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Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. VII, núm. 146(086), 1 de agosto de 2003 |
AS CONDIÇÕES DESIGUAIS DE ACESSO À MORADIA EM FORTALEZA, BRASIL
Sérgio
Cesar de França Fuck Júnior
UECE - Univ. Estadual do Ceará
- Fortaleza-CE, Brasil
As condições desiguais de acesso à moradia em Fortaleza, Brasil (Resumo)
Através da (re)produção social do espaço urbano (mediação pelo trabalho), a sociedade se apropria da natureza, parcelando-a e atribuindo-lhe valor econômico. Assim, a expansão urbana atual no Município de Fortaleza está intimamente vinculada ao mercado imobiliário, do qual é, dialeticamente, resultante, meio e condicionante, enquanto espaço geográfico; bem como é comandada, em última instância, pelas classes dominantes, que representam a demanda solvável do mercado de imóveis e orientam o ordenamento do espaço. Também a própria ação do Estado, no tocante à (re)criação de infra-estrutura urbana adequada, habitação e legislação, propicia a valorização do solo, acarretando um padrão residencial de classes médias e alta em boa parte deste território, implicando novas formas e funções; "contraditoriamente", permite manterem-se ou (re)criarem-se áreas desvalorizadas neste mesmo território, não-privilegiadas pelo mercado imobiliário, gerando características específicas e ações distintas de seus habitantes. Discute-se como se dá o acesso à moradia e os modos de ocupação, uso e controle, cujas condições diferenciadas constituem a segregação espacial.
The inegal conditions of housing access in Fortalez, Brasil (Abstract)
Through the social (re)production of the urban space (mediation for the work), the society if appropriates of the nature, parceling out it and attributing economic value to it. Thus, the current urban expansion in the City of Fortaleza intimately is tied with the real estate market, of which it is, dialektikaly, resultant, way and condiction, while geographic space; as well as it is commanded, in last instance, for the ruling classes, that represent the to pay demand of the market of property and guide the order of the space. Also the proper action of the State, in the moving one to the (re)criation of adjusted urban infrastructure, habitation and legislation, propitiates the valuation of the ground, causing a residential of middle classes and high standard to a large extent of this territory, implying new forms and functions; "paradoxically", allow to remain themselves or to (re)criate not-valueable areas in this territory, exactly not-privileged for the real estate market, generating characteristic specific and distinct actions of its inhabitants. It is argued as if it gives the access to the housing and the ways of occupation, use and control, whose differentiated conditions consistute the space segregation.
Por que ocorre a valorização diferenciada das diversas áreas da Cidade, e a quem isso beneficia? Qual o seu uso? O que permite ou impede à população em geral o acesso ao solo urbano e à moradia? Até que ponto se pode averiguar se a condição do espaço como condicionante, meio e reflexo social é direta ou indireta?
A valorização econômica do espaço construído
"Sob esse modo de produção [o capitalismo], o espaço é, antes de tudo, objeto, veículo e produto do capital. Por isso mesmo, em termos das determinações gerais, o processo de valorização capitalista do espaço não é outro que a própria valorização do capital [...] No caso da fixação, que é um pressuposto do capitalismo, ocorre não um simples assentamento de população, mas uma gigantesca agregação de valor ao solo sob a forma de capital fixo." (MORAES & COSTA, 1999:168)
O valor do espaço urbano tem um aspecto ontológico-econômico[1]. O seu valor monetário, expresso nos preços dos terrenos (e imóveis), será agora considerado como parte do processo sócio-espacial geral. Na malha urbana, a partir do acesso ao solo, a construção de moradias é o principal processo implementado, acompanhado de instalações de alguns tipos de indústrias e da construção de estabelecimentos para outras atividades econômicas, sendo a infra-estrutura e os equipamentos[2], e os serviços necessários, implantados, realizados ou facilitados pelo Estado, de acordo com a importância relativa de cada área (ou, lamentavelmente, de quem as possui!).
