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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(045), 1 de agosto de 2003

A CIDADE DENTRO DA CIDADE. UMA EDGE CITY EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Maria Encarnação Beltrão Sposito
Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Presidente Prudente – São Paulo – Brasil

A cidade dentro da cidade. Uma edge city em São José do Rio Preto (Resumo)

A implantação de loteamentos fechados em cidades médias do Estado de São Paulo – Brasil – tem redefinido a lógica de estruturação de seus espaços urbanos, revertendo as relações entre o centro e a periferia, bem como seus conteúdos sócio-culturais, tornando a articulação entre as diferentes frações do tecido urbano mais complexa.

As estratégias utilizadas pelos agendes dessa produção do espaço urbano, bem como os valores que orientam o consumo destes novos “produtos” imobiliários, têm raízes em nossa formação socioespacial e indicam o interesse de auto-segregação de uma parte dos moradores destas cidades.

A análise de um destes empreendimentos imobiliários, uma edge city, em São José do Rio Preto, mostra-nos a emergência de uma “cidade” dentro da cidade e apontam para o aprofundamento das disparidades, no plano espacial, o que pode contribuir para uma fragmentação urbana.

Palavras chaves: espaços urbanos, cidades médias, segregação urbana, fragmentação urbana, loteamentos fechados.

The city within the city. An edge city in São José do Rio Preto (Abstract)

The implantation of enclosed residential communities in medium-sized cities in the state of São Paulo – Brazil – has redefined the logic of their urban space structuration, transforming the relations between the city center and the outskirts, as well as its socio-cultural contents, causing the articulation among the different fractions of the urban fabric to be more complex.

The strategies used by the agents of this urban space production, as well as the values orienting the consumptiom of these new real estate “products”, have their roots in our socio-spatial formation and indicate the interest of auto-segregation of part of these cities dwellers.

The analysis of one of these real estate developments, an edge city, in São José do Rio Preto, shows us the emerging of a “city” within the city and indicates the deepening of disparities, in the spatial plan, which might contribute to an urban fragmentation.

Key words: urban spaces, medium-sized cities, urban segregation, urban fragmentation, enclosed residential communities  

A crescente implantação de loteamentos fechados em cidades de diferentes tamanhos, sobretudo nos países latino-americanos, coloca em questão a lógica de estruturação de seus espaços urbanos, marcada pelas relações centro - periferia[*] .

Redefinem-se os conteúdos econômicos, sociais, políticos e culturais do que vinha se conceituando como a “periferia” dessas cidades, pois se mantém a tendência à extensão contínua dos tecidos urbanos, agora combinando, contraditoriamente, diferentes lógicas e formas de produção e apropriação dos espaços urbanos.

De um lado, mantém-se a tendência à implantação de loteamentos privados populares ocupados, sobretudo, pela autoconstrução, e de conjuntos habitacionais e áreas de assentamento urbano, resultantes de investimentos de recursos públicos voltados ao atendimento de demanda habitacional dos mais pobres, demanda essa sempre crescente num país, como o Brasil, em que não houve efetivo crescimento do PIB per capita nos últimos 20 anos.

De outro lado, verifica-se o aumento dos interesses fundiários e imobiliários, promovendo a aceleração da expansão territorial urbana, por meio do lançamento de loteamentos voltados aos segmentos de alto e médio poder aquisitivo, muitos deles fechados e com serviços privados de segurança.

Essa sobreposição de lógicas de produção do espaço urbano, que expressam tempos e estratégias diferentes, torna a estruturação das cidades muito mais complexa.

A ampliação do número de loteamentos deve, a nosso ver, ser objeto de atenção, sobretudo a partir das relações que se estabelecem (ou não) entre esses enclaves[1], voltados aos segmentos de alto e médio poder aquisitivo, e a cidade já constituída.

O estudo desse processo em São José do Rio Preto (Estado de São Paulo - Brasil) é significativo, quando se considera que essa é uma cidade de médio porte, e é grande o número de loteamentos fechados lançados em seu mercado imobiliário, nos últimos vinte anos, além de se notar a diversidade de estratégias que buscam apresentar esse produto imobiliário sempre associado a novas “qualidades”.

A localização desses loteamentos na cidade e as formas como, progressivamente, vem, a eles, agregando-se novos valores de consumo e novas práticas socioespaciais que se refletem em alterações no cotidiano urbano, levam-nos a constatar a tendência à constituição de “cidades” dentro e, ao mesmo tempo, fora da cidade já existente.

A implantação de um conjunto de loteamentos fechados aos quais se deverá associar um centro de comércio e serviços, denominado de Green Valley Edge City, no setor sudoeste da cidade, indica que as práticas socioespaciais ensejadas, por essa forma de habitat, não apenas indicam a decisão de auto-segregação socioespacial de parte da sociedade, mas também que o modo como essa área e seus moradores se relacionam com o restante da cidade está apoiada no desejo de alto grau de articulação espacial (conectividade e fluidez espacial) e baixo grau de integração territorial (baixa interação social e poucos laços de compartilhamento territorial). Essa opção de, paradoxalmente, pertencer e não pertencer à cidade possibilita supor-se que as relações dessa Edge City com São José do Rio Preto podem vir a gerar fragmentação urbana.

A cidade e os loteamentos fechados

São José do Rio Preto está localizada no noroeste do Estado de São Paulo – Brasil. A população municipal é de 358 523 habitantes, dos quais 94% vivem em sua área urbana, que compõe com as áreas urbanas dos municípios de Mirassol e Bady Bassit uma aglomeração de 394 138 habitantes, que se constitui a nona maior do Estado de São Paulo[2].

