Menú principal

Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(081), 1 de agosto de 2003

OS PAPÉIS URBANOS NA REGIÃO DE CATANDUVA/SP: RELAÇÕES ENTRE A PRODUÇÃO DE MORADIA E O TRABALHO VOLANTE

Mara Lúcia Falconi da Hora Bernardelli
UNESP Presidente Pudente, Brasil


Os papéis urbanos na região de Catanduva/SP: relações entre a produção de moradia e o trabalho volante (Resumo)

A questão central que orientou o trabalho constituiu-se em investigar a relação entre a produção conjuntos habitacionais nos pequenos municípios da região de Catanduva (Estado de São Paulo, Brasil) e sua ocupação por expressiva parcela de trabalhadores vinculados à agroindústria sucro-alcooleira. Nessa perspectiva, buscamos analisar quais são, de fato, os papéis urbanos das pequenas cidades desta região canavieira. Tais considerações remetem-nos ao modo como o poder público direciona a política habitacional e quais os interesses considerados na distribuição de recursos entre os municípios, implicando na reflexão entre a produção e a apropriação do espaço urbano, assim como sobre as políticas públicas. Baseamos nossa reflexão sobre o que, efetivamente, o acesso à habitação financiada com recursos públicos, representou para os moradores ou se o interesse era a constituição de "viveiros de mão-de-obra" para a agroindústria da região.

Palavras chave: papéis urbanos, produção de moradia, trabalho volante.

The urban roles at the Catanduva/SP region: relations between the housing production and the mobile work (Abstract)

The central issue that orientated this report consists of investigating the relation between the production of housing complex in the small towns in the region of Catanduva (São Paulo State, Brazil) and its occupation by expressive part of employees who work on the alcohol-sugar agriculture-industries. From this perspective, we analyze what are, indeed, the roles of the small towns of this cane region. Those considerations show us the way in which the Government organize the housing politics and the interest considered on the resources distribution among towns, involving the reflection between the production and the appropriation of urban space.  Effectively, the access to the financed housing with public resources, represented to the citizens or if the interest was a constitution of "nursery of workforce" to the agriculture-industry of the region.

Key words: urban roles, residence production, mobile work.

Iniciando a discussão

O presente trabalho surgiu do questionamento da implementação de conjuntos habitacionais, financiados com recursos do poder público (em nível Federal, Estadual ou municipal), em pequenos municípios com graves problemas de emprego para sua população, em razão de abrigarem significativo percentual dos trabalhadores agrícolas (também chamados de "bóias-frias")[1].

Esta mão-de-obra agrícola, não encontra trabalho no campo durante todo o ano, especialmente na época da entressafra e muitos desses trabalhadores precisam, por falta de opção, recorrer ao trabalho como volantes na área rural (diaristas não residentes - eventuais), em serviços ocasionais nas cidades ou mesmo sem inserir-se no mercado de trabalho em determinados períodos, e portanto, provavelmente sem condições de pagar o financiamento de sua moradia.

No caso específico da cultura da cana-de-açúcar, que predomina nos municípios estudados na região agrícola de Catanduva, consideramos haver possibilidade de agravamento da questão, tendo em vista as mudanças tecnológicas e inclusive normativas (relativas à criação de novas leis[2]), que podem afetar ainda mais as oportunidades de emprego, com a substituição do corte manual pelo corte mecanizado da cana-de-açúcar[3]. Dentro dessa ótica não é desprezível o impacto que haverá sobre diversas áreas do Estado de São Paulo, especialmente em pequenos municípios que têm praticamente a renda local de grande parte dos moradores derivada do trabalho agrícola e também vinculada ao emprego diretamente nas agroindústrias sucro-alcooleiras existentes na região.

O interior do Estado de São Paulo apresenta como uma das suas mais marcantes características o fato de abrigar importantes regiões de agricultura de mercado (interno e externo), havendo destaque para as culturas de cana-de-açúcar e de laranja (maior produtor nacional), que são grandes empregadoras de mão-de-obra local e vinda de outras regiões (especialmente da Região Nordeste do país, do norte do Paraná e de Minas Gerais), tendo em vista que muitas das culturas produzidas (e as citadas, especialmente) ampliam as contratações nos períodos de safra.

No caso específico da cana-de-açúcar o período de safra corresponde a cerca de 7 a 8 meses ao ano (geralmente, iniciando em abril, maio e se estendendo até novembro), e os trabalhadores são empregados através dos contratos de safra (por prazo determinado). Ou seja, no restante do ano, grande parte desses trabalhadores devem buscar outras ocupações (no campo, em outras culturas, muitos, inclusive, acabam recorrendo nesse período de"parada da cana" ao trabalho como volante - eventual ou mesmo em outras cidades), tendo em vista que, durante a entressafra, as contratações na cana-de-açúcar são reduzidas (atividades de plantio, carpa, entre outras).

Nosso ponto de partida, entender os papéis urbanos na região canavieira de Catanduva, busca, a partir das manifestações apresentadas nesse território delimitado, ultrapassar a simples aparência, buscando em sua materialização as múltiplas determinações que o produziram.

Fundamentação básica

O fio condutor da análise que propomos está balizado na compreensão de que o espaço é produto social e histórico e, como tal, o recorte territorial proposto necessita ser entendido e analisado como parte da totalidade (social, histórica, espacial, entre outras dimensões possíveis), só assim havendo a possibilidade de desvendamento de uma dada problemática.

O desafio é, portanto, buscar as múltiplas determinações que atuam num dado espaço e o constituem. Entender o espaço como produto histórico e social exige, assim, percebê-lo como fruto de uma sociedade não igualitária, uma sociedade de classes. Se asociedade é marcada por uma extrema segmentação, o espaço concreto, produzido e materializado nas formas espaciais (e também nas não materiais[4]), apresenta como características marcantes a diferença e a desigualdade, resultado da divisão social e territorial do trabalho, daí que as lutas de classe estão na base para a compreensão da (re)produção e apropriação do espaço geográfico[5].

Ao mesmo tempo, é necessário cautela para não incorrermos no risco de entender um processo que é fundamentalmente social somente do ponto de vista estritamente econômico, sem considerar as articulações das múltiplas dimensões que permitem maior aproximação com a realidade. Cabe, ainda, pelo fato de, se entendermos o espaço geográfico tão somente como condição e meio, fazermos uma leitura fetichizada do espaço, em seus diferentes níveis, assim, também da própria cidade. Este fato implica em pensarmos sociedade e espaço de forma articulada[6].

