devem operar como pólo privado de acumulação, por outro a inserção das cooperativas na estrutura da economia capitalista as obriga a atuarem de acordo com os parâmetros definidos pelo mercado. Sobre a exequibilidade e êxito da finalidade da ação cooperada, a viabilidade da produção da moradia está condicionada às condições econômicas do cooperado que são determinantes na definição do prazo de entrega das unidades habitacionais.

O já exposto possibilita levantar algumas considerações acerca da possibilidade das cooperativas habitacionais autofinanciadas contribuírem para o enfrentamento do problema da moradia no Brasil. Com certeza a resposta não é conclusiva. As características, o funcionamento e a produção de moradia resultante das sociedades cooperadas concorrem para ensejar dúvidas. No entanto, é fundamental que a discussão continue e se aprofunde, na perspectiva de que a produção cooperativada da moradia venha a se constituir em uma alternativa para amenizar o grave e vergonhoso problema habitacional no Brasil.

Quanto às perspectivas futuras, face a posse, em 1º de janeiro de 2003, do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o que se tem anunciado ainda é insuficiente para se fazer alguma análise, pois, no geral, conta-se com apenas as proposta do programa da campanha eleitoral. Entre as quais destaca-se o estímulo à adoção da produção de moradia através de cooperativas habitacionais.

Por fim pode-se inferir que o processo cooperativado de produção da moradia ocorre tendo como pano de fundo as mais diversas limitações e problemas, sejam de caráter interno ao sistema cooperativista sejam de origem externa, mas com impacto direto nas cooperativas. Esse quadro remete a intensificação da realização de estudos sobre a matéria, a fim de que as cooperativas habitacionais possam se constituir uma alternativa para amenizar o gigantesco déficit habitacional, que atinge a população brasileira em seus segmentos mais populares.

 

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© Copyright Angela L. A. Ferreira y Maria Cristina de Morais, 2003
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Ficha bibliográfica:
FERREIRA, A. L. A. y MORAIS, M. C. Cooperativas Habitacionais: do Social ao Mercado. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(085). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(085).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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