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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(046), 1 de agosto de 2003

A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NA METROPOLE DE SÃO PAULO

Ana Fani Alessandri Carlos
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

A questão da habitação na metrópole de São Paulo (Resumo)

O processo de reprodução do espaço urbano na metrópole de São Paulo, sob a égide do capital financeiro- tem se realizado, hoje, com fortes implicações no ato do "morar". Neste plano - aquele do cotidiano-a prática sócio espacial é invadida pelas possibilidades, sempre ampliadas, de realização da acumulação, impondo  fortes restrições as formas de apropriação. Como conseqüência, o uso produtivo do espaço se impõe reduzindo o ato de morar  a uma finalidade utilitária. Este processo produz a fragmentação do espaço e, como consequência a segregação.

Palavras chaves: espaço urbano, habitação, metrópole, uso do solo.

The housing question in the São Paulo metropolis (Abstract)

The process of space reproduction in the metropolis of São Paulo under the shelter of the capital has been realized, today, through dramatic  implication to the act of "dwelling". In this plan - that of the daily events - the social-spacial practice is invaded by the possibilities, always enlarged, of realization of accumulation, imposing strong restrictions to the ways of appropriation. The aftermath, the use of the productive space is imposed bringing the act of dwelling down to a practical end. This process causes the fragmentation of space and, as a consequence, segregation.

Key words: urban space, habitation ,metropolis, land use.

Este texto tem como objetivo esboçar as bases teóricas a partir da qual podemos entender a questão da habitação, hoje em São Paulo, no momento em que, o processo de reprodução do capital apresenta novas estratégias - isto é, o processo de reprodução de frações do capital (tanto o industrial, como o financeiro) só pode se realizar produzindo um "novo" espaço que entra em conflito com os espaços da moradia.

As relações sociais, na metrópole, podem ser lidas no plano da vida cotidiana, enquanto prática sócio-espacial, concretizadas no modo como as pessoas se apropriam do espaço, ao mesmo tempo, organizado pelas técnicas, invadido por modelos sócio-culturais, dominado pelo Estado, fragmentado pelas estratégias dos empreendedores imobiliários. Esses planos justapostos (econômico e político) invadem os lugares onde se realiza a vida humana determinando-a, pois influencia / limita o uso dos lugares.

Com estas observações, chamo atenção para o fato de que, o espaço da habitação, na realidade, não pode ser restrita ao plano da casa; o sentido do habitar é muito mais amplo, envolvendo vários níveis e planos espaciais de apropriação, iluminando uma articulação indissociável, entre espaço-tempo na medida em que o uso do espaço se realiza enquanto emprego de tempo. Assim a prática sócio-espacial, no plano do vivido, aparece, enquanto modo de apropriação dos lugares onde se realiza a vida cotidiana em seu conjunto. Todavia, o espaço, hoje, esta submetido ao valor de troca, pela generalização do mundo da mercadoria, o que significa que os modos possíveis de apropriação se realizam nos limites e interstícios da propriedade privada do solo urbano, delimitando o acesso à moradia (definido e submetido pelo mercado do solo), ao mesmo tempo, em que determina e orienta outras formas de uso (áreas de lazer, por exemplo).

A apropriação do espaço para a vida, se transforma, em função das estratégias do poder e das frações do capital no espaço, a partir da habitação. Primeiramente, porque, o homem habita e se percebe no mundo a partir de sua casa, ela é, como afirma Ecléa Bosi (1), "o centro geométrico do mundo para o habitante". Assim, a casa, envolve outras dimensões espaciais como a rua, depois o bairro; estes criam o primeiro quadro de articulação espacial no qual se apóia a vida cotidiana. Como decorrência, as formas materiais arquitetônicas guardam um conteúdo social vindo da prática espacial enquanto modos de usos dos lugares. É como uso, isto é através do corpo em ato e movimento que os habitantes se identificam com os lugares onde se realizam os atos mais banais da vida. É a produção desta identidade que a memória ilumina, tornando-as presente e, dando-lhes espessura, na medida em que, a elas é conferido um conteúdo no presente. Convém lembrar que a identidade sustenta a memória. Nesta direção, as formas urbanas guardadas na memória articula espaço e tempo, construídas a partir de uma experiência vivida num determinado lugar. Nesse sentido a construção do lugar se revela, fundamentalmente, enquanto construção de uma identidade.