Do mesmo modo, tomamos aqui o entendimento extraído de LEFEBVRE (1999), baseado em Marx, no qual a cidade comparece como força produtiva, tendo em vista que o trabalho cristalizado na forma de espaço produzido constitui-se em questão chave para o processo de reprodução do capital (p.142).

O autor também ampliou a compreensão do conceito "produção", muito além do sentido limitado encontrado nos economistas (produção de coisas - produtos), interpretando-o em direção ao seu significado filosófico, o sentido tomado por Marx e Engels em suas obras, que só se justifica se pensado em uma dupla acepção (não limitado somente a produção de coisas/produtos; mas envolvendo a produção de obras, em suma, a própria humanidade) e também como um processo de dupla determinação (história e práxis), que articula conflitos, contradições, diferenças, portanto, devendo ser entendido em sua complexidade.

O desvendamento de um fenômeno ou de uma dada realidade necessita da premissa contida nessa reflexão, tanto se pensamos na cidade quanto no espaço urbano. Convém observarmos que o processo de produção implica/contém a idéia de reprodução[7].

Nessa discussão devemos ressaltar o papel fundamental desempenhado pelo Estado, que, por diferentes meios, apropria-se de uma significativa parcela da mais-valia global e a partir de diferentes formas de atuação/intervenção, "distribui" esses recursos, e, sendo a sociedade dividida em classes, o faz de modo desigual.

Essa retenção (da mais-valia global) é utilizada, entre outros, com a própria manutenção da burocracia estatal e para investimentos nas áreas em que o capital individual não tem interesse em assumir, como a produção dos meios de consumo coletivos que, em termos práticos, não asseguram retorno direto e rápido de capital e lucros (o que faria que houvesse interesse de capitalistas nesse setor[8]), mas que são fundamentais para assegurar a reprodução do capital, tendo em vista que asseguram "...a reprodução das relações de produção na sociedade inteira, no modo de produção. (...)" (LEFEBVRE, 1999, p.156).

Para isso (o Estado) se ocupa também das "necessidades sociais" vindas de todas as classes, inclusive as de baixo poder aquisitivo, ainda que estas sejam garantidas no mínimo estritamente necessário, para assegurar a sua reprodução social, sendo que os investimentos produtivos absorveriam a maior parcela dos recursos públicos. Ou seja, tanto a reprodução do capital quanto a reprodução da força de trabalho (produção de bens e serviços sociais públicos), passaram, especialmente no pós II Guerra Mundial, através das políticas do denominado Welfare State (Estado do Bem-Estar Social), a terem no fundo público a base de financiamento da economia capitalista[9].

A não compreensão dessas premissas e questões, que se encontram subjacentes ao fenômeno específico pesquisado, implicaria na incapacidade em formular uma reflexão que contemple as profundas modificações operadas atualmente. Ou seja, é necessário que a análise se faça na articulação (entre os diversos elementos e fatores envolvidos) e não de forma isolada, buscando as múltiplas determinações que comandam o processo estudado.

Contextualizando a problemática

O Estado de São Paulo possui um grande número de municípios, contando atualmente com 645[10]. Portanto, a rede urbana do Estado é bastante densa.

Um fato a ser ressaltado é que grande parte desses municípios surgiu muito mais em decorrência de interesses políticos locais (e, mesmo Estaduais e Federais - envolvendo aí as questões de poder existentes) do que amparado, efetivamente, por serem detentores de grande contingente populacional ou por sediarem um conjunto de papéis e atividades econômicas que gerem receitas tributárias (consistentes em relação aos seus gastos), emprego e renda aos seus habitantes. Ou seja, os repasses de verbas estaduais e federais, em grande parte dos casos, compõem a maior parcela de recursos para estas localidades (municípios), fazendo com que seja discutível a autonomia financeira destes[11], e também torna limitada a sua possibilidade de superação de problemas.

Nesse contexto, é grande o número de pequenas cidades - que, se inserem como produto e condição da divisão territorial do trabalho - com papéis urbanos pouco expressivos, ainda que possuam taxas elevadas de população considerada "urbana".

Diversos desses pequenos municípios - e este é o caso da região de Catanduva, que foi objeto de estudo -tornaram-se local de concentração de expressivo contingente de força de trabalho utilizada na agricultura, os trabalhadores rurais. Isto resultou de um intenso processo de modernização da agricultura que, no Estado de São Paulo, iniciou-se por volta de meados do século XX, ampliando-se nas décadas seguintes numa velocidade considerável.

É preciso ressaltar ainda que, o processo de modernização da agricultura no país, iniciado no pós Segunda Guerra no Estado de São Paulo e, principalmente, após 1970 no Brasil como um todo, contou com expressiva participação do Estado. Houve a transformação da base técnica da produção, após a incorporação de fertilizantes e maquinários importados, visando a elevação da produtividade. Em meados da década de 1960 houve a implantação do Departamento I(D1) para a agricultura, internalizando a produção de insumos modernos, máquinas e equipamentos agrícolas, envolvendo tanto mudanças na base técnica quanto transformações substanciais nas relações de trabalho, inclusive promovendo diminuição no contingente de mão-de-obra envolvida na produção[12].

As repercussões de tal processo foi ampliado com a regulamentação de uma série de leis (com destaque para o Estatuto da Trabalhador Rural e suas Leis Complementares, bem como o Estatuto da Terra), que aceleraram a expulsão de trabalhadores permanentes empregados no campo e acentuaram o êxodo rural, trazendo, ao mesmo tempo profundas e intensas mudanças no processo de urbanização do país[13].

O recorte territorial

Utilizamos como recorte territorial a região agrícola sob a responsabilidade do Escritório de Desenvolvimento Rural/Coordenadoria de Assistência Técnica Integrada (EDR/CATI) de Catanduva, que inclui um total de dezoito municípios[14].Após analisarmos um conjunto de dados (da pesquisa de campo preliminar e dados secundários de diversas instituições), selecionamos 5 municípios, que apresentaram características mais interessantes para o estudo da problemática: Ariranha, Catiguá, Palmares Paulista, Pindorama e Santa Adélia, todos com menos de 15 mil habitantes pelos dados do último Censo Demográfico, e taxa de população urbana em torno de 90%.

