Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194, 1 de agosto de 2005

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: AGENTES E ESTRATÉGIAS DE APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO NA ORLA FLUVIAL DE BELÉM-PARÁ (BRASIL)

Saint-Clair Cordeiro Da Trindade Júnior

Departamento de Geografia, Universidade Federal do Pará (Brasil)

E-mail: stclair@amazon.com.br

 


Entre o público e o privado: agentes e estratégias de apropriação do espaço na orla fluvial de Belém-Pará (Brasil) (Resumo)

Praticamente toda rodeada por águas, a cidade de Belém-Pará (Brasil) tem na sua faixa de orla fluvial um dos espaços que melhor expressam a interação da cidade com os rios. A caracterização dessa faixa é definida pelo processo histórico de formação da cidade, bem como pela forma de apropriação do espaço pelos agentes produtores do urbano que aí se fazem presentes. Nesse contexto, busca-se discutir a produção do espaço na faixa de orla fluvial da cidade, atentando para os seguintes objetivos: 1) identificar os agentes produtores do espaço na faixa de orla fluvial, suas respectivas importâncias e o papel que desempenham face aos processos sócio-espaciais que aí se fazem recorrentes; 2) analisar as formas de apropriação e de uso do solo urbano nessa fração do espaço da cidade e suas repercussões na organização sócio-espacial, tendo em vista a relação entre a dimensão pública e privada do espaço urbano.

 

Palavras-chave: agentes urbanos, orla fluvial, público, privado, Belém-Pará-Brasil


Between the public and the private: agents and strategies of spaces appropriation in Belém--Pará riverside (Brazil) (abstract)

Belém-Pará City is almost completely surrounded by water. One of the most representative spaces of the interaction between the rivers and the city is its riverside. A characterization of this space is defined by historical process of structuring of city itself, as well as by urban agents and their strategies of spaces appropriation presented in that specific area. In this context, this paper intents to discuss the urban space production in Belém-Pará riverside, giving attention to following objectives: 1) to identify the agents of space production in the riverside, analyzing their importance and the role of social and spatial processes that are presented there. 2) To analyze the types of appropriation and use land at the riverside and their repercussions for the social and spatial structuring of city, taking into consideration the public and private dimensions of the urban space.

Key words: urbans agents, riverside, public, private, Belém-Pará-Brasil.


Introdução

Tornou-se comum na paisagem urbana de cidades localizadas às margens de oceanos, mares ou de rios um processo de apropriação do espaço em que a vista para as águas torna-se um elemento fundamental para se auferir rendas diferencias a partir do fator localização e das amenidades relacionadas à beleza das formas naturais. Tal valorização justifica-se, em muito, devido à existência de uma paisagem pouco comum nas cidades, face à escassez produzida pela dinâmica "caótica" da vida urbana. Esta é a razão pela qual as vantagens locacionais das orlas fluviais/marítimas passam a ser privilégios daqueles que podem pagar para morar nesses espaços.

Curiosamente, a cidade de Belém - umas das maiores cidades da Amazônia brasileira, capital do Estado do Pará, cuja grandeza dos rios que a circundam expressa bem uma das peculiaridades da natureza amazônica - destoa dessa paisagem comumente divulgada em cartões postais de alguns centros urbanos. Não que essa fração das cidade tenha sido esquecida pelos agentes produtores do espaço urbano, mas principalmente por apresentar uma faixa do espaço urbano de pouco interesse das empresas imobiliárias e de seus principais consumidores. Há o domínio de outros usos e a presença de outros agentes que, em muito, estabelecem uma peculiaridade para essa fração do espaço urbano da Amazônia brasileira.

Nesse contexto, busca-se discutir a produção do espaço na faixa de orla fluvial da cidade, atentando para os seguintes objetivos: 1) identificar os agentes produtores do espaço na faixa de orla fluvial, suas respectivas importâncias e o papel que desempenham face aos processos sócio-espaciais que aí se fazem recorrentes; 2) analisar as formas de apropriação e de uso do solo urbano nessa fração do espaço da cidade e suas repercussões na organização sócio-espacial, tendo em vista a relação entre a dimensão pública e privada do espaço urbano.

Considerações teóricas para o entendimento da apropriação da orla de Belém

Na literatura sobre o urbano, muito se tem falado a respeito dos agentes produtores do urbano, por isso cabe-nos apenas mencioná-los de maneira sucinta. Com base em Harvey (1980), Capel (1974) e Corrêa (1989)1, podemos agrupar os agentes da seguinte maneira: proprietários fundiários, proprietários rentistas, proprietários usuários da moradia, promotores imobiliários, grupos sociais excluídos e o Estado.

