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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(084), 1 de agosto de 2003

NOVOS ENUNCIADOS DE PROJETO EM ÁREAS DE INTERESSE SOCIAL: UM OLHAR SOBRE AS ÁREAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL DE NATAL

Marcelo Bezerra de Melo Tinoco
Ana Paula de Oliveira Vilaça

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. PPGAU/UFRN - RN, Brasil

Novos Enunciados de Projeto Em Áreas de Interesse Social: Um Olhar sobre as Áreas Especiais de Interesse Social de Natal (Resumo)

Nas Áreas de Interesse Social constituídas por favelas ou áreas de baixa renda, a produção de unidades habitacionais tem se dado através de melhorias de edificações existentes, sendo necessário a elaboração de normas especiais para a execução de propostas específicas de crescimento, abrindo assim a perspectiva para a elaboração de projetos com características especiais. A leitura dos padrões de ocupação das Áreas de Interesse Social da cidade de Natal, permite-nos compreender a lógica de formação e expansão do tecido, segundo a qual é possível construir novos enunciados para a elaboração de projetos baseados na inserção de edifícios em contextos existentes e consolidados.

Palavras chave: áreas de interesse social, habitação, projeto urbano.

New Prepositions of Project in Social Interest Areas: A Glance Over the Special Areas of Social Interest in Natal (Abstract)

In the areas of social interest formed by slums or low income areas, the production of habitational units has been occurring through the improvement of the existing edifications, being necessary the elaboration of special rules for the accomplishment of the specific propositions of growing, opening, thus, the perspective for the elaboration of projects with special features. The reading of the occupation patterns of the areas of social interest in Natal, allows us to understand the logic of forming and expanding the web, according to which it is possible to build new propositions for the elaboration of projects based on the insertion of building in existing and consolidate context.

Key words: social interest areas, housing, urban project.

Nas duas últimas décadas, a produção informal da habitação no Brasil tem levado à revisão do conceito de déficit habitacional como um problema relacionado não à produção de novas habitações, mas sim às condições de habitabilidade, isto é, às condições de infra-estrutura urbana, indicando o deslocamento do problema de demanda de novas moradias nas cidades para demandas de melhorias do habitar no meio urbano.

A partir da distinção do déficit quantitativo (novas unidades) e do déficit qualitativo (melhoria habitacional), o enfrentamento do déficit de habitabilidade passou a apoiar-se, dessa forma, em programas diversificados e concebidos a partir da cidade real, fruto da produção doméstica da moradia, formada por favelas, cortiços, áreas com urbanização precária, sem saneamento, áreas de risco, entre outras.

Amparados pela Constituição de 1988, os Planos Diretores de diversas cidades do país instituíram as Áreas de Interesse Social, apresentando em comum o reconhecimento dessas áreas no tecido urbano, bem como a necessidade da definição de parâmetros urbanísticos específicos para elas, elaborados e implantados sob a responsabilidade e orientação do Poder Executivo Municipal, a quem também cabe contemplar as formas de gestão e de participação da população.

No nordeste do país, as experiências nesse sentido tiveram início logo na década de 80, na cidade do Recife, onde através de uma lei de uso e ocupação do solo que reconhecia as favelas como parte integrante da cidade formal, foram instituídas as Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, caracterizadas como assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente, existentes e consolidados, para os quais foram estabelecidas normas urbanísticas especiais a fim de promover a sua regularização jurídica e sua integração à estrutura urbana, tendo como suporte para sua viabilização o Plano de Regularização das ZEIS (PREZEIS).

Nas grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, programas de urbanização de favelas, como o Programa Favela Bairro e o Programa Guarapiranga, respectivamente, apresentaram como traço comum a integração das áreas faveladas à estrutura da cidade, através de obras de infra-estrutura urbana, recuperação de edificações em situação de risco e tratamento dos espaços públicos de articulação com o tecido do entorno.

Em Natal, somente a partir de 1994, as ocupações irregulares passaram a integrar o Plano Diretor, através da incorporação das favelas, vilas e loteamentos irregulares como objeto de programas especiais no âmbito da lei. Durante o processo de elaboração do Plano Diretor de Natal foi realizado o Diagnóstico Habitacional de Natal[1], que classificou os assentamentos habitacionais ocupados por população de baixa renda em quatro tipos, segundo critérios de tipologia da habitação, serviços de infra-estrutura, renda familiar e situação fundiária.

