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RELAÇÕES
ENTRE O FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA CIDADE DE SÃO
PAULO: CASOS DE SEGREGAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO ESPACIAIS
Adriano Botelho
Aluno de Doutorado –
Departamento de Geografia - USP – SP
Bolsista FAPESP –
02/00915-4
E-mail: abot@usp.br
Relações entre o financiamento imobiliário e a produção do espaço na cidade de são paulo: casos de segregação e fragmentação espaciais (Resumo)
A análise das relações entre o setor imobiliário e o mercado financeiro
pode contribuir para a compreensão de intensificação da fragmentação do espaço
urbano e para o entendimento da complexificação do processo de segregação sócio-espacial.
Dessa forma, são discutidos três casos de empreendimentos imobiliários na
cidade de São Paulo - Fundos de Investimentos Imobiliários [FII’s] e
Certificados de Recebíveis Imobiliários [CRI’s]; cooperativas
(autofinanciamento); e provisão estatal de moradia através de Companhias
Habitacionais -, sendo que cada um deles possui distintas fontes de
financiamento e relações com o setor financeiro. O estudo de cada caso,
destacando-se a sua localização no urbano e as características do mercado
a que se destina, revela importantes elementos do processo de hierarquização,
fragmentação e segregação no espaço da metrópole paulistana.
Palavras-chave: setor imobiliário, financiamento,
espaço, fragmentação, segregação.
Relationships
between real estate financing and the production of space in the city of
The
analysis of the relationships between the real estate business and the
financial market can contribute to the comprehension of the fragmentation of
the urban space and to the understanding of the social-spatial segregation
process. Three cases of real estate enterprises in the city of São Paulo are
discussed – Real Estate Investment Shares and Mortgage Securitization; housing
cooperatives (self-financing); and the public assistance of dwelling by the
Housing Companies -, considering that each one of them has distinct sources of
financing and different relationships with the financial market. The study of
each case, focusing on its urban location and the characteristics of its target
market, reveals important elements of the hierarchization,
fragmentation and segregation process in the metropolis of São Paulo.
Keywords:
real estate,
financing, space, fragmentation, segregation.
Introdução
O
presente artigo tem como tema as relações entre o setor imobiliário e o capital
financeiro e algumas de suas conseqüências para o espaço urbano. Para tanto,
pesquisaram-se algumas formas de financiamento dos empreendimentos imobiliários
na cidade de São Paulo, buscando, além das relações do setor imobiliário com o
setor financeiro, analisar como as essas diferentes formas de financiamento se
articulam com as classes ou frações de classes sociais, produzindo um espaço
diferenciado e segregado na cidade. Vale lembrar que o capital financeiro, em
sentido amplo, é um elemento dominante nas novas estratégias de reprodução
capitalistas que configurariam o momento histórico contemporâneo, como bem
assinalou Harvey (1993), Hirst & Thompson (1998), Chesnais (1997), Swary
& Topf (1993), Belluzo (1997) entre outros.
O setor imobiliário possui,
além das contradições comuns à própria produção capitalista (capital e
trabalho), algumas contradições próprias e particulares: a questão da
propriedade fundiária e da renda da terra urbana que permeia o movimento de
reprodução do capital no setor; e a necessidade de um capital de giro exterior
ao setor que possibilite a rotação dos capitais aí investidos (Topalov, 1979),
dado que há grande necessidade de recursos para a compra de materiais, quase
sempre bens intermediários duráveis, para o pagamento da força de trabalho
(parte dela qualificada, como engenheiros), para a adequação às inovações
tecnológicas (particularmente sensível na construção de imóveis comerciais), e
para o acesso ao solo urbano (como visto anteriormente, a renda da terra é um
elemento fundamental a ser levado em conta). Esses fatores têm por conseqüência
que o aporte inicial de capital para a construção capitalista de imóveis seja
elevado, superando muitas vezes a capacidade de investimento dos empresários do
setor. Por outro lado, a demanda desse setor se encontra fragmentada entre os
diversos usos a que se destina a produção imobiliária e às diversas faixas de
renda da população que procura um imóvel para morar, o que exige também a
existência de um capital externo para o financiamento dos compradores.
