Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (10), 1 de agosto de 2005

 

Dinâmica imobiliária e Metropolização: a NOVA Lógica do crescimento urbano em São Paulo.

 

Paulo Cesar Xavier Pereira

Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

E-mail: pcxperei@usp.br

 


Dinâmica imobiliária e Metropolização: a NOVA Lógica do crescimento urbano em São Paulo (Resumo)

A discussão proposta parte da existência de diferentes dinâmicas para explicar o crescimento urbano e a consolidação metropolitana de São Paulo (Brasil). Procura-se por em destaque a critica ao modelo centro-periferia associada à transformação da lógica de crescimento urbano no final do século XX. No desenvolvimento desta critica busca-se demonstrar que a superação do modelo centro-periferia pode contribuir para o conhecimento das dinâmicas imobiliárias e da nova lógica do crescimento das cidades latino-americanas.  Propõe o estudo das formas sociais de produção do espaço como uma análise das condições de produção do espaço urbano, que resultam de diferentes articulações dos agentes da construção na constituição daquelas dinâmicas e da sua lógica de crescimento urbano.

 

Palavras chave: metropolização de  São Paulo -  produção do espaço - agentes da construção da cidade – crescimento urbano


Real estate dynamics and Metropolização:  the NEW logic of the urban growth in São Paulo (Abstract)

The text proposal is to explain the urban growth and the metropolitan consolidation of São Paulo (Brazil). It is looked for in prominence it criticizes to the model center-periphery associated with the transformation of the logic of urban growth in the end of century XX. The development of this it criticizes to demonstrate that the overcoming of the model center-periphery can contribute for the knowledge of the real estate dynamic and the new logic of the growth of the Latin American cities. It considers the study of the  production of the space as one theoretical analysis of the social conditions of production of the urban space, that result of different joints of the agents of the construction in the constitution of those dynamic and of its logic of urban growth..

 

Keywords: - metropolization of São Paulo – production of space -  city construction agents – urban growth


 

 Introdução

 

Este texto enfatiza a perspectiva da produção do espaço e a importância de se considerar as formas de produção do espaço, que se definem pela articulação social dos agentes urbanos na construção da cidade, para tornar mais profundo o conhecimento sobre a dinâmica imobiliária e apontar para necessidade de superar a segmentação-dualização, como lógica do crescimento urbano, sustentada pelo modelo centro-periferia.

 

Essa perspectiva de análise urbana é discutida a partir da crítica ao modelo centro-periferia, que ao conduzir às análises duais do urbano, a exemplo do par: cidade legal e cidade ilegal, que segmenta a unidade do urbano como se ilegalidade e legalidade não convivessem na cidade como um todo e a pudesse fracionar por esse fio invisível da lei. Ou de outra dicotomia mais visível e conhecida como a “verticalização” e a “autoconstrução”, em que se materializaria o par “centro” e “periferia” como explicação do crescimento da cidade.  Esses pares mostravam como uma cidade dividida e atribuía desigualdade do espaço urbano à falta de planejamento.  Nesse sentido, esses pares dicotômicos foram utilizados mais como instrumento de denúncia de uma urbanização desigual e descritivo do crescimento de uma cidade que privilegiava ricos e espoliava pobres por falta de planejamento, do que como um instrumento de compreensão da dinâmica da cidade, dos interesses e dos agentes que a desenvolvem.  Hoje, num mundo marcado por políticas neoliberais, as denúncias de desigualdades sócio-espaciais não parecem ter mais a mesma importância para o planejamento e a dualização assumida como modelo urbano, se tornou um obstáculo para a compreensão da articulação dos agentes nas diferentes formas de produção do espaço urbano. Apesar disso, talvez por sua facilidade em captar a distribuição espacial da pobreza urbana nas áreas da cidade e por sua potencialidade em descrever a extrema desigualdade da urbanização na América Latina a dualização do urbano continua sendo uma tese hegemônica. [1]