Segundo o diagnóstico, em 1994, as Favelas e as Comunidades Carentes (favelas com algum tipo de infra-estrutura) constituíam 70 áreas precárias localizadas em 28 dos 35 bairros da cidade, cuja população estimada em 60.000 pessoas residiam em 12.088 barracos. Foram ainda identificadas cerca de 2.200 Vilas, normalmente edificadas em áreas dotadas de serviços básicos de infra-estrutura e equipamentos urbanos, apresentando um contingente populacional de 40.395 pessoas, morando em 12.241 unidades habitacionais.

O novo Plano buscou a articulação entre o planejamento urbano e a política habitacional introduzindo os conceitos de Habitação de Interesse Social (HIS), entendida como "aquela destinada às famílias que vivem em favelas, vilas ou loteamentos irregulares ou as que auferem renda inferior a 10 (dez) salários mínimos", e o conceito das Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), correspondendo àquelas "porções do território municipal que requerem tratamento específico e destinam-se primordialmente à produção, manutenção e recuperação de habitações de interesse social". (PLANO DIRETOR; Capítulo II, Art. 25: 1994).

No entanto, passados nove anos da aprovação do Plano Diretor, das áreas apontadas pelo Diagnóstico Habitacional, apenas o bairro de Mãe Luiza foi regulamentado como Área Especial de Interesse Social, através da Lei 4.663 de 31/07/95.

A partir dessa constatação, lançamos a hipótese de que os entraves para a regulamentação das Áreas Especiais de Interesse Social em Natal, encontram suas raízes na disparidade entre os conceitos estabelecidos pelo Plano Diretor e a real situação dos assentamentos populares da cidade. Apontamos que a abrangência do conceito de Habitação de Interesse Social e a própria definição das Áreas Especiais de Interesse Social, contidos no Plano Diretor de Natal, quando aplicadas sobre os assentamentos habitacionais da cidade, extrapolam os limites físicos das áreas identificadas pelo Diagnóstico Habitacional do município como favelas, vilas e loteamentos irregulares.

Procuramos, dessa forma, demonstrar no estudo apresentado a seguir, que se faz necessário a redefinição dos limites dessas áreas em Natal, e portanto, a revisão dos critérios adotados para sua classificação, baseados na releitura dos padrões de ocupação - morfologia e tipologia - associando-os ao nível de renda da população residente nesses assentamentos. A revisão desses critérios bem como a redefinição dos limites dessas áreas ensejarão o restabelecimento de normas de uso e ocupação do solo em diversas partes da cidade, hoje simplesmente consideradas como áreas adensáveis, submetidas aos índices estabelecidos pelo mercado formal, embora ocupadas por população de baixa renda.

Finalmente, apontamos alguns procedimentos metodológicos para tratamento urbanístico dessas áreas, sobretudo aquelas inseridas em porções disputadas pelo mercado imobiliário, a partir da pesquisa tipológica e do desenho da habitação como forma de integrar essas porções às demais áreas do tecido urbano, perseguindo dessa forma, o princípio básico em intervenções dessa natureza: a manutenção da população nos seus locais de origem.

A orla marítima de Natal: O lugar do turismo e do interesse social

A partir da década de 70 e, sobretudo de 80, a ocupação de áreas litorâneas articuladas à atividade turística levou à instituição de áreas na cidade com características singulares, de caráter ambiental, paisagístico e de grandes potencialidades turísticas, que passaram a ser tratadas de maneira diferenciada pela legislação urbanística, sendo incorporadas aos Planos Diretores Municipais sob a forma de Áreas Especiais.

A definição da orla marítima de Natal como Zona Especial de Interesse Turístico se deu a partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1984, quando foram instituídas as Zonas Especiais. O Plano Diretor de 1994, por sua vez, instituiu as Áreas Especiais, incorporando as Zonas Especiais de Interesse Turístico como Áreas de Controle de Gabarito, juntamente com as Áreas de Operação Urbana, situadas nos bairros históricos, e os núcleos residenciais de baixa renda como Áreas Especiais de Interesse Social.