Distancia-se cerca de 400 km da capital do estado, principal pólo econômico do país, e tem seu dinamismo apoiado[3], em grande parte, em sua situação geográfica que se constitui nó de eixos de ligação rodoviária que demandam a importantes áreas de produção agropecuária e industrial dos Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal, atribuindo-lhe, assim, um papel diferenciado na divisão regional do trabalho que vem se estabelecendo no Estado de São Paulo, desde a segunda metade do século XX.

Em termos de pessoal ocupado em atividades econômicas, São José do Rio Preto teve um crescimento de 3% entre 1995 e 2000; no que se refere ao número de estabelecimentos industriais e comerciais, o crescimento foi de, respectivamente, 8,6% e 35,7%, no mesmo período de apenas cinco anos, o que é bastante significativo, considerando-se que o Produto Interno Bruto per capita do país pouco cresceu nas duas últimas décadas.

Uma das faces do dinamismo econômico da região comandada por esta cidade reflete-se em sua expansão territorial urbana e na produção imobiliária que nela se concentra. Em pesquisa concluída em 1990 já apontávamos a força desse setor promovendo intensa verticalização[4], sendo os anos de 1980 os de maior intensidade da construção de edificações de vários pavimentos, voltadas, sobretudo, para o uso residencial.

Simultaneamente ao aumento da produção imobiliária vertical, iniciara-se, em 1974, o processo de implantação de loteamentos fechados para segmentos de alto poder aquisitivo. Os dados contidos na tabela 1 mostram a evolução dessa implantação e oferecem elementos para se observar que esses empreendimentos se intensificaram no decorrer dos anos de 1990, ao mesmo tempo, em que a demanda por apartamentos e o financiamento público para este tipo de imóvel passou a recuar a partir do final da década anterior.

Tabela 1
Município de São José do Rio Preto. Implantação de loteamentos fechados 1974-2000
Loteamentos fechados Ano de implantação Número de lotes Área total dos lotes(m2) Área média dos lotes(m2) Área de lazer do loteamento(m2) ente a área de lazer e a área total dos lotes Área de lazer por lote(m2)
Bourganville
1974
34
49.297
1.449,91
1.667
3,38%
49,02
Débora Cristina
1978
172
177.764
1.033,51
66.930
37,65%
389,12
Jardim do Cedro*
1981
167
168.736
1.010,39
56.326
33,38%
337,28
Village Sta. Helena
1990
105
83.304
793,37
23.445
28,14%
223,28
Pq Residencial Damha
1991
595
413.788
695,44
59.360
14,34%
99,76
Residencial Jardins
1991
399
206.715
518,08
37.947
18,35%
95,1
Recanto Real
1992
445
177.853
399,66
30.552
17,17%
68,65
Village La Montagne
1996
630
239.679
380,44
40.020
16,69%
63,52
Villa Boghese
1997
s.i.
66.610
s.i.
13.271
19,92%
s.i.
Village Flamboyant
1999
69
65.753
952,94
11.178
16,99%
162
Residencial Márcia
2000
607
267.430
440,57
66.792
24,97%
110,03
s.i. – sem informações * localizado na área rural do município.
Fonte dos dados: Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto. Elaboração do autor

A observação dos dados relativos à área média dos lotes é indicativa dos segmentos socioeconômicos a que se destinam esses loteamentos, tomando-se como referência que a maior parte dos lotes urbanos, fora dos loteamentos, tem cerca de 250 m2 e os destinados à construção de unidades residenciais com recursos públicos, no âmbito dos programas habitacionais, chegam a ter apenas 125 m2.

No decorrer do período a que se refere a tabela, é tendencial a queda da área média dos lotes, pois mesmo que os dois últimos lançamentos (Village Flamboyant e Residencial Márcia) tenham essas áreas médias maiores do que as dos lotes de loteamentos implantados nos anos anteriores, esse tamanho não ultrapassou os 1 000 m2, patamar dos três primeiros lançamentos.

Essa tendência resulta, a nosso ver, de duas dinâmicas simultâneas e articuladas entre si.

De um lado, a contínua expansão territorial urbana, que potencializa o preço das terras disponíveis melhor localizadas no entorno da área urbana já constituída, eleva ao aumento do preço de custo da implantação e, por conseguinte, dos lotes colocados à venda. Quando, por exemplo, os loteamentos Bourganville (área média do lote de 1449,91 m2) e Débora Cristina (área média do lote de 1033,51m2) foram implantados em 1974 e 1978, eles estavam bastante distantes da área urbana já loteada, enquanto o lançamento do Village La Montaigne (área média do lote de 380,44 m2), em 1996, deu-se quando a cidade já havia se expandido bastante no sentido sul e grande parte dos loteamentos fechados implantados anteriormente, neste mesmo setor, já estava edificada e valorizada.

De outro lado, o número potencial de compradores se amplia à medida que a área média e, conseqüentemente, o preço dos lotes diminui, ainda que o preço do m2 aumente em função da expansão urbana. A combinação desses elementos possibilita uma maior demanda solvável.

Verifica-se, assim, que as duas dinâmicas fazem parte de um mesmo movimento porque revelam que o processo de produção, no geral, e de produção do espaço em especial deve ser compreendido, contemplando-se a análise do consumo.

Por meio dessa leitura, pretendemos destacar a estratégia dos incorporadores em, continuamente, apresentar ao mercado novos “produtos” aos quais se associam novos valores, visto que, com a estagnação econômica e o aumento das disparidades que se verificaram no país, a partir dos anos de 1980, o principal alvo dos produtores do espaço urbano passou a ser aqueles que já tinham imóveis residenciais[5] e só se disporiam a nova aquisição se a ela se associassem qualidades objetivas e/ou subjetivas que justificassem a troca de um local de moradia por outro ou, em outras palavras, de um produto imobiliário por outro.

