Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (14), 1 de agosto de 2005

 

FLORIANÓPOLIS/BRASIL – A FELICIDADE NÃO TEM PREÇO, TEM ENDEREÇO: CONDOMÍNIOS, LOTEAMENTOS E A APROPRIAÇÃO DA NATUREZA

 

Wendel Henrique

Professor Doutor, Departamento de Geografia Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC.

E-mail: wendel_henrique@hotmail.com


Florianópolis/Brasil – a felicidade não tem preço, tem endereço: condomínios, loteamentos e a apropriação da natureza (Resumo)

A apropriação da natureza pelas empresas do mercado imobiliário de Florianópolis/SC (Sul do Brasil) ocorre  em um processo de valorização monetária de condomínios e loteamentos para a população de alta renda, desenvolvendo um acesso desigual à natureza na cidade. A natureza, a infra-estrutura e a qualidade de vida urbana são alguns dos aspectos vendidos pelo marketing imobiliário em Florianópolis. Este processo é capitaneado pelos grandes empreendedores imobiliários e pelos governos estadual e municipal. Vários empreendimentos e condomínios são construídos em associação com algum aspecto físico ou simbólico da natureza para atrair investidores e compradores. Alguns lançamentos do mercado imobiliário em Florianópolis são: Residencial ‘Portal do Sol’, ‘Maison du Flamboyant’, ‘Residencial Mata Atlântica’. Em Florianópolis a materialidade e a presença da natureza, como o mar e a vegetação, tem um grande poder atrativo no mercado imobiliário, o qual procura vender a cidade como uma ilha de felicidade.

 

Palavras-chave: mercado imobiliário, natureza, Florianópolis, Brasil.


Florianópolis/Brazil – happiness has no price, has address: condominiums, land parcels and the apropriation of nature (Abstract)

The appropriation of nature by real estate market in Florianópolis (South Brazil) happens in a monetary valorization process in condominiums and residential areas for wealthy people, developping an unequal access to the nature in the city. Nature, infrastructure and urban safety are some of the aspects sold by the real estate marketing in Florianópolis. This process is captained by poweful real estate companies and by state and municipal government. Many buildings and condominiums are built with association of any aspect of nature, physical or symbolic, to ‘fish’ investments. Some of the new developments of real estate market in Florianópolis are: Residencial ‘Portal do Sol’ (Residential Sun’s Gate), ‘Maison du Flamboyant’ (originally in French), “Residencial Mata Atlântica’ (Atlantic Tropical Forest Residential). In Florianópolis the materiallity of nature, as the ocean  and  the tropical forest, has an attractive power in the real estate market, which is looking for to sell the city as an island of happiness.

 

Keywords: real estate market, nature, Florianópolis, Brazil.


 

Introdução

Com a elaboração de nossa tese de doutoramento “O Direito à natureza na cidade: ideologias e práticas na História” (Programa de Pós Graduação em Geografia da UNESP/Rio Claro, orientador: Prof. Dr. Pompeu Figueiredo de Carvalho) buscamos analisar a apropriação da natureza pelo mercado imobiliário em algumas cidades do Brasil, especialmente São Paulo e Florianópolis. No caso de Florianópolis (Santa Catarina), ocorre um processo de valorização monetária de loteamentos e condomínios destinados a população de alta renda, a qual está sendo seduzida pela propaganda da qualidade de vida e da natureza na Ilha de Santa Catarina, onde se localiza uma parte do município.

 

A cidade, grande realização humana, artefato por excelência e aparente negação da natureza, torna-se o local principal para observação de uma nova relação, mitológica, capitalista e midiática, do homem com a natureza. A natureza, metáfora ou metonímia, que já havia sido reificada e incorporada à vida social, ao longo da história do homem, é apropriada e até mesmo produzida, com o objetivo de valorização monetária de objetos/mercadorias nos mais variados segmentos da produção e dos serviços.

 

A natureza, material e simbolicamente, incorpora-se à esfera do mundo capitalista, da racionalidade instrumental e da criação de um conjunto de necessidades que parecerem ser naturais ao homem, mas que se constituem apenas em mais possibilidades de consumo. Para Marx (1962:60-61), “no mundo alienado do capitalismo as necessidades não são manifestações de poderes latentes do homem, isto é, elas não são necessidades humanas; no capitalismo, cada homem especula sobre como criar uma nova necessidade em outro homem a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em uma nova dependência, e incitá-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína econômica. Todos tentam estabelecer sobre os outros um poder estranho para com isto lograr a satisfação de sua necessidade egoísta”. A natureza transformada em mercadoria e apropriada pelos capitalistas, torna-se um produto, “uma isca por meio da qual o indivíduo tenta apanhar a essência da outra pessoa, o dinheiro dela”. Marx (1962:144).