A restrição do gabarito na orla da cidade, ao mesmo tempo em que inibiu a instalação de edifícios verticalizados, fez com que, em algumas áreas, fosse mantido o padrão de ocupação espontânea, caracterizado pela presença de um grande contingente populacional de baixa renda, sobretudo no trecho definido como Zona Especial de Interesse Turístico 3,a ZET-3.

Nesse trecho ocorre uma relação de vizinhança intensa entre as áreas de interesse turístico e os bolsões residenciais de baixa renda, alguns já instituídos como Área de Interesse Social (AEIS), como é o caso de Mãe Luiza. Essa porção leste da cidade, composta pelos bairros de Areia Preta, Mãe Luiza, Rocas, Praia do Meio e Santos Reis, divide-se entre o turismo e o interesse social, com uma população total de 40.855 habitantes.

Do ponto de vista das áreas com características de baixa renda, identificamos através da nossa pesquisa, um grande "cordão" de interesse social próximo à orla, especificamente nos bairros de Praia do Meio, Rocas e Santos Reis, estimando uma população de 21.348 habitantes, assentada em 118 quadras com 4.744 lotes[2]. Se acrescentarmos a população de Mãe Luiza, de 16.324 habitantes, teremos para o conjunto dos cinco bairros, nesse trecho da cidade, uma população de interesse social da ordem de 37.672 habitantes, correspondendo a 92,20% da população residente nos bairros citados.

À exceção de Mãe Luiza, os dados levantados revelam as Rocas com a maior concentração de quadras ocupadas pelo interesse social, totalizando 65 quadras, com 2.841 lotes, uma população total estimada de 12.784 habitantes, uma densidade média de 456,81 hab/ha e um lote médio de 73 m2. Em seguida aparece Santos Reis com 33 quadras, 1.162 lotes, uma população estimada de 5.229 habitantes, densidade média de 499,99 hab/ha e um lote médio de 68,43 m2.

Finalmente, para a Praia do Meio, encontramos 20 quadras com 741 lotes, com uma população estimada em 3.334 habitantes, uma densidade média de 394,40 hab/ha, e um lote médio de 59,9m2.

A análise dos dados com a distribuição do nível de renda dos chefes de família nesse trecho demonstra que o rendimento varia de ¼ a 3 salários mínimos. Entre os que apresentam índices mais baixos de renda encontramos Mãe Luiza e Santos Reis. Esse último, em virtude da presença da favela do Vietnã e da comunidade de Brasília Teimosa (uma antiga favela urbanizada), originadas a partir de um assentamento irregular surgido na década de 60 e sub-parcelado ao longo dos anos, consideradas pelo Plano Diretor como Áreas de Interesse Social a serem regulamentadas.

Na Favela do Vietnã, localizada em uma área de 27.272 m2, foram identificados 381 lotes distribuídos em 9 quadras, e uma população estimada de 1.714 habitantes. A densidade líquida estimada é de 640,2 hab/ha, e o lote médio encontrado apresenta área de 45 m2. Para Brasília Teimosa, localizada em área de 40.318 m2, foram identificados 459 lotes, distribuídos em 12 quadras, e uma população estimada de 2.065,5 habitantes. O lote médio encontrado apresenta área de 58,33 m2 e a densidade líquida estimada em 512,53 hab/ha.

Diante desses dados, se considerarmos que no Recife, o enquadramento das Zonas Especiais de Interesse Social, leva em consideração critérios tais como o uso predominantemente residencial, tipologia habitacional de baixa renda, renda familiar média igual ou inferior a 3 salários mínimos, precariedade ou ausência de infra-estrutura e densidade habitacional superior a 30 residências por hectare (o que equivale em média a 135 hab/ha), o trecho estudado atende perfeitamente aos requisitos necessários à sua classificação como de interesse social.

Da mesma forma, ao considerarmos que o Plano Diretor de Natal define as Áreas Especiais de Interesse Social como aquelas "destinadas à produção, manutenção e recuperação de habitações de interesse social", ao mesmo tempo em que define a habitação de interesse social como "aquela destinada às famílias que vivem em favelas, vilas ou loteamentos irregulares ou que auferem renda inferior a 10 (dez) salários mínimos", o trecho estudado também se enquadra na classificação como de interesse social.