Se nos anos de 1980, as idéias de segurança, boa localização e vida urbana estiveram diretamente identificadas com a opção pela moradia em apartamentos, a partir dos anos de 1990, a “onda” dos loteamentos fechados passou a comparecer como a nova forma de habitat urbano, que continha os valores associados à verticalização e mais o símbolo de qualidade de vida, advindo da presença de áreas verdes e de lazer, e da opção pela residência unifamiliar.

No caso da produção imobiliária de apartamentos, a boa localização significou, tanto em São José do Rio Preto como em outras cidades do interior paulista, a verticalização das áreas residenciais próximas ao centro da cidade e às avenidas de grande circulação que facilitam o acesso a esta área de maior concentração de bens e serviços. Contrariamente, a boa localização dos loteamentos fechados é aquela que se distancia das áreas mais densamente ocupadas, mas que, por outro lado, possibilita um rápido acesso a elas.

Em função desse fato, os loteamentos fechados foram sendo implantados nas áreas urbanas mais periféricas, anteriormente identificadas pelos loteamentos e conjuntos habitacionais populares, cuja precariedade dos meios de consumo coletivo significava, muitas vezes, segregação socioespacial.

É preciso, contudo, qualificar essa tendência à localização periférica destacando que ela não ocorre em toda a extensão do que se constitui no entorno da cidade, como mostra a figura 1, na qual se verifica que os loteamentos fechados estão agrupados em dois setores: - a sudoeste da área urbana já loteada, ao longo do eixo demarcado pela Avenida Anísio Haddad que é a entrada sul da cidade e onde se localiza o Rio Preto Shopping Center; - a leste, ao longo da avenida de fundo de vale que margeia o lago formado pelo represamento do Rio Preto que corta a cidade, área cujo valor paisagístico e o bom nível de acessibilidade à área central explicam a alta valorização para a ocupação residencial.

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A extensão deste fenômeno imobiliário pode ser atestada pelo aparecimento, em 2001 e 2002, de novos loteamentos fechados: Green Village I, Green Village II, Green Garden, Green Palm, Forest Hills, South Valley, North Valley e West Valley, estes três últimos compondo o que foi denominada por sua empresa incorporadora de edge city.

Desta recente implantação, ainda que não tenhamos dados precisos[6], o trabalho de campo realizado possibilitou verificar que três aspectos caracterizam a atuação dos incorporadores imobiliários.

Primeiramente, os lançamentos procuraram atrair segmentos de médio poder aquisitivo, já que o tamanho dos lotes é menor do que aquele dos loteamentos fechados anteriormente implantados, reforçando uma tendência que já se verificou no decorrer da década de 1990 e possibilitando supor que a venda desse tipo de imóveis para os segmentos de alto poder aquisitivo já começa a encontrar seus limites no tamanho deste mercado.

Como decorrência deste perfil de potenciais adquirentes para os novos loteamentos fechados, o produto imobiliário lançado no mercado não é mais o lote para que o comprador construa uma residência de alto padrão personalizada, mas é a casa construída em série dentro do loteamento fechado. Em outras palavras, ao oferecer este imóvel, os incorporadores atingem duas faixas de mercado – aqueles que já tinham uma casa própria e se interessam por um nova forma de habitat urbano, associada à distinção social; – aqueles que ainda não têm casa própria. Em ambos os casos, trata-se de adquirentes que dispõem de baixo nível de capitalização e não poderiam realizar a construção de um imóvel nos termos observados nos loteamentos de alto padrão anteriormente implantados, já que se utilizam de financiamento para realizar essa aquisição.

Um terceiro aspecto que merece destaque refere-se ao fato de que todos esses novos loteamentos foram implantados por duas incorporadoras de São José do Rio Preto – Tarraf Construtora e Rodobens Engenharia[7] – enquanto nas implantações havidas até 2000, sete empresas diferentes foram responsáveis pelos onze lançamentos havidos. Essa constatação tem relação direta com o domínio sobre as terras disponíveis para expansão urbana nas áreas mais valorizadas, nas mãos de poucos empreendedores o que pode gerar práticas monopolistas na produção do espaço urbano.

A implantação da Edge City

A emergência de um empreendimento como o denominado Green Valley Edge City parece-nos merecer uma análise particular.

De um certo ponto de vista, ele pode ser compreendido como uma continuidade da dinâmica que se instalara, a partir de 1974, com a implantação do primeiro loteamento fechado em São José do Rio Preto.

Entretanto, outras características deste negócio imobiliário merecem atenção especial, porque podem ter significados mais profundos sobre a estruturação urbana desta cidade do que os que resultaram da implantação e ocupação anterior de loteamentos fechados.

Uma descrição deste empreendimento poderá oferecer, ao leitor, alguns dados para a apreensão da análise que pretendemos desenvolver, adiante, neste texto.

Trata-se de um grande loteamento fechado subdividido em três partes – South Valley, North Valley e West Valley. O empreendimento compreende os lotes e as edificações residenciais neles construídas, além das áreas de uso comum – vias, calçadas, áreas de estacionamento para visitantes, áreas de lazer e destinadas aos serviços de controle e segurança.

Esses três setores estão sendo lançados no mercado sucessivamente e se diferenciam entre si, no que se refere ao tamanho das residências e ao padrão e dimensão das áreas de lazer, o que indica uma diferenciação socioeconômica entre os adquirentes de imóveis na Edge City.

Em dezembro de 2002, o setor North Valley estava totalmente concluído e quase todo vendido e ocupado, enquanto o setor South Valley estava em fase final e o setor West Valley em fase inicial de construção.

O South Valley, por exemplo, tem 76 lotes de cerca de 260 m2 cada um, nos quais há residências de 192 m2 de área construída, maiores do que aquelas construídas em North Valley.

O projeto arquitetônico das casas é o mesmo no SouthValley, mas o adquirente poderá optar por pequenas mudanças internas como a transformação de um quarto dormitório em sala de “home theater” ou a incorporação da área do escritório à sala de estar.

