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FLORIANÓPOLIS/BRASIL – A FELICIDADE NÃO TEM PREÇO, TEM ENDEREÇO: CONDOMÍNIOS, LOTEAMENTOS E A APROPRIAÇÃO DA NATUREZA
Wendel Henrique
Professor Doutor, Departamento de Geografia
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC.
E-mail: wendel_henrique@hotmail.com
Palavras-chave: mercado imobiliário, natureza,
Florianópolis, Brasil.
Florianópolis/Brazil – happiness has no price,
has address: condominiums, land parcels and the apropriation
of nature (Abstract)
The appropriation of nature by real estate
market in Florianópolis (
Keywords: real estate market, nature,
Com
a elaboração de nossa tese de doutoramento “O Direito à natureza na cidade: ideologias
e práticas na História” (Programa de Pós Graduação em Geografia da UNESP/Rio
Claro, orientador: Prof. Dr. Pompeu Figueiredo de Carvalho) buscamos analisar a
apropriação da natureza pelo mercado imobiliário em algumas cidades do Brasil,
especialmente São Paulo e Florianópolis. No caso de Florianópolis (Santa
Catarina), ocorre um processo de valorização monetária de loteamentos e
condomínios destinados a população de alta renda, a qual está sendo seduzida
pela propaganda da qualidade de vida e da natureza na Ilha de Santa Catarina,
onde se localiza uma parte do município.
A cidade, grande realização humana, artefato
por excelência e aparente negação da natureza, torna-se o local principal para
observação de uma nova relação, mitológica, capitalista e midiática, do homem
com a natureza. A natureza, metáfora ou metonímia, que já havia sido reificada
e incorporada à vida social, ao longo da história do homem, é apropriada e até
mesmo produzida, com o objetivo de valorização monetária de objetos/mercadorias
nos mais variados segmentos da produção e dos serviços.
A natureza, material e simbolicamente,
incorpora-se à esfera do mundo capitalista, da racionalidade instrumental e da
criação de um conjunto de necessidades que parecerem ser naturais ao homem, mas
que se constituem apenas em mais possibilidades de consumo. Para Marx
(1962:60-61), “no mundo alienado do capitalismo as necessidades não são
manifestações de poderes latentes do homem, isto é, elas não são necessidades
humanas; no capitalismo, cada homem especula sobre como criar uma nova
necessidade em outro homem a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em
uma nova dependência, e incitá-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte,
à ruína econômica. Todos tentam estabelecer sobre os outros um poder estranho
para com isto lograr a satisfação de sua necessidade egoísta”. A natureza
transformada em mercadoria e apropriada pelos capitalistas, torna-se um
produto, “uma isca por meio da qual o
indivíduo tenta apanhar a essência da outra pessoa, o dinheiro dela”.
Marx (1962:144).
Como parte do espaço geográfico, como elemento
do território usado, a natureza é incorporada e produzida, como objeto e idéia,
transformada em recurso pela valorização do espaço e por um intenso uso do
território. Esse denso e utilizável espaço geográfico, conectando Homem e
Natureza, Técnicas e Cultura, pode resultar em mentiras funcionais, definidas e
criticadas por Santos (1982:25), pois toda a natureza, congelada no senso comum
como paisagem, tende a ser transformada em cartões postais e em fetiche.
Esta natureza artificial, como produto da ação
humana, e de mentira, no sentindo de não possuir uma identidade local e sim ser
um padrão, se encontra hoje compromissada com uma felicidade capitalista. Uma
natureza carregada de ideologia que não mostra toda a história da sua
construção social, uma natureza ideologizada que busca apagar as diferenças
entre classes, fornecendo um ‘sentimento da identidade social’ a partir de
referencias coletivas, como explica Chauí (1984).
Segundo Lefebvre (1969:62) “torna-se assim, a
ideologia desta sociedade:, cada ‘objeto’, cada ‘bem’ se desdobra numa
realidade e numa imagem, fazendo esta parte essencial do consumo. Consomem-se
tantos signos quanto objetos: signos da felicidade, da satisfação, do poder, da
riqueza, da ciência, da técnica, etc. A produção desses signos se integra na
produção global e desempenha um papel integrador fundamental em relação às
outras atividades sociais produtivas ou organizadoras. O signo é comprado e
vendido; a linguagem torna-se valor de troca”.