 

Assim, as reflexões apresentadas buscam formular critica e induzir à superação desse modelo dual que se tornou dominante para explicar as desigualdades da urbanização na América Latina, particularmente a partir de meados do século XX quando a periferia da cidade e a pobreza urbana passaram a ser vistos como se fossem equivalentes. Considera-se que a dualização do urbano é uma construção ideológica que obscurece a compreensão critica da dinâmica do crescimento da cidade. Isso não impede, entretanto, de reconhecer que o modelo centro-periferia se mostrou teoricamente elucidativo de diferenças urbanas extremas, tendo sido, inclusive com suas denúncias, um fator de inclusão da noção de periferia na agenda política e no planejamento urbano das últimas décadas. Esses planos fracassavam sobretudo porque “crentes nas virtudes do planejamento” sem compreender o crescimento da cidade, conforme diz o professor universitário e, na época,  Secretário do Planejamento, tomavam o desejo como se fosse realidade.[2]

 

O modelo centro-periferia estava presente nesses planos e induziu às analises segmentadas e centradas no chamado padrão periférico de crescimento urbano que acabaram por dicotomizar a análise da dinâmica urbana aos seus extremos: “verticalização” e “periferização”. Entendia, corretamente, que "longe de representar ausência de planejamento, o padrão periférico corresponde a uma estratégia de máxima acumulação capitalista." (SEMPLA, 1999, p. 77), mas sem articula-lo ao padrão moderno das construções verticais ou caracteriza-lo no conjunto das outras estratégias e formas de produção do espaço tudo se diluía nos extremos. Nessa dicotomia tudo que não estivesse nesses extremos era desconsiderado e sua compreensão ficava comprometida. Assim, o modelo torna-se um obstáculo para compreender tanto a unidade do urbano como a diversidade da urbanização.

 

È nosso objetivo, ainda, argumentar que no modelo centro-periferia as noções de verticalização e de autoconstrução são utilizadas de maneira complementar e justapostas sem qualquer articulação. Ficam consagradas, mas apenas formalmente associadas ao corresponderem ao “centro” e à “periferia”. No entanto, elas expressam diferentes dinâmicas; a primeira, uma produção imobiliária intensiva e a segunda, uma produção imobiliária extensiva, que consideradas sem nenhuma interação ficam geometricamente definidas e referenciadas pelo lugar – central ou periférico - que ocupam nesse modelo dual.  Reduz-se, como veremos, pela imprecisão daquelas noções - verticalização e de autoconstrução - e pela falta de qualquer preocupação em articular essas dinâmicas imobiliárias – intensiva e extensiva - toda possibilidade de uma compreensão da lógica do crescimento urbano e da história das diferentes formas de produção do espaço: doméstica, encomenda, estatal e para mercado. [3]

 

A critica dessas reduções pode ser inovadora, de um lado porque questiona o modelo centro-periferia como referência geométrica dual e simplista da cidade e, de outro, porque critica a presença forte do positivismo para descrever o espaço urbano nas analises baseadas nesse modelo. Cabe lembrar que pesquisas recentes, mesmo sem romper com as premissas geométricas do modelo centro-periferia, tendem a reconhecer que essa perspectiva de análise do espaço se apresenta insuficiente para a compreensão das atuais mudanças metropolitanas; seja face à emergência das chamadas novas centralidades ou do surgimento de novos processos de ocupação e uso nas áreas periféricas.[4]

 

Todavia, não é porque estejamos assistindo à multiplicação de produtos imobiliários voltados para a habitação dos grupos sociais de rendas altas e médias nas franjas da cidade, como mostra Caldeira (2000) para São Paulo, que faz com questionemos o modelo centro-periferia.  A emergência dos novos artefatos arquitetônicos comerciais e de serviços, no centro e na periferia, como mostra autores de diferentes países, talvez seja outro elemento bastante convincente para a aceitação dos limites do modelo e renovação da análise urbana latino-americana. Mas, nosso ponto de vista é de que, desde sempre, a dualidade centro e periferia, como modelo urbano obscureceu as dinâmicas imobiliárias de crescimento urbano.  Primeiro, porque não surgiu como modelo de crescimento da cidade, mas como descrição das diferenças da construção; segundo, porque a justaposição das duas dinâmicas de construção nunca buscou compreender a unidade e a diversidade das formas de produção do espaço urbano.