A acumulação de capital e a reprodução social fazem da grande cidade capitalista um lugar privilegiado, pois criam funções, formas espaciais, atividades e suas materializações, que constituem a própria distribuição espacial urbana. A expansão urbana em Fortaleza tem na atuação do mercado imobiliário apenas um dos determinantes dessa configuração territorial(embora o consideremos o principal, pois representa a demanda das classes dominantes). A valorização do solo se dá de acordo com a concentração/localização das edificações/ocupações e usos, gerando um movimento específico na economia, que tem reflexos além de seus próprios limites, condicionando novos processos (haja vista todos os habitantes necessitarem de um espaço para viver e produzir). Os agentes capitalistas interessam-se pelo valor-de-troca do solo, e os imóveis (terrenos e edificações) são capital constante (fixo) na composição orgânica do capital dessas empresas. E isto pressiona a própria recriação da legislação e da infra-estrutura urbana. Por fim, os grupos sociais "excluídos" passam a ser dependentes desta dinâmica.
"Em suma, a conexão entre o valor de uso da localização, que é um produto social, e o preço pelo uso do espaço, que é expropriado pelos particulares, é percebida quando entendemos o mercado imobiliário como um elo mediador no processo de acumulação de capital." (GOTTDIENER, 1993:180)
Com o crescente processo de expansão urbana em Fortaleza, e os conseqüentes aumentos populacional (local e migrante) e produtivo, as áreas não-urbanizadas são então incorporadas (para a necessária expansão espacial), revalorizando o capital nelas contido (auferindo renda da terra) e investido (gerando lucro)[3]. Ou seja, esse crescimento demográfico-espacial do Município provoca a necessidade de novos terrenos e imóveis, cuja existência dependerá da incorporação (pelo capital) e sua posterior transformação formal e funcional - o loteamento e a construção -, bem como da infra-estrutura agregada (CORRÊA, 1995).
A partir de dados coletados diretamente em empresas imobiliárias e em classificados de jornais locais, verificamos que a valorização do espaço se dá de forma bastante complexa, partindo-se de certos "centros" ou "núcleos" e das principais vias de transporte, onde os preços dos terrenos tendem a diminuir à medida que se distancia desses locais (dependendo também, além desse aspecto "localização", do próprio tamanho do terreno e da construtibilidade específica de cada ponto). Mas, quanto ao preço dos imóveis propriamente, das edificações - para compra ou aluguel -, têm pesos determinantes o padrão da construção e o padrão estético do entorno imediato (a ocupação), e as atividades desenvolvidas na área (o uso).[4]
A segregação espacial
"O modo pelo qual o indivíduo terá acesso à terra, como condição de moradia, vai depender do modo pelo qual a sociedade estiver hierarquizada em classes sociais e do conflito entre parcelas da população. Assim, o tipo, local, tamanho e forma de moradia vai depender e expressar o modo como cada indivíduo se insere dentro do processo de produção material geral da sociedade." (CARLOS, 1994:171)
Em Fortaleza, a incipiente expansão nos anos 1930 começa a configurar também uma segregação espacial na Cidade (COSTA, 1988), com a divisão funcional em setores a partir da área central e de sua periferia imediata, e a seguir para periferias mais distantes: o centro, comercial; o oeste, industrial e residencial de classe baixa; o leste, residencial de classes médias e alta.[5]
A população de Fortaleza cresceu acentuadamente a partir da segunda metade do século XX e, por uma série de motivos - principalmente no que diz respeito ao sistema viário instalado e à questão da propriedade privada e da (des)valorização do solo urbano -, a Cidade estruturou-se na atual "divisão" leste-oeste (espacialmente, quanto às residências das classes sociais...).[6]
Entre 1950 e 1960, a taxa de crescimento foi de quase 100%, resultando no aparecimento de diversos núcleos espalhados pela periferia, totalmente desprovidos de infra-estrutura. No início dos anos 1970, com a expansão para leste, partindo-se da Aldeota, foi construído o Conjunto Habitacional Cidade 2000, "um conjunto popular em um bairro não popular"[7]. Conforme relatou COSTA (1988), sua implantação era necessária para a expansão naquela direção e a conseqüente valorização do solo em todo o entorno daquela área da Cidade, com grandes obras de aterramento de lagoas e terraplenagem (com remoção de dunas), e implantação de outros "sistemas de engenharia" (na concepção de SANTOS, 1991).[8]
Atualmente, no sudeste do Município, ocorre tanto a segregação imposta como a auto-segregação espacial[9], concomitantemente à descentralização espacial das atividades terciárias[10]. Mas esta auto-segregação se dá por "saturação", em parte como extensão da "Grande Aldeota": estaria acontecendo uma "fuga" das classes média alta e alta e do poder político[11] para esta área da Cidade.