O habitar implica, portanto, um conjunto de ações que articula também planos e escalas espaciais (o público e o privado; o local e o global) que envolve a vida que se realiza pela mediação do outro, imerso numa teia de relações que constrói uma história particular, que é, também, uma história coletiva, onde se insere e ganha significado a história particular de cada um. A articulação entre o público e o privado se coloca como condição necessária da constituição do sujeito coletivo, como da constituição da vida. Portanto, a condição da reprodução da vida humana, pode ser analisada em dois planos: o individual (que se revela, em sua plenitude, no ato de habitar) e o coletivo (que diz respeito a reprodução da sociedade). No caso de São Paulo, a produção dos espaços da habitação, revela um processo profundamente segregador. Os espaços fragmentados comprados e vendidos no mercado imobiliário sedimentam , no espaço, a desigualdade social.
 

Habitar a metrópole

O habitar - que guarda a dimensão do uso - envolve um lugar determinado no espaço, portanto uma localização e uma distância que se relaciona com outros lugares da cidade e que, por isso, ganha qualidades específicas. Nessa direção, o espaço do habitar tem o sentido dado pela reprodução da vida, tratando-se do espaço concreto dos gestos, do corpo, que constrói a memória, porque cria identidades, através dos reconhecimentos, pois aí coabitam objetos e o corpo.

Aqui, o mundo humano é objetivo e povoado de objetos que ganham sentido a medida em que a vida se desenvolve, como modos de uso da casa, da rua, da cidade, formando, por intermédio desta ação, um conjunto múltiplo de significados. Estes, por sua vez, constituem o mundo da percepção sensível, carregado de significados afetivos, ou representações que superam o instante, e, nesta condição, são capazes de traduzir significados profundos sobre o modo como estas seconstruíram ao longo do tempo. Estes são os conteúdos, possíveis, dos lugares da metrópole. O ato de "habitar" esta na base da construção do sentido da vida, nos modos de apropriação dos lugares da cidade, a partir da casa. Significa afirmar que o ato do habitar produz a "pequena história", aquela construída nos lugares comuns, por sujeitos comuns, na vida cotidiana.

É nesse sentido que ao uso produtivo - a cidade produzida dentro dos estritos limites da produção econômica, enquanto condição da produção/reprodução do capital - se impõe o uso improdutivo do espaço centrado na vida cotidiana. Numa metrópole que se transforma rapidamente apoiada num planejamento autofágico - onde novas formas urbanas se impõe pela destruição das antigas através, dos múltiplos processos de intervenção na metrópole - o ato de habitar é sempre redefinido. Neste processo, não raro, é destituído de sentido, pois os homens se tornam instrumentos no processo de reprodução espacial, e suas casas se transformam em mera mercadoria passíveis de serem trocadas ou derrubadas (em função das necessidades do desenvolvimento econômico que tem na reprodução do espaço urbano, condição essencial da acumulação, hoje na metrópole). É assim que a atividade humana do habitar, do estar com o outro, do reconhecer-se neste lugar e não naquele, se reduz a uma finalidade utilitária. Trata-se do momento em que a apropriação passa a ser definida no âmbito do mundo da mercadoria.

Assim, o uso é submetido, no mundo moderno, à propriedade privada, ao império da troca, num processo em que o espaço se reproduz enquanto mercadoria cambiável, o que vai delimitando os espaços passíveis de apropriação, revelando a sua fragmentação imposta pelo sentido e amplitude da generalização da propriedade privada do solo urbano. Como consequência, a vida se normatiza em espaços reduzidos a uma função específica e, quanto mais funcionalizado é o espaço, menos ele se presta a apropriação. Nesse processo, o cidadão se reduz à condição de usuário, enquanto o ato de habitar se reduz àquele do morar (strito sensu).