 

Por isso, esse texto procura por em destaque a necessidade de se compreender as formas de produção do espaço bem como ressaltar que a persistência desse modelo dual para falar da urbanização se tornou um obstáculo para a compreensão da história das cidades e das transformações da dinâmica imobiliária na América Latina.

 

 

O modelo centro-periferia como metáfora.

 

Falar de centro e periferia é uma metáfora que descreve a oposição entre paises dominadores e paises dominados, mas colocamos em dúvida a transposição dessa relação para uma geometria da cidade que sirva para representar o espaço urbano, descrevendo as diferenças de crescimento e as desigualdades sócio-espaciais.

 

Por seu caráter geométrico podemos dizer que o modelo centro-periferia, como uma representação empírica das diferenças urbanas, assume a explicação da cidade na América Latina como se fosse um dado natural do espaço, desprovido, assim de sua historicidade.

 

Nessa interpretação não há preocupação com a produção do espaço, pois a força explicativa, que confere hegemonia ao modelo, esta pode ser associada a duas dinâmicas externas para explicar o crescimento da cidade: a modernização industrial e a marginalidade social.  Na América Latina, durante todo o século XX, a modernização industrial impunha-se apenas parcialmente, na sociedade e nas cidades.  Os intelectuais observavam a modernização latino-americana mergulhada no “subdesenvolvimento” e se conseguiam compreender os limites da capacidade da industria em produzir riquezas, se debatiam com a incapacidade das cidades de absorverem a população que lhes dava grandeza e vida urbana. Ambas as dinâmicas, a da modernização e a da marginalidade se explicavam como um dado da relação entre o moderno e o arcaico, que acabou sendo espacializada e transposta para a cidade e se transfigurando em elementos dualizados de um espaço geométrico: centro e periferia. A partir dessa transfiguração se espacializou na cidade, o moderno e o arcaico transposto como dualidade, centro e periferia, como uma nova metáfora resultante e explicativa da dependência.[5]

 

Assim, se a origem e a pronta aceitação do modelo podem ser consideradas uma transposição “naturalizada” pela metáfora geométrica centro e periferia, a hegemonia do modelo deriva da associação contraditória as dinâmicas extremas da modernização industrial e da marginalização social para explicar o crescimento urbano: num lugar, no centro, a verticalização e, no outro, na periferia, a autoconstrução.

 

È importante salientar que a verticalização se constitui num produto, que compreende desde edifícios de três andares a arranha-céus.  A autoconstrução, por outro lado, refere-se a um processo de construção da casa pelos próprios moradores.  A interpretação do crescimento da cidade pelo modelo centro-periferia associa um produto ás áreas centrais e a forma de produção doméstica às áreas periféricas. Essas associações ambíguas exprimem imprecisão de critérios e uma incoerência do modelo, pois num caso o critério é o produto imobiliário, o edifício vertical; e no outro, o critério é a forma de produção, a autoconstrução da casa própria. [6]

 