 

Como parte do espaço geográfico, como elemento do território usado, a natureza é incorporada e produzida, como objeto e idéia, transformada em recurso pela valorização do espaço e por um intenso uso do território. Esse denso e utilizável espaço geográfico, conectando Homem e Natureza, Técnicas e Cultura, pode resultar em mentiras funcionais, definidas e criticadas por Santos (1982:25), pois toda a natureza, congelada no senso comum como paisagem, tende a ser transformada em cartões postais e em fetiche.

 

Esta natureza artificial, como produto da ação humana, e de mentira, no sentindo de não possuir uma identidade local e sim ser um padrão, se encontra hoje compromissada com uma felicidade capitalista. Uma natureza carregada de ideologia que não mostra toda a história da sua construção social, uma natureza ideologizada que busca apagar as diferenças entre classes, fornecendo um ‘sentimento da identidade social’ a partir de referencias coletivas, como explica Chauí (1984).

Segundo Lefebvre (1969:62) “torna-se assim, a ideologia desta sociedade:, cada ‘objeto’, cada ‘bem’ se desdobra numa realidade e numa imagem, fazendo esta parte essencial do consumo. Consomem-se tantos signos quanto objetos: signos da felicidade, da satisfação, do poder, da riqueza, da ciência, da técnica, etc. A produção desses signos se integra na produção global e desempenha um papel integrador fundamental em relação às outras atividades sociais produtivas ou organizadoras. O signo é comprado e vendido; a linguagem torna-se valor de troca”.

 

Hoje, a natureza, idéia e objeto, capitalizada e mercantilizada, tem seus consumidores e clientes, pessoas que por ela transitam, passam, viajam, comprando-a e consumindo-a, literal ou metaforicamente falando, como símbolo, imagem, ícone, poder ou status.

 

Nas grandes cidades, lugares altamente tecnificados e artificializados, frutos da ação humana, a presença de uma natureza natural torna-se muito distante, tornando-se necessário, desta forma, a produção de um sistema de idéias e símbolos que tragam a imagem dessa natureza natural para a cidade e, até mesmo, que se produza uma natureza padronizada e adequada aos padrões urbanos. Além disso, a natureza material, efetivamente incorporada e produzida, enclausurada nas propriedades imobiliárias privadas, terá seu acesso definido de maneira desigual, entre, por exemplo, os empreendimentos de alto padrão e os condomínios habitacionais de baixa renda.

 

Observa-se hoje um urbanismo preocupado com o mercado imobiliário. Segundo Lefebvre (1969:28), “o projeto dos promotores de venda se apresenta como ocasião e local privilegiado: lugar da felicidade numa vida quotidiana miraculosamente e maravilhosamente transformada”.

O cotidiano nos condomínios atrelados a uma idéia de natureza aparece como uma história de crianças e a materialização da felicidade num endereço. De acordo com Lefebvre (1969:29), a “ideologia da felicidade através do consumo, a alegria através do urbanismo adaptado à sua nova missão. Esse urbanismo programa uma quotidianeidade geradora de satisfações”.

 

As Referências a Natureza

 

A produção de uma natureza artificial deve muito também ao avanço conquistado pela ciência e pela técnica. Entretanto, a influência do homem sobre a natureza não é apenas associada à melhoria da sua produtividade, mas também é composta com uma forte componente estética, e isto vem caminhando com a história das idéias e conceitos de natureza desde o período clássico.

 

A valorização da natureza é um processo historicamente datado, conforme mostra Abreu (1992:55), “... a relação entre natureza e sociedade é sempre historicamente determinada. Em outras palavras, o significado e o valor que uma sociedade atribui aos elementos da natureza irão sempre variar no tempo, acompanhando o processo histórico de seu desenvolvimento econômico e social. Valores ambientais que são hoje tão disputados pela população do Rio, como viver próximo à praia, por exemplo, seriam considerados extremamente exóticos (ou mesmo irracionais) pelos cariocas do passado”.