Estes processos se referem a uma prática que vai, em direção à segregação sócio espacial visível no plano da paisagem que revela uma morfologia, que espelha uma hierarquia social definida, na medida em que a habitação é a forma mais imediatamente visível das diferenciações de classe no espaço. Nesta dimensão o espaço e o tempo se apresentam entrecortados, em fragmentos, por atividades divididas e circunscritas. Nesse sentido, o habitar enquanto ato social vai desaparecendo, transformando a habitação em abrigo ou fuga. Como conseqüência, assiste-se, na metrópole a criação de lugares próprios, com usos específicos, onde as possibilidades do uso público se restringem a pobreza dos espaços semi-públicos, vigiados, como é o caso dos shoppings centers, que ganham papel importante como lugar de lazer do paulistano, principalmente nos finais de semana, em detrimento das ruas. Ruas vazias nas áreas centrais e de renda média ou alta, ruas cheias nas periferias pobres, o "cheio e o vazio" vão marcando o modo como se realizam os atos de apropriação.

Assim, na metrópole, o ato de morar revela, antes de mais nada, o modo como o processo de segregação se realiza espacialmente, iluminando uma prática que justapõe morfologia social/ morfologia espacial estratificadas e hierarquizadas. Neste sentido o movimento da reprodução da metrópole, revela os conflitos e limites da reprodução social apontando uma contradição fundamental no movimento do processo de reprodução da cidade entre valor de uso e valor de troca do espaço - impressa nas possibilidades de apropriação do espaço da vida.

Este processo, visível na paisagem, revela o modo pelo qual a reprodução da sociedade se realiza enquanto reprodução do espaço, apontando estratégias e limites - estas, por sua vez, se articulam, no sentido de criar possibilidades para a reprodução continuada - e, neste sentido, a produção do espaço aparece como possibilidade renovada de realização da vida.

A segregação como produto

A reprodução da metrópole se realiza enquanto explosão da cidade como extensão do tecido urbano, pela generalização da urbanização revelada enquanto prática, na vida cotidiana. A segregação se apóia na existência da propriedade privada do solo urbano, que diferencia o acesso do cidadão a moradia, e enquanto fragmentação dos elementos da prática sócio espacial urbana - pois na metrópole se acham separados os lugares da vida, enquanto elementos autônomos. Nesta condição a segregação é a negação do urbano e da vida urbana. Esta segregação assume, no entanto, várias facetas indicando processos diferenciados, apesar de justapostos. A prática espacial revela, por sua vez, que a segregação ocorre ligada a vários elementos (2):

a) pode ser espontânea, referindo-se a uma estratégia de classe, que a partir de uma diferenciação de renda, localiza as pessoas diferencialmente na metrópole, uma vez que, o uso esta subordinado, ao fato, de que o solo urbano ter valor e, portanto, seu uso se submete à realização do valor, através de um ato de troca. Nesta direção o mercado de terras na cidade distribui a população no espaço baseada na racionalidade da propriedade privada. Nesse sentido é produto da estratégia de uma classe. É assim que a morfologia social se materializa enquanto morfologia espacial o que se revela, por exemplo, na seqüência da paisagem dos bairros que se produzem enquanto fragmentos que tendem a totalizar os planos da vida.

De um a lado, a presença cada vez maior dos condomínios fechados, de outro as imensas periferias com moradias auto-construídas - o que significa que as estratégias se referem, na metrópole, a várias classes de renda - cada uma com estratégia diferenciada, mas todas elas realizando a segregação. No caso das classes de baixo poder aquisitivo a estratégia não é a de separar-se da cidade e de outras classes, mas uma estratégia de sobrevivência, realizada, portanto, nos limites das necessidades de reprodução da vida na construção das áreas de favelas.

Os condomínios fechados apontam, para além da necessidade e vontade de isolamento, (aqui referenciada, pela a espontaneidade com que as classes de poder econômico semelhante se localizam no espaço), a realização de estratégias imobiliárias que tem gerado na metrópole, o estabelecimento de espaço, separados e murados. Aqui o "espontâneo", se acha capturado, pela estratégia do mercado imobiliário onde o solo urbano adquire plenamente a condição de mercadoria. Aqui o espaço tornado raro, custoso, de luxo, é mantido por várias estratégias como circuito da reprodução do setor imobiliário.