Concluímos, portanto, que no trecho pesquisado os limites das Áreas Especiais de Interesse Social apontadas pelo Plano Diretor para regulamentação, tais como Mãe Luiza, Brasília Teimosa e a Favela do Vietnã, devem ser ampliados para todo o trecho em questão, em virtude de apresentarem as mesmas características e critérios acima elencados.

A ausência de políticas habitacionais, sobretudo a ausência da regulamentação das Áreas Especiais de Interesse Social, e, portanto, de novas propostas no plano das tipologias habitacionais de interesse social em Natal, tem causado uma enorme lacuna no que diz respeito à ocupação, expansão e tratamento dessas áreas, que, conseqüentemente, tendem a sofrer processos especulativos em virtude da expansão da atividade turística.

Novos enunciados de projeto em Áreas de Interesse Social

Se considerarmos que 35% da população natalense encontra-se em estágio de indigência (IDEC, 1995)[3] e que a renda média da população residente na Praia do Meio, Rocas, Santos Reis, oscila entre ¼ a 3 salários mínimos, percebemos o desafio em conjugar o avanço da atividade turística com a manutenção da população de interesse social nas suas áreas de origem, sobretudo em programas de urbanização que prevêem remoções e novos empreendimentos no entorno dos núcleos residenciais de baixa renda.

Não obstante, observamos que a elaboração da legislação urbanística que define as regulamentações específicas baseia-se na identificação de áreas e sub-áreas, de acordo com as suas características físico-ambientais e de ocupação, a partir das quais aponta parâmetros relativos à densidade, coeficientes de aproveitamento, taxas de ocupação, recuos e gabaritos, chegando em alguns casos, a definir os usos previstos, os vedados e os tolerados.

Em Natal, o perímetro da área definida como Zona Especial de Interesse Turístico-3 estabeleceu um padrão de ocupação correspondente apenas à área contígua à orla, que foi objeto de parcelamento, com lotes cuja dimensão - entre 260m2 e 450m2 - se adequa mais facilmente às exigências estabelecidas pela lei, com testadas de 12m a 15m e recuos frontais de 5,0m. Porém, para os trechos de baixa renda localizados entre essas áreas e a encosta do tabuleiro, onde o lote médio encontrado apresenta área inferior a 60m2, constata-se um padrão completamente distinto, com a inobservância dos recuos estabelecidos, testadas predominantes de no máximo 5,0 m, e a presença de vilas e ruelas, caracterizando essas porções como áreas de interesse social.

Percebe-se, portanto, que a regulamentação privilegiou um padrão de ocupação que ocorre apenas nas áreas próximas à orla marítima ou a trechos específicos, cuja origem do parcelamento planejado previu o estabelecimento de lotes com dimensões maiores, e, portanto, direcionados a um mercado de poder aquisitivo mais elevado, gerando padrões claramente diferenciados e separados por uma linha de "conflito" ou "tensão".

Ao considerarmos a permanência da população no local, a eliminação dos agentes deterioradores e de desagregação social, o tratamento conjunto da atividade turística e da moradia, valorizando a sua estrutura própria como elementos possuidores de uma energia vital de dentro para fora, estaremos possibilitando que a população compartilhe democraticamente do desenvolvimento econômico.

Além do aspecto político da organização local, o reconhecimento dessas áreas como de interesse social e sobretudo, urbanístico, pela legislação, criama demanda por projetos específicos de urbanização, desenvolvidos segundo a lógica interna dos processos de manifestação popular, sua cultura, e, enfim, sua arquitetura. É preciso, portanto, que se estabeleça a necessária compatibilização entre as normas e as regras definidas pela legislação vigente que incidem sobre os bolsões de interesse social e as prescrições para as áreas de interesse turístico, de acordo com as transformações demandadas pelo desenvolvimento econômico.

Essas transformações deverão trazer desdobramentos que se refletirão, paulatinamente, na mudança das características de ocupação com a substituição dos padrões existentes. O aumento do valor dos imóveis induzirá no mercado a expectativa de obtenção de melhores níveis de aproveitamento do solo, que terá como conseqüência o aumento da densidade instalada, com reflexos na necessidade de aproveitamento do espaço aéreo com o uso verticalizado.