Os proprietários fundiários são os agentes responsáveis, em grande parte, pela criação do padrão de segregação urbana, uma vez que seus interesses estão voltados para o valor de troca da terra. Não raro estão preocupados em transformar terras rurais em terras urbanas, contribuindo para a expansão dos limites do urbano e para a valorização das localidades no interior da cidade. Por outro lado, preocupam-se com a renovação urbana e com a dotação da infra-estrutura, dado o papel que esses elementos possuem no sentido de impulsionar a valorização de suas propriedades a partir de estratégias diferenciadas, de acordo com a situação do próprio imóvel.

Os proprietários rentistas têm o imóvel (habitação) como valor de troca (o uso da moradia é trocado por dinheiro), produzindo e cuidando do mesmo como valor de troca e não como valor de uso para si próprios; ao contrário dos proprietários usuários da moradia, que procuram satisfazer precipuamente a seus desejos e necessidades de uso, por isso, em geral, têm a habitação como um valor de uso, e agem de acordo com isso.

Em relação aos promotores imobiliários, podemos distinguí-los em função de algumas atividades, a saber: a) os incorporadores e a indústria de construção de moradias, que estão preocupados em transformar capital-dinheiro em imóvel, ou seja, criar valores de uso (habitações) para os outros, a fim de realizar valores de troca para si próprios. b) as instituições financeiras, que estão preocupadas em prover recursos monetários para o investimento visando à compra e à construção, ou seja, orientadas para a remuneração do capital, interessam-se em obter valores de troca por meio de financiamento de oportunidades para a criação ou aquisição de valores de uso. c) intermediários (corretores, planejadores de vendas, profissionais de propaganda etc. Preocupados com a comercialização e transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro, seus lucros são obtidos por meio de compra e venda ou por cobranças de custos de transação para seus serviços enquanto intermediários (Corrêa, 1989).

Os agentes sociais excluídos, diferentemente dos proprietários usuários, em geral não apresentam condições suficientes para ingressar no mercado formal, utilizando-se de recursos alternativos e, na maioria das vezes, clandestinos para satisfazer às suas necessidades. As opções incluem diversos tipos de sub-habitações: ocupações ditas "espontâneas", produção de favelas, cortiços, loteamentos periféricos, ocupação de conjuntos habitacionais etc. (Corrêa, 1989).

O outro agente é o Estado, que atua das mais diferentes formas: grande empresário, consumidor de espaços e de localizações públicas, proprietário fundiário, promotor imobiliário e agente regulador do uso do solo urbano. Pode atuar, também, de maneira direta, na provisão de moradias, por exemplo, e, indireta, buscando auxiliar instituições financeiras, incorporadores e a indústria de construção, promovendo isenção de impostos, garantindo lucros ou eliminado riscos, ou mesmo quando impõe e administra uma variedade de restrições institucionais na operação do mercado de moradia, como zoneamento de uso do solo, alocação de serviços e dotação de infra-estrutura urbana, que modificam o ambiente construído. Seu papel não é o de simples administrador do conflito de classes, através da função de acumulação e legitimação. Ele tem um papel fundamental na reprodução das relações capitalistas de produção. Isto pressupõe descartar, também, o espaço como simples receptáculo da ação reguladora do Estado:

O papel do Estado nesse processo é contraditório. De um lado, precisa intervir a fim de preservar as coerências do espaço social em face de sua destruição pelas transformações capitalistas dos valores de uso em valores de troca - isto é, de espaço social em espaço abstrato. De outro, suas intervenções são explicitadas pela relação de dominação. Por conseguinte, as intervenções do Estado não resgatam o espaço social; ao contrário, ele apenas ajuda a hegemonia do espaço abstrato, produzindo alguns de seus próprios espaços através do planejamento" (Gottdiener, 1993, p.138).

A assertiva acima nos mostra a intervenção do Estado capitalista na configuração do ambiente construído, como elemento que garante, em última análise, a existência do espaço como mercadoria, proporcionando a sustentação das relações capitalistas.