O surgimento dos pequenos municípios

A estruturação da rede urbana paulista derivou-se do desenvolvimento do complexo cafeeiro, iniciado no século XIX. A região de Catanduva, localizada no Médio Planalto Ocidental Paulista, teve o processo de urbanização vinculado ao contexto de ocupação do chamado Oeste Pioneiro. Esta ocupação iniciou-se com a penetração de mineiros e introdução da pecuária, mas a região integrou-se efetivamente à economia do Estado de São Paulo a partir da disseminação da cultura cafeeira, possibilitada devido à extensão dos trilhos da Estrada de Ferro Araraquara, compondo, com numerosos pequenos centros, a rede urbana paulista.

Devemos ressaltar a importância expressiva da implementação da rede ferroviária na estruturação da rede urbana estadual, necessária não somente ao escoamento da produção cafeeira (sem dúvida, seu principal papel), mas também possibilitando a integração do mercado consumidor e servindo no transporte de imigrantes estrangeiros que vieram para trabalharem nas lavouras.

É necessário frisar que a evolução e o crescimento dos pequenos patrimônios, que foram fundados na medida em que avançou a ocupação sobre o oeste, e que mais tarde vieram a se constituir em "cidades pioneiras"[15], guardavam expressiva relação com a abertura e a localização das principais vias de circulação. Por um lado, a localização desses patrimônios influenciou a posição hierárquica dos núcleos na rede urbana que então se constituía; daí que o ritmo de sua evolução (processo de produção espacial nos/dos núcleos) condicionou-se a sua forma de inserção no espaço que, no decorrer do processo histórico, ia se (re)produzindo.

Por outro lado, é necessário ressaltar também o papel das elites desses núcleos, uma vez que o prestígio político das lideranças locais, bem como o poder econômico com que contavam e a forma que tomaram os investimentos e empreendimentos é que se encontram na base da diferenciação que se verificou entre as pequenas localidades no decorrer do processo histórico, envolvendo desde informações privilegiadas a conflitos na zona pioneira, incluindo-se ainda as articulações com o Estado.

A crise de 1929 coincidiu com a intensa expansão do café na região. Em nossa região de pesquisa pode-se perceber seus efeitos ao avaliarmos que dos 18 municípios atualmente existentes, mais da metade foram criados antes dessa crise. Ainda que consideremos a questão política essencial na decisão governamental de criar municípios, é evidente a estreita relação entre a ocupação da região e a expansão cafeeira, indicativo da diminuição da dinâmica econômica, social e espacial na região em foco.

Ainda assim, o café continuou tendo peso expressivo na produção agrícola regional, ainda que esse período registre diversificação maior da economia, inclusive com crescimento agrícola de outras culturas como o algodão, a cana-de-açúcar e a laranja.

Nesse processo, os seguintes pontos devem ser destacados: a) surgimento e inserção das pequenas cidades, como resultado da expansão da lavoura cafeeira e da constituição da rede ferroviária; b) a posterior decadência da cultura cafeeira e da rede que escoava a produção, bem como a constituição de novas redes, como a rodoviária; c) a consolidação da rede urbana paulista e um movimento de nova inserção na economia nacional e internacional, com a industrialização efetivando-se no país; d) e, no caso específico da região abordada, a produção canavieira (iniciada de forma mais efetiva na década de 1950, com a abertura de duas empresas na área, e sua consolidação na década de 1980 (no contexto do PROÁLCOOL), que provocaram repercussões profundas e complexas nos papéis urbanos destas cidades.

A reestruturação verificada apresentou múltiplos desdobramentos em termos econômicos, culturais, sociais, espaciais, devido à substituição da principal cultura da região (o café) pela cana-de-açúcar, trouxe modificações expressivas no campo e na cidades. A divisão social, técnica e territorial do trabalho assentava-se em outras bases. Apesar da hierarquia da rede urbana as cidades exerciam papéis fundamentais ao campo: vendas, lojas, pequenas fábricas e armazéns, serviços. Destas modificações decorreram profundas transformações tanto no habitat quanto na paisagem desses lugares[16].

As transformações foram operadas a partir da destruição de casas, colônias, antigas usinas, inclusive "vilas operárias" habitadas por trabalhadores de antigas usinas e engenhos. Houve modificação na "leitura do espaço" atualmente dominada pelos imensos canaviais [17]. É preciso destacar que estes fatos relacionam-se a implementação de uma ampla rede de infra-estrutura (rodovias, e o desenvolvimento do setor de transportes), que tornou possível e rápido os deslocamentos, inclusive, de uma força de trabalho volante. Ao mesmo tempo houve modificações nas hierarquias existentes devido às transformações operadas: modernização da agricultura, expulsão da população rural provocando "esvaziamento" das áreas de influência de algumas cidades, crescimento do número de moradores (em cidades médias e pequenas) com ocupação rural.

Portanto, a questão da historicidade destas redes é fundamental, pois, com as mudanças verificadas, podemos dizer que muitas destas pequenas cidades acabaram "descontextualizadas", uma vez que sua inserção datava de um outro momento. A alteração na principal produção desenvolvida modificou inclusive o significado e a importância das redes que hoje articulam esse espaço. É preciso pensar nas transformações que têm sido operadas, sem esquecer, logicamente, que a questão do espaço herdado é fundamental.

Ressaltamos que a constituição, consolidação e transformação da rede urbana é expressão da divisão territorial do trabalho, sendo, ao mesmo tempo, uma condição em seu processo de redefinição. Esse entendimento pressupõe que, no processo de desenvolvimento do capitalismo, houve a acentuação do papel das cidades nos processos de produção, de distribuição de bens e serviços, no consumo e demandas criadas. O processo foi (e é) marcado por uma integração cada vez mais ampla e mais intensa entre diferentes parcelas do território, e entre cidades, favorecendo a constituição de redes nacionais e regionais.

O início da constituição da rede urbana, especialmente a paulista, foi marcado por expressiva hieraquização das cidades. No bojo do desenvolvimento das redes, com a intensificação dos processos de industrialização, urbanização e modernização da agricultura, houve a ampliação da integração interurbana, fazendo com que hoje se verifique, de modo mais acentuado, uma complementaridade entre cidades com diferentes ofertas de bens e serviços, ou seja, com papéis diferenciados no escopo da rede urbana. Hoje, podemos dizer que as relações travadas entre cidades, colocam-se muito mais como complementares do que como hierárquicas; ainda que as pequenas cidades tenham sua dinâmica comandada por uma estrutura urbano-industrial, não apresentam uma multiplicidade de papéis identificada com o urbano.