 

A forte componente estética da natureza, tratada por Reclus (1886), é acrescida de um valor variável aos ‘gostos’ que vão sendo definidos ou impostos. O autor cita as casas construídas no lago ‘Geneva’, que primeiramente davam as costas para o lago, permitindo uma vista das montanhas e das rochas, que representam o padrão vigente de beleza natural naquele primeiro momento, mas que posteriormente passam a serem construídas com suas fachadas voltadas para o lago, pois a água é que se torna o padrão estético de beleza natural. Para Reclus (1985:75), “um fato capital domina toda a civilização moderna: o fato de que a propriedade de um único indivíduo pode aumentar indefinidamente, e até mesmo, em virtude do consentimento quase universal, abarcar o mundo inteiro. O poder dos reis e dos imperadores é limitado, o da riqueza não o é. O dólar é o senhor dos senhores (...) O modelo essencial do civilizado europeu, ou melhor, do americano do norte, é de se preparar para o lucro, tencionando comandar os outros homens através do dinheiro todo-poderoso. Seu poder aumenta na proporção exata do seu haver”.

 

A natureza é uma referência constante no dia-a-dia. Considerando as características do período atual, dentro de uma sociedade de consumo, os objetos ou as mercadorias tornam-se as possibilidades de mediação entre o homem e a natureza. Estes objetos e mercadorias podem ser um simples creme dental com sabor natural; o papel higiênico natural (sem perfume) ou com perfume natural (com perfume de flores); o protetor de tela do computador com suas árvores de folhas vermelhas ou os peixinhos nadando; as árvores cercadas por uma tela com propaganda de supermercado; os lugares turísticos, onde se pode passear por praias desertas ou pelas trilhas ecológicas na mata; e mesmo os condomínios de alto padrão nas cidades.

 

De acordo com Santos (1994:23), “se antes a natureza podia criar o medo, hoje é o medo que cria uma natureza mediática e falsa, uma parte da Natureza sendo apresentada como se fosse o Todo”. Continua o autor (op.cit.:24), “quando o ‘meio ambiente’, como Natureza-espetáculo, substitui a Natureza Histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando a natureza ‘cibernética’ ou ‘sintética’ substitui a natureza analítica do passado, o processo de ocultação do significado da História atinge o seu auge. É também desse modo que se estabelece uma dolorosa confusão entre sistemas técnicos, natureza, sociedade, cultura e moral”.

 

A natureza se transforma num grande shopping center. Até o maior shopping center do Brasil, o Parque Dom Pedro, em Campinas/SP, utiliza na sua propaganda e nas suas diversas alas uma aproximação com a natureza para se diferenciar na concorrência, com direito ao portal das águas, das pedras, das colinas, das flores e até grama artificial. Este centro comercial pode ser usado para sintetizar, de maneira incisiva, a idéia da apropriação e da comercialização da natureza no período atual, o marketing verde e a natureza enclausurada sob formas que dão a idéia de serem naturais, mas que na verdade são apenas falsificações.

É interessante notar que em muitos casos as referências à natureza se dão através de seus elementos de grandes proporções, a beleza da natureza residiria nas montanhas, nos rios, ou mesmo nas árvores, esquecendo-se que no período atual, aquilo que poderia ser considerado ainda como uma natureza primeira se esconde no meio das estruturas microscópicas, que o olho humano ainda não alcançou. O mesmo se dá com a definição imposta que toda a natureza é verde, isto é observado em vários produtos quando querem adquirir o status, ou usar o adjetivo ‘natural’, sempre utilizam a cor verde como representação da sua qualidade natural. Nota-se que esta escolha pela natureza verde pode estar relacionada ao fato de que as plantas foram os elementos da natureza que mais se tornaram conhecidos, controlados e manipulados pelos homens ao longo de sua história, tanto de maneira empírica (primeiros cultivos) quando através da ciência (botânica). Ou seja, a natureza representada pelas árvores e pelo verde é uma natureza já amplamente tecnificada que não apresenta riscos ao homem.

 

Entretanto, esta natureza monocromática nada tem a ver com a variedade de cores que a natureza, em qualquer período, tem. A idéia de natureza que se apresenta hoje, relacionada à fluidez do mundo atual, contraditoriamente remete a uma rigidez no seu padrão, a perda da especificidade e da diversidade.