Lefebvre (1977), diferentemente de Castells (1983) - para quem o Estado atua como regulador do conflito de classe e reflete, através de suas intervenções, as relações políticas entre classes diferentes -, considera o Estado a partir de seu papel precípuo, ou seja, como uma estrutura para o exercício do poder. Nesse sentido, esse agente estrutura-se de uma forma hierárquica, dotada de abstração concreta de poder, uma relação de subordinação-dominação, utilizada por burocratas para controlar a sociedade. "Além disso, ele concebe sua essência, a tarefa concreta de dominação, da mesma forma que realiza o poder econômico - historicamente pela destruição, no curso do tempo, do espaço social e pela sua substituição por um espaço instrumental, fragmentado, e uma estrutura administrativa hierárquica desenvolvida no espaço" (Gottdiener, 1993, p.146).

Face à essa caracterização geral dos agentes, cumpre então visualizarmos quais desses agentes ganham importância na produção do espaço da orla fluvial de Belém, bem como a forma com se dá essa atuação.

Agentes e processos sócio-espaciais na produção do espaço da orla

No caso de Belém, podemos identificar como agentes principais de produção do espaço da orla (tabela 1) os seguintes2: a) o Estado – através de uma ação direta (abertura de "janelas para o rio", uso da orla por instituições públicas etc.) ou indireta (incentivo à instalação de empresas, definindo leis de controle e uso da orla, etc.); b) os proprietários dos meios de produção, comércio e serviço; c) os grupos sociais excluídos, no processo de ocupação de terrenos e produção de moradias; d) os proprietários fundiários, que mantêm terrenos sem usos definidos para fins especulativos; e) os agentes do circuito inferior da economia urbana, identificados na pesquisa como todos aqueles que desempenham pequenas atividades, em geral não modernas e com pouco investimento de capital, incluindo as atividades não formais3. f) os proprietários rentistas, identificados como aqueles que possuem como seu o imóvel na orla, mas alugam a terceiros objetivando obter rendas. g) os proprietários usuários da moradia, que possuem a propriedade do imóvel e que os utilizam para fins residenciais.

Cada um desses agentes, desempenha papel fundamental na definição de usos e de formas de apropriação da orla, cujo sentido tem estreita relação com a importância do rio e da baía, seja do ponto de vista mais funcional, seja do ponto de vista mais simbólico.

Quadro Nº1

Agentes produtores do espaço urbano na orla fluvial de Belém

Agentes

Zonas

Total

Central

Oeste/Norte

Sul

abs.

(%)

abs.

(%)

abs.

(%)

abs.

(%)

Proprietários Fundiários

1

1,61

6

2,75

2

1,38

9

2,12

Proprietários dos meios de produção, comércio e serviços

27

43,55

103

47,25

52

35,86

182

42,82

Agentes do circuito inferior

13

20,97

60

27,52

69

47,59

142

33,41

Proprietários rentistas

4

6,45

11

5,05

6

4,14

21

4,94

Proprietários usuários de moradia

1

1,61

6

2,75

3

2,07

10

2,35

Grupos sociais excluídos

2

3,23

6

2,75

2

1,38

10

2,35

Estado

13

20,97

18

8,26

8

5,52

39

9,18

Outros

1

1,61

8

3,67

3

2,07

12

2,82

Total

62

100

218

100

145

100

425

100

                                                                                                                                    Fonte: Trabalho de campo, set./dez. 2001.

Dos agentes mencionados, os que definem maior presença na orla, seja na orla central, seja na orla sul, seja na orla oeste/norte, são os proprietários dos meios de produção, comércios e serviços, correspondendo a 42,82% do total de agentes, seguidos pelos agentes do circuito inferior da economia urbana, que correspondem a 33, 41 % do total dos agentes, sendo também secundária a presença destes últimos em todas as zonas da orla, a exceção da zona sul, onde a presença dos mesmos (47,59%) chega a superar a dos proprietários dos meios de produção, comércio e serviços (35, 86%). Esses números comprovam, em grande parte, a peculiaridade da zona sul, considerada a parte da orla cujas características ribeirinhas estão mais presentes.

O Estado é o terceiro agente com maior presença na apropriação de imóveis na orla, distanciando-se, entretanto, em termos percentuais daqueles agentes anteriormente mencionados, haja vista que apenas 9,18% dos imóveis cadastrados pertencem ao Estado. Aqui cabe destacar a presença desse agente principalmente na orla central, igualando-se nesta zona, em termos percentuais, aos dos agentes do circuito inferior (20,97%). Essa talvez seja uma das razões que faz da orla central a zona com maior número de intervenções por parte do poder público, uma vez que, sendo áreas em grande parte controladas pelo poder público, as ações aí desenvolvidas interferem menos nas atividades de outros agentes, o que implicaria em possíveis indenizações caso essa interferência viesse a acontecer.