Essa incoerência na aplicação dos critérios foi responsável, em grande parte, pela análise segmentada da cidade e da compreensão de suas partes como se ela pudessem existir isoladamente. Tanto que a maioria dos estudos ora privilegiava a pesquisa sobre a periferia, ora sobre a cidade vertical, escapando-lhes a compreensão da cidade como um todo, quando não simplesmente negando-o. Nota-se, nessa incoerência do modelo, uma operação explicativa da urbanização que talvez a ideologia do “subdesenvolvimento” latino-americano possa elucidar: no centro estava a cidade vertical e moderna, algo a ser atingido, que nunca estava associado a forma de produção predominante nas periferias da cidade.  Na medida em que os ricos viviam no lugar moderno e central, enquanto que os pobres viviam a franca ebulição de uma urbanização sem urbanismo, nas periferias, parecia que toda realidade poderia estar contida no modelo, as carências até podiam ser denunciadas, mas pelos princípios básicos do dualismo era como se nada pudesse ser transformado.[7]

 

Assim, a interpretação da cidade, por não passar de denúncias de cunho moral e de descrição das desigualdades urbanas, não revela como as desigualdades são produzidas, e, conseqüentemente assume-se como discurso de uma realidade injusta sem ganhar força critica e potencialmente transformadora do real, que poderia da capacidade de elucidar a lógica da produção da cidade: a dinâmica da (produção e distribuição da) valorização imobiliária.

 

O importante dessa interpretação, uma espécie de “consciência” do que é possível pela ideologia dominante no centro, é que ela dava força explicativa a um modelo cuja simplicidade permitia que toda diversidade presente no crescimento da cidade fosse reduzida a dualidades: legal e ilegal, formal e informal, ideal e real... A diversidade do urbano era considerada um “caos” e passível de ser compreendida em termos de ordem e desordem. Reduzia-se o diverso ao dual e se conseguia uma explicação para os problemas de crescimento da cidade tal como se produziu uma teoria do subdesenvolvimento da industria na América Latina.  Tanto que o modelo de urbanização, tal como a teoria do subdesenvolvimento desempenhou, ainda exerce o seu persistente papel: por meio de uma persistente ideologia da modernização industrial e da marginalidade social, reiterou uma visão dualista da urbanização latino-americana. [8]

 

Note-se que no Brasil, muito dessa visão dual do urbano, que também persistiu na América Latina, se sustentou, e praticamente teve impulso hegemônico, a partir de uma critica da razão dualista da economia brasileira.  O trabalho Critica à Razão Dualista demonstrou como na industrialização brasileira o desenvolvimento urbano e a agricultura, mais atrasada, se colocavam a serviço da acumulação capitalista mais avançada. Conforme a análise presente nessa obra, que se tornou clássica, a autoconstrução:

 

“é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de 'economia natural' dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho." (Oliveira: 1972; p. 31)

 

O moderno industrial se alimentava do urbano mais arcaico. Mas, a leitura dessa Critica, que não atendia à necessidade de compreensão do especificamente urbano, deu margem a que seus leitores se limitassem a critica da função que o urbano mais atrasado desempenha na industrialização: a redução do custo de reprodução da força de trabalho. As outras implicações da relação entre o urbano e a industrialização permaneceram em plano secundário, o que reforçou a interpretação dualista da urbanização, permitindo uma sobrevida ao dualismo e ao modelo centro-periferia.

 

Embora sejam freqüentes as dúvidas e indicações de insuficiência do modelo para compreender uma realidade que se considera mais complexa:

Al analizar las nuevas formas de desigualdad intrametropolitana derivadas de los cambios en los mercados de trabajo de las grandes aglomeraciones, diversos autores han llegado a ala conclusión de que ellas se manifiestan en una forma más compleja que la propuesta  por el modelo de la ciudad dual. (Mattos, 2002, p. 57)

 

 

Centro e periferia como redução e conceito obstáculo

 

O modelo centro-periferia compromete a compreensão do urbano, e, também, a das suas múltiplas dimensões, ao tomar a parte pelo todo. Assim, ao supervalorizar, como já mencionamos, uma particularidade da urbanização latino-americana – a autoconstrução – uma estratégia de redução do custo de reprodução da força de trabalho, reduz o urbano e impede compreensão da urbanização. Embora essa estratégia seja fundamental para viabilizar uma industrialização com baixos salários, tal como ocorre na América Latina, a compreensão da relação entre o urbano e a industria reduzida a essa dimensão não captura a dinâmica imobiliária e nem a produção da cidade no que ela tem de especificamente urbano.