 

Quanto maior o grau de humanização dos lugares e quanto maior sua inserção no projeto racionalista capitalista de consumo, mais a referência à natureza se torna uma necessidade e uma estratégia de marketing.

 

No período atual, criam-se muitas metáforas da natureza - mitos de uma natureza inexistente, que representam um 'congelamento simbólico do natural’. Assim, segundo Souza (2001:256), “a natureza tratada desta forma é, como passado, cuja apropriação é indireta. Assim como o passado não pode ser superado, a natureza não apropriada socialmente, não vivida, vivificada empiricamente, confinada nas reservas ecológicas, também serve apenas como memória. É uma natureza simbólica que não participa do cotidiano vivido.”

 

Na organizada feira de consumo da natureza esta se transforma em mercadoria - vendida como autêntica ou mesmo como natureza ‘caricaturizada’, ‘disneyficada’.

Um conceito interessante para analisar o processo de utilização da natureza ‘falsificada’ e da forma de relação que a sociedade estabelece com a natureza, foi desenvolvido pelo geógrafo David Harvey. O referido autor (op.cit., 2000), usa o conceito de Disneyficação da Natureza (Disneyfication of Nature), definido como um reencantamento da natureza já como um item de consumo e um objetivo central da mercantilização e Disneyficação das experiências de natureza.

A ‘Disneyficação’, para Harvey (2000:199), insere os seguintes aspectos:

 

·         Uma suposta felicidade, harmonia e espaços sem conflitos - uma fuga para fora do mundo real;

 

·         Uma construção feita para entreter;

 

·         Uma história inventada;

 

·         Um cultivo de uma nostalgia de um passado mítico;

 

·         Uma perpetuação do fetiche pela cultura da mercadoria;

 

·         Um agregado de objetos e coisas de todo o mundo numa idéia de diversidade e existência multicultural, mesmo que tudo se dê na forma de compartimentos;

 

·         Um lugar limpo, sanitarizado e mitologizado, esteticamente perfeito.

 

Assim, a relação cotidiana com a natureza, a prática social, passa a ser povoada por pensamentos, imagens, fantasias e desejos de uma natureza glamourizada e reificada como um desenho infantil. Baudrillard (citado por Harvey, 1996), fala numa redução dos processos da vida a algo que ocorre sobre uma tela de cinema e nada mais. Como escreve Santos (2000a: 51), “o próprio quadro da vida, a natureza e o entorno humano, carregado de significações sobrepostas, cheio de artifícios, é uma tela de enganos. A natureza artificializada, instrumentalizada ao extremo, recusa-se a se deixar entender diretamente. Os homens não vêem o que enxergam”.

 

Para Harvey (2001), o fetiche pela imagem coloca num pacote algumas formas estéticas pré-definidas, às custas de posições étnicas, justiça social, igualdade e questões locais e internacionais de exploração tanto da natureza quanto da natureza humana. Todo um mundo de objetos passa a ser produzido seguindo os ditames de uma ideologia, mais ou menos perceptíveis aos olhos incautos, seguindo esta perspectiva de uma ‘Disneylândia da Natureza’. “Somos cercados por coisas que são ideologias, mas que nos dizem ser a realidade. (...) É preciso desmontar essa ideologia” Santos (2000:9). “A ideologia produz símbolos, criados para fazer parte da vida real, e que freqüentemente tomam a forma de objetos” Santos (1999:101).

 

Neste processo de produção de objetos cheios de simbolismo e ideologias, a propaganda adquire um valor muito grande. Para Santos (2000:10), “pagamos para sermos enganados. Paga-se o processo de engano que acompanha e que precede a produção das coisas, das relações e das imagens”.

 

O reencanto do mundo ocidental com a natureza, ou melhor, com uma idéia, um padrão de natureza moldado pelos interesses capitalistas. Sob a forma atual do capitalismo, o oferecimento de produtos e serviços para as classes com maior poder de consumo, colocam os homens muito próximos da natureza. Uma natureza retrabalhada sob a forma de uma segunda natureza, incorporada, produzida e vendida de acordo com as leis e desejo do modo de produção capitalista: o lucro. a propriedade privada, os fetiches e sensibilidades do mercado.