Outro tipo de agente que em termos percentuais (4,94%) situa-se logo após o Estado é o proprietário rentista, ocupando a quarta posição em todas as zonas. A presença desse agente demonstra, em grande parte, o caráter da apropriação do espaço, haja vista que, conforme tratamos anteriormente, trata-se de um agente que está preocupado com o valor de troca do imóvel, tendo no mesmo uma razão para a apropriação de rendas, não sendo o uso próprio sua finalidade principal.

Os proprietários fundiários (2,12% no conjunto de agentes) parecem não exercer o papel tão marcante que exercem em relação a outros setores do espaço urbano4, a menos que consideremos, nesse caso, o Estado e as instituições públicas de um modo geral exercendo esse papel. Da mesma forma, os agentes imobiliários, grandes responsáveis por definir usos e formas diferenciadas de apropriação, especialmente no tocante à produção da moradia, parecem não ser agentes de grandes definições de padrões de uso da orla, o que nos faz refletir na funcionalidade que a orla representa para a cidade.

De fato, a produção de espaços de assentamentos residenciais em Belém parece não considerar, pelo menos por enquanto, esse vínculo com as águas, o que faz os agentes imobiliários elementos de pouca importância na produção do espaço da orla, denotando uma insignificante apropriação simbólica dessa amenidade natural que é um dos atributos de Belém como cidade amazônica de origem ribeirinha. A presença, por exemplo, dos proprietários usuários da moradia, que definem a demanda para a ação dos promotores imobiliários é bastante tímida (2,35%).

Da mesma maneira, os grupos sociais excluídos, ainda que estejam presente na orla (2,35%), não chegam a caracterizar de maneira marcante a produção dessa fração do espaço urbano de Belém. O exemplo mais expressivo da presença desses agentes é o espaço residencial denominado de Vila da Barca, uma área de sub-habitações e precária infra-estrutura existente na orla oeste e que apresenta um grande adensamento populacional de pessoas com baixo poder aquisitivo.

A funcionalidade da orla, conforme instrui a quadro 2, referente aos usos do solo, destaca elementos e atividades como o comércio (34,67%), os serviços (20,51%), em especial os portuários, e as atividades do setor secundário (12,26%). A presença de imóveis subutilizados, em geral grandes terrenos cujo aproveitamento é reduzido, apresenta um percentual que merece atenção (8,67%), em especial na zona oeste/norte (13,0%) e sul (6,49%). Essa realidade talvez pudesse sugerir que qualquer ação preocupada com o uso público da orla para cumprir a função social da propriedade urbana devesse partir de uma intervenção nesses imóveis, que definem uma subutilização do espaço da orla e comprometem, por conseguinte, o uso coletivo da mesma.

Quadro Nº 2

Usos do solo na orla fluvial de Belém

Usos

Zonas

Total

Central

Oeste/Norte

Sul

abs.

(%)

abs.

(%)

abs.

(%)

abs.

(%)

Residencial

3

4,48

12

5,43

5

2,70

20

4,23

Industrial

6

8,96

35

15,84

17

9,19

58

12,26

Comercial

29

43,28

71

32,13

64

34,59

164

34,67

Recreação, lazer e turismo

7

10,45

2

0,90

11

5,95

20

4,23

Serviços

13

19,40

36

16,29

48

25,95

97

20,51

Institucional

1

1,49

13

5,88

8

4,32

22

4,65

Feiras e mercados

5

7,46

2

0,90

2

1,08

9

1,90

Misto

1

1,49

9

4,07

1

0,54

11

2,33

Aglomerados multifuncionais

 

-

 

-

14

7,57

14

2,96

Subutilizado

 

-

29

13,12

12

6,49

41

8,67

Outros

2

2,99

12

5,43

3

1,62

17

3,59

Total

67

100

221

100

185

100

473

100

                                                                                                                               Fonte: Trabalho de campo, set./dez. 2001.

As atividades ligadas ao circuito inferior da economia urbana, a exemplo das feiras e mercados, apresentam uma tímida presença na orla (1,90%), sendo também comum os usos mistos (2,33%), por exemplo residencial e comercial, e o que convencionamos chamar na pesquisa de aglomerados multifuncionais, um conjunto que envolve mais de dois usos, em geral ligados ao circuito inferior da economia urbana, de difícil especificação, haja vista que combinam serviços, comércios, habitações etc.

A presença dos usos relacionados à recreação, lazer e turismo, no conjunto da orla, também possuem uma presença reduzida (4,23%), o que, em grande medida, demarca a apropriação privada dessa fração do espaço urbano, sendo que o mesmo pode-se dizer com relação ao uso para fins habitacionais (4,23%); este, quando existente, define-se a partir da auto-construção de sub-habitações para uma população de baixo status, conforme mencionado anteriormente.