 

Na verdade, o modelo centro-periferia, como é aplicado na América Latina, justapõe espaços ricos e pobres e interpreta a cidade como se fosse um mosaico, onde se incrustam o centro vertical e a autoconstrução periférica.  Esse modelo é insuficiente para compreender a unidade do urbano porque as dinâmicas das partes consideradas não se articulam entre si e nem elas representam toda diversidade dos produtos imobiliários e das formas de produção da cidade. Como exemplo de produtos imobiliários podemos lembrar os diferentes tipos de vilas, os shoppings, os condomínios fechados... Como exemplo de formas de produção podemos lembrar, as que freqüentemente são esquecidas, por que complicam o modelo e que quando são consideradas é a partir do produto: a produção mercantil privada, a produção por encomenda e a produção a estatal.

 

Perde-se, nesse modelo, toda dimensão da dinâmica de mercado e da produção capitalista da cidade porque na justaposição dos espaços, reduzidos à construção vertical e periférica, não se considera nenhuma articulação entre eles. De maneira que a possibilidade de compreender a dinâmica urbana fica obscurecida, não só porque não se articula entre si, a construção vertical e a autoconstrução, mas porque não se abre o conhecimento das outras formas de produção e, com isso, fica obscurecida a existência de articulações entre todas essas formas.

 

A segmentação-dualização que interpreta o crescimento da cidade pelo modelo centro-periferia se constitui num ponto cego do urbanismo, pois a sua análise permite ver  somente partes da urbanização como se houvesse uma dinâmica isolada para cada produto ou para cada parte da cidade. Cria-se, assim, uma série de dicotomias, como já mencionamos, que consagra a separação da cidade em duas,: uma rica e outra pobre, uma legal e outra ilegal, uma formal e outra informal, etc.

 

A cidade que na verdade é um resultado sócio-espacial de uma produção coletiva precisaria ser compreendida em sua totalidade. Se o modelo centro-periferia consagrou a interpretação dualista na análise da urbanização, as interpretações atuais sobre a metrópole entendem a diversidade da dinâmica imobiliária e da produção da cidade como fragmentos. A antiga dualização do modelo centro-periferia se traveste em fragmentação produzindo múltiplos centros e periferias. Num caso e no outro, reitera-se ausência de unidade e a falta de articulação entre as partes. 

 

Persistindo a interpretação baseada na idéia de centro e periferia, ou mesmo renovando-a, se mantém a dificuldade de compreender a produção da cidade como um todo. Antes, a idéia de centro parecia privilegiar a crença de que a cidade  inteira poderia ter as condições urbanas da área central e se superdimensionava o poder de homogeneização do capitalismo. Hoje, a idéia de centro só releva a fragmentação da metrópole em múltiplas centralidades. Em nenhum momento se atenta para a hierarquização desses processos sócio-espaciais, pois se continua a isolar espaços e dinâmicas justapondo produtos e processos extremos em interpretações que obscurecem o que precisaria ser considerado, articulado e compreendido como sua lógica e história da produção do espaço.[9]

 

Assim, essas idéias ainda pouco criticadas, permanecem como modelo em interpretações dualistas sobre a cidade ou em análises fragmentadoras da metrópole.  Mas, é a critica e superação da abstração geométrica do modelo centro-periferia que permitira avançar o conhecimento das formas de produção do espaço urbano e a articulação destas formas não mais como modelos, mas como dinâmicas capazes de ser compreendidas nas suas desigualdades como um resultado lógico do próprio processo de produção do espaço urbano.