Para Ítalo Calvino (1994) a natureza é cada vez mais falsificada e está comprometida com os interesses do capital. Hoje a natureza (capitalizada e mercantilizada) tem seus consumidores, seus clientes, aqueles que a percorrem, compram e a consomem, literal e metaforicamente, símbolo, imagem, ícone, poder, qualidade de vida.

A valorização monetária da natureza reforça formas de valorar a natureza, tais como o romantismo, o esteticismo, o ambientalismo e o ecologismo. Harmonia e equilíbrio; beleza, integridade e estabilidade; cooperação e ajuda mutua; crueldade e violência; hierarquia e ordem; competição e luta pela existência; caos e desordem; todas elas podem ser identificadas como 'valores naturais'.

 

A Felicidade Não Tem Preço, Tem Endereço – Florianópolis, SC

 

A partir de algumas considerações iniciais sobre o processo de incorporação da natureza a vida social e sua utilização como estratégia de marketing, partimos para o entendimento da mercantilização da natureza na cidade através da sua venda pelos agentes do mercado imobiliário.

 

A cidade de Florianópolis, ou melhor, a área insular do município, onde se concentram os balneários, os bairros de alto padrão, os centros comerciais, administrativos estaduais e municipais e as universidades, vem sendo apontada nos últimos anos como um oásis de qualidade de vida urbana no Brasil. Uma campanha maciça na mídia vende as benesses da vida ilhéu. A natureza, a infra-estrutura, a educação, a sofisticação e a segurança são os aspectos vendidos pelo marketing de Florianópolis, capitaneado pelas grandes empresas do mercado imobiliário e pelo poder público, estadual e municipal.

 

Toda esta campanha, que se intensificou a partir do final dos anos 90, resultou numa explosão da especulação imobiliária na ilha, com a atração de pessoas, principalmente paulistas, gaúchos e fluminenses, de alto poder aquisitivo. Estima-se que a participação na população das classes mais altas cresceu 10% nos últimos 10 anos em função desta ‘migração’ para a cidade. Este crescimento da procura por moradias levou a um grande aumento dos preços dos imóveis na ilha, tanto para a sua aquisição quanto para os aluguéis.

 

Com o aumento da procura por imóveis na Ilha de Santa Catarina, houve um grande aquecimento do mercado imobiliário, com destaque para os empreendimentos de alto padrão, ‘público alvo’ das estratégias de marketing empregadas para vender a qualidade da vida em Florianópolis. Num período onde a natureza é uma raridade e se apresenta como artigo de luxo, os agentes imobiliários de Florianópolis irão capitalizar as características do sítio urbano da ilha associada a qualidade de vida – ar puro, tranqüilidade e, principalmente, a grande presença da natureza na cidade.

 

Desta forma, muitos empreendimentos e loteamentos foram construídos associando qualidade de vida com natureza para cooptar os investimentos dos ‘futuros moradores’  atraídos pelos ‘encantos naturais e culturais’ desta ‘Ilha da Magia’ como, por exemplo, o Portal do Sol Residencial, o Edifício Flamboyant e a Maison du Flamboyant, o Bosque Dourado Condomínio Residencial (‘lotes privativos junto à natureza; Área verde e trilha ecológica’). Também podem ser citados:

 

·               Beach Village

 

·               Residencial Dolce Vita

 

·               Saint Malo Residence

 

·               Condomínio Porto da Lagoa

 

·               Vivenda das Palmeiras

 

·               Portal do Sol Residencial

 

·               Mirabello Residencial

 

·               Maison du Flamboyant

 

·               Bosque Dourado Condomínio Residencial

 

·               Mata Atlântica

 

·               Edifício Flamboyant

 

Mas, o caso mais significativo foi à criação de Jurerê Internacional, na área de uma antiga vila de pescadores que, após a efetivação este empreendimento, passou a ser chamada de Jurerê Tradicional. As idéias dos moradores de Florianópolis e os valores do IPTU indicam entre estes dois bairros uma grande diferenciação econômica, a associação entre a maior renda – Jurerê Internacional - e a pobreza – Jurerê Tradicional.

 

A construção de Jurerê Internacional foi desenvolvida pela Habitasul Empreendimentos Imobiliários, empresa com sede em Porto Alegre/RS, e se localiza no norte da Ilha de Santa Catarina. Os 30 km entre o loteamento e o centro da cidade de Florianópolis são percorridos em grande parte pela rodovia SC-401, coincidentemente a única de pistas duplicadas da ilha, e que dá acesso também ao balneário de Canasvieiras, conhecido reduto de turistas argentinos no período da temporada de verão.