Hoje, a natureza, idéia e objeto, capitalizada
e mercantilizada, tem seus consumidores e clientes, pessoas que por ela
transitam, passam, viajam, comprando-a e consumindo-a, literal ou
metaforicamente falando, como símbolo, imagem, ícone, poder ou status.
Nas grandes cidades, lugares altamente
tecnificados e artificializados, frutos da ação humana, a presença de uma natureza natural torna-se muito
distante, tornando-se necessário, desta forma, a produção de um sistema de
idéias e símbolos que tragam a imagem dessa natureza natural para a cidade e,
até mesmo, que se produza uma natureza padronizada e adequada aos padrões
urbanos. Além disso, a natureza
material, efetivamente incorporada e produzida, enclausurada nas propriedades
imobiliárias privadas, terá seu acesso definido de maneira desigual, entre, por
exemplo, os empreendimentos de alto padrão e os condomínios habitacionais de
baixa renda.
Observa-se hoje um urbanismo
preocupado com o mercado imobiliário. Segundo Lefebvre (1969:28), “o projeto
dos promotores de venda se apresenta como ocasião e local privilegiado: lugar
da felicidade numa vida quotidiana miraculosamente e maravilhosamente
transformada”.
O cotidiano nos condomínios atrelados a uma
idéia de natureza aparece como uma história de crianças e a materialização da
felicidade num endereço. De acordo com Lefebvre (1969:29), a “ideologia da
felicidade através do consumo, a alegria através do urbanismo adaptado à sua
nova missão. Esse urbanismo programa uma quotidianeidade geradora de
satisfações”.
As Referências a Natureza
A produção de uma natureza artificial deve
muito também ao avanço conquistado pela ciência e pela técnica. Entretanto, a
influência do homem sobre a natureza não é apenas associada à melhoria da sua
produtividade, mas também é composta com uma forte componente estética, e isto
vem caminhando com a história das idéias e conceitos de natureza desde o
período clássico.
A valorização da natureza é um processo historicamente
datado, conforme mostra Abreu (1992:55), “... a relação entre natureza e
sociedade é sempre historicamente determinada. Em outras palavras, o
significado e o valor que uma sociedade atribui aos elementos da natureza irão
sempre variar no tempo, acompanhando o processo histórico de seu
desenvolvimento econômico e social. Valores ambientais que são hoje tão
disputados pela população do Rio, como viver próximo à praia, por exemplo,
seriam considerados extremamente exóticos (ou mesmo irracionais) pelos cariocas
do passado”.
A forte componente estética da natureza,
tratada por Reclus (1886), é acrescida de um valor variável aos ‘gostos’ que
vão sendo definidos ou impostos. O autor cita as casas construídas no lago ‘Geneva’,
que primeiramente davam as costas para o lago, permitindo uma vista das
montanhas e das rochas, que representam o padrão vigente de beleza natural
naquele primeiro momento, mas que posteriormente passam a serem construídas com
suas fachadas voltadas para o lago, pois a água é que se torna o padrão
estético de beleza natural. Para Reclus (1985:75), “um fato capital domina toda
a civilização moderna: o fato de que a propriedade de um único indivíduo pode
aumentar indefinidamente, e até mesmo, em virtude do consentimento quase universal,
abarcar o mundo inteiro. O poder dos reis e dos imperadores é limitado, o da
riqueza não o é. O dólar é o senhor dos senhores (...) O modelo essencial do
civilizado europeu, ou melhor, do americano do norte, é de se preparar para o
lucro, tencionando comandar os outros homens através do dinheiro todo-poderoso.
Seu poder aumenta na proporção exata do seu haver”.
A natureza é uma referência
constante no dia-a-dia. Considerando as características do período atual,
dentro de uma sociedade de consumo, os objetos ou as mercadorias tornam-se as
possibilidades de mediação entre o homem e a natureza. Estes objetos e
mercadorias podem ser um simples creme dental com sabor natural; o papel
higiênico natural (sem perfume) ou com perfume natural (com perfume de flores);
o protetor de tela do computador com suas árvores de folhas vermelhas ou os
peixinhos nadando; as árvores cercadas por uma tela com propaganda de
supermercado; os lugares turísticos, onde se pode passear por praias desertas
ou pelas trilhas ecológicas na mata; e mesmo os condomínios de alto padrão nas
cidades.