 

Nesse sentido, se poderia concluir que as interpretações do modelo centro-periferia invertiam o que precisaria ser explicado, porque com a idéia de centro e de periferia se dificultava o conhecimento das diferentes formas de produção e se obscurecia a compreensão das dinâmicas ocultando as hierarquias presentes nas formas que produzem as desigualdades. Por isso, se pode dizer que a persistência desse modelo, em sua simplicidade e abstração, esvazia o espaço urbano de toda sua historicidade, ao banalizar a relação centro-periferia como forma pura, contribui para a continuidade e aprofundamento das desigualdades porque não abre caminho para reverte-las.

 

 

Desigualdade urbana e obscurecimento das formas de produção da cidade

 

As desigualdades urbanas não são um dado e nem a construção da cidade um mero sub-produto ou reflexo da maneira com que ocorre a industrialização e a distribuição da riqueza. Embora seja certo que a industrialização faça crescer o urbano, é a urbanização que leva ao aprofundamento das desigualdades na cidade. Isso significa que a nossa hipótese é que essas desigualdades urbanas têm mais a ver com o processo social de construção imobiliária da cidade (o setor) do que com a industrialização em geral, Por isso, a compreensão das formas de produção do espaço urbano, num determinado lugar e num determinado momento, é decisiva para se compreender as desigualdades urbanas. O estudo das formas de produção do espaço da cidade a nosso ver permite uma melhor compreensão tanto do espaço-construído, enquanto produto imobiliário; como da urbanização, enquanto processo sócio-espacial.

 

O crescimento periférico urbano considera a cidade desordenada como um subproduto perverso da industrialização. Nesse sentido, esse padrão se situa de maneira equivocada num outro processo, muito embora tenha relação com ele.  Deveria se situar no âmbito do processo de urbanização e, nesse sentido, não lhe escaparia a diversidade de formas de produção da cidade. Quando essa crítica é ancorada na urbanização mas não leva em conta a diversidade das formas de produção da cidade na produção e distribuição do valor, tudo fica reduzido à idéia de urbanização desordenada e sem planejamento e a interpretação se situa num falso referente: a especulação, sem construir um fundamento explicativo que permita compreender o processo de produção da cidade enquanto produção de valor.

 

A especulação se constitui num falso referente porque obstaculiza a percepção dos mecanismos imobiliários de valorização, criando, assim, uma opacidade que não permite compreender o fundamento do processo de produção da cidade, enquanto valor. A elaboração da compreensão desse processo fica reduzida a uma denúncia; tudo ocorre por causa da especulação. Por não passar de denuncia de cunho moral, a interpretação não ganha força transformadora capaz de revelar a dinâmica cujo fundamento, repetindo estar na valorização imobiliária.

 

Assim, não se abre a caixa de segredos que permite compreender não só o processo de valorização, como sua potenciação imobiliária, mas também porque essa assume um caráter especulativo, mormente nos dias atuais, quando não esta relacionada apenas á propriedade da terra, mas também ao capital financeiro.

 

Dizendo de outra forma, a especulação se constitui num falso referente porque ela é uma adjetivação de um processo que não pode ser confundida com o próprio processo. A valorização imobiliária pode ter especulativa ou não. A idéia de especulação tomada como adjetivo, como qualquer adjetivo só existe referido a um substantivo. Por exemplo, na frase: a rua é estreita, o adjetivo ‘estreita’ só existe em relação ao substantivo ‘rua’. Da mesma forma, a especulação, que parece ser o fundamento de um processo, na verdade é a adjetivação dele.

 

Uma segunda falácia decorre da perspectiva que dá primazia ao consumo do espaço, melhor dizendo, supervalorizando-o. Esta supervalorização privilegia a análise do espaço-produto em detrimento da perspectiva que analisa o processo de produção e da critica sobre a produção do espaço Trata-se de um viés consumista lastreado em M. Castells e na sociologia urbana francesa que, ao privilegiar o estudo dos equipamentos coletivos, situando a questão urbana no acesso a esses equipamentos, comprometeu a compreensão do processo urbano. Na América Latina a explicação do crescimento urbano periférico tendeu a se exacerbar como denúncia das condições precárias da vida urbana que submete os moradores à espoliação. Infelizmente uma força teórica que pudesse apontar para a mudança na maneira predatório de construir a cidade, porque partiu e permaneceu no âmbito do consumo do espaço.