 

Diferentemente de Canasvieiras, Jurerê Internacional não se configura como um balneário stricto sensu, uma vez que está voltado para o estabelecimento de moradias permanentes e não apenas para atender às demandas turísticas no verão. Estas moradias são destinadas à população de altíssimo poder aquisitivo, originada de outros estados (segundo uma corretora de imóveis 30% dos compradores dos imóveis são gaúchos, outros 30% paulistas, e apenas 15% catarinenses), uma vez que as construções devem ter no mínimo 400m² e seguem um padrão arquitetônico, obrigatoriamente pré-definido, no intuito de criação de uma identidade urbanística, no caso, um estilo ‘Califórnia’.

 

Estas construções são realizadas em terrenos cujos valores custam em média R$ 1.200,00 o m². Não devem possuir muros, criando uma atmosfera de segurança e proximidade, típica imagem do subúrbio americano. Mesmo assim, observam-se em praticamente todas as casas placas indicando a opção dos moradores por serviços de segurança privada. Além de contar com a segurança própria do loteamento, que no início de sua efetivação era feita por seguranças em bicicletas (ecologicamente correto). Entretanto, em algumas construções também podem ser vistas obras de aumento dos muros laterais e a construção de cercas, pois se tem constado um aumento dos roubos e furtos na área, uma vez que grande parte dos moradores de Jurerê Internacional divide a sua residência entre Florianópolis e outras cidades, notadamente São Paulo.

 

A venda dos lotes, casas e apartamentos em Jurerê Internacional pode ser caracterizada com um grande e rápido sucesso. Isto se deve às grandes campanhas publicitárias do local, muitas delam vinculadas à natureza. Segundo o sítio da Internet (www.habitasul.com.br), ‘Jurerê Internacional é sinônimo de qualidade de vida, onde tudo está em perfeita harmonia com a natureza. Jurerê tornou-se uma referência em termos de ocupação urbana, com as mais belas residências da ilha e seus hotéis, tendo com cenário uma praia de águas tranqüilas e quentes’.

 

Com referência ao plano urbano do loteamento, ele se aproxima de uma configuração das ‘cidades jardim’, com blocos retangulares, loteamentos amplos e grandes áreas verdes nos intervalos das construções, principalmente entre os blocos de apartamentos (com média de 4 pavimentos). As ruas batizadas com nomes da fauna marinha (Av. das Moréias, Rua das Baleias Franca, Av. das Arraias, Passeio dos Namorados), estão assentadas sobre um sítio plano – um terraço marinho –, o que traz grande problemas de drenagem nos períodos chuvosos e um grande refluxo de esgotos, sendo desta forma, incompatível com a propaganda do empreendimento: ‘natureza aliada à completa infra-estrutura e opções e entretenimento’. Ainda assim, a área de Jurerê é uma das únicas de Florianópolis a contar com sistema de coleta e tratamento de esgoto, sendo, juntamente com o tratamento de água, um serviço prestado pela Habitasul e não pelas autarquias públicas de água e esgoto.

 

Observando uma fotografia aérea, nota-se que os primeiros blocos imediatamente posteriores à praia são maiores que o restante do plano urbano, com uma menor densidade de construções, configurando-se nas áreas mais valorizadas do loteamento, com construções de altíssimo padrão e preços elevados (em média R$ 5.000.000,00 cinco milhões de reais ou US$ 1,400,000.00 um milhão e quatrocentos mil dólares americanos). É interessante notar o uso da natureza como uma barreira entre esta zona mista (comercial e residencial) e uma zona exclusivamente residencial horizontal. Entre estas duas zonas observa-se um parque verde linear, margeando um canal de aberto para drenagem do terraço marinho, servindo como uma ‘barreira verde’ entre uma área mais popular e movimentada e uma outra mais elitista e ‘tranqüila’. De fato, confirma-se a propaganda do empreendimento – ‘valorização, respeito e preservação da natureza’.

 

A presença e preservação da natureza em Jurerê Internacional, está associada a uma grande área verde no seu entorno, que se constitui na Área de Proteção Ambiental (APA) de Carijós. Observa-se um exemplo de privatização das áreas públicas com áreas verdes públicas sendo anexadas aos loteamentos. Em Florianópolis os 100 hectares da APA são usados na propaganda do empreendimento como se fossem áreas próprias.