Segundo VILLAÇA (1998), ambas as segregações identificadas por CORRÊA (1995) seriam um único processo dialético, pois a (auto-)segregação das classes dominantes (de mais alta renda) propiciaria o controle de todo o espaço urbano (e da sociedade):
"... As forças atuantes sobre a estruturação de nossas metrópoles produzem uma resultante que tende a fazer com que estas tenham apenas uma área de grande concentração das camadas de alta renda. [...] Os interesses das classes em questão levam a uma única área geral de sua segregação [auto-segregação], e isso vem ocorrendo há cem anos em nossas metrópoles." (VILLAÇA, 1998:133)... "A segregação é um processo necessário para o exercício da dominação social por meio do espaço urbano, decorrendo, portanto, da luta de classes em torno das vantagens e desvantagens do espaço construído..." (ibidem:29)
Assim, a dinâmica/dialética espacial não gera um "equilíbrio espacial" mas, ao contrário, acentua a contraditoriedade da produção capitalista do espaço. Identificamos então esses processos espaciais intra-urbanos que chamamos de aldeotização e (des)periferização, gerando novas formas e funções e sendo por elas gerados. Como estão indissociados, o primeiro processo relatado - a aldeotização[12] - torna-se também "(des)periferização", no sentido em que continua ocasionando a remoção de habitantes de renda muito baixa destas para outras áreas, passando a incorporá-las as classes média alta e alta, agora não mais como espaço "periférico", mas periurbano.
"O termo periferia urbana pode ser utilizado em dois sentidos, podendo ser inclusive contraditórios. Por um lado, para referir-se às chamadas 'franjas' ou 'bordas' urbanas, que seriam os loteamentos que se encontram nos limites da mancha urbana mais compacta, e que podem abrigar tanto uma população de alta renda (como os condomínios fechados, com 'muito verde, segurança e conforto'), quanto abrigar população de renda baixíssima... pode representar, por outro lado, a idéia de áreas desprovidas de meios de consumo coletivo, e que não são necessariamente distantes do 'centro urbano.'" (HORA, 1998:38)
Verifica-se que na expansão em áreas pouco adensadas, em quaisquer bairros, instalam-se primeiro as residências, mesmo se há uma infra-estrutura urbana precária. Mas, o sistema viário é essencial - sendo também um diferencial nos padrões das "frentes" de expansão nos bairros[13] -, assim como as redes de energia elétrica e de abastecimento de água. Os demais sistemas, como o esgotamento sanitário, tornam-se secundários[14]. Com isso, os terrenos tendem a ser mais baratos e, com a posterior instalação e/ou melhoria das infra-estruturas, essas áreas tenderão a valorizar-se muito mais do que outras áreas (especificamente se se tratarem de bairros de status, de expansão das classes abastadas[15]).