De acordo com Santos (1994:23), “se antes a
natureza podia criar o medo, hoje é o medo que cria uma natureza mediática e
falsa, uma parte da Natureza sendo apresentada como se fosse o Todo”. Continua
o autor (op.cit.:24), “quando o ‘meio ambiente’, como Natureza-espetáculo,
substitui a Natureza Histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando
a natureza ‘cibernética’ ou ‘sintética’ substitui a natureza analítica do
passado, o processo de ocultação do significado da História atinge o seu auge.
É também desse modo que se estabelece uma dolorosa confusão entre sistemas
técnicos, natureza, sociedade, cultura e moral”.
A natureza se transforma num grande shopping
center. Até o maior shopping center do Brasil, o Parque Dom Pedro,
em Campinas/SP, utiliza na sua propaganda e nas suas diversas alas uma
aproximação com a natureza para se diferenciar na concorrência, com direito ao
portal das águas, das pedras, das colinas, das flores e até grama artificial.
Este centro comercial pode ser usado para sintetizar, de maneira incisiva, a
idéia da apropriação e da comercialização da natureza no período atual, o
marketing verde e a natureza enclausurada sob formas que dão a idéia de serem
naturais, mas que na verdade são apenas falsificações.
É interessante notar que em muitos casos as
referências à natureza se dão através de seus elementos de grandes proporções,
a beleza da natureza residiria nas montanhas, nos rios, ou mesmo nas árvores,
esquecendo-se que no período atual, aquilo que poderia ser considerado ainda
como uma natureza primeira se esconde no meio das estruturas microscópicas, que
o olho humano ainda não alcançou. O mesmo se dá com a definição imposta que
toda a natureza é verde, isto é observado em vários produtos quando querem
adquirir o status, ou usar o adjetivo ‘natural’, sempre utilizam a cor verde
como representação da sua qualidade natural. Nota-se que esta escolha pela
natureza verde pode estar relacionada ao fato de que as plantas foram os
elementos da natureza que mais se tornaram conhecidos, controlados e
manipulados pelos homens ao longo de sua história, tanto de maneira empírica
(primeiros cultivos) quando através da ciência (botânica). Ou seja, a natureza
representada pelas árvores e pelo verde é uma natureza já amplamente
tecnificada que não apresenta riscos ao homem.
Entretanto, esta natureza monocromática nada
tem a ver com a variedade de cores que a natureza, em qualquer período, tem. A
idéia de natureza que se apresenta hoje, relacionada à fluidez do mundo atual,
contraditoriamente remete a uma rigidez no seu padrão, a perda da
especificidade e da diversidade.
Quanto maior o grau de humanização dos lugares
e quanto maior sua inserção no projeto racionalista capitalista de consumo,
mais a referência à natureza se torna uma necessidade e uma estratégia de
marketing.
No período atual, criam-se muitas
metáforas da natureza - mitos de uma natureza inexistente, que representam um
'congelamento simbólico do natural’. Assim, segundo Souza (2001:256), “a
natureza tratada desta forma é, como passado, cuja apropriação é indireta.
Assim como o passado não pode ser superado, a natureza não apropriada
socialmente, não vivida, vivificada empiricamente, confinada nas reservas
ecológicas, também serve apenas como memória. É uma natureza simbólica que não
participa do cotidiano vivido.”
Na organizada feira de consumo da natureza esta
se transforma em mercadoria - vendida como autêntica ou mesmo como natureza
‘caricaturizada’, ‘disneyficada’.
Um conceito interessante para analisar o
processo de utilização da natureza ‘falsificada’ e da forma de relação que a
sociedade estabelece com a natureza, foi desenvolvido pelo geógrafo David
Harvey. O referido autor (op.cit., 2000), usa o conceito de Disneyficação da
Natureza (Disneyfication of Nature),
definido como um reencantamento da natureza já como um item de consumo e um
objetivo central da mercantilização e Disneyficação das experiências de
natureza.