 

Sobre a ocupação das Áreas de Proteção Ambiental podem ser citados outros empreendimentos como o Condomínio Porto da Lagoa, no Canto da Lagoa (Lagoa da Conceição), numa área de 32.000m², ‘entre a Lagoa e a Mata Atlântica, num dos lugares mais atraentes de Florianópolis’. Na mesma Lagoa, encontra-se o ‘Vivenda das Palmeiras’, um empreendimento no estilo de vila italiana com 6 blocos e 30 apartamentos, mas como um ‘lindo pátio central com recantos arborizados’; isto dentro de uma área de reserva de Mata Atlântica.

 

Outro exemplo de empreendimento em APPs, além dos mencionados na região da Lagoa da Conceição, é o Mirabello Residencial, no Itacorubi – uma das vedetes do mercado imobiliário de Florianópolis, nas proximidades de um grande manguezal que tem sido destruído e ocupado. O Mirabello, além de colocar na sua propaganda que está numa Área de Preservação Permanente, aposta também na idéia da apropriação dos bens públicos – ‘conheça uma das vistas mais belas do mundo: a sua’ e ‘o melhor lugar do mundo é o seu’. Assim como em São Paulo, a natureza e a vista não são os únicos atrativos; a presença e proximidade de outras infra-estruturas também são importantes, pois apesar da venda de uma natureza romântica, os consumidores procuram uma natureza confortável – ‘próximo às principais universidades e aos maiores shopping centers de Santa Catarina (em construção)’ e ‘acessos livres de engarrafamentos’.

 

Voltando à região de Jurerê, encontra-se o Residencial Dolce Vita (Koerich Engenharia), vendido como um residencial no ‘meio da natureza’, mas ‘um lugar sofisticado e cheio de charme’. Em Florianópolis, um diferencial da infra-estrutura dos empreendimentos com padrão mais elevado, principalmente edifícios residenciais, é a presença de churrasqueiras nas sacadas.

 

Destaca-se, ainda neste setor norte da Ilha de Santa Catarina, o Resort Beach Village, também um empreendimento da Habitasul. Segundo as informações do sítio da Internet sobre o resort:

 

·         ‘Aqui a natureza já fez uma reserva para você;

 

·         As areias brancas da praia como extensão do seu jardim;

 

·         O Jurerê Beach Village é sinônimo de liberdade. É a principal porta de entrada para o inesquecível e diferenciado estilo de vida e lazer próprios de Jurerê Internacional, a praia mais charmosa de Florianópolis, um verdadeiro paraíso natural;

 

·         Poucas coisas boas ficam tão perto do mar. Você vai encontrar muitas espécies de conchas, formando uma vizinhança natural. Uma ou outra espreguiçadeira. Os guarda-sóis coloridos plantados na areia;

 

·         A exclusiva oportunidade de reunir o bem-viver estilo Primeiro Mundo com o privilégio de ter a praia como extensão de seu jardim.’

 

O Beach Village congrega vários aspectos da relação ideológica que os agentes do mercado imobiliário estabelecem com a natureza como, por exemplo, a apropriação dos bens coletivos nas propriedades particulares, a natureza e a praia como jardins particulares; a idéia da segregação espacial em função da presença deste recurso cada vez mais raro – a natureza; a romantização da natureza e a valorização do mito da natureza paradisíaca e intocada, negando toda a construção social da natureza ao longo da história humana.

 

Considerações Finais

 

O estudo sobre a apropriação da natureza na cidade por empreendimentos imobiliários – condomínios e loteamentos – confirma a idéia de Santos (1999: 53), onde “no princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que a partir de um conjunto de intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma em um verdadeiro sistema de objetos e não mais de coisas e, ironicamente, é o próprio movimento ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza, dando a esta última um valor”.

 

Em Florianópolis a presença material/física da natureza – água e vegetação – é o atrativo natural usado para a atrair moradores de alta renda e, desta forma, movimentar o mercado imobiliário da cidade. Na região central, onde a presença de áreas verdes fica restrita às praças e aos jardins (a arborização nas ruas é praticamente nula), não há empecilhos para que alguns empreendimentos utilizem a natureza apenas como idéia/símbolo no nome do empreendimento.