Vários autores apontam que as periferias das médias e pequenas cidades, em função da modernização ocorrida na agricultura, tornaram-se local de moradia de trabalhadores agrícolas, sendo, para Corrêa (1989), uma das novas formas de inserção na rede urbana[18]. Essa dinâmica é observada na região em questão.

O Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL)

Faremos um breve resgate do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL),implementado pelo Governo Federal em 1975, a partir do Decreto 76593, de 14/11/75. O Estado desempenhou papel decisivo e de extrema relevância, desenvolvendo uma política protecionista e concedendo privilégios para o capital sucro-alcooleiro.

Inicialmente o Programa funcionou como uma "saída" para os usineiros diante da crise do mercado mundial de açúcar e somente depois de 1979 (após o segundo choque do petróleo), colocou-se como alternativa energética. Os investimentos realizados pelo Estado, através dos subsídios, isenções, financiamentos, etc., foram diferenciados, promovendo grande concentração (de capital, de terras, de recursos). O grande poder político dos grupos usineiros paulistas, garantiu para o Estado de São Paulo maior volume de recursos, concentrando a produção nacional[19].

Merece ser destacado que, a título de conseguir legitimação, o PROÁLCOOL também previa: diminuição das disparidades regionais de renda, desconcentração e intensificação do uso da terra, criação de empregos, incentivo à produção de bens de capital[20]. Contraditoriamente, conforme já comentado, sua materialização promoveu intenso processo de concentração de terra, renda e capital, assim como o setor açucareiro caracterizou-se pelo pagamento de baixos salários e intensa exploração da mão-de-obra, sobretudo, dos trabalhadores envolvidos no corte da cana-de-açúcar[21].

O Programa teve quatro etapas distintas, que merecem ser destacadas:

1975-79: O Estado de São Paulo e o interior, em especial a DIRA de Ribeirão Preto, foram bastante privilegiados com os recursos públicos; as taxas de juros eram menores do que a inflação; a produção do álcool era, prioritariamente, voltada ao anidro.

1980-84: O Programa foi redirecionado a partir do segundo choque do petróleo, com a produção do álcool hidratado, efetivamente como substituto da gasolina. Novamente o Estado de São Paulo recebeu os maiores recursos do Programa, havendo também o estímulo (recursos) para a territorialização do PROÁLCOOL no oeste paulista, na implementação das destilarias autônomas, estimulada pelo Plano de Desenvolvimento do Oeste de São Paulo (PRO-OESTE) sendo operacionalizado pelo PROCANA (Programa de Expansão da Canavicultura para a Produção de Combustível do Estado de São Paulo), políticas desenvolvidas pela Secretaria do Estado da Agricultura e Abastecimento. A produção e o consumo de carros movidos à álcool passaram a ter grande projeção na frota nacional.

Ressaltamos que foi nesse contexto que a região de Catanduva efetivamente consolidou-se como importante núcleo canavieiro no Estado de São Paulo.

1985-1989: Esta etapa foi marcada pela diminuição dos subsídios, com condições de financiamento menos vantajosas para o setor (recursos são reduzidos); estabeleceu-se uma política de controle do preço dos combustíveis; houve a exclusão da cana-de-açúcar do sistema de crédito agrícola; algumas empresas do setor atravessaram grandes dificuldades financeiras; esta etapa encerrou-se com a crise de abastecimento do mercado, desestimulando o consumo e a produção do carro à álcool - uma vez que muitos usineiros, buscando maiores lucros, aumentaram a produção de açúcar, devido à subida dos preços no mercado internacional, diminuindo a produção do álcool hidratado.

1990 em diante: a partir desta etapa, verificou-se intensas disputas inter-capitais (contra o protecionismo do Estado para as empresas ineficientes); ao mesmo tempo os empresários do setor pressionavam pela manutenção do PROÁLCOOL, por anistia e renegociação das dívidas do setor, além da diminuição de impostos. Por um lado, há pressão para a desregulamentação do Estado, por outro lado, pressionam para a manutenção de subsídios e novas linhas de crédito junto às instituições públicas, revelando, portanto, as contradições internas existentes no setor[22].

O final da década de 1990 e início de 2000 foi marcada por fortes pressões do empresariado sucro-alcooleiro pela revitalização do PROÄLCOOL. Atualmente, devido aos preços do açúcar no mercado internacional estarem propiciando lucros ao setor (devido à desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar), novamente o abastecimento de álcool (hidratado e anidro) está ameaçado. Tais fatos denotam que o empresariado do setor tem como uma de suas únicas responsabilidades auferir lucros.

Setor sucro-alcooleiro na região de Catanduva: constituição e consolidação

As primeiras usinas de açúcar e álcool foram implantadas na região na década de 1950, porém, a consolidação da área somente ocorreu após 1975, com o PROÁLCOOL e a instalação de destilarias autônomas[23]. Consideramos importante destacar, de forma resumida, o processo de implantação e consolidação das agroindústrias na região.

Na constituição desta área canavieira quatro aspectos foram fundamentais. Em primeiro lugar, o surgimento das primeiras agroindústrias na região está diretamente ligado à Resolução nº. 501, do Instituto do Açúcar e Álcool, no início de 1951, pois permitiu a expansão da produção de açúcar para além das tradicionais áreas produtoras no Estado de São Paulo. O objetivo era não haver prejuízo para as tradicionais zonas produtoras, em relação ao fornecimento da matéria-prima e sobre a expansão monopolista das terras. Tal fato resultou no surgimento, em Catanduva, das usinas São Domingos (no município de Catanduva) e Catanduva (em Ariranha), respectivamente em 1952 e 1953[24].

Esta expansão foi resultado do crescimento do mercado interno e deu-se no contexto histórico da intensificação da urbanização e da industrialização do país, o aumento verificado na produção do açúcar permitiu o aumento da exportação deste produto.

Na década de 1960 verificou-se o incremento das exportações e o Estado passou a atuar de forma mais direta, criando órgãos para fomentar ainda mais o setor, como o Fundo de Consolidação e Fomento da Agroindústria Canavieira, a Divisão de Exportação do IAA, o Fundo de Recuperação da Agroindústria Canavieira.