A ‘Disneyficação’, para Harvey (2000:199), insere
os seguintes aspectos:
·
Uma suposta felicidade,
harmonia e espaços sem conflitos - uma fuga para fora do mundo real;
·
Uma construção feita
para entreter;
·
Uma história inventada;
·
Um cultivo de uma
nostalgia de um passado mítico;
·
Uma perpetuação do
fetiche pela cultura da mercadoria;
·
Um agregado de objetos
e coisas de todo o mundo numa idéia de diversidade e existência multicultural,
mesmo que tudo se dê na forma de compartimentos;
·
Um lugar limpo,
sanitarizado e mitologizado, esteticamente perfeito.
Assim, a
relação cotidiana com a natureza, a prática social, passa a ser povoada por
pensamentos, imagens, fantasias e desejos de uma natureza glamourizada e
reificada como um desenho infantil. Baudrillard (citado por Harvey, 1996), fala
numa redução dos processos da vida a algo que ocorre sobre uma tela de cinema e
nada mais. Como escreve Santos (2000a: 51), “o próprio quadro da vida, a
natureza e o entorno humano, carregado de significações sobrepostas, cheio de
artifícios, é uma tela de enganos. A natureza artificializada,
instrumentalizada ao extremo, recusa-se a se deixar entender diretamente. Os
homens não vêem o que enxergam”.
Para Harvey (2001), o fetiche pela imagem
coloca num pacote algumas formas estéticas pré-definidas, às custas de posições
étnicas, justiça social, igualdade e questões locais e internacionais de
exploração tanto da natureza quanto da natureza humana. Todo um mundo de
objetos passa a ser produzido seguindo os ditames de uma ideologia, mais ou
menos perceptíveis aos olhos incautos, seguindo esta perspectiva de uma
‘Disneylândia da Natureza’. “Somos cercados por coisas que são ideologias, mas
que nos dizem ser a realidade. (...) É preciso desmontar essa ideologia” Santos
(2000:9). “A ideologia produz símbolos, criados para fazer parte da vida real,
e que freqüentemente tomam a forma de objetos” Santos (1999:101).
Neste processo de produção de objetos cheios de
simbolismo e ideologias, a propaganda adquire um valor muito grande. Para
Santos (2000:10), “pagamos para sermos enganados. Paga-se o processo de engano
que acompanha e que precede a produção das coisas, das relações e das imagens”.
O reencanto do mundo ocidental com a natureza,
ou melhor, com uma idéia, um padrão de natureza moldado pelos interesses
capitalistas. Sob a forma atual do capitalismo, o oferecimento de produtos e
serviços para as classes com maior poder de consumo, colocam os homens muito próximos
da natureza. Uma natureza retrabalhada sob a forma de uma segunda natureza,
incorporada, produzida e vendida de acordo com as leis e desejo do modo de
produção capitalista: o lucro. a propriedade privada, os fetiches e
sensibilidades do mercado.
Para Ítalo Calvino (1994) a natureza é cada vez
mais falsificada e está comprometida com os interesses do capital. Hoje a
natureza (capitalizada e mercantilizada) tem seus consumidores, seus clientes,
aqueles que a percorrem, compram e a consomem, literal e metaforicamente,
símbolo, imagem, ícone, poder, qualidade de vida.
A valorização monetária da natureza reforça
formas de valorar a natureza, tais como o romantismo, o esteticismo, o
ambientalismo e o ecologismo. Harmonia e equilíbrio; beleza, integridade e estabilidade;
cooperação e ajuda mutua; crueldade e violência; hierarquia e ordem; competição
e luta pela existência; caos e desordem; todas elas podem ser identificadas
como 'valores naturais'.
A Felicidade Não Tem Preço, Tem
Endereço – Florianópolis, SC
A partir de algumas considerações
iniciais sobre o processo de incorporação da natureza a vida social e sua
utilização como estratégia de marketing, partimos para o entendimento da
mercantilização da natureza na cidade através da sua venda pelos agentes do
mercado imobiliário.
A cidade de Florianópolis, ou
melhor, a área insular do município, onde se concentram os balneários, os
bairros de alto padrão, os centros comerciais, administrativos estaduais e
municipais e as universidades, vem sendo apontada nos últimos anos como um
oásis de qualidade de vida urbana no Brasil. Uma campanha maciça na mídia vende
as benesses da vida ilhéu. A natureza, a infra-estrutura, a educação, a
sofisticação e a segurança são os aspectos vendidos pelo marketing de
Florianópolis, capitaneado pelas grandes empresas do mercado imobiliário e pelo
poder público, estadual e municipal.