Dessa forma, argumentamos que o tratamento da moradia de interesse social, do ponto de vista do desenho para assentamentos adequados a essa nova realidade, deve ocorrer de maneira integrada ao tratamento das áreas de interesse turístico, buscando, através do projeto urbano, soluções negociadas, que procurem dar o devido tratamento à linha de tensão entre essas porções que disputam o solo urbano.

Apontamos para que, em negociações que envolvem disputa territorial, o papel do projeto no acompanhamento da declaração e desenho dos problemas em processos de negociação entre os atores, é peça de grande importância para o planejamento público, na medida em que através dele, é possível obter os registros gráficos das operações propostas para o plano de ação durante todas as suas fases de elaboração.

Através da concretização dos acordos em desenhos e imagens, é possível fornecer e ampliar os elementos lingüísticos necessários aos processos de negociação, espacializando-os através da elaboração de planos de massas, como a possibilidade de antever uma arquitetura possível para a área e para os empreendimentos negociados conjuntamente. Diz respeito também à espacialização das negociações no que tange aos aspectos do que é público e do que é privado, através da clara definição dos espaços de uso coletivo, bem como da definição dos equipamentos e de novas tipologias habitacionais para a área. Enfim, diz respeito ao controle social da ocupação urbana.

Assim, as configurações desejáveis para a área devem prever o estabelecimento de níveis de legislação específicos, como forma de regular o seu crescimento e ocupação, reconhecendo as diferenças e atuando sobre elas. Dessa forma, o estabelecimento de uma legislação em níveis diferenciados diz respeito, fundamentalmente, a uma legislação geral onde o plano de massas seja concebido como meta de ocupação a ser perseguida.

O Plano de Massas gera um Plano Diretor para a área, e, portanto, uma base legislativa como expressão pura do desenho daquele espaço devidamente negociado. Esse procedimento, anterior à consolidação física do espaço construído, permite-nos testar as variáveis do Plano, oferecendo uma configuração volumétrica da ocupação negociada, baseada nos diversos cenários processados durante as fases de planejamento.

O objetivo está na espacialização da negociação, através da realização do plano de massas, que expresse uma configuração possível, fruto do processo de disputa, a partir da qual seja possível o desenvolvimento de projetos específicos e que atendam aos interesses, mesmo que parcialmente, dos atores envolvidos. A força interna da cada porção (porção do mercado), caracteriza-se como uma força endógena, a partir da qual os acordos podem tornar-se possíveis, e conseqüentemente, a forma negociada de ocupação do espaço local vira lei, transforma-se em norma, alterando ou reformando a norma existente.

A nossa pesquisa busca, portanto, a partir da análise das Áreas Especiais de Interesse Social, identificar procedimentos metodológicos e opções técnicas adotadas, notadamente àquelas que se referem às soluções de projeto e seu rebatimento sobre o desenho da habitação de interesse social, sobretudo em programas de reurbanização e urbanização[4], de acordo com o contexto em que estão inseridas.

Considerando como princípio básico a permanência da população nas suas áreas de origem, adotamos como referências iniciais a manutenção das características do parcelamento e da estrutura fundiária, bem como o respeito às estruturas físicas das edificações existentes, a partir das quais são construídos os novos enunciados de projeto e, portanto, para o desenho da habitação. Trata-se de intervir sobre uma realidade estética de uma paisagem em que a ocupação original não foi orientada por um projeto técnico, "resultando em uma qualidade espacial específica, social e historicamente construída". (Bueno, 2000).

Nesse sentido, destacamos alguns procedimentos metodológicos que julgamos relevantes: a) identificação do perímetro sobre o qual o Plano deseja intervir; b) estudo e identificação das configurações espaciais distintas; c) adequação, suprimento e distribuição de infra-estrutura; d) leitura e análise dos padrões de ocupação segundo a sua decomposição em elementos analíticos tais como a forma urbana e os tipos construídos; e) análise das relações entre os edifícios e o lote; f) desenho das novas tipologias da habitação e equipamentos urbanos; g) integração dos tipos construídos aos espaços de uso coletivo; g) acessibilidade, permeabilidade e fluidez; h) articulação com as áreas do entorno.