No caso das favelas e das áreas de auto construção localizadas na periferia da mancha urbana revelam estratégias de sobrevivência numa metrópole onde os preços do solo e a economia de mercado, impedem o acesso à moradia de população de baixa renda em áreas centrais e com infra -estrutura.

b) Há também o que Henri Lefebvre chama de "segregação programada" que se realiza pela intervenção do Estado através de políticas urbanas orientadas pelas exigências da reprodução. Isto é, a intervenção do Estado no espaço, seja diretamente, através da construção de infra estrutura, seja através das políticas urbanas, incentiva o deslocamento das atividades, transforma as funções dos lugares, gerando um movimento de valorização / desvalorização dos lugares. No caso da valorização, esta é apropriada pelo setor imobiliário, enquanto a desvalorização, aponta a degradação da vida, pois em muitos casos, a intervenção do estado, destrói a morfologia da cidade, expulsando o corpo. Tal fato, ameaça, diretamente, a vida urbana a partir da destruição de áreas imensas, com a perda das relações de vizinhanças, diminuição das possibilidades de encontro, deterioração dos espaços públicos, bem como, pela excessiva normatização dos lugares da vida permeados de interditos que esvaziam o uso.

c) mercantilização do solo urbano tornado mercadoria. Nesta dimensão as estratégias imobiliárias se inscrevem no espaço da metrópole revelando uma lógica: o espaço adquire valor de troca supondo uma intercambialidade, nesta dimensão se trata da realização espacial da racionalidade da propriedade privada.

O espaço da moradia, na metrópole, se vê modificado hoje, como decorrência das transformações do processo produtivo. A reprodução do ciclo do capital exige, em cada momento histórico, determinadas condições para sua realização; a dinâmica da economia metropolitana, antes baseada preferencialmente, no setor produtivo industrial, vem se apoiando, agora, também num amplo crescimento do setor terciário moderno - serviços, comércio, setor financeiro - como condição de desenvolvimento, numa economia globalizada. Tal transformação requer a "produção de um novo espaço", como condição da acumulação, que se realiza a partir da expansão da área central da metrópole (até então lugar precípuo de realização desta atividade) em direção a região sudoeste da metrópole, o que redefinirá as condições de moradia nesta área.

Na metrópole as áreas tradicionais, em torno do centro, se encontram densamente ocupadas e o sistema viário congestionado, o que entra em conflito com as necessidades de expansão do setor de serviços, agora sob novos padrões de competitividade da economia, apoiada num profundo desenvolvimento técnico, que impõe novos parâmetros para o desenvolvimento desta atividade (inclusive construtivos). A superação desta situação requer a construção de um "novo espaço", como área de expansão, porque a centralidade é fundamental neste tipo de atividade, não podendo se instalar em qualquer lugar do espaço metropolitano.

O que há de novo neste processo, hoje, é que a condição do processo de reprodução se faz através de uma ampla aliança entre as frações de capital (industrial e financeiro) e o Estado. Aqui o que se pode chamar de "setor imobiliário" revela, que num determinado momento, a reprodução se realiza enquanto "conquista do espaço" isto é, num momento de crise do setor industrial, o processo de reprodução do espaço da metrópole aparece como estratégia de realização do capital financeiro na medida em que este passa a investir na produção imobiliária enquanto aplicação de capital, na produção dos edifícios de escritórios modernos. Mas como a metrópole esta completamente edificada - nas áreas centrais - a expansão do centro só pode se realizar a partir da destruição de bairros residenciais, expulsando seus moradores para outras áreas e eliminado as favelas que se encontram no meio do caminho, como conseqüência imediata do processo de valorização das terras urbanas, apoiado no discurso do progresso. Este circuito passa a ser central para a reprodução hoje.

O movimento centro-perifieria

A paisagem é uma forma histórica específica que se explica através da sociedade que a produz, um produto da história das relações materiais dos homens que, a cada momento, adquire uma nova dimensão; a específica de um determinado estágio do processo de trabalho vinculado à reprodução do capital. O plano do habitar revela algumas das estratégias da reprodução econômica enquanto processo de valorizada de áreas - apontando um movimento centro-periferia.

Os mecanismos que produzem a moradia, no espaço, revelam a extrema segregação pelas mudanças profundas no uso, impostas pela necessidade da reprodução do capital revelando no plano da prática sócio espacial a fragmentação dos lugares submetidos a funcionalização. A casa-mercadoria, tem o sentido estrito da função de moradia. A prática espacial urbana revela, assim a extrema separação/ dissociação dos elementos da vida fragmentada, projetando a separação dos momentos da vida cotidiana, ao separar cada vez mais os locais de moradia daqueles de trabalho e criando lugares de lazer na medida em que as ruas dos bairros se esvaziam como lugar de lazer e pontos de encontro.