Em 1963 duas novas unidades agroindustriais de açúcar e álcool implantaram-se na região, a Cerradinho (em Catanduva) e a São José da Estiva (em Novo Horizonte), sendo que esta última representou a transferência da Usina Chibarro da região de Araraquara.

O surgimento destas empresas ocorreu após a criação, pelo IAA, do que ficou conhecido como Plano de Expansão da Indústria Açucareira Nacional (1963), e um ano depois do convênio estabelecido entre o IAA e o Banco do Brasil (1962), com o financiamento de projetos para melhor aproveitamento da terra nas áreas canavieiras[25].

Na década de 1970 houve a criação e implantação do Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar (PLANALSUCAR) do Programa de Racionalização da Agroindústria Açucareira implantado pela Lei 5654e do Decreto Lei 1186, ambos de 1971, que propiciaram condições para o aumento da produtividade, redução de custos e elevação dos lucros dos empresários deste ramo agroindustrial. Taismedidas provocaram o fechamento de inúmeras usinas, que foram, por sua vez, absorvidas por grandes grupos, ou seja, o efeito foi reforçador da concentração de terra, de produção, de capital; o setor sucroalcooleiro territorializado no Estado de São Paulo foi o que mais recebeu e incorporou tais privilégios[26].

Retomando a discussão sobre a constituição e consolidação do setor sucro-alcooleiro na região de Catanduva resta destacar a criação do PROÁLCOOL e a transformação de alambique existente na área em destilaria autônoma: a Destilaria Colombo (atual Usina Colombo, criada na década de1960 e transformada em destilaria autônoma em 1976). Após 1979, com o surgimento do PRO-OESTE - Bases Para Um Plano de Desenvolvimento do Oeste do Estado de São Paulo - implementado através do Programa de Expansão da Canaviculturapara a Produção de Combustível do Estado de São Paulo (PROCANA) um aporte expressivo de recursos foi concedido à região, derivando daí a implantação de duas novas destilarias autônomas a Destil (Destilaria Itajobi S.A., atualmente pertencente ao município de Marapoama, antigo distrito de Itajobi), em 1980, e a Destilaria Santa Isabel Ltda., no município de Novo Horizonte[27].

Outra empresa que se instalou nesse período na região foi a Antonio Ruette Agroindustrial Ltda., em 1985, no município de Paraíso, mas somente em 1988 iniciando a produção de aguardente de cana. Desde 1991 esta empresa deixou de produzir aguardente e passou a produzir álcool hidratado e a partir de 2001 novos produtos passaram a ser produzidos.

A maioria das empresas atualmente segue a tendência de produzir vários produtos, inclusive como forma de se resguardar de períodos de crise de um produto específico, outra direção tomada por muitas das empresas é o de investir em projetos de geração de energia elétrica a partir do bagaço da cana (muitas já estão com projetos em desenvolvimento, outras encaminharam projetos para o BNDES). Do mesmo modo já se verifica na região a introdução de colheitadeiras para o corte mecanizado, portanto, já iniciando a substituição gradual do corte manual e ampliando as taxas de desemprego na região.

Algumas considerações

Conforme já explicitado, o presente trabalho, ao analisar os papéis urbanos de pequenos municípios da região de Catanduva, privilegiando as articulações entre a produção de moradias e a reprodução do trabalho, busca o entendimento deste espaço particular (expressão de uma dada materialidade sócio-espacial) em suas inter-relações com a totalidade.

O objetivo geral da pesquisa é colaborar para a reflexão acerca do papel do poder público no processo de produção da cidade e definição de seus papéis urbanos, apoiado principalmente na materialização/territorialização das políticas habitacionais nos pequenos municípios canavieiros da região de Catanduva.

O desvendamento e análise de uma determinada realidade sócio-espacial, exige pensá-la como produto social e histórico, concreto e dinâmico, ou seja, prenhe de contradições numa sociedade de classes.

Já mencionamos que no caso particular estudado, os conceitos de reprodução do capital e de reprodução do trabalho são fundamentais para o entendimento da problemática.

Isto implica entender o processo de produção espacial aí verificado de forma articulada (inclusive, considerando as diferentes escalas que se articulam à escala local), em que além de considerar o lócus da produção também considera a reprodução da força de trabalho, bem como as diversas dimensões presentes no processo de produção do espaço.

Através de diversos procedimentos metodológicos (coleta de dados em diversos órgãos, entrevistas, coleta de dados secundários em diferentes fontes, aplicação de 846 questionários com moradores dos conjuntos habitacionais existentes nos municípios estudados - Ariranha, Catiguá, Palmares Paulista, Pindorama e Santa Adélia - e entrevistas com representantes do poder público) conseguimos organizar um conjunto expressivo de informações, que nos permitem inserir algumas considerações.

Acreditamos que a produção de conjuntos habitacionais nessas pequenas cidades que apresentam papéis urbanos pouco expressivos, relaciona-se aos seguintes fatores:

a) componente marcante na legitimação de determinados grupos políticos, pois muitas obras (conjuntos habitacionais) são lançadas ou inauguradas nas vésperas de eleições, para identificar uma certa administração e formar os chamados "currais eleitorais";

b) estratégia para manter a população nessas pequenas cidades, pois a moradia própria tem um importante significado, sendo também uma forma dos municípios não perderem receitas tributárias (principalmente do FPM - Fundo de Participação dos Municípios);

c) está articulado aos interesses do setor sucroalcooleiro em manter uma mão-de-obra disponível para as agroindústrias da região, utilizando sua influência política (através da eleição de prefeitos e vereadores, deputados estaduais e federais, muitos dos quais têm suas campanhas políticas financiadas pelos usineiros) para terem seus interesses defendidos, entre os quais uma política habitacional para fixar trabalhadores na região (constituindo verdadeiros "viveiros de mão-de-obra"), ainda que não seja de uma forma explícita.

Verificamos que apesar de vários agentes promotores terem atuado na produção de moradias, mais recentemente, e com maior expressão (em termos de número de unidades), merece destaque a participação da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), portanto, tal produção deriva principalmente de recursos Estaduais. Assim, em Ariranha, 70,07% das unidades foram implementadas pela CDHU, em Catiguá 57,74%, Palmares Paulista apresenta 66,18%, Pindorama conta com 40,08% e em Santa Adélia, aparece o maior percentual, 77,85%.