A definição desses usos a partir do papel dos diversos agentes também é responsável pela caracterização de processos sócio-espaciais que se configuram na faixa da orla. Com base nos processos sistematizados por Corrêa (1989), é possível identificar aqueles que se fazem presentes na orla (quadro 3), seja do ponto de vista de sua manifestação atual, seja do ponto de vista de sua manifestação em potencial.

Quadro Nº 3

Processos sócio-espaciais na orla fluvial de Belém

 

Zonas

Processos

Centraliza

ção

Descen-

tralização

Coesão

Segregação

Substituição

Inércia

C

P

C

P

C

P

C

P

C

P

C

P

Central

X

 

 

 

X

 

X

 

X

X

X

 

Oeste/Norte

 

 

X

 

X

 

X

X

X

X

X

 

Sul

 

 

X

 

X

 

X

 

X

X

X

 

C: configurados P: em potencial

 Fonte: Pesquisa de campo, Outubro/2001

Um processo espacial muito ligado à formação das cidades é o de centralização, responsável por configurar a área central. Diz respeito à concentração de atividades em determinados pontos do espaço urbano, caracterizados pela centralidade e por externalidades positivas. Algumas formas espaciais e fatores contribuem para o processo de centralização como terminais de transportes e a presença da atividade comercial e de serviços, configurando espaços caracterizados pela presença de deseconomias de aglomeração.

Em Belém, a orla central definiu-se como parte da área central em função das especificidades que ela apresenta, seja do ponto de vista portuário, seja do ponto de vista da concentração de outras atividades econômicas aí presentes, em especial a de comércio e de serviços, servindo de ponto de conexão, seja com os municípios ribeirinhos do próprio Estado do Pará, seja com outros estados da região amazônica.

É visível também nessa área da orla as subdivisões que caracterizam a área central, a saber: o núcleo central e a zona periférica do centro, conforme a sistematização de Corrêa (1989). Tais formas espaciais foram definidas pelo processo de centralização mencionado anteriormente.

Um outro processo com repercussões na organização do espaço intra-urbano, é o de descentralização. De acordo com Corrêa (1989), a descentralização é uma medida, de caráter espontâneo ou planejado, que visa a diminuir a excessiva centralização urbana, responsável pela existência de deseconomias de aglomeração. Também está associada ao crescimento demográfico e espacial da cidade, que estabelece maiores distâncias entre a área central e as áreas novas em expansão. Implica, portanto, em uma diminuição relativa da acessibilidade à área central, aumentando, em termos relativos, a acessibilidade a outros locais.

No tocante à orla de Belém o processo de descentralização trouxe repercussões espaciais na orla oeste/norte e na orla sul da cidade. A nova dimensão do urbano belenense e a escassez de terrenos na área central colocou o setor industrial dessa área numa situação de perda gradativa de antigas funções, distantes que passam a ficar dos eixos rodoviários interurbanos. As indústrias novas já nascem descentralizadas, mas em grande parte não deixam de considerar a orla como um das vantagens locacionais, como é o caso das indústrias que se instalaram na Arthur Bernardes, em direção ao distrito de Icoaraci.

Quanto às empresas madeireiras, em grande parte passaram a se localizar na orla do rio Guamá (bairros do Jurunas, Guamá, Cremação, Condor, etc.) no eixo da avenida Bernardo Sayão, devido à possibilidade de possuírem seus trapiches e portos particulares (Rodrigues; Cardoso, 1990). O mesmo pode ser considerado em relação ao serviço portuário em geral, bastante expressivo em determinados setores da orla situados fora da orla central, a exemplo da orla sul.

Ademais, a conexão do sistema de transporte rodoviário e fluvial, apresentou vantagens tanto na zona oeste, quanto na zona sul. No primeiro caso pelas facilidades apresentadas pela circulação na rodovia Arthur Bernardes e, no segundo caso, pela avenida Bernardo Sayão. Destaque especial na orla norte é a instalação do Distrito Industrial de Icoaraci, cuja localização também leva em consideração as vantagens das vias de circulação terrestre e fluvial.