O motor do processo de produção espacial da cidade também será determinado pelo conflito a partir das contradições inerentes às diferenças de necessidades e de pontos de vista de uma sociedade de classes, manifesta na propriedade privada do solo e, conseqüentemente, no seu uso.

As habitações mais "pobres" localizam-se, obviamente, nos terrenos mais baratos junto às áreas com insuficiência ou inexistência de infra-estrutura, junto às indústrias, nas áreas alagadiças às margens dos rios e córregos ou mesmo nos morros. As favelas localizam-se nas áreas onde a propriedade privada da terra em princípio não exerce seu poder, isto é, terras da prefeitura ou áreas em litígio. Não necessariamente nas áreas periféricas, enquanto muitos cortiços se localizam nas áreas centrais da metrópole. Sua cor é diferenciada das áreas "ricas", enquanto estas são verdes, com casas amplas e de variadas dimensões e estilos muitas com arquitetura arrojada, e ruas vazias, as moradias pobres apresentam-se amontoadas num misto de auto-construção e favelas, construídos em terrenos pouco valorizados (posto que se infra-estrutura) onde se aglomera uma massa de trabalhadores e desempregados , em locais cada vez mais distantes daquele de trabalho (o que os obriga a gastos excessivos de horas de transporte, inúmeras baldeações, diminuindo mais ainda o tempo de lazer, além dos custos que consome o já "minguado" salário do trabalhador), cuja tônica é a quase ou total inexistência de infra-estrutura (rede de água, luz, esgoto, limpeza pública, asfalto, escolas, pronto-socorros, hospitais, etc.) caracterizando-se como áreas de condições sub-humanas de moradia. Mas com ruas animadas. Mas quanto à localização das residências divididas em bairros nobres e pobres,em São Paulo, não se repete o clássico modelo centro-periferia como podem ser revelado pela presença dos cortiços no centro e os luxuosos condomínios fechados na periferia da mancha urbana.

O momento da reprodução de espaços para a habitação produz a forma dos condomínios na metrópole, enquanto áreas fechadas, muradas, pretensamente homogêneas, como uma das formas da segregação no espaço - revelando uma estratégia imobiliária que se realiza sob o "discurso" da necessidade de um "outro modo de vida" capaz de fazer frente, ou melhor de isolar/ poupar e proteger os indivíduos numa metrópole que se torna congestionada e violenta e de outro, a necessidade de se morar em meio ou próximo ao verde, que a metrópole, em seu crescimento, destruiu (como aparece nos folhetos de venda de imóveis). Nesta direção, a estratégia imobiliária cria também um discurso "anti-cidade", para continuar reproduzindo a metrópole.

Nos anos 70/80 a produção destas "formas" ocorre na periferia, mas nos últimos anos, esta estratégia, mais do que a forma, se realiza, "em áreas centrais" da metrópole, como necessidade imposta pela necessidade de se fechar, mesmo dentro das áreas centrais. É assim que, em "áreas nobres", constatamos o fechamento de ruas com guaritas e guardas de segurança que impedem a entrada de "estranhos" - entendendo, por esse termo, todos aqueles que não moram nas casas delimitadas pelas guaritas". Nesta situação, o outro da relação se torna o ausente. Os espaços sociais se fecham, fragmentando-se. As relações de sociabilidade se esvaziam. Os espaços da habitação se reproduzem simulando "o mundo todo" e cobrindo todas as necessidades do "homem civilizado".

A metrópole se produz, assim, como exterioridade em relação ao cidadão. Se no primeiro caso, os condomínios revelam explicitamente, a estratégia do mercado, a recriação "do sentido do isolamento ou da criação do gueto", hoje, ocorrem em alguns bairros de população de classe de renda alta e se realiza sem a mediação do mercado imobiliário. Aqui os espaços fragmentados, são capazes de produzir o mesmo espírito de isolamento, e a "sensação de segurança e exclusividade" que "merecem ou sonham" os habitantes das classes de renda mais alta. Estes, realizam o lugar enquanto ideologia, como auto-segregação. Aqui, a forma ganha novo uso; ou, melhor um, não -uso; o fechamento da rua, o isolamento da rua no bairro, liquida o que o automóvel (no nível do público) e a Tv (no do privado) haviam começado; a dissolução das relações, pela perda e/ou redução dos espaços-tempos da vida cotidiana.