Quanto aos estabelecimentos comerciais e de serviços, verifica-se que nos bairros das classes médias e alta (e nos de expansão imobiliária recente) são bem mais abundantes, por exemplo, as agências bancárias, os shopping centers, as clínicas particulares, e mesmo muitos dos equipamentos e instituições públicas tendem a concentrar-se nessas áreas[16], enquanto que os pequenos comércios e as lojas em rede (farmácias, padarias...) espalham-se por toda a Cidade, mas podem ser mais abundantes fora das áreas "nobres" e de expansão (ambas "centrais" ou "potencialmente centrais").
"Os interesses das burguesias locais a respeito do espaço local constituem o principal elemento intra-urbano da estrutura espacial metropolitana... Os demais componentes fundamentais dessa estrutura - o centro principal, os bairros residenciais das demais classes sociais e os subcentros de comércio e serviços - formar-se-ão interagindo com os elementos anteriores, mas sendo, em última instância, por eles determinados." (VILLAÇA, 1998:134)
Ratificando as condições já destacadas, lembramos da dificuldade para grande parte da população do acesso à terra, onde o próprio imóvel construído sobre o terreno tende a ser uma "mercadoria" cada vez mais cara, inacessível a este contingente populacional. Conforme a professora SPOSITO (1988, p.73), "o acesso a uma moradia decente não depende de se dar tempo para a construção de mais casas, mas de se poder pagar por elas. Alguns podem fazê-lo; para a maioria isto se apresenta como um problema". Este acesso, pela compra ou aluguel, está subordinado ao nível salarial ou, de modo mais abrangente, ao nível de rendimento.[17]
"O nível de renda também é função da localização do individuo, o qual determina, por sua vez, a situação de cada um como produtor e como consumidor. [...] Essa seletividade do espaço ao nível econômico, assim como social, é, a nosso ver, a chave da elaboração de uma teoria espacial." (SANTOS, 1979:15)
A seguir, apresentamos o quadro 1, com dados salariais dos "chefes de família" no Município, por domicílios particulares permanentes[18]
Município,
Distritos e Subdistritos |
Pessoas
com rendimento responsáveis pelos domicílios particulares
permanentes |
Valor
do rendimento nominal médio mensal das pessoas com rendimento
responsáveis pelos domicílios particulares permanentes
(R$) |
Fortaleza |
473
236 |
846,68 |
Antônio
Bezerra |
46
087 |
453,33 |
Antônio
Bezerra* |
33
902 |
478,68 |
Conjunto
Ceará* |
12
185 |
382,81 |
Fortaleza |
181
641 |
1
315,74 |
Antônio
Bezerra* |
13
407 |
484,27 |
Barra
do Ceará |
64
004 |
560,44 |
Centro |
56
012 |
1
437,22 |
Mucuripe |
48
218 |
2
408,38 |
Messejana |
72
170 |
732,42 |
Cidade
dos Funcionários |
28
064 |
1
080,41 |
Messejana |
44
106 |
510,99 |
Mondubim |
107
785 |
431,11 |
Conjunto
Ceará* |
52
507 |
363,41 |
Conjunto
Prefeito José Walter |
55
278 |
495,42 |
Parangaba |
65
553 |
632,63 |
Parangaba |
65
553 |
632,63 |
* de acordo com a legislação vigente, um Subdistrito
não está necessariamente restrito ao território
de apenas um Distrito (IBGE). Fonte: Censo Demográfico 2000 (IBGE). |
É explícita a diferenciação salarial média entre os habitantes dos diversos subespaços do Município, e isto representa a própria segregação espacial, também percebida na paisagem (na estética do espaço construído e na infra-estrutura urbana, na forma), conforme verificamos, por exemplo, na comparação dos dados relativos ao Subdistrito Mucuripe (onde se inclui a Aldeota e adjacências) com o restante do Município, e do Distrito de Messejana, comparando-se os conjuntos de bairros ao norte (Subdistrito Cidade dos Funcionários) e ao sul (Subdistrito Messejana).