Um outro processo a ser analisado na orla é o de coesão, que, por sua vez, diz respeito à dinâmica de organização do espaço urbano que leva as atividades a se localizarem umas próximas das outras aproveitando as vantagens de complementaridade que se estabelece entre elas. Essas vantagens revelam externalidades positivas que, em muitos casos, também definem economias de aglomeração. A ocorrência desse processo pode se dar entre atividades de um mesmo ramo, entre atividades e serviços de ramos diferentes, entre atividades funcionalmente complementares, entre atividades de pequeno porte que se reforçam mutuamente e entre atividades que exigem contatos constantes (Corrêa, 1989).

O processo de coesão se configura em todas as zonas identificadas na pesquisa, mas, em especial, é um processo que se apresenta com mais intensidade nas zonas oeste/norte e sul. Dizem respeito a atividades como feiras, presentes na orla central e na zona sul, ou mesmo às atividades industriais, mais coesas na zona oeste.

A presença da coesão, que, por sua vez, define áreas especializadas, como o Distrito Industrial de Icoaraci, na orla oeste, contribui em muitos casos para que determinadas ações de intervenção urbana possam se tornar mais favoráveis. É o caso, por exemplo, de áreas que demandam portos e trapiches para a chegada e saída de mercadorias. A presença da coesão, neste caso, pode viabilizar uma proposta de intervenção em que um único sistema portuário possa beneficiar em conjunto as atividades que se apresentam coesas, evitando com isso que cada empresa, por exemplo, tenha uma infra-estrutura portuária privada ou individual, fato este que compromete em muito um aproveitamento mais racional e coletivo da faixa de orla. A liberação de áreas que servem a interesses individuais pode viabilizar uma otimização da área de orla para fins de lazer, por exemplo.

A exemplo do processo de coesão, o de segregação está presente em todas as subdivisões da orla.. Trata-se de um processo que se caracteriza pela "tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia" (Castells, 1983, p.210)

Conforme explica o autor acima referenciado, a segregação é apenas uma tendência, mas que não explica por si só a estrutura e a composição de um aglomerado urbano no que ele tem de concreto e significativo. Há uma série de elementos particulares, socialmente determinados, que podem se opor a essa tendência. Considera-se, no entanto, ser a segregação um processo espacial essencialmente articulado às necessidades de reprodução das classes sociais.

Na orla de Belém, a segregação se configura especialmente como segregação imposta (voluntária), típicas das classes de alta renda, não sendo marcante, no caso analisado, aquilo que se convencionou chamar de auto-segregação (involuntária), típica das classes de baixa renda, conforme a proposição de O’Neill (1986).

O exemplo de segregação imposta mais característico da orla urbana de Belém está localizado na zona oeste. Trata-se da Vila da Barca, já mencionada anteriormente, cujas condições de moradia está refletida na tipologia desse assentamento residencial, de caráter "espontâneo", com a presença de sub-habitações e de uma população de baixo poder aquisitivo.

As condições de produção do espaço da orla fluvial de Belém, conforme vimos especificando aqui, dificultam a presença de auto-segregação nessa área, diferentemente de outras grandes cidades brasileiras onde esse processo é bem característico, principalmente nas cidades cujas praias servem de amenidades e atrativos para o estabelecimento de setores residenciais de alto e médio poder aquisitivo. Entretanto, intervenções urbanísticas previstas, em especial para a orla oeste, fazem dessa zona da orla um espaço em potencial para que o processo de auto-segregação possa se manifestar futuramente, principalmente com as ações de renovação urbana previstas.

Um outro processo que se manifesta na orla atualmente e tende a se manifestar com mais intensidade futuramente diz respeito ao processo de substituição. Tal processo consiste na substituição de classes, grupos sociais ou atividades por outras em um mesmo espaço da cidade. Sua ocorrência pode se dar, seja em relação ao uso residencial, através da saída da população existente e chegada de outro contigente de pessoas de outro status social, seja em termos econômicos, por meio da substituição das atividades por outras mais modernas ou adequadas às antigas formas.

Na área central esse processo já se faz bastante presente. É o caso, por exemplo, do Projeto de revitalização urbana que se manifesta através do Complexo Turístico e Cultural "Estação das Docas", de iniciativa do Governo do Estado, e do Projeto Ver-o-Rio, voltado para as atividades de lazer, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Belém.

Na zona sul, ainda que de caráter mais pontual, alguns casos de substituição também já são verificados, a exemplo do espaço de educação e lazer denominado de "Curro Velho", e que antes serviu de matadouro público. Também é comum se verificarem situações de substituições de uso ligados à produção e serviços por outros voltados para as atividades de lazer, devido à possibilidade de aproveitamento das amenidades oferecidas pela orla. Neste caso, o caráter dessas substituições ocorre tanto por ações de interesse público, como por ações relacionadas à iniciativa privada.