Considerações finais

Ao partirmos do pressuposto que o reconhecimento de nichos de mercado pela legislação urbanística, que não se relacionam entre si, cria situações onde, em localizações potencialmente disputadas, não tem sido possível o reconhecimento das áreas de interesse social, nem tão pouco tem sido apresentadas alternativas de programas de urbanização que atendam os interesses de todos os grupos sociais envolvidos.

A partir da nossa análise, entendemos que não basta somente estabelecer limites para áreas circunscritas às suas especificidades para efeito de regulamentação, mas proceder ao seu tratamento integrado, prevendo intervenções que devem ser submetidas a um sistema de gestão específico, podendo, dessa forma, acionar processos de transformação e renovação desses trechos, com poder de alterar o entorno imediato, conforme decisões acordadas sobre as operações desenhadas. Uma espécie de Plano de Ação compartilhado, construído e desenhado coletivamente.

Consideramos, finalmente, que as intervenções em Áreas Especiais de Interesse Social, caracterizadas por forte conteúdo de participação popular, através de consultas públicas, devem incorporar a dimensão social ao processo projetual nas suas diferentes fases de elaboração, contribuindo para a construção dos novos enunciados de projeto na medida em que legitimam os procedimentos metodológicos adotados, enriquecendo-os e transformando-os. Esperamos, portanto, que a partir dos elementos levantados pela nossa pesquisa, seja possível, não somente retomar o processo de regulamentação das Áreas Especiais de Interesse Social em Natal, hoje paralisado, mas sobretudo, trazer à discussão novos enunciados de projeto para tratamento urbanístico dessas áreas.
 

Notas

1 Prefeitura Municipal de Natal. Diagnóstico Habitacional de Natal. Natal: IPLANAT, 1994

2 Essa totalização foi realizada a partir da base digitalizada disponível no Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (cedida pela Companhia de Águas e Esgotos do Estado / CAERN), sobre a qual identificamos, para o nosso trabalho, o conjunto de quadras integrantes da área de interesse social, de acordo com as características de ocupação. Sobre cada quadra, foi realizada a contagem do número de lotes, bem como as suas respectivas áreas, podendo dessa forma identificar o lote médio de cada uma delas. Finalmente, sobre o total de lotes de cada quadra, foi possível identificar a densidade líquida de cada uma, bem como estimar a população residente, levando-se em consideração o parâmetro de 4,5 habitantes por domicílio.

3 Governo do Estado do RN, 1995.

4  No Brasil, de acordo com Bueno (2000), as políticas de intervenção em favelas evoluíram, a partir dos anos 30 e 40, da erradicação, remoção ou desfavelamento, para a reurbanização e, mais recentemente, para a urbanização.No primeiro caso, procedia-se à substituição da favela e à remoção da população para as periferias das cidades, segundo a lógica e soluções projetuais do BNH. No que se refere à reurbanização, a prática adotada consiste na substituição integral da favela e a sua reconstituição no mesmo lugar, segundo um padrão urbanístico e arquitetônico dominante.A urbanização de favelas, postura adotada a partir dos anos 80, aponta para a dotação de infra-estrutura, serviços e equipamentos urbanos, e a manutenção das características do parcelamento do solo e das unidades habitacionais existentes.
 

Bibliografia

BUENO, L.M.M. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização. 2000. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000.

GOVERNO DO ESTADO DO RN. Pobreza no Rio Grande do Norte: condicionantes sócio-econômicos. Vol. 1. Natal: Fundação Instituto de Desenvolvimento do Rio Grande do Norte - IDEC, 1995.

PLANO DE REGULARIZAÇÃO DAS ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL - PREZEIS. Lei no 16.113/95.

PREFEITURA MUNICIPAL DE NATAL. Diagnóstico habitacional do Município de Natal. Natal: IPLANAT, 1994.

PREFEITURA MUNICIPAL DE NATAL. Plano Diretor de Natal. Natal, 1994.

TINOCO, M. B. M. Arquitetura em Conflito. O lugar do Projeto Urbano na ocupação da cidade: ocupação turística e ocupação de interesse social. 2001. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001.
 

 
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Ficha bibliográfica:
TINOCO, M. B. y VILAÇA, A. P. O. Novos Enunciados de Projeto Em Áreas de Interesse Social: Um Olhar sobre as Áreas Especiais de Interesse Social de Natal. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(084). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(084).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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