Apresentamos, a seguir, a Figura 1, com a estratificação social por rendimentos: percebe-se a região geral[19] de auto-segregação.[20]
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Figura
1. Município
de Fortaleza - renda média domiciliar por setores censitários. Fonte: EstatCart - IBGE, 2002. |
Destarte, em vista das necessidades sobretudo de habitação e de trabalho (reais e ideológicas), emergem também os movimentos sociais urbanos[21], reivindicatórios, visando à "cidadania", à moradia em sentido amplo, que em distintos momentos (e com distintos significados) são a "expressão de uma metrópole em fase de expansão... a partir da visibilidade da moradia e pobreza urbana como questões sociais. Os moradores da periferia urbana são, assim, uma categoria símbolo do fenômeno das diferenciações que, pondo em questão a modernidade expansiva da cidade, apresenta o reverso das vitrines." (BARREIRA, 1992:13). É o que consideraremos a seguir.
A luta pela moradia
"... O homem retorna à caverna, envenenada agora pela pestilência mefítica da civilização, e ele a habita apenas precariamente, como um poder estranho, que pode escapar dele a cada dia, e da qual pode a cada dia ser expulso, se não pagar." (KARL MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, 1844, apud GIANNOTTI et al, 1978:17 e LEFEBVRE, 1999a:34)
Segundo KOWARICK (1993), no problema habitacional há dois processos interligados, e em ambos o papel do Estado é fundamental: a exploração do trabalho e a pauperização da classe trabalhadora. É a socialização dos custos com a apropriação privada dos benefícios: os mais pobres são os que pagam relativamente mais caro pela habitação e pelos serviços urbanos. Em decorrência, advindo dessa contradição fundamental da sociedade capitalista, aparece o conceito de espoliação urbana[22], que "é o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho" (ibidem:62).
"Sendo o consumo produtivo (e privado) do espaço o fundamento de sua valorização, a espoliação será uma tônica desse processo. Nesse sentido, sob o capitalismo, não existe aquele espaço construído como resultado 'idílico' das necessidades da existência, aquele do 'gênero de vida'. Na verdade, não existe espaço 'exterior' à lógica do capital." (MORAES & COSTA, 1999:160)
É na periferia geográfica, nos bairros mais distantes do "núcleo" da Cidade, que os problemas da falta de infra-estruturas e serviços públicos atingem uma significativa parcela da população urbana. Esses praticamente só são oferecidos na medida em que propiciam a "necessária" reprodução da força-de-trabalho, uma necessidade do capital[23].Assim, "a relação entre exploração do trabalho e carência e precariedade habitacionais é mediatizada pelo mercado imobiliário" (RIBEIRO, 1997:142).
"Por toda a parte, estar distante é sinônimo de ser prejudicado; nos países subdesenvolvidos, estar distante é ainda pior; é se condenar a ser pobre. O termo distância deve ser tomado numa acepção sócio-econômica que caracteriza a situação geográfica das periferias; não é uma questão de distância física, mas de acessibilidade." (SANTOS, 1979:229-230)
Assim, o espaço segregado e sua gestão implicam não só o controle da reprodução da força-de-trabalho per se, mas também do próprio espaço e do cotidiano[24]. Segundo VILLAÇA (1998, p.359):
"É necessária uma certa geografia, uma certa configuração espacial (a segregação) para viabilizar a dominação através do espaço. Sem essa configuração, seriam talvez impossíveis - ou extremamente difíceis - a dominação e a desigual apropriação dos frutos do trabalho despendido na produção do espaço".