Externamente, essas 76 residências estão construídas segundo 06 modelos de fachadas que pouco diferem entre si e buscam reproduzir a “arquitetura do sul da Flórida”, como anuncia o material de propaganda do empreendimento.

Do ponto de vista das formas de acesso a essa área, alguns aspectos merecem destaque. Como em outros loteamentos fechados, há um grande portal, que se constitui numa portaria central que controla o acesso à Edge City, visto que a entrada precisa ser comunicada e autorizada pelos moradores e, no caso da entrada de profissionais que entram para prestar serviços diversos (jardinagem, instalação e manutenção de equipamentos domésticos, reformas etc), o acesso é controlado por meio de cadastramento ou retenção de documento de identidade. Esse sistema é reforçado por circuito interno de TV e muro de contorno com sensores.

Além disso, dentro da Edge City estão sendo implantados sub-acessos que filtrarão a entrada nas suas partes “south”, “north” e “west”, por meio de sistema eletrônico de identificação, ou seja, catracas movimentadas por cartões magnéticos utilizados por seus moradores.

No que se refere às formas de aquisição desses imóveis, as estratégias utilizadas pela Rodobens Engenharia são inovadoras na implantação de loteamentos fechados. Trata-se do que a empresa denomina de “Sistema Fácil”, que se constitui em consórcio[8] para aquisição do imóvel, em 120 parcelas pré-fixadas e corrigidas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), sem a necessidade de cumprimento das exigências para obtenção de outros financiamentos imobiliários, como avalista e/ou comprovação de renda.

Destas 120 parcelas, sete devem ser pagas por ocasião do fechamento do negócio e, mensalmente, duas casas são destinadas a dois consorciados do grupo – uma por sorteio e outra por maior lance. Isso significa que serão necessários 36 meses para que todos os imóveis sejam destinados a seus proprietários e que a construção das residências recebe mensalmente uma injeção de capitais, referente às prestações dos 72 consorciados, suficiente para financiar grande parte da continuidade do empreendimento.

Comparando-se o preço do imóvel à vista – 222 mil reais – e o tamanho do imóvel com outros de mesmo tamanho e acabamento construídos em áreas residenciais de padrão médio/alto, mas em loteamentos abertos, a diferença é considerável[9].

O espaço e os equipamentos para lazer são, sem dúvida, um ponto muito destacado no conjunto do empreendimento imobiliário. Há, no South Valley, o que a incorporadora denomina de um “clube exclusivo” com: - piscinas para adultos e crianças; - quadra de tênis; - playgrounds; - quadra poli-esportiva; - salão de festas com estacionamento para visitantes.

Para complementar a sucinta descrição da Edge City, informamos que está prevista a construção, pela mesma empresa, de uma área comercial e de serviços justaposta aos setores residenciais.

A lógica que orienta a produção do novo habitat urbano

O aparecimento contemporâneo desse novo produto imobiliário requer, entretanto, uma análise que retroceda no tempo e busque compreender a gênese desse processo, pois a emergência de novas formas espaciais e novas práticas socioespaciais a elas associadas tem raízes bastante profundas.

Novas formas espaciais podem ser, superficialmente, entendidas como parte de um processo de modernização urbana, dada a rapidez e a intensidade com que ocorre a implantação desses novos habitats.

Entretanto, avaliando-se melhor essa aparente modernização reconhecemos nela elementos que revelam a permanência e, até mesmo, a acentuação de valores sempre presentes na formação socioespacial brasileira.

Campos (2002, p. 19) analisando o urbanismo na cidade de São Paulo, no começo do século XX, reconhece que o “...processo de modernização urbana não é uno nem coerente, assumindo muitas vezes um caráter ambíguo, hesitante e parcial”, pois, segundo ele, mesmo que tenhamos vivido reconfigurações urbanas inspiradas nos ideais modernos, o predomínio desses ideais não se completa em função de “determinantes econômicas, contradições sociais e disputas políticas”.

Passado um século do contexto contraditório que marcou a passagem da economia cafeeira para e economia industrial, esta engendrada por aquele e a superando, não podemos, ainda, reconhecer uma efetiva superação dessa modernização incompleta. Mais do que isso, há elementos para se supor que, apesar das mudanças que foram profundas no decorrer do século passado, parte significativa dos impasses que impossibilitam a modernização completa[10] permanecem e, mais que isso, aprofundam-se em função do aumento das disparidades sociais, econômicas e culturais.

No caso da Edge City em análise, fica muito clara a estreita relação entre os imóveis que estão sendo colocados à venda, a cidade na qual eles se inserem, mesmo que de forma parcial, e as idéias, ou melhor o discurso que fundamenta a Modernidade, discurso esse tão comumente traduzido pelos ideais urbanos contemporâneos, como se verifica no próprio material de divulgação desse empreendimento imobiliário:

“Green Valley Edge-City, zona sul de São José do Rio Preto. O único local da cidade que reúne todas as condições para a implantação de soluções planejadas de moradia, que combinam liberdade, privacidade, segurança e qualidade de vida” (grifos nossos)

A idéia de planejamento é, extremamente, utilizada como fator de valorização desses novos habitats urbanos, pois os contrapõem, de forma positiva, ao restante da cidade, esta um resultado de um transcurso histórico, de decisões que foram sendo tomadas individualmente e/ou em contextos diferentes entre si, acumularam-se no decorrer de um longo tempo e resultam num arranjo espacial que é marcado pela heterogeneidade econômica, social, urbanística e arquitetônica.

Esses novos produtos imobiliários são apresentados, aos seus possíveis compradores, como espaços, nos quais se pode prever o que ocorrerá (a que segmentos socioeconômicos pertencem seus vizinhos, por exemplo) e se pode evitar o indesejável (mendigos ou vendedores batendo à porta, também como exemplo do que se apresenta como positivo por ocasião da venda desses imóveis).