Toda esta campanha, que se intensificou a
partir do final dos anos 90, resultou numa explosão da especulação imobiliária
na ilha, com a atração de pessoas, principalmente paulistas, gaúchos e
fluminenses, de alto poder aquisitivo. Estima-se que a participação na
população das classes mais altas cresceu 10% nos últimos 10 anos em função
desta ‘migração’ para a cidade. Este crescimento da procura por moradias levou
a um grande aumento dos preços dos imóveis na ilha, tanto para a sua aquisição
quanto para os aluguéis.
Com o aumento da procura por imóveis na Ilha de
Santa Catarina, houve um grande aquecimento do mercado imobiliário, com
destaque para os empreendimentos de alto padrão, ‘público alvo’ das estratégias
de marketing empregadas para vender a qualidade da vida
Desta forma, muitos empreendimentos e
loteamentos foram construídos associando qualidade de vida com natureza para
cooptar os investimentos dos ‘futuros moradores’ atraídos pelos ‘encantos naturais e
culturais’ desta ‘Ilha da Magia’ como, por exemplo, o Portal do Sol
Residencial, o Edifício Flamboyant e a Maison du Flamboyant, o Bosque Dourado
Condomínio Residencial (‘lotes privativos junto à natureza; Área verde e trilha
ecológica’). Também podem ser citados:
·
Beach Village
·
Residencial Dolce Vita
·
Saint Malo Residence
·
Condomínio Porto da
Lagoa
·
Vivenda das Palmeiras
·
Portal do Sol
Residencial
· Mirabello Residencial
· Maison du Flamboyant
·
Bosque Dourado
Condomínio Residencial
·
Mata Atlântica
·
Edifício Flamboyant
Mas, o caso mais significativo foi à
criação de Jurerê Internacional, na área de uma antiga vila de pescadores que,
após a efetivação este empreendimento, passou a ser chamada de Jurerê
Tradicional. As idéias dos moradores de Florianópolis e os valores do IPTU
indicam entre estes dois bairros uma grande diferenciação econômica, a
associação entre a maior renda – Jurerê Internacional - e a pobreza – Jurerê
Tradicional.
A construção de Jurerê Internacional
foi desenvolvida pela Habitasul Empreendimentos Imobiliários, empresa com sede
Diferentemente de Canasvieiras,
Jurerê Internacional não se configura como um balneário stricto sensu,
uma vez que está voltado para o estabelecimento de moradias permanentes e não
apenas para atender às demandas turísticas no verão. Estas moradias são
destinadas à população de altíssimo poder aquisitivo, originada de outros
estados (segundo uma corretora de imóveis 30% dos compradores dos imóveis são
gaúchos, outros 30% paulistas, e apenas 15% catarinenses), uma vez que as
construções devem ter no mínimo 400m² e seguem um padrão arquitetônico,
obrigatoriamente pré-definido, no intuito de criação de uma identidade
urbanística, no caso, um estilo ‘Califórnia’.
Estas construções são realizadas em
terrenos cujos valores custam
A venda dos lotes, casas e apartamentos
Com
referência ao plano urbano do loteamento, ele se aproxima de uma configuração
das ‘cidades jardim’, com blocos retangulares, loteamentos amplos e grandes
áreas verdes nos intervalos das construções, principalmente entre os blocos de apartamentos
(com média de 4 pavimentos). As ruas batizadas com nomes da fauna marinha (Av.
das Moréias, Rua das Baleias Franca, Av. das Arraias, Passeio dos Namorados),
estão assentadas sobre um sítio plano – um terraço marinho –, o que traz grande
problemas de drenagem nos períodos chuvosos e um grande refluxo de esgotos,
sendo desta forma, incompatível com a propaganda do empreendimento: ‘natureza
aliada à completa infra-estrutura e opções e entretenimento’. Ainda assim, a
área de Jurerê é uma das únicas de Florianópolis a contar com sistema de coleta
e tratamento de esgoto, sendo, juntamente com o tratamento de água, um serviço
prestado pela Habitasul e não pelas autarquias públicas de água e esgoto.