Segundo o Censo Demográfico 2000 (Sinopse Preliminar), dos 524.717 domicílios particulares no Município de Fortaleza (eram 461.615 em 1996), 85.872 são "não-ocupados" (cerca de 17%). "Constata-se que, apesar de Fortaleza ser a 5ª cidade mais populosa do país, ocupa a 4ª colocação em termos de déficit habitacional absoluto e a 3ª posição em déficit habitacional relativo." (PMF, 2001), sendo também o 3º município mais povoado dentre os 31 mais populosos[25] dos 5.560 municípios brasileiros. Verifica-se ainda que, ao lado do grande déficit habitacional em Fortaleza - cerca de 150.000 moradias novas, com a existência de 621 favelas e 79 "áreas de risco" ocupadas[26], locais de assentamento de milhares de "sem-teto" e "sem-terra urbanos" - há muitos terrenos desocupados, sendo objetos da especulação fundiária e imobiliária. Percebe-se, portanto, o quão desiguais são essas condições de acesso ao solo urbano (à moradia) em Fortaleza.
Nos anos 1960, a criação (em 1964) do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e do Banco Nacional da Habitação (BNH) representou o auge da intervenção governamental na produção da moradia. Em 1966, passou-se a financiar a construção da "casa própria"[27] e toda a política habitacional estatal pelos recursos do FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - e das Cadernetas de Poupança. Com essa política, o Estado criou principalmente conjuntos habitacionais e sistemas de saneamento básico no País, que foram muitos, mas sempre insuficientes para atender a demanda por moradia (além de ter "periferizado" geograficamente os pobres, expandindo as cidades, fomentando a especulação urbana...[28]).
Em 1980, das nove regiões metropolitanas de então, Fortaleza era a que tinha o maior percentual de população favelada: 11%. Também tinha um dos menores índices de imóvel próprio (só a moradia propriamente, de barracos a mansões): 63% (RODRIGUES, 1997)[29]. Pouco antes, o BNH criara o programa Promorar - Programa de Erradicação da Sub-Habitação (RODRIGUES, 1997; BRAGA, 1995). O Promorar começou a realizar o que hoje se conhece por "urbanização de favelas", erradicando apenas a sub-habitação - e não mais removendo os seus moradores[30] -, implantando infra-estruturas urbanas nessas áreas e legalizando a posse das mesmas (porém, isso não significou o fim do processo de remoção de moradores para outras áreas...)[31]. Com a própria crise econômica dos anos 1980, e o conseqüente aumento do desemprego, os recursos do BNH escassearam, e o Banco foi extinto em 1986, passando suas funções para a CEF[32].
Nos dias atuais, o que se tem é uma dificuldade em pagar as prestações da "casa própria", sobretudo pelas classes mais baixas, haja vista o modelo econômico adotado no País[33]. O desemprego, o subemprego e os baixos salários (ou quaisquer rendimentos) jamais acompanham os juros dos financiamentos, mesmo se "amortizados" pelo Estado. Continua a "eterna crise" (cíclica) da habitação[34]. Parte-se para o aluguel, que extrai do inquilino mensalmente de 0,5 a 1% do preço do imóvel[35] (terreno e edificação), em favor do proprietário.
Agora, não se trata mais de uma humanidade em geral frente a um espaço em geral: a propriedade impõe-se como mediação contraditória (restritiva). O acesso ao espaço não depende, agora, apenas da possibilidade de expansão do ecúmeno, mas principalmente da posse jurídica privada de porções desse ecúmeno. A manifestação mais eloqüente dessa contradição pode ser observada, por exemplo, na 'coexistência' de grandes extensões de terras desabitadas e ociosas ao lado de populações numerosas sem acesso ao espaço necessário à sua vivência e produção." (MORAES & COSTA, 1999:176)
Como nem todos os habitantes ocupam terrenos dos quais se detém o direitode propriedade (domínio), ou mesmo podem pagar por eles e suas edificações, criam-se "duas cidades", a "legal" e a "ilegal": a primeira, de acordo com a regulamentação jurídica; a segunda, em desacordo (nas chamadas "ocupações", sobretudo em áreas "não-urbanizáveis" - das quais grande parte dos habitantes estaria também vinculada ao circuito inferior da economia[36] -, e mesmo em grande parte dos parcelamentos urbanos "reconhecidos", porém não-registrados).