A existência de normas para edificações próprias dos loteamentos fechados (especialmente, no caso em apreço em que as casas já são vendidas juntamente com os terrenos) são muito mais restritivas que aquelas praticadas pela legislação urbana municipal e mostram que o planejamento se adianta, evitando que, nestes espaços, a diferenciação apareça, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista arquitetônico.

A homogeneidade é a face, por meio da qual se apresenta a certeza, aos futuros moradores desses espaços fechados, e se anula a possibilidade do indesejável. Podemos afirmar que se trata de uma homogeneidade para tornar clara a diferença entre os que habitam essas áreas e os outros que habitam e vivem nos espaços abertos da cidade.

Fazendo referência à recente tendência de implantação de condomínios em Lisboa, Salgueiro (2001, p. 211-212) afirma:

“Para além das características intrínsecas da casa e da localização, vende-se com ela também um sinal de estatuto social, vizinhos...”

Tomando-se esta interpretação acerca da escolha feita por aqueles que optam por esse habitat, podemos ler que a “liberdade” e a “privacidade” referidas no material de propaganda devem ser entendidas como qualidades que se relacionam entre si, realizam-se conjuntamente, ou seja, sob uma ótica bastante restrita. Não se trata da liberdade que se associou à cidade na passagem do feudalismo para o capitalismo, liberdade essa identificada com a mobilidade social possível neste modo de produção e vetada naquele. Nesse período, a cidade foi o lugar da convivência entre as diferenças e a liberdade de ir e vir estava a ela associada já que nos feudos e burgos típicos da Europa feudal central e do norte, os controles dos senhores e da Igreja se somavam e negavam essa possibilidade.

A liberdade segmentada que se quer nos loteamentos fechados pressupõe que a privacidade não é apenas a privacidade individual, aquela que se deseja ter dentro da moradia, mas a privacidade dos segmentos sociais de maior poder aquisitivo, em relação aos outros. Tal leitura parece ser confirmada, a nosso ver, pela inclusão do atributo “segurança” no conjunto de quesitos positivos associados a esses imóveis.

Revelar-se-ia, assim, a tendência à segregação socioespacial como uma das importantes dimensões do atual processo de urbanização. Não se trata da segregação racial ou étnica ou política ou religiosa, velhas conhecidas da urbanização desde sua origem há 5 500 anos, mas sim de uma auto-segregação, dos que podem pagar mais e escolhem se separar dos outros.

Diferentes pesquisas[11] têm demonstrado que a segregação socioespacial ganha cores muito mais fortes na América Latina contemporânea, do que em países da Europa Ocidental, nos EUA, Canadá ou Japão, cuja capacidade de consumo de novos produtos, incluso os imobiliários, é maior.

A acentuação das disparidades socioeconômicas, que se deu na maior parte dos países latino-americanos, desde as duas últimas décadas do século XX, combinada com a vigência de democracias jovens ou demasiadamente restritas, ajudam a entender porque uma parte de suas sociedades opta por se separar do restante e por se esconder da violência que eclode nas cidades, como face perversa da reduzida perspectiva de futuro e do baixo grau de inclusão social, tanto do ponto de vista econômico, como do ponto de vista cultural.

As práticas socioespaciais de separação e controle revelam, profundamente, a forma como a sociedade opta e legitima a opção por uma democracia relativa, no âmbito da qual as relações, entre os que pertencem a diferentes segmentos socioeconômicos, podem se dar, apenas, quando e da forma como os que têm mais consideram adequado que essas relações se estabeleçam.

Os controles para o acesso aos loteamentos e condomínios fechados, de uma forma geral, e a essa edge city, são muito ilustrativos do tipo de segurança que se vende e se compra juntamente com esses imóveis residenciais.

Um dos argumentos utilizados pelos corretores para explicar a instalação das catracas eletrônicas que separam internamente os setores da edge city, são as diferenças entre as áreas de lazer, ou seja, como o South Valley tem uma área maior e melhor equipada do que a de North Valley, onde os imóveis são menores e mais baratos “não seria justo” que o acesso fosse franqueado a todos os moradores.

Esses serviços de segurança são parte indissociável do produto imobiliário que está sendo colocado no mercado e são os meios por intermédio dos quais se garante a liberdade relativa e segmentada, já que ela se estabelece apenas entre iguais, combinada com privacidade dos segmentos de maior poder aquisitivo. Confirmam, assim, uma visão da sociedade, segundo a qual os que ganham menos são menos iguais ou são “os outros”, aqueles que, potencialmente, representam algum tipo de perigo ao bem-estar dos que estão protegidos dentro dos loteamentos fechados.

Os requintes dessa representação social que apóia e reforça a idéia da separação espacial aparece, de forma clara, na divisão interna do Green Valley Edge City. Essa área não está separada do restante da cidade, apenas, pelos muros e pela entrada principal, onde os controles de acesso estabelecem qual é o nível possível de interação entre os que moram dentro e fora, mas ela tem sub-controles internos que refletem a diferenciação entre os que habitam a edge city, em seus diferentes setores, cada um deles com uma denominação: South Valley, North Valley e West Valley.

O ideário que orienta a produção do novo habitat urbano

Outra dimensão a ser observada, quando se reflete sobre a forma como, aparentemente, alcançamos a modernização a partir da implantação desses novos habitats urbanos, mas, de fato, reforçamos elementos estruturais do nosso passado, é aquela referente ao tipo de urbanismo que embasa a implantação dessas áreas urbanas fechadas.

Buscando compreendê-los reconhecemos neles várias das características do urbanismo progressista ou moderno de Le Corbusier.

O primado da separação entre a função residencial e outras funções, o que requer planejamento, é respeitado a fundo, já que mesmo as funções comerciais e de serviços que atendem às demandas mais cotidianas dos moradores das cidades estão vendidas juntamente com o produto imobiliário residencial e estão planejadas para serem implantadas fora da edge city, ainda que justapostas a ela.