A
propriedade fundiária e o pagamento de uma renda para o seu uso aos seus
proprietários cria uma barreira ao livre acesso do capital do setor imobiliário
ao solo, e também contribui para hierarquizar os lugares através do preço pago
para se ter acesso a determinada localização no interior do urbano, na forma de
aluguéis ou do preço do terreno. Com a união entre o setor imobiliário e o capital
financeiro, o poder deste setor frente à propriedade fundiária pode ser
potencializado e a barreira colocada pela propriedade ao acesso dos
capitalistas ao solo pode ser levantada. Mas é bom lembrar que são alguns
sub-setores do setor imobiliário que possuem maior poder de atração do capital
imobiliário, principalmente os ligados a empreendimentos residenciais de alto
padrão, edifícios de escritórios e centros comerciais para as classes mais
abastadas.
Por
sua vez, o capital de giro externo ao setor é obtido através do financiamento
bancário direto ao produtor e/ou consumidor final ou através de hipotecas, bem
como através de novas formas de obtenção de recursos para o setor, como a
criação dos fundos de investimento imobiliários (FII’s), da securitização de
recebíveis imobiliários (CRI’s), do autofinanciamento através das cooperativas
habitacionais ou consórcios imobiliários etc.
As formas mais sofisticadas de mobilização do capital financeiro – que garantem a superação da barreira colocada pela propriedade fundiária e garantem os recursos para a produção capitalista no setor imobiliário - não são acessíveis às camadas da população de menor renda, ou seja, à grande maioria desta, potencializando-se, então, a segregação sócio-espacial e a fragmentação do espaço urbano, já que as parcelas do mercado imobiliário com ligações mais intensas com o setor financeiro podem apropriar-se das áreas mais valorizadas da cidade, áreas que possuem melhores condições de infra-estrutura e de equipamentos urbanos, relegando a maioria da população às áreas distantes (periferia), em geral desassistidas desses recursos.
O Sistema de
Financiamento Imobiliário (SFI): os Fundos de Investimento Imobiliário e os
Certificados de Recebíveis Imobiliários
A despeito
de uma série de alternativas encontradas ao logo do tempo para a obtenção de
financiamento extra-bancário por parte do setor imobiliário (caixas de
aposentadorias, cooperativas habitacionais, consórcios imobiliários etc.),
muitas vezes competiu ao Estado subsidiar parte da produção de moradias,
através da produção direta, do financiamento aos construtores e promotores
imobiliários ou da concessão de créditos acessíveis aos mais pobres e para as
camadas de rendimentos médios da população para a compra de moradias. Esse foi o
caso do Brasil entre 1964 até 1986, quando e Estado articulou os elementos
necessários à obtenção de recursos para o financiamento habitacional (produção
e consumo), através de criação do Sistema de Financiamento Habitacional e do
Banco Nacional da Habitação (BNH, 1964). Os recursos para o SFH eram
provenientes, principalmente de uma contribuição compulsória de empresários e
trabalhadores, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), instituído em
1967, e da caderneta de poupança, que conformaria o Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimos (SBPE), responsável pelo financiamento de imóveis para a
população de rendimentos médios.
A
criação do SFH e do BNH não conseguiu atender às necessidades habitacionais das
camadas mais pobres da população, sendo mesmo questionável se era esse o
propósito real dessas instituições, já que grande parte do financiamento de
moradias destinou-se aos estratos de rendimento médio e alto da população, de
acordo com o interesse das empresas do ramo da construção civil. O BNH, porém,
produziu mudanças radicais no sistema financeiro público e privado, bem como
propiciou a modernização e concentração das empresas do ramo de construção
civil, visando sempre a acumulação capitalista mais do que o atendimento ao
problema habitacional.