 

Para superar a insuficiência da critica ao modelo centro-periferia não basta introduzir a necessidade do conhecimento das formas sociais de produção do espaço. Superando os obstáculos impostos pelo falso referente: especulação e pela perspectiva presente no viés consumista na análise urbana.  È necessário avançar na discussão do processo histórico de construção da cidade, particularmente avançando nas críticas ao modelo nas críticas ao modelo centro-periferia, no sentido de sua superação, e no refluxo sobre a emergência de novos agentes sociais e de novos produtos relacionados às formas de produção do espaço, que manifestam sinais de novas determinações do processo de produção do espaço urbano.

 

 

Considerações Finais

 

Para superar a insuficiência critica do modelo centro-periferia na compreensão da nova lógica do crescimento urbano é necessário avançar a discussão da articulação das formas de produção do espaço no processo histórico de construção da cidade. Numa visão fragmentada pela segmentação-dualização do urbano tanto a construção vertical, a chamada verticalização, como a autoconstrução pode ser vista em separado e considerada dinâmica independente, inclusive porque essa segmentação alimenta a visão dual. Todavia é preciso reconhecer que elas são formas de produção articuladas e representam dinâmicas imobiliárias extremas, uma intensiva e outra extensiva, que não podem ser separadas e isoladas na análise do crescimento urbano. Assim, é preciso reconhecer que com a metropolização dos espaços, essas dinâmicas passaram para uma nova hegemonia imobiliária apresentando uma outra composição de forças e agentes no direcionamento do crescimento urbano.

 

Neste novo contexto metropolitano, o emergir de novos agentes hegemônicos manifesta sinais de uma nova articulação nas formas de produção do espaço agora sob hegemonia da produção imobiliária intensiva. São Paulo esta crescendo sob o domínio de outra dinâmica imobiliária e de outra forma de produção do espaço, que não pode mais ser caracterizado pelo padrão periférico de crescimento urbano, porque o crescimento da cidade não se define mais por uma urbanização sem urbanismo: não é mais a dinâmica da produção imobiliária extensiva que define o seu crescimento urbano. 

 

São Paulo, não esta mais definindo o seu crescimento pela franja ou seja pela incorporação de áreas, cada vez, mais distantes e precárias. Isso, não que dizer que a dinâmica extensiva deixou de acontecer, mas que essa dinâmica deixou de ser definidora do crescimento urbano. Agora esse crescimento é definido, de outra maneira, pela dinâmica da produção imobiliária intensiva que se manifesta como uma nova lógica de crescimento, que intimamente se subordina a metropolização dos espaços: um urbanismo sem urbanização.

 

Essa lógica que vem acompanhada de novos produtos habitacionais, artefatos arquitetônicos e centralidades esta emergindo desde os anos setenta do século passado e vem significando uma verdadeira reestruturação imobiliária.  Então, será que poderíamos dizer que a lógica da apropriação e produção do espaço metropolitano na passagem deste século vem se sobrepondo aos processos da antiga urbanização?

 

Se considerarmos que na América Latina nos processos da antiga urbanização, a que percorreu quase todo o século XX, são aqueles determinados pela industrialização, certamente teríamos que responder positivamente a essa indagação. Pois, trata-se de uma industrialização fundada no predomínio de baixos salários e na superexploração do trabalho, que resultou, como se sabe, na urbanização desigual e extremamente precária que particulariza o urbano latino-americano Talvez tivéssemos que responder de modo diferente se nos ativéssemos estritamente aos condicionantes mais fortes da modernização das cidades, principalmente se considerarmos que a modernização e a industrialização andaram juntas, tendo sido diversas vezes confundidas. Mas, seria muito difícil senão precoce separar cada um destes processos neste texto, dado o caráter introdutório que procuramos dar a discussão das formas de produção do espaço urbano. Mas, cabe notar, como conclusão, que um e outro processo – modernização e industrialização – não cumpriram suas promessas urbanas, particularmente, na América Latina. 