No material de propaganda para a venda desses imóveis residenciais há uma foto aérea oblíqua da área, indicando a localização próxima do um clube social, do Teatro Municipal, do Hospital de Base, do Shopping Center, de instalações de universidade particular (UNIP – Universidade Paulista). Nessa mesma foto, estão indicados, com setas, outros loteamentos e condomínios fechados da cidade (Village Santa Helena, Débora Cristina, Flamboyant e Bourgainville), instalados a partir do início dos anos de 1980, todos eles com alto padrão de ocupação, como denota o tamanho médio dos terrenos e das construções (retomar tabela 1).

No mesmo material, é, ainda, indicado por escrito, que o condomínio está “a poucos minutos” de escolas de ensino médio e fundamental, de “centenas” de clínicas médicas, agências bancárias, restaurantes e lojas de conveniência, entidades classistas, hotéis cinemas e supermercados etc.

Trata-se de vender a idéia de separação funcional, tão cara ao urbanismo moderno, já que todos esses estabelecimentos estão fora da edge city, mas, ao mesmo tempo, estão próximos a ela.

Se bem observarmos, a proximidade está sugerida nesse material de propaganda de duas formas diferentes: - na fotografia aérea, há a indicação da localização de grandes equipamentos que estão nas proximidades imediatas do condomínio, ou seja, destaca-se a proximidade territorial; - no texto ao lado da foto, há a informação dos bens e serviços que estão a “a poucos minutos” da edge city, mostrando a proximidade temporal.

Por meio dessa informação, confirma-se a importância do uso do automóvel no mundo moderno, aspecto altamente valorizado pelo urbanismo progressista, e verificamos a intrínseca relação que se estabelece, como uma das bases da modernidade, entre o espaço e o tempo, pois o folder não indica a distância em metros, mas em tempo[12].

A edge city contém assim, a paradoxal qualidade de estar fora e dentro da cidade, estar separada e ser parte dela ao mesmo tempo, já que as duas qualidades são vendidas simultaneamente: diferenciação social e integração espacial. Essa aparente contradição também pode ser observada em texto contido no material de propaganda do loteamento:

“South Valley dá seqüência aos conceitos urbanísticos inovadores que trouxeram para Rio Preto uma tendência mundial consagrada: as edge cities, ou cidades de contorno, que integram  bairros residenciais, áreas de lazer, centros comerciais e de serviços” (grifos nossos).

O contato com corretor imobiliário do empreendimento possibilitou-nos verificar que, contraditoriamente, são citadas como qualidades da edge city, a proximidade ou elevada acessibilidade aos equipamentos citados, localizados na “cidade aberta”, e o fato de que não será necessário, ao morador do loteamento, ir à cidade, compreendida aqui como a área central onde há a maior concentração das atividades comerciais e de serviços.

Trata-se, portanto, de uma clara opção pela auto-segregação e revela o desejo de parte da nossa sociedade de não compartilhar os territórios urbanos freqüentados e apropriados pelos segmentos de médio para baixo poder aquisitivo.

Outro elemento caro ao urbanismo de Le Corbusier, que aparece associado aos loteamentos fechados, como parte do produto imobiliário que se apresenta no mercado, é a presença de áreas verdes como condição para se alcançar “qualidade de vida”.

Propondo um novo urbanismo, Le Corbusier (1977, p. 63) afirmava:

“Certas necessidades biológicas impostas por hábitos milenários e que, a pouco e pouco, contribuíram para constituir a sua própria natureza requerem a presença de elementos e de condições precisos, sob a pena de estiolarem: sol, espaço, verdura. Para os seus pulmões, uma apropriada espécie de ar. Para os seus ouvidos, um quantum suficiente de silêncio. Para os seus olhos, uma luz favorável, etc”.

O nome escolhido para o empreendimento em análise – Green Valley – já explicita a associação que se quer estabelecer entre a presença de verde e qualidade de vida. No material de propaganda predominam os tons em verde e no croquis, nele contido, no qual há uma representação cartográfica da edge city, todos os terrenos são ilustrados em verde, ainda sem edificações, como se estivessem, de fato, gramados.

A qualidade de vida, o lazer o verde aparecem sempre associados, quando se trata de venda do produto “loteamento fechado”.

No caso brasileiro, a legislação exigia até janeiro de 1999[13] que, no processo de parcelamento de glebas para a implantação de loteamentos, ao menos 35% da área fosse destinada a fins públicos (vias e calçadas, áreas verdes e institucionais).

No caso dos loteamentos fechados, essas áreas públicas estão dentro dos muros e a legislação dos diferentes municípios contém dispositivo que concede o direito de uso exclusivo delas aos moradores do loteamento, por período determinado (em muitos casos, por 50 anos).

Com menor número de ocorrências, há a implantação de condomínios fechados, cujos projetos de parcelamento já prevêem as áreas públicas fora da parcela da gleba que vai ser murada, tornando as terras de uso coletivo dentro do condomínio como áreas de propriedade privada de seus condôminos.

O paradoxal, no caso dos loteamentos fechados, é o uso do atributo – qualidade de vida, associado a lazer e verde – na venda dos imóveis, mesmo sendo essas, terras cuja destinação é, por princípio legal, públicas.

Um retorno à observação da tabela 1 oferece elementos para se avaliar que, tendencialmente, a área destinada ao lazer, que é parte das áreas públicas, vem diminuindo de tamanho no decorrer do tempo[14].

Atualmente, a legislação urbana de São José do Rio Preto, já exige que, no projeto de parcelamento da gleba, o percentual correspondente às áreas públicas esteja fora da área murada. O poder público pode aceitar, segundo essa legislação, a concessão, pelo loteador, de área de preço equivalente, localizada em outra parcela do território do município como cumprimento da exigência de reserva de área pública no processo de parcelamento para implantação de loteamento urbano.