O mesmo já vem ocorrendo na zona sul, por meio de ações de intervenção urbanística, neste caso, principalmente por ações do poder público, seja do Governo do Estado – a exemplo do Parque Naturalístico "Mangal das Garças" -, seja da Prefeitura Municipal de Belém - a exemplo do Projeto de educação e lazer "Cidade Criança".

Finalmente, um outro processo que se configura nas diversas subdivisões da orla urbana de Belém e que foi também observado no nosso levantamento de campo diz respeito ao de inércia. Tal processo consiste na preservação e manutenção das formas espaciais e de seus respectivos conteúdos, mesmo cessadas as causas que lhes deram origem e justificavam sua existência (Corrêa, 1989).

Várias são as razões que configuram a inércia: custos e riscos da relocalização, surgimento de economias de aglomeração às proximidades da área, inexistência de forças ou conflitos capazes de alterar o uso do solo, simbolismo e sentido cultural atribuídos às formas e ao conteúdo (Corrêa, 1989).

Na orla urbana em Belém, esse processo pode ser verificado pontualmente nas várias zonas aqui diferenciadas. Tratam-se de espaços com forte apelo cultural e simbólico, a exemplo da orla central, em espaços onde se encontram objetos espaciais de grande importância histórica, como o Forte do Castelo, onde surgiu a cidade; ou em áreas sob controle institucional, como nos casos da zona oeste e sul, em terrenos pertencentes ao poder público, como os aqueles sob controle das Forças Armadas (zona oeste); ou sob controle de instituições de ensino (zona sul); ou, ainda, em áreas naturalmente mais preservadas (zona norte).

Essa caracterização dos agentes, de seus usos, bem como dos processos que se fazem presentes nas várias subdivisões da orla nos permitem compreender, em grande parte, a complexidade da apropriação do espaço aí presentes, bem como identificar uma certa peculiaridade em relação ao caráter desses usos e dessas apropriação. Qualquer perspectiva de pensar políticas e intervenções urbanas para essa fração do espaço da cidade não deve desconsiderar essa complexidade e essa especificidade aqui diagnosticada.

Considerações finais

A proposta de análise aqui esboçada partiu da importância de entender usos e processos que definem a organização espacial da orla de Belém tendo em vista o papel que assumem os diversos agentes na produção do espaço urbano. Entretanto, considerar o papel desses agentes que definem a apropriação do espaço da orla de Belém, não pressupõe apreender ações isoladas dos mesmos. E ainda que não desconsideremos os interesses de classes, é preciso que não os coloquemos em um bloco monolítico que dificulte o entendimento das relações configuradas em torno da apropriação do espaço urbano, que coloca frente a frente o uso e a apropriação pública e privada do espaço.

Conforme nos sugere Gomes (2002), não é suficiente, para a afirmação do que é público, a simples negação do que é privado. Da mesma forma, não é suficiente delimitarmos os espaços públicos a partir de um recurso relacionado à esfera legal - sob pena de invertemos a ordem das coisas - ou de o definirmos por sua qualidade de livre acesso, confundindo-o, dessa forma, com a noção de coletivo. Para além disso, temos o espaço público como um espaço da co-presença e da coabitação, marcado pela pluralidade, civilidade e diálogo, resultando de uma relação contratual com o espaço:

Ele se opõe assim ao conceito de espaço coletivo... O que constrói o espaço público é a obediência à lei e aos seus limites. Do ponto de vista simbólico... é composto pelo espetáculo da tensão entre a diferença e a possibilidade de coabitação. Ele é assim a condição fundamental de expressão da individualidade dentro de um universo forçosamente plural. Ele depende, portanto, da afirmação permanente do contrato social que o funda (Gomes, 2002, p. 165-6).

Essa condição que confere o estatuto do espaço público parece ter sido erodido em se tratando da orla fluvial de Belém implicando, por conseguinte, em um verdadeiro "recuo da cidadania" (Gomes 2002), haja vista que a inscrição material no espaço confere, igualmente, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão (Santos, 1987). Esse recuo passa a ocorrer pelo caráter que a orla fluvial assumiu historicamente e destacada teoricamente por Gomes (2002), a saber: a) apropriação privada dos espaços comuns; b) progressão das identidades territoriais; c) emuralhamento da vida social; e d) crescimento das ilhas utópicas.