Entendemos que há uma articulação profunda entre a produção dos conjuntos habitacionais produzidos com recursos do poder público (níveis Federal, Estadual ou Municipal) - entendidos como fundamentais no processo de reprodução da força de trabalho - e os interesses do setor sucro-alcooleiro, que detém, do ponto de vista econômico, a hegemonia sobre a região.

Esse poder econômico se manifesta de várias formas que estão, de fato, articuladas:

- o elevado grau de concentração de terra na região de pesquisa, que se ampliou após a implantação do PROÁLCOOL no país, e de modo particular na região da pesquisa;

- as empresas sucro-alcooleiras são as que mais arregimentam trabalhadores, havendo um grande temor em relação a períodos de crise vivenciados pelo setor, tendo em vista que toda a região, em especial os trabalhadores vinculados a agroindústria são diretamente afetados, demonstrando, portanto, o elevado grau de dependência econômica dos municípios (tanto daqueles em que as empresas estão efetivamente implantadas quanto dos que têm parcela expressiva dos moradores trabalhando nessas empresas);

- o fato de que a própria expansão/crescimento da malha urbana é condicionada, de certo modo, pelo setor agroindustrial, na medida em que as pequenas cidades da região são cercadas por canaviais[28];

- o poder econômico transmuta-se em poder político, principalmente em períodos eleitorais, conforme já mencionado, de modo a garantir maior representação de seus interesses[29].

Nas entrevistas realizadas nas Prefeituras dos municípios da região estudada com os representantes do poder público, todos ressaltaram as dificuldades geradas durante a entressafra em razão do aumento do desemprego nos municípios, quais sejam: a ampliação dos atendimentos junto aos postos de saúde e pronto-socorros existentes nas cidades, o aumento da demanda de trabalhadores que buscam o setor de assistência social dos municípios para tentar conseguir cestas básicas ou se inserir em programas de renda existentes (para comprar alimentos, pagar contas de água e/ou luz e remédios, entre outros). Tais políticas de assistência social decorrem do reconhecimento do poder público de que os baixos salários pagos, e a forma de contratação de parcela significativa dos trabalhadores (através dos contratos de trabalho por tempo determinado[30]) não possibilitam sua reprodução no período de entressafra (com um mínimo de dignidade).

Percebemos, assim, que há uma articulação de diversos níveis do poder público (governos municipal, Estadual e Federal), para garantir a reprodução do trabalho nessas pequenas cidades, especialmente nos períodos de diminuição do emprego (portanto, da renda). Tais políticas, destacando-se a de habitação, desoneram o setor empresarial, possibilitando o pagamento de baixos salários, contribuindo parao rebaixamento dos custos da produção, permitindo, por conseguinte, maiores lucros aos que utilizam dessa mão-de-obra.

Faremos uma breve exposição de outros dados verificados e pontuaremos algumas questões para a reflexão.

Pudemos verificar, através dos questionários aplicados, que entre as atividades que os moradores dos conjuntos habitacionais realizam em outras cidades, destacam-se as seguintes (referentes à média obtida nos cinco municípios):

- o setor de saúde, principalmente médicos especialistas, com 80,48%;

- ainda no setor de saúde, utilizam hospitais em outra cidade, com 79,11%;

- comércio, com 78,03%;

- novamente destaca-se o setor de saúde, com a utilização de laboratórios de análises e exames em outra cidade, com 56,68%;

- trabalho, com 43,04%.

Primeiramente, chama a atenção que, na totalidade das cidades estudadas, os serviços relacionados à área da saúde foram os mais destacados como os que mais são procurados em outra cidade. Devemos ressaltar que a maioria das pequenas cidades não possui hospital (somente Ariranha e Palmares Paulista, porém no segundo caso, o hospital pertence à usina Catanduva e só os funcionários têm acesso aos serviços), portanto, todos os casos mais graves, que exijam internação e/ou intervenção cirúrgica, são encaminhados para cidades da região, principalmente para Catanduva. Geralmente, nas pequenas cidades, há postos de saúde e pronto-socorros, somente para procedimentos e consultas mais simples, a maior procura, pelo que revelaram os moradores, foi relativa a especialidades médicas, pouco presentes nos lugares em que residem.

O comércio foi outro item que compareceu como uma das atividades mais buscada em outras cidades, com média de 78,03% dos moradores afirmando consumirem produtos em outros lugares. As pequenas cidades tem um comércio pouco expressivo, apresentando baixa diversidade de produtos, problemas na qualidade dos artigos ofertados e preços mais elevados nas pequenas cidades, outro problema mencionado pelos moradores.

O trabalho foi outra atividade realizada fora com média elevada (43,08%). Cabe lembrar aqui, no entanto, que esse dado pode ser inclusive maior, tendo em vista que muitos trabalhadores, por terem ocupação agrícola, trabalham muitas vezes em várias propriedades, em transporte (ônibus rural) da empresa e/ou de produtores, e não fica muito claro os limites entre os municípios/propriedades, muitos trabalham em diversas propriedades, de diferentes municípios.

Catanduva polariza tais demandas, sendo a mais procurada por esses moradores, para o atendimento dos mais diferentes papéis, sendo também identificada pela expressiva maioria como a cidade mais importante da região.

Outro ponto privilegiado no trabalho remete ao significado da expressão cidade para os moradores. Esta questão apresentou grande diversidade de respostas fornecidas, necessitando ser estabelecidas categorias para proceder a tabulação.

O maior percentual aparece na categoria que faz referência a uma gama de características e papéis identificados com o urbano: presença de conjunto de meios coletivos (infra-estrutura, equipamentos e serviços urbanos), comércio, lazer, trabalho, igreja, população adensada, barulho, movimento, agitação. Em Santa Adélia verificou-se o maior percentual de respostas nesta categoria (60,14%), sendo o menor verificado em Ariranha (44,78%). Em seguida, aparece os que concebem a expressão a partir de sua experiência concreta, acabando por fornecer um retrato da cidade em que residem: o maior percentual foi o verificado em Ariranha (26,86%), em Catiguá aparece o mais baixo registro nessa categoria (6,14%). A terceira categoria mais citada foi os que consideraram a cidade como um "bom lugar para se morar, onde tem de tudo", o maior percentual aparecendo em Pindorama (na verdade, obteve, isoladamente a segunda posição nesse município), com 15,08% e o menor índice em Ariranha, com 8,21%.