Essa estratégia, revelou aos empreendedores imobiliários que havia um novo "filão" de mercado e ser explorado, a construção dos condomínios horizontais que ainda são possíveis em terrenos com baixa densidade construtiva - subordinando o uso, à troca. Portanto, podemos dizer que, de um lado temos uma forma de segregação "espontânea" - ligada à ideologia da classe-, e de outro, a segregação "orientada" pelas estratégias imobiliárias, como condição da constante necessidade de reprodução do mercado imobiliário na metrópole, a partir da expansão de seus limites - generalizando a segregação, ao mesmo tempo em que desagregam os laços sociais. Isto porque, no plano do uso, estas formas negligenciam a vida urbana, empobrecendo as relações sociais, absolutizando o sentido da rua enquanto passagem (restrita), normatizando as relações, excluindo, organizando a vida cotidiana dentro de parâmetros bem delimitados tanto no emprego do tempo quanto no uso do espaço. É assim que a fragmentação revela a segregação. Esse processo, que se realiza como norma, invade o espaço privado, sem, no entanto, recriar identidades ou"pertencimentos".

O espaço metropolitano revela, também, outras formas de segregação em outros níveis e dimensões como conseqüência, da reprodução "desigual" do espaço a partir do modo como as contradições vão "se colocando" para a sociedade. Neste sentido a segregação pode assumir novas formas ou mesmo mantê-las com nova função - o que pode atualizar o tema da segregação (teórico e prático).

Por outro lado, o processo de acumulação se generaliza no espaço ao mesmo tempo tornado condição e produto deste processo. Neste contexto, o conteúdo da urbanização apareceria como momento determinado da reprodução em função das novas possibilidades/necessidades de realizar a acumulação. O espaço, condição da produção do capital, ganha uma dimensão instrumental, enquanto que, do ponto de vista do Estado - que regulariza os fluxos e controla a sociedade - aparece como instrumento de dominação estruturando a reprodução das relações sociais de produção.

Neste momento, o aprofundamento da divisão social e espacial do trabalho se baseia numa nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da técnica aplicada à produção e a gestão e da supremacia de um poder político que tende a homogeneizar o espaço através do controle e da vigilância. Nesta direção as mudanças no plano da sociedade se revelam enquanto mudanças espaciais, isto é,como transformações, na prática sócio espacial.

A raridade dos lugares

A escassez dos espaços disponíveis na metrópole paulista obriga as empresas, voltadas ao setor de serviços modernos e o setor financeiro, aoptarem por novas localizações dentro da metrópole gerando um movimento espacial onde o processo de reprodução espacial gera novas centralidades. Esta área de expansão da atividade de serviços modernos vai se constituindo num pólo de atração de investimentos imobiliários, capaz de sediar as novas funções que se desenvolvem, hoje, onde o tratamento arquitetônico dos edifícios atrai uma ocupação diferenciada de alto padrão como decorrência da aplicação de novas tecnologias (gerenciamento e manutenção dos edifícios passa a ser um dado importante).

A nova atividade econômica que se desenvolve na metrópole alia-se as necessidades da reprodução dos investimentos, é a idéia de que se produz uma mercadoria para o desenvolvimento de uma atividade econômica ao mesmo tempo para o mercado financeiro enquanto investimento, desenvolvendo o mercado de locação de escritórios através do desenvolvimento da indústria da construção civil; por outro lado responde as necessidades do setor terciário que, para diminuir custos (numa economia altamente competitiva) prefere alugar o imóvel ao invés de imobilizar capital na compra de um imóvel próprio compensando as dificuldades no circuito normal de produção-consumo, apontando uma estratégia de aplicação de capital. Nesse caso o capital financeiro, associado ao capital industrial (o setor de construção civil), atendendo a uma nova demanda da economia, - o crescimento do setor de serviços - precisa, para se desenvolver, da aliança dos empreendedores imobiliários com o poder municipal garantido a gestão da cidade dentro dos padrões necessário a reprodução continuada do capital. Como conseqüência, a intervenção do Estado vai produzir ou aprofundar as desigualdades no que se refere a aplicação dos investimentos com a valorização da área atingida, em detrimento de outras áreas e de outros lugares da metrópole. Por outro lado, a renovação urbana interfere no mercado de solo urbano na medida em que com o processo de desapropriação dos proprietários das casas na área; cria para o mercado imobiliário a possibilidade de reocupar o espaço com outro uso, outro padrão de construção e outra densidade de ocupação, expulsando do lugar a "população residente" (3). Tal fato aprofunda a segregação.