No primeiro caso, nos parece já ter sido suficientemente demonstrado a apropriação privada da orla ao longo do processo de produção do espaço urbano de Belém, quando agentes privados, objetivando o exercício de suas atividades, aos poucos foram subtraindo os espaços comuns, sob aval, muitas vezes, do poder público. No segundo caso, a progressão das identidades territoriais, traduz-se a partir do discurso da diferença, que nega a coabitação e a co-presença, a exemplo da produção de infra-estruturas na orla, com funcionalidades específicas. É o que se pode verificar em relação aos terminais de transporte fluvial voltados precipuamente ao turistas, que, do ponto de vista da gestão urbana, não podem e não devem acessar o rio nas mesmas condições que o morador ou o visitante regular do interior da região o fazem cotidianamente.

Na terceira e quarta situações, emuralhamento da vida social e crescimento de ilhas utópicas, a orla manifesta situações em que, mesmo sendo recorrente o discurso do espaço público, há uma constante negação dessa condição, que tende a ser confundida com a condição de espaço coletivo. É o caso dos espaços que selecionam pela condição social e econômica do indivíduo. Nesse caso, o usufruto do mesmo é dado de forma limitada, conforme se vê em vários espaços de lazer à beira-rio, que assumem o caráter de coletivo e que fazem do rio um elemento componente do paisagismo urbano.

Permite-se o direito de contemplar a paisagem principalmente, mas o direito de uso do espaço na sua plenitude está limitado à condição econômica do indivíduo. Neste caso, o direito ao espaço é camuflado por um direito à paisagem. Da mesma forma, ocorre o emuralhamento da vida social, quando se nega o espaço público da orla na sua plenitude por meio de espaços "exclusivos" de uma ou de outra classe social.

Assim, a contraposição de algumas obras de intervenção, que propagam o resgate do público tendo em vista a subtração histórica dessa condição da orla fluvial de Belém, parecem mesmo reforçar a condição de espaços privados, como também caminhar no sentido do recuo da cidadania, frustando a expectativa de inversão da lógica de produção do espaço urbano na faixa de orla.

Notas

1 Harvey (1980) distingue os usuários de moradia, os corretores de imóveis, os proprietários rentistas, os incorporadores e a indústria da construção de moradia, as instituições financeiras e as instituições governamentais; Capel (1974), por sua vez, discrimina como agentes os proprietários dos meios de produção, os proprietários do solo, os promotores imobiliários e empresas de construção, e os organismos públicos; enquanto que Corrêa (1989) menciona os proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos.

2 Para o levantamento dos dados que fundamentam a nossa análise, foram aplicados formulários aos diversos agentes produtores do espaço no orla de Belém, formulários estes que nos permitiram cadastrar 425 estabelecimentos existentes na orla. Desse total, cerca de 80% respondeu às questões que abordavam os seguintes aspectos: a) identificação dos estabelecimentos localizados na orla; b) informações sobre a formalização das atividades e dos imóveis; c) caracterização das atividades desenvolvidas; d) informações sobre o uso da orla e suas implicações na organização espacial.

3 Este tipo de agente não referenciado teoricamente, mas encontrado aquando de nosso levantamento empírico, assume importante papel na orla; razão pela qual resolvemos incluí-lo no rol de agentes.

4 Vale destacar aqui que o percentual aqui mencionado não leva em conta a dimensão dos terrenos controlados por esses agentes. No levantamento de campo não foi possível obter diretamente de todos os entrevistados essa informação, uma vez que alguns se recusavam a fornecê-la ou então a forneciam de maneira flagrantemente incorreta.

Bibliografía

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CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989.(Série Princípios)

GOMES, P. C. C. A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

GOTTDIENER, M. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993.

HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.

LEFEBVRE, H. L’ espace et l’ État. In: LEFEBVRE, H.  De l’ État. Paris: Unión Générale d’ Éditions, 1977. v. IV. cap.5.

O’NEILL, M. M. V. C. Condomínios exclusivos: um estudo de caso. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 1986, v. 48, n.1, p. 66-81.

RODRIGUES, A. S.; CARDOSO, A. C. D. Uma janela para o Reduto: estudo de renovação urbana. Belém, 1990. Monografia (Graduação em Arquitetura) - Depto. de Arquitetura, Universidade Federal do Pará.

SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. (Coleção Ciências Sociais).

SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

© Copyright Saint-Clair Cordeiro Da Trindade Júnior, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

Ficha bibliográfica:

DA TRINDADE JÚNIOR, S. Entre o público e o privado: agentes e estratégias de apropriação do espaço na orla fluvial de Belém-pará (Brasil). Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (9). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-9.htm> [ISSN: 1138-9788]

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