Observando uma fotografia aérea,
nota-se que os primeiros blocos imediatamente posteriores à praia são maiores
que o restante do plano urbano, com uma menor densidade de construções,
configurando-se nas áreas mais valorizadas do loteamento, com construções de
altíssimo padrão e preços elevados (
A presença e preservação da natureza
Sobre a ocupação das Áreas de
Proteção Ambiental podem ser citados outros empreendimentos como o Condomínio
Porto da Lagoa, no Canto da Lagoa (Lagoa da Conceição), numa área de 32.000m²,
‘entre a Lagoa e a Mata Atlântica, num dos lugares mais atraentes de
Florianópolis’. Na mesma Lagoa, encontra-se o ‘Vivenda das Palmeiras’, um
empreendimento no estilo de vila italiana com 6 blocos e 30 apartamentos, mas
como um ‘lindo pátio central com recantos arborizados’; isto dentro de uma área
de reserva de Mata Atlântica.
Outro exemplo de empreendimento em
APPs, além dos mencionados na região da Lagoa da Conceição, é o Mirabello
Residencial, no Itacorubi – uma das vedetes do mercado imobiliário de
Florianópolis, nas proximidades de um grande manguezal que tem sido destruído e
ocupado. O Mirabello, além de colocar na sua propaganda que está numa Área de
Preservação Permanente, aposta também na idéia da apropriação dos bens públicos
– ‘conheça uma das vistas mais belas do mundo: a sua’ e ‘o melhor lugar do
mundo é o seu’. Assim como
Voltando à região de Jurerê,
encontra-se o Residencial Dolce Vita (Koerich Engenharia), vendido como um
residencial no ‘meio da natureza’, mas ‘um lugar sofisticado e cheio de
charme’. Em Florianópolis, um diferencial da infra-estrutura dos
empreendimentos com padrão mais elevado, principalmente edifícios residenciais,
é a presença de churrasqueiras nas sacadas.
Destaca-se, ainda neste setor norte
da Ilha de Santa Catarina, o Resort Beach
Village, também um empreendimento da Habitasul. Segundo as informações do sítio
da Internet sobre o resort:
·
‘Aqui a natureza já fez
uma reserva para você;
·
As areias brancas da
praia como extensão do seu jardim;
·
O Jurerê Beach Village
é sinônimo de liberdade. É a principal porta de entrada para o inesquecível e
diferenciado estilo de vida e lazer próprios de Jurerê Internacional, a praia
mais charmosa de Florianópolis, um verdadeiro paraíso natural;
·
Poucas coisas boas
ficam tão perto do mar. Você vai encontrar muitas espécies de conchas, formando
uma vizinhança natural. Uma ou outra espreguiçadeira. Os guarda-sóis coloridos
plantados na areia;
·
A exclusiva
oportunidade de reunir o bem-viver estilo Primeiro Mundo com o privilégio de
ter a praia como extensão de seu jardim.’
O Beach Village congrega vários
aspectos da relação ideológica que os agentes do mercado imobiliário
estabelecem com a natureza como, por exemplo, a apropriação dos bens coletivos
nas propriedades particulares, a natureza e a praia como jardins particulares;
a idéia da segregação espacial em função da presença deste recurso cada vez
mais raro – a natureza; a romantização da natureza e a valorização do mito da
natureza paradisíaca e intocada, negando toda a construção social da natureza
ao longo da história humana.
Considerações Finais
O estudo sobre a apropriação da
natureza na cidade por empreendimentos imobiliários – condomínios e loteamentos
– confirma a idéia de Santos (1999: 53), onde “no princípio, tudo eram coisas,
enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que a partir de um conjunto de
intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se
transforma em um verdadeiro sistema de objetos e não mais de coisas e,
ironicamente, é o próprio movimento ecológico que completa o processo de
desnaturalização da natureza, dando a esta última um valor”.
Em Florianópolis a presença
material/física da natureza – água e vegetação – é o atrativo natural usado
para a atrair moradores de alta renda e, desta forma, movimentar o mercado
imobiliário da cidade. Na região central, onde a presença de áreas verdes fica
restrita às praças e aos jardins (a arborização nas ruas é praticamente nula),
não há empecilhos para que alguns empreendimentos utilizem a natureza apenas
como idéia/símbolo no nome do empreendimento.