Verificamos, de uma forma geral que, apesar de ser uma questão "aberta", houve um mesmo padrão nas respostas fornecidas nos cinco municípios. As concepções apresentadas sobre "o que se considera cidade" seguem uma linha bastante similar de representação dos que ocupam/vivenciam esse espaço.

Esse dado é complementado com outra questão "aberta" formulada, se os moradores consideravam o lugar em que residem como cidade uma e por qual razão. Uma primeira constatação que merece destaque foi o predomínio da resposta sim para todos os municípios pesquisados, o índice maior representado por Pindorama (77,58%) e o menor verificado em Santa Adélia (51,05%).Por sua vez a resposta "não considero cidade", apareceu em segunda posição, variando de 37,06% em Santa Adélia, onde a negação do lugar enquanto cidade ficou mais evidente na concepção dos entrevistados, a Pindorama, que verificou o menor percentual, com 16,39% das respostas, havendo, portanto, um reforço do lugar enquanto cidade.

Também houve aqueles que optaram por responder de forma dúbia, sem definir de forma clara o lugar como sendo cidade ou não, demonstrando que consideram haver uma certa "ambigüidade" em definir o lugar em que moram (11,89%, maior percentual, apresentado por Santa Adélia, e o menor, 4,31%, verificado em Pindorama.

Julgamos pertinente tecer um breve reflexão sobre a expressão "cidades dormitórios", utilizada para denominar essas pequenas cidades, porém é importante frisar que ainda não consideramos esta discussão "fechada".

Tal denominação advém do fato de se constituírem em espaço de residência de parcela significativa de trabalhadores agrícolas que, com o processo de expulsão do campo, dirigiram-se parapequenas cidades (e também, para a periferia de cidades de maior porte), e conforme já mencionado, resultou do processo de modernização da agricultura empreendida no país. Assim, mantém trabalho no campo, deslocando-se cotidianamente para esse espaço de trabalho. No passado, no contexto em que surgiram ("civilização cafeeira") essas cidades cumpriam uma variada gama de papéis. Primeiramente havia o fato de atraírem a população residente em seu entorno (habitantes da área rural), havendo, portanto, uma série de funções (econômicas, políticas, religiosas, sociais, etc.) e relações que foram profundamente modificadas com a reestruturação econômica provocada com a substituição do café pela cana-de-açúcar. Daí decorreu a ampliação da divisão social e territorial do trabalho, repercutindo, de forma significativa, na paisagem e no espaço da região, tanto do campo quanto das cidades[31].

Porém, ainda que cumpram, de fato, essa função (enquanto lugar de moradia de trabalhadores agrícolas), e esta seja efetivamente importante, pensamos que a expressão "cidades dormitórios", não é suficiente para qualificar tais cidades, por considerar somente um de seus papéis.

Concordamos com Santos (1993), quando estabelece que em regiões agrícolas as cidades existentes são adaptadas às demandas exigidas. Essa característica é marcante nas pequenas cidades pesquisadas.

Tratam-se de cidades com papéis/funções pouco atrativas para seu entorno, ou seja, não conseguem atrair uma ampla gama de consumidores, e estes não possuem renda familiar que permita um padrão de consumo variado e elevado, que justificasse a presença de muitos papéis nesses lugares.

Tais espaços, entretanto, comportam múltiplas dimensões e relações, portanto, há outros papéis que desempenham (comércio, serviços, etc.), ainda que, muitos dos quais, somente sejam destinados à população que aí reside.

Estas cidades são produto e condição da forma como se processam a reprodução do trabalho em sua articulação com a reprodução do capital e se constituem, ao mesmo tempo, em espaço de manifestação dos conflitos e resistência dos trabalhadores[32].
 

Notas

[1] Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP/Presidente Prudente, nível de Doutorado, e ao GASPERR - Grupo Acadêmico sobre Produção do Espaço e Redefinições Regionais. Orientação: Maria Encarnação Beltrão Sposito.

[2]  A Lei nº. 11.241, promulgada em de 19 de setembro de 2002 pelo Estado de São Paulo, que dispõe sobre a eliminação gradativa da queima da palha da cana-de-açúcar. A Lei define prazos para que isso ocorra, para tanto, considera diferenças existentes entre áreas, classificadas como mecanizáveis (em terrenos acima de 150 ha, com declividade igual ou inferior a 12% e solos com estruturas que possibilitem a utilização de técnicas de mecanização no corte da cana) e não mecanizáveis (nos terrenos com declividade acima de 12% e solos em que não seja possível adotar as técnicas de mecanização do corte da cana). De acordo com o estabelecido pela Lei, nas áreas mecanizáveis, no ano de 2021, 100% da área cortada deverá ter eliminado totalmente a queima da cana; nas áreas consideradas não mecanizáveis, este prazo é 2031. Esta Lei substituiu o Decreto nº. 42.056, de 06/08/1997 do Governo do Estado de São Paulo, que apresentava prazos mais reduzidos para a eliminação total.

[3] O corte manual da cana-de-açúcar emprega expressivo contingente de mão-de-obra agrícola, e o uso das colhedeiras causaria, em um primeiro momento tanto prejuízos para as agroindústrias e fornecedores da matéria-prima (em razão do capital necessário à aquisição das máquinas, a disponibilidade de oferta destas no mercado e também devido a declividade dos terrenos ocupados pela cultura), quanto para os trabalhadores, em razão do grave problema social que causaria com a eliminação de postos de trabalho. Este fato é agravado por várias dessas áreas produtoras não possuírem outros setores de atividade expressivos, capazes de absorver essa mão-de-obra (com baixa escolaridade e sem outras qualificações profissionais). Obviamente a questão se coloca de modo mais grave para os trabalhadores, tendo em vista que ainda é pequena a discussão sobre alternativas de trabalho a serem criadas aos desempregados do setor (e, embora saibamos que o uso de máquinas provocará a criação de outras vagas, parece inevitável ser em número bastante reduzido) ou ainda cursos de requalificação profissional.

[4] Podemos citar as idéias, as informações e as novas tecnologias.

[5] Ver, entre outros, CARLOS, 1994; LEFEBVRE, 1999.