A edge city e a cidade

As decorrências da implantação de uma edge city em São José do Rio Preto não podem, ainda, ser totalmente avaliadas, em parte porque sua implantação e ocupação ainda estão em curso, em parte porque mudanças nas práticas socioespaciais de seus moradores, mesmo que já anunciadas pela propaganda do empreendimento, não ocorrerão necessariamente tal como se planeja ou vislumbra.

Há necessidade de que a ocupação se consolide para se avaliar o grau de auto-segregação pelo qual decidem os moradores deste loteamento. Entretanto, a análise da localização da área, próxima aos equipamentos comerciais e de serviços mais modernos da cidade, bem como os sistemas de controle e acesso, além da forma como o empreendimento vem associado aos ideais de planejamento e qualidade de vida tão caros à sociedade contemporânea, oferecem-nos elementos muito concretos para se afirmar que esse empreendimento faz parte de uma lógica de produção do espaço urbano que trata de afirmar a diferença e a segmentação socioespacial no interior da cidade.

A estratégia que orienta essa forma de produção do espaço urbano contém, em seu discurso mercadológico, elementos contraditórios entre si.

De um lado, há afirmação de que a implantação da edge city trará para Rio Preto “uma tendência mundial consagrada: as edges cities”, afirmação essa que tem embutida a idéia de que o empreendimento é parte da cidade e propicia, a ela, a incorporação de atributos que, além de serem modernos, são de âmbito mundial.

De outro, o discurso segmenta a cidade e a nega como totalidade ao frisar todas as vantagens da localização sul – “região de maior valorização de Rio Preto”, segundo o folder de propaganda – e ao oferecer aos moradores do loteamento a possibilidade de viver em Rio Preto sem precisar ir à sua área central, ou seja, circunscrevendo suas práticas socioespaciais aos setores da cidade em que imperam a distinção e a homogeneidade socioeconômica.

Esses são, a nosso ver, elementos claros de um processo de fragmentação urbana que se efetiva no plano social e espacial, mas que contém características muito próprias de um país em que sempre se procura a modernização, sem se chegar à modernidade, tal como Campos afirmou (2002, p. 27), justificando assim sua análise:

“No Brasil, a problemática da modernização relaciona-se, antes de tudo, com o seu reverso, ou seja, o ‘atraso’. O país se insere no mundo moderno, mas em posição dependente e secundária. Nosso processo modernizador esbarra, assim, em um paradoxo: consolidar a participação brasileira na hierarquia global que define os atributos da modernidade equivale a reafirmar esse status ‘atrasado’ e a própria dependência.”

Essa modernidade não alcançada completamente revela os impasses e contradições na lógica que produz e reestrutura nossas cidades. Fazendo-se um paralelo, a lógica da fragmentação urbana não se impõe, no nosso caso, superado a lógica da segregação, mas com ela convive contraditoriamente.

Partindo-se da proposição de Salgueiro (2001, p. 186), ao analisar Lisboa, podemos reconhecer, no caso em estudo, algumas das características da fragmentação urbana:

“... para nós, a fragmentação se opõe à segregação essencialmente pela escala a que opera, especialização a nível micro por oposição à especialização extensiva da segregação.

Enquanto a segregação de raiz social era hierárquica, pois traduzia o escalonamento social baseado na divisão tradicional em classes, a nova fragmentação social dos território responde a um diferenciação social dos indivíduos e grupos mais complexa que nem sempre é hierárquica, porque baseada num leque mais amplo de factores de  estratificação.

[...]

Ao contrário da cidade segregada e zonada, na cidade fragmentada, porque a especialização dos território é muito fina, existe proximidade geográfica de grupos sociais diferentes ou mesmo mistura, num mesmo complexo imobiliário, de actividades outrora fisicamente separadas e distante.”

O enfoque da edge city de São José do Rio Preto leva ao reconhecimento de alguns elementos da fragmentação urbana, ao se constatar a reversão da tendência anterior de separação ou especialização funcional em larga escala, substituída pela proposta de implantação que propicia proximidade entre o uso residencial e os equipamentos comerciais e de serviços, gerando, portanto, a mistura, a que se refere a autora,  num mesmo complexo imobiliário, de atividades que estavam antes separadas ou que se pretendia, pela lei de zoneamento que estivessem separadas, já que a cidade real e possível, no caso brasileiro, muito se distancia da cidade que a legislação idealiza.

Entretanto, no caso em estudo, não se pode reconhecer a superação da tendência à separação espacial que reflete hierarquia social, como é típico da cidade segregada. Há claros elementos de permanência da segregação, tendo em vista a opção dos moradores dos loteamentos fechados pelos controles de acesso às suas áreas residenciais, pela negação às áreas públicas da cidade, que está fora dos muros que os protegem e os distinguem, enfim, pela auto-segregação. O poder de consumo da mercadoria imobiliária, que se apresenta com o invólucro de vários atributos modernos, é, sem dúvida, o que designa a distinção social dos moradores desses enclaves.

Do ponto de vista da estrutura urbana, a emergência e proliferação dos loteamentos fechados cria a multiplicação de enclaves urbanos, áreas em que a homogeneidade social e o habitat, designando um padrão de consumo, mostram que o pertencimento dessas áreas à cidade, plural, desigual e perigosa, é negado e justificado pela busca de qualidade de vida e segurança.

Do ponto de vista dos empreendedores, e moradores dos loteamentos que incorporam o discurso de quem os produz, a cidade é um apêndice de seus enclaves murados, pois não é vista como totalidade, mas apenas como portadora, nas proximidades dos empreendimentos fechados, dos bens e serviços de que necessitam os moradores da edge city.