 

No centro da capital catarinense, encontra-se o Condomínio Mata Atlântica, que sua como slogan à frase: ‘Viva sua vida próximo do que há de mais belo’. Além da idéia de natureza no nome do empreendimento, ele busca vender a idéia de segurança, conforto e tranqüilidade – ‘equilíbrio prefeito entre a tranqüilidade e a comodidade de se estar próximo dos lugares mais importantes para se viver, este empreendimento foi criado para garantir conforto para toda família no centro de Florianópolis’.

Após a análise de alguns empreendimentos imobiliários na Ilha de Santa Catarina, cabe mencionar que o município de Florianópolis não conta com um Plano Diretor Municipal, mas dois planos – um para o distrito sede e outro para 11 balneários – e que na realidade se constituem apenas numa lei de zoneamento e não apresentam diretrizes urbanísticas e sociais para a cidade de maneira integrada.

 

Outra coincidência: apenas os bairros que sofrem acelerado processo de urbanização e grande especulação imobiliária é que possuem este documento normativo, auto-proclamados Planos Diretores de Bairros, como por exemplo a área do Campeche, no sudeste da Ilha, que hoje conta como 8.752 habitantes (IBGE: 2000), mas que está sendo ‘planejado’, ou melhor, loteado para receber 500.000 pessoas (todo o município de Florianópolis atualmente conta com 340.000 habitantes); e Jurerê Internacional. Sobre este último, o presidente do IPUF, Carlos Alberto Riederer, declarou em entrevista ao Jornal Diário Catarinense (27/04/2004) que a área de Jurerê Internacional é um aspecto positivo do planejamento e que deveria ser estendido para toda a cidade. Desta forma, assiste-se em Jurerê Internacional não apenas a materialização de uma utilização mercantil da natureza como forma de valorização imobiliária, mas também a ratificação da ideologia da segregação espacial, configurando-se num loteamento exclusivo para as classes de alto poder aquisitivo.

 

Alguns indicativos presentes mostram que o crescimento urbano de Florianópolis chegou ao seu limite, em função:

 

·       Da falta de infra-estrutura básica (água, energia elétrica, vias de circulação);

 

·        Da falta de opções culturais, e o lazer se restringindo às praias no verão;

 

do super aquecimento do mercado imobiliário e da elevação absurda dos preços dos imóveis, empurrando a classe média e os pobres para os municípios do continente – São José, Palhoça, etc.

 

·          Da falta de espaço para o crescimento urbano, pois 80% do município estão protegidos da ocupação urbana, por se configurarem em áreas de proteção ambiental (APP), enquanto áreas de expansão urbana e os 20% restante já estão urbanizados e grandes parte verticalizados. Assim, a área urbana só poderá aumentar horizonte através da construção de aterros na linha costa ou da ocupação irregular das APPs. No caso do plano de expansão do Bairro Campeche, cabe ressaltar que o mesmo se encontra na cabeceira do aeroporto de Florianópolis, o que, segundo a legislação urbana, impede o seu adensamento populacional, além de se configurar numa área de risco e com forte poluição sonora.

 

A idéia do crescimento urbano, associada com valorização da natureza e da qualidade de vida, não está atrelada, infelizmente, às fortes tradições culturais dos moradores da ilha – pescadores e brasileiros de origem açoriana (os manezinhos). A especulação imobiliária, além de se apropriar de natureza ainda presente em certos recantos da ilha, está destruindo a cultura local, vista como algo ultrapassado e fora de moda.

 

Entretanto, o senso comum e os agentes do mercado imobiliário ainda buscam impor um crescimento acelerado da população da ilha, a qual se configuraria num grande resort urbano para população de alta renda, enquanto os pobres seriam expulsos para o continente. É esta a forma encontrada pelo poder público de Santa Catarina e de Florianópolis, bem como pelo capital imobiliário, para transformar a cidade numa ilha de modernidade, em uma metrópole cosmopolita.

 

 

Bibliografía

 

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© Copyright Wendel Henrique, 2005

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Ficha bibliográfica:

HENRIQUE, W. Florianópolis/Brasil – a felicidade não tem preço, tem endereço: condomínios, loteamentos e a apropriação da natureza. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (14). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-14.htm> [ISSN: 1138-9788]

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