Segundo recente propaganda do Governo do Estado, muitas dessas famílias ocupantes de "áreas de risco" estavam sendo removidas desde 2001, como as das favelas do Mangue/Gato Morto e Lagoa da Zeza/Tijolo, sendo reassentadas em outros terrenos no próprio Distrito, inicialmente em casas precárias, de madeira compensada, ao lado do Conjunto Tancredo Neves (198 famílias) e na Avenida Rogaciano Leite (180 famílias) - ambas no bairro Jardim das Oliveiras[37] -, e no bairro Cajazeiras (460 famílias), onde construíam novas casas de alvenaria em regime de mutirão.
RODRIGUES, citada por CARLOS (1994, p.174) afirma que:
"No desenvolvimento do capitalismo no Brasil a favela é produto da conjunção de vários processos: da expropriação de pequenas populações rurais e da super exploração da força de trabalho no campo, o que conduz à migração rural-urbana, ao empobrecimento da classe trabalhadora em seu conjunto e ao aumento do preço da terra urbana que conduz à necessidade de sucessivos deslocamentos no espaço urbano até a ocupação de áreas. A favela exprime a luta pela sobrevivência e pelo direito ao uso do solo urbano de uma parcela da classe trabalhadora."
Na maioria das vezes, as "melhorias" em determinada área periurbana acontecem através da luta dos moradores[38]. Porém, a vinda desses serviços públicos acarreta o aumento do preço da terra, e isso beneficia os especuladores[39]. Assim, os movimentos sociais urbanos[40], no que concerne ao acesso à moradia ("integral"), representam os conflitos e estratégias gerados pela pauperização de grande parte da população e pela (des)valorização do solo urbano, resultando no aumento dos assentamentos "ilegais", na revenda de lotes e construções clandestinas, na revenda das "chaves" ("contrato de gaveta") etc.
Quanto ao saneamento básico, importantíssima infra-estrutura urbana, em Fortaleza cerca de 13% dos domicílios não tem água canalizada pela Cagece[41], e somente 44% estão ligados à rede geral de esgoto (IBGE). Alguns bairros periurbanos têm maior proporção de domicílios ligados à rede geral devido pertencerem a conjuntos habitacionais estatais. Mas, muitas vezes esses números são fictícios[42], dada a precarização e o abandono a que se submetem posteriormente essas áreas que, como dissemos, são "desvalorizadas" pelo mercado (não há investimentos e/ou manutenções[43]).
Segundo SANTOS (2001), nos últimos anos, com a "globalização perversa"[44] e a desvalorização da força-de-trabalho, a "exclusão social" passou a ser estrutural e global. Essa "exclusão" significa que os pobres, em realidade, não são "marginais" ao sistema social (sem acesso aos bens de consumo, como se tratava a pobreza no funcionalismo dos anos 1960 e 1970), mas "economicamente explorados" e "politicamente oprimidos"[45]. Quando se conscientizam e se organizam, a cidadania aparece, permitindo-se até um certo grau de consumismo, e um exemplo disso é a organização existente no Conjunto Palmeiras (bairro Jangurussu), aonde há alguns anos vem efetuando-se a chamada "economia solidária" entre seus habitantes, com a criação do Banco Palmas e de uma "moeda" e sistema de crédito próprios, que permitem o acesso aos itens básicos de consumo (como os alimentos) para essa população que é carente (de baixa renda), mas que ao reconhecer sua condição de escassez, tomou consciência de que precisava comandar e realizar o seu próprio cotidiano46]. Com isso, também se incrementou a prestação de serviços comunitários entre os próprios moradores (isso sem falar na implantação de alguns equipamentos sociais pelo Governo Estadual).