É assim que, no plano da reprodução do capital, ametrópole transforma-se na "cidade dos negócios",ocentro darede de lugares que se estrutura no nível do mundial commudanças constantes nas formas urbanas - tanto no uso quanto na função. Como decorrência tanto a silhueta dos galpões industriais quanto das residências dão lugar a novos usos ora substituídos por altos edifícios de vidro, centros de negócios, shopping centers,ou mesmo igrejas evangélicas, como produto damigração do capital para outras atividades econômicas, reforçando a centralização econômica, financeira e política da metrópole. A produção deste "novo espaço" de acumulação expulsa as residências em detrimento dos escritórios.

A metrópole enquanto exterioridade

O raciocínio aqui desenvolvido leva a conclusão que o uso produtivo do espaço (o espaço enquanto condição da reprodução econômica) se impõe sobre o improdutivo, aquela da vida cotidiana (isto, é, as possibilidades de realização da apropriação dos lugares da vida, sem a mediação do mercado). A dinâmica espacial da atividade econômica em curso, que desconcentra a indústria da metrópole, trazendo ao lado do crescimento e importância do setor financeiro e de serviços modernos, as atividades voltadas ao setor de turismo, lazer, cultura,etc produz contradições.

Os diversos usos, na metrópole, entram em conflito, na medida em que são contraditórios os interesses do capital e da sociedade. Enquanto o primeiro tem por objetivo sua reprodução através do processo de valorização, a sociedade anseia por condições melhores de reprodução da vida em sua dimensão plena. São os diversos modos de apropriação do espaço que vão pressupor as diferenciações de uso do solo e a competição que será criada pelos usos, e no interior do mesmo uso. Como os interesses e as necessidades dos indivíduos são contraditórios, a ocupação do espaço não se fará sem lutas. Esse processo de apropriação faz aparecer por todos os lados a desigualdade entre o "rico" e o "pobre" (entre centro e periferia e dentro de cada um) e entre este a "miséria absoluta" representadas por aqueles que moram embaixo das pontes ou nos bancos das praças. A disparidade também expressa-se nas construções, na existência e/ou qualidade da infra estrutura, na roupa e rostos (na rudez ou suavidade de traços).

A metrópole também vai se constituindo eliminando os pontos de encontro, o lugar da festa; tragando os rituais e seus mistérios e, com isso elimina as antigas referencias destruindo a memória social e fragmentando o espaço e as relações do indivíduo, através da descaracterização decorrente da transformação de bairros inteiros.

A constituição da metrópole traz em si a idéia de que a cidade vai crescendo, incorporando novas áreas (vazias, agrícolas) adensando outras, verticalizando as áreas centrais. Como contrapartida, o ser humano parece desaparecer na metrópole, vira multidão: vontades e desejos não satisfeitos; impotência diante do cotidiano repetitivo e alienado. Há uma distância muito grande, entre o ato de produzir as obras (e produtos) e o ato de apropriar-se delas o que faz com que a identificação do homem com aquilo que o cerca apareça como estranhamento. Esses fatos também revelam um forte movimento em seu sentido inverso, a construção da metrópole enquanto possibilidade; o que se revela pelo movimento dos "sem teto" no centro da metrópole, pelos corpos que teimam em "tomar as ruas centrais" em manifestações, pelas transgressões as normas impostas ao uso do espaço. Deste modo, a metrópole revela em seu constante processo de reprodução as contradições do processo de produção do espaço.
 
 

Notas

1 Bosi, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p.435.

2 apontado por Henri Lefebvre em La révolution urbaine .Gallimard, Paris, 1970

3 Ana Fani A. Carlos, Espaço tempo na metrópole Ed Contexto, são Paulo, 2001
 

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Ficha bibliográfica:
CARLOS, A. F. A. A questão da habitação na metrópole de São Paulo. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(046). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(046).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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