 

Notas

* Pesquisa realizada com o apoio do CNPq.- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

1 O termo “enclaves fortificados” foi utilizado por Caldeira (2000) para fazer referências aos loteamentos fechados na Região Metropolitana de São Paulo. Salgueiro (2001) refere-se aos enclaves para designar áreas que, de alto ou baixo padrão de ocupação, distinguem-se pela homogeneidade interna e pela diferença que apresentam em relação às áreas de seu entorno urbano imediato.

2 Fonte: Censo Demográfico – IBGE – 2000.

3 A evolução demográfica do município de São José do Rio Preto e sua crescente taxa de urbanização ajudam a observar esse dinamismo, como mostram os dados: 1960 – 84 039 habitantes (81%); 1970 – 122 134 habitantes (89%); 1980 – 188 601 habitantes (94%); 1991 –   283 761 habitantes (97%), 2000 – 358 523 habitantes (94%) (fonte: Censos Demográficos – IBGE – 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000).

4 Em SPOSITO (1991), há um estudo da verticalização nos anos de 1980, em 27 cidades paulistas, com destaque para as cidades de São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e Presidente Prudente. 

5 No Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, o aumento populacional, sobretudo urbano, acompanhado de grande crescimento econômico e de recursos públicos para financiar a construção e aquisição da casa própria, com os fundos do Sistema Financeiro Habitacional – SFH – geraram condições favoráveis para que grande parcela da sociedade pudesse adquirir seu primeiro imóvel residencial.

6 Sobre esses novos empreendimentos não foi possível, ainda, obter informações precisas acerca do número de lotes, área dos lotes e área de lazer.

7 A Tarraf Construtora já atuava no ramo de produção imobiliária nas décadas anteriores, quando foi responsável pela construção de vários edifícios de apartamentos. A Rodobens Engenharia é uma empresa do Grupo Verdi que atua em vários ramos de atividades e mesmo mantendo esse perfil diversificado tem demonstrado interesse crescente no ramo imobiliário.

8 O Grupo Verdi já operava com consórcios para a venda de veículos.

9 O preço do m2 construído dentro do South Valley é de cerca de 1 150 reais, enquanto em outros loteamentos da cidade este preço fica entre 800 e 900 reais. A diferença é significativa, quando se considera que, em média, os lotes dos loteamentos abertos têm área muito maior que os deste loteamento fechado.

10 Campos (2002) apresenta uma análise bastante ampla das razões que explicariam o que ele denomina de modernização periférica.

11 Em Barajas (2002), o leitor encontrará o resultado de pesquisas realizadas por profissionais de diferentes áreas de formação (sociólogos, geógrafos, antropólogos etc) que estudam o fenômeno dos loteamentos fechados em diferentes países latino-americanos (México, Argentina, Brasil, Chile etc).

12 Le Corbusier (1977, p. 63-64) mesmo propondo a separação das diferentes funções urbanas, faz referência à importância das habitações terem perto de si a possibilidade de satisfazerem suas necessidades “materiais” e “espirituais”, a partir do que ele chamou de equipamento quotidianos e faz alusão à importância de se considerar a função tempo-distância para se medir a proximidade entre moradias e equipamentos necessários à satisfação de necessidades de diferentes ordens.

13 Trata-se da Lei nº 9 785 de 29 de janeiro de 1999, que altera a Lei 6 766 de 19 de dezembro de 1979 (referente ao parcelamento do solo urbano). Enquanto a lei anteriormente em vigor, estabelecia a exigência de, no mínimo 35% da gleba, para uso público, a nova lei em seu artigo 4º - item I prevê que “as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situam”. Esta mudança faz toda a diferença porque ela dá espaço à implantação de se a definição de parâmetros, quando o município não tem plano diretor, o que ocorre com a maior parte dos municípios brasileiros, e à premiação dos interesses particulares, em função de alianças entre empreendedores e os representantes do poder legislativo e executivo.

14 As exceções dessa tendência à diminuição da área destinada ao lazer são os loteamentos Bourganville e Residencial Márcia. No primeiro caso, observa-se o não atendimento da legislação urbana, em 1974, em função da localização da área fora do perímetro urbano, quando da implantação do loteamento. No que se refere, ao Residencial Márcia, os dados mostram que o percentual destinado à área de lazer – 24,97% - é maior do que o percentual dos outros loteamentos implantados no decorrer da década de 1990, todos abaixo de 20%, mas o grande número de lotes – 607 – leva a uma área média de lazer por lote não tão elevada, comparativamente, aos outros empreendimentos do mesmo período.

 

Bibliografia citada

BARAJAS, Luis Felipe Cabrales (org.). Latinoamérica: países abiertos, ciudades cerradas. Guadalajara, 2002.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo.  São Paulo: Editora 34: EDUSP, 2000.

CAMPOS, Cândido Malta. Os rumos da cidade – urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Editora Senac, 2002.

LE CORBUSIER. Maneira de pensar o urbanismo. Sintra: Publicações Europa-América, 1977.

SALGUEIRO, Teresa Barata. Cidade pós-moderna: espaço fragmentado. Território. Rio de Janeiro: LAGET/UFRJ, n. 4, jul. 1998, p. 39-53.

SALGUEIRO, Teresa Barata. Lisboa, periferia e centralidades. Oeiras: Celta Editora, 2001.

SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. O chão arranha o céu: a lógica da reprodução monopolista da cidade. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991 (tese de doutorado) © Copyright Maria Encarnação Beltrão Sposito, 2003

© Copyright Maria Encarnação Beltrão Sposito , 2003
© Copyright Scripta Nova, 2003

Ficha bibliográfica:
SPOSITO, M. E. B. A cidade dentro da cidade. Uma edge city em São José do Rio Preto . Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(045). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(045).htm> [ISSN: 1138-9788]


 
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