No centro da capital catarinense,
encontra-se o Condomínio Mata Atlântica, que sua como slogan à frase:
‘Viva sua vida próximo do que há de mais belo’. Além da idéia de natureza no
nome do empreendimento, ele busca vender a idéia de segurança, conforto e
tranqüilidade – ‘equilíbrio prefeito entre a tranqüilidade e a comodidade de se
estar próximo dos lugares mais importantes para se viver, este empreendimento
foi criado para garantir conforto para toda família no centro de
Florianópolis’.
Após a análise de alguns
empreendimentos imobiliários na Ilha de Santa Catarina, cabe mencionar que o
município de Florianópolis não conta com um Plano Diretor Municipal, mas dois
planos – um para o distrito sede e outro para 11 balneários – e que na
realidade se constituem apenas numa lei de zoneamento e não apresentam
diretrizes urbanísticas e sociais para a cidade de maneira integrada.
Outra coincidência: apenas os
bairros que sofrem acelerado processo de urbanização e grande especulação
imobiliária é que possuem este documento normativo, auto-proclamados Planos Diretores
de Bairros, como por exemplo a área do Campeche, no sudeste da Ilha, que hoje
conta como 8.752 habitantes (IBGE: 2000), mas que está sendo
‘planejado’, ou melhor, loteado para receber 500.000 pessoas (todo o município
de Florianópolis atualmente conta com 340.000 habitantes); e Jurerê
Internacional. Sobre este último, o presidente do IPUF, Carlos Alberto
Riederer, declarou em entrevista ao Jornal Diário Catarinense (27/04/2004) que
a área de Jurerê Internacional é um aspecto positivo do planejamento e que
deveria ser estendido para toda a cidade. Desta forma, assiste-se
Alguns
indicativos presentes mostram que o crescimento urbano de Florianópolis chegou
ao seu limite, em função:
· Da
falta de infra-estrutura básica (água, energia elétrica, vias de circulação);
· Da
falta de opções culturais, e o lazer se restringindo às praias no verão;
do super aquecimento do mercado
imobiliário e da elevação absurda dos preços dos imóveis, empurrando a classe
média e os pobres para os municípios do continente – São José, Palhoça, etc.
· Da
falta de espaço para o crescimento urbano, pois 80% do município estão
protegidos da ocupação urbana, por se configurarem em áreas de proteção
ambiental (APP), enquanto áreas de expansão urbana e os 20% restante já estão
urbanizados e grandes parte verticalizados. Assim, a área urbana só poderá
aumentar horizonte através da construção de aterros na linha costa ou da
ocupação irregular das APPs. No caso do plano de expansão do Bairro Campeche,
cabe ressaltar que o mesmo se encontra na cabeceira do aeroporto de
Florianópolis, o que, segundo a legislação urbana, impede o seu adensamento
populacional, além de se configurar numa área de risco e com forte poluição
sonora.
A idéia do crescimento urbano,
associada com valorização da natureza e da qualidade de vida, não está
atrelada, infelizmente, às fortes tradições culturais dos moradores da ilha –
pescadores e brasileiros de origem açoriana (os manezinhos). A
especulação imobiliária, além de se apropriar de natureza ainda presente em
certos recantos da ilha, está destruindo a cultura local, vista como algo
ultrapassado e fora de moda.
Entretanto, o senso comum e os
agentes do mercado imobiliário ainda buscam impor um crescimento acelerado da
população da ilha, a qual se configuraria num grande resort urbano para
população de alta renda, enquanto os pobres seriam expulsos para o continente.
É esta a forma encontrada pelo poder público de Santa Catarina e de
Florianópolis, bem como pelo capital imobiliário, para transformar a cidade
numa ilha de modernidade, em uma metrópole cosmopolita.
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© Copyright Wendel Henrique, 2005
© Copyright Scripta Nova, 2005
Ficha bibliográfica:
HENRIQUE, W. Florianópolis/Brasil – a felicidade
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tem endereço: condomínios, loteamentos e a apropriação da natureza. Scripta Nova.
Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona:
Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm.
194 (14). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-14.htm> [ISSN: 1138-9788]
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