[6] "Há uma relação necessária entre sociedade e espaço. A produção da vida, no cotidiano do indivíduo, não é só a produção de bens para satisfação de suas necessidades materiais, e também a produção de sua humanidade, através da produção de relações (sociais, econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas etc.). Por outro lado, a articulação dessas relações tende a individualizar-se espacialmente, dando singularidade às parcelas do espaço, articuladas numa totalidade espacial (como produto histórico)." (CARLOS, 1994, p. 22-3).

[7] CARLOS, p.34.

[8] Desde a década de 1990 verificamos no país que vários setores, antes sob a direção do poder público, se tornaram objeto de interesse do capital privado, e tendo em vista a política econômica adotada, tiveram como um dos pontos fortes o processo de privatizações de empresas públicas. Os setores de energia, de telefonia, parte dos bancos públicos, a manutenção de rodovias (com o arrendamento e concessão dos pedágios), a malha ferroviária, a siderurgia, entre outros, representaram parte da privatização.

9] OLIVEIRA, 1998. Não é objetivo, dentro dos limites deste texto e do próprio trabalho realizado, enveredar nessa provocativa tese do autor, que inclusive propõe repensar a teoria de valor presente na obra de Marx, mas tão somente utilizar essa contribuição.

[10] No Brasil, existe, pelos dados do último Censo, 5.561 municípios, sendo que somente na década de 1990 foram implementados 1070.

[11] O artigo 156 da Constituição Federal, de 1988, reza que "Compete aos municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem com cessão de direitos a sua aquisição; III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar." (CAHALI, 2003, p.102). A Constituição Federal de 1988, assegura ao município autonomia política e financeira.

[12] KAGEYAMA & SILVA, 1987.

[13] Atualmente, a taxa de urbanização no Estado é de 93,41%, maior do que no Brasil como um todo, que é de 81,24%.

[14] Ariranha, Catanduva, Catiguá, Elisiário, Ibirá, Irapuã, Itajobi, Marapoama, Novais, Novo Horizonte, Palmares Paulista, Paraíso, Pindorama, Sales, Santa Adélia, Tabapuã, Uchôa e Urupês.

[15] MONBEIG, 1984.

[16] SILVA, 1999.

[17] SILVA, 1999, p.222-3.

[18] CORRÊA, 1989; SANTOS, 1993 e 1994, são autores que discutem a problemática.

[19] THOMAZ JÚNIOR, 1988.

[20] BRAY & SAMPAIO, 1985, p.57-67.

[21] THOMAZ JÚNIOR, 1988.

[22] THOMAZ JÚNIOR, 1996, p.81-103.

[23] BRAY, 1985, p.99-123.

[24] BRAY, 1985, p.102-3.

[25] BRAY, 1985, p.104-5.

[26] THOMAZ JÚNIOR, 1988, p.95-6.

[27] BRAY, 1985.

[28] Inclusive, segundo informação obtida junto aos moradores e as Prefeituras, vários dos conjuntos foram implementados em área cedida ou comprada das usinas e/ou de grandes proprietários rurais (que, em geral, arrendam ou fornecem cana para as agroindústrias.

29] Isto não ocorre somente em nível local, mas também em nível Estadual e Federal. Ver: SILVA, 1999 e LIMA, 1996.

[30] Para Silva, 1999, p.86, esta forma de contratação esconde, na verdade, a relação de trabalho permanente, sendo mais vantajosa para os empregadores por estes não assumirem, no período de entressafra, todos os trabalhadores utilizados na safra.

[31] Essa discussão é baseada em SILVA, 1999, p.220-44.

[32] SILVA, 1999, p. 220-44.
 

Bibliografia

BRAY, S. C.As políticas do Instituto do Açúcar e do Álcool e do Programa Nacional do Álcool e suas influências na área açucareira - alcooleira de Catanduva. Revista Geografia. Rio Claro: IGCE/UNESP, out., 1985, p.99-123.

BRAY, S. C. & SAMPAIO, R. R. O planejamento estatal no processo de modernização do setor canavieiro de Porto Feliz. Revista de Geografia da UNESP. São Paulo: UNESP, 1985, p.57-67.

CAHALI, Yussef Said (Org.) Código Civil, Código de Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, 5ªed.

CARLOS, A.F. A. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1994.

CORRÊA, R. L. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.

CORRÊA, R. L. Globalização e reestruturação da rede urbana - uma nota sobre as pequenas cidades. Revista Território/LAGET, UFRJ. Rio de Janeiro: Garamond, ano VI, n.6, jan./jun., 1999, p.43-53.

KAGEYAMA, A.& SILVA, J. G. da A dinâmica da agricultura brasileira: do complexo rural aos complexos agroindustriais. Campinas: UNICAMP/IE, 1987.

LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP & A, 1999.

LIMA, G. A vida fora dos canaviais: um estudo sobre a reprodução dos trabalhadores assalariados rurais na região canavieira de Ribeirão Preto - SP. Araraquara: FCLAR/UNESP, 1996 (Dissertação de Mestrado).

MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec e Polis, 1984.

OLIVEIRA, F. de Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998.

SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

SANTOS, M. Por uma economia política da cidade. São Paulo: Hucitec, 1994.

SILVA, M. A. de M.Errantes do fim do século. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

THOMAZ JÚNIOR, A. A territorialização do monopólio: as agroindústrias canavieiras em Jaboticabal. São Paulo: F.F.L.C.H./USP, 1988 (Dissertação de Mestrado).

THOMAZ JÚNIOR, A. Por trás dos canaviais os (nós) da cana: uma contribuição ao entendimento da relação capital x trabalho e do movimento sindical dos trabalhadores na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: F.F.L.C.H./USP, 1996 (Tese de Doutorado).

VASCONCELOS, L.A.T. A região administrativa de São José do Rio Preto. Cenários da urbanização paulista. São Paulo: SEADE, 1992, p.133-53. (Coleção São Paulo no limiar do século XXI, n.7).

 

© Copyright Mara Lúcia Falconi da Hora Bernardelli, 2003
© Copyright Scripta Nova, 2003

 

Ficha bibliográfica:
BERNADELLI, M. L. F. H. Os papéis urbanos na região de Catanduva/SP: relações entre a produção de moradia e o trabalho volante. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(081). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(081).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
Índice de Scripta Nova
Menú principal