E, relacionados diretamente às lutas na questão habitacional, relatamos a seguir dois casos específicos verificados em pesquisa direta - no bairro Cajazeiras - que sintetizam muito do que foi discutido até aqui... Primeiro: no Condomínio Residencial Morada dos Bosques[47], a Prefeitura construiu, à época das eleições municipais de 2000, uma quadra de esportes (dentro desse Conjunto Habitacional), com supostas intenções "eleitoreiras". Cerca de seis meses após as eleições, com a pressão popular por parte dos não-moradores (porém habitantes do bairro), da Imprensa e dos partidos de esquerda, a Prefeitura tentou derrubar o muro do Conjunto, alegando permitir-se o acesso da população do bairro à quadra de esportes, ou então iria destruí-la... Só não conseguiu realizar nenhuma dessas ações devido ao movimento organizado que mobilizou os moradores do Conjunto.
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Figura
2.
Movimento social
de protesto contra a Prefeitura (bairro Cajazeiras) Foto: moradores, 2000. |
No outro caso, verificamos a situação em terrenos vizinhos ao Conjunto mencionado. Lá, os loteamentos começaram há cerca de dois anos, de onde se pôde constatar a luta pelo espaço e o processo de valorização imobiliária em três pequenos loteamentos[48] - "Cajazeiras I", "II" e "III", da MF Empreendimentos Imobiliários Ltda -, e numa "ocupação" vizinha49]. Em entrevista com um dos sócios-proprietários da citada empresa[50], o mesmo apresentou queixas quanto ao processo legal de loteamento, tendo que arcar com muitas responsabilidades e despesas, segundo ele, devido às leis vigentes, sendo que há "invasores" no terreno ao lado que nada pagam. Somente tendo vários loteamentos no Município (como possui), é que este empresário consegue maximizar seus lucros.
Esse empreendimento começou apenas com o loteamento Cajazeiras I, e a expansão deu-se paulatinamente, seis meses (Cajazeiras II, 2000) e um ano depois (Cajazeiras III, 2001), autorizados pelos órgãos municipais competentes. Neste último, houve uma denúncia de estar-se ocupando área de preservação permanente (a menos de 100 m da margem do rio Cocó), e fiscais do CREA-CE constataram que se tratava de ocupação apenas parcial da planície de inundação do rio (mesmo estando a mais de 100 m da margem... assim como o loteamento I)[51]. Toda essa área é permeada por micro-lagoas "temporárias", e o aterramento impermeabiliza o solo, eleva o nível hidrostático etc.; qualquer chuva mais forte revela este fato. Mas, como ocorre freqüentemente, o processo de expansão desse espaço construído é irreversível[52].
Voltando à questão principal, constatamos então que nessa área existe um conflito "frio" pela posse da terra, pois ao lado desses loteamentos há uma "ocupação" popular (como dissemos), a favela Santa Maria Goreti. Os seus moradores têm medo da especulação imobiliária, e temem ser retirados da área (muitos já vieram expulsos de outras áreas do Município, como do "Lagamar"), enquanto que o empresário (dizemos novamente) reclama do "custo" em fazer um loteamento legalizado[53] e ter uma vizinhança "indesejada".
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Figura
3. "Ocupação"
Santa Maria Goreti - fachadas e aspectos internos das residências.
Fotos: FUCK JR. e Ana Maria Matos ARAÚJO, 2000. |
Esta "ocupação" deu-se em 1996, num terreno abandonado pela empresa têxtil "Del Rio" (que faliu). Aterrou-se uma pequena lagoa, e foi-se construindo moradias precárias. Ao entrevistarmos alguns moradores, sobre suas histórias de vida e nível de organização político-comunitária, soubemos que se tentou retomar o terreno, à época, ocasionando diversos conflitos e situações como a queima dos barracos, mas a população ocupante resistiu[54]. Hoje, há casas de alvenaria com boa estética e acabamento, e muitos domicílios possuem equipamentos eletrodomésticos, como televisão e geladeira, e fogão. Com o tempo, e o próprio crescimento dessa "ocupação", implantou-se uma infra-estrutura precária, mas funcional (água e luz).[55]
Notas
Bibliografia
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