 

Enfim, estes processos, isolados ou em conjunto, não foram capazes de homogeneizar a vida moderna, como uma condição de existência urbana, e nem mesmo criaram as condições mínimas para acolher a população trabalhadora que se urbanizou. Promoveram uma urbanização sem urbanismo, que se manteve, ao lado daqueles processos, incompleta durante todo o século XX.  Hoje, na cidade de São Paulo, ou melhor principalmente nela, uma das mais ricas da América Latina, apresenta uma nova dinâmica ao tentar promover um urbanismo sem urbanização, porque agora as condições mais afluentes da vida moderna e da metropolização do espaço convivem com condição de vida mais precária, a dos atuais moradores de rua das metrópoles contemporâneas.

 



Notas

 

[1] “En los últimos años, las discusiones sobre desigualdades y polarización social en las grandes áreas metropolitanas ha estado fuertemente marcadas por la tesis de la dualización, concepto que se ha transformado en punto de referencia obligado toda vez que se intenta caracterizar el nuevo escenario social urbano. ” (Mattos, 2002, 53)

 

[2]  “Os planos diretores fracassaram não só em São Paulo, mas em todo Brasil e América Latina. Fracassaram não só porque eram falhos, mas porque tomaram os desejos pela realidade. (...) Esses planos diretores não foram projetados para afetar diretamente o crescimento da cidade. Ao invés disso, apresentavam projeções elaboradas das principais características de São Paulo, propondo diretrizes para um desenvolvimento ótimo.” (Singer, 1995, p. 177 e 178)

 

[3] “Lo lógico expresa lo histórico por medio de las abstracciones, con la particularidad de que se procura por todos los medios conservar el hilo fundamental del proceso histórico efectivo. La lógica... tiene como ley fundamental el paso ascensional de lo simple a lo complejo, de lo inferior a lo superior, y esa dinámica del pensar refleja las leyes que presiden el desarrollo de los fenómenos del mundo objetivo.”  (Kopnin, 1966, p. 186)

 

[4] Sobre as centralidades veja Frugoli (2000) e sobre a insuficiência do modelo centro-periferia e a emergência de novos processo na periferia veja Caldeira (2000) e, também, Torres & Outros (2003) .

 

[5] Ver livro organizado pelo Castells (1971).

 

[6] Segundo Jaramillo (1982) esta é uma das quatro formas de produção do espaço construído: a produção por empreita ou encomenda, a produção promocional privada, a autoconstrução e a produção capitalista ‘desvalorizada’ por parte do Estado.

 

[7] “A dualidade reconciliava o suposto rigor cientifico das análises com a consciência moral, levando a proposições reformistas. ... ‘sociedade moderna’ – ‘sociedade tradicional’, por exemplo, é um binômio que, deitando raízes no modelo dualista, conduziu boa parte dos esforços na sociologia e na ciência política a uma espécie de ‘beco sem saída’ rostowiano.” (Oliveira, 2003, p. 31)

 

[8]  A teoria do subdesenvolvimento foi, assim, a ideologia própria do chamado período populista; se ela hoje não cumpre esse papel, é porque a hegemonia de uma classe se afirmou de tal modo que a face já não precisa de máscara.” (Oliveira, 2003, p. 34)

 

[9] Lefebvre (1980)

 

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© Copyright Paulo Cesar Xavier Pereira, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

 

Ficha bibliográfica:

PEREIRA, P. Sobre Dinâmica imobiliária e Metropolização: a NOVA Lógica do crescimento urbano em São. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (10). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-10.htm> [ISSN: 1138-9788]

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