As ações regulatória e
produtiva do Estado entraram em colapso na década de 1980, devido ao
descontrole inflacionário do período e ao escasseamento das fontes de recursos
do sistema, o que comprometeu a capacidade de financiamento do setor
habitacional a partir dessa década. Com o colapso final desse sistema em
1986 (representado pela extinção do BNH), se inicia um tortuoso processo de
reestruturação do financiamento do setor habitacional. O Governo Federal
manteve seu controle sobre o financiamento ao setor habitacional ao centralizar
os recursos financeiros necessários ao setor na figura da Caixa Econômica
Federal (CEF) e pela função regulatória que exerce sobre os dois subsistemas do
SFH (FGTS e SBPE), principalmente no que se refere à definição das taxas de
remuneração dos recursos captados (Castro, 1999).
Em 1997, foi criada a Lei
9.514, aprovada pelo Congresso Nacional a partir de proposta de lei da
Associação Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliário (ABECIP), que
estabeleceu o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), sistema de financiamento
complementar ao SFH. Foram então realizadas inovações no financiamento
imobiliário nacional, com a criação de instrumentos de securitização
imobiliária, ou seja, que possibilitam a transformação de bens imóveis em
títulos mobiliários, como os Fundos de Investimento Imobiliários (FII’s) e os
Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI’s). A lei que criou o SFI
introduziu também um novo veículo legal denominado Companhia Securitizadora de
Créditos Imobiliários, sociedades com propósitos de fazer a securitização dos
recebíveis imobiliários através da emissão dos CRI’s, títulos imobiliários
equivalentes a debêntures.
São inovações que
buscam articular o setor imobiliário com o mercado financeiro, estabelecendo um
processo de desintermediação bancária para o financiamento da produção, ao
mesmo tempo em que oferecem possibilidades de ganhos financeiros aos
investidores. A partir de 2002 alguns FII’s passaram a ser negociados na Bolsa
de Valores do Estado de São Paulo, representando um marco na integração do
setor imobiliário com o mercado financeiro.
Ambos são formas de securitização1
de ativos imobiliários, cujo sentido é a conversão de
ativos de pouca liquidez em títulos mobiliários de grande liquidez, passíveis
de serem absorvidos pelo mercado financeiro. Esses ativos possuem como lastro
os imóveis que foram securitizados, tendo suas receitas baseadas nos
fluxos de caixa proveniente, seja de juros sobre empréstimos, seja de outros
recebíveis (Vendrossi, 2002).
O mecanismo da
securitização amplia as possibilidades de captação de recursos e acesso a
financiamento aos originadores desses créditos (as empresas que produzem
os ativos a serem securitizados, como as incorporadoras, construtoras etc.),
dando acesso direto ao mercado de capitais, reduzindo, teoricamente, os custos
e riscos da captação. Também a securitização possibilita um giro maior do
capital das empresas, que receberiam dos investidores os recursos e repassariam
para estes seus créditos representados pelos ativos. Por exemplo, uma
incorporadora, após vender as unidades de um edifício por ela construído, pode
securitizar as dívidas dos adquirentes e vendê-las no mercado. Receberia,
assim, de volta, o capital utilizado para financiar os compradores, e poderia
reinvestir esse capital em outra atividade ou outro empreendimento. Os
investidores, que compraram os títulos, por sua vez, passariam a receber os
juros e a amortização das dívidas diretamente dos adquirentes. Dessa forma, a
incorporadora não necessita esperar o vencimento da dívida dos mutuários, pode
acelerar o tempo de rotação do capital imobilizado.
OS FII’s foram
criados em junho de 1993, pela Lei 8.668, e regulamentados pela Comissão de
Valores Mobiliários (CVM) em janeiro do ano seguinte, ano em que foi lançado o
primeiro FII, o Memorial Office Building, na cidade de São Paulo.
Atualmente já estão em funcionamento cerca de 60 fundos, com um patrimônio de
cerca de R$ 1,4 bilhão, movimentando, por ano, cerca de R$ 600 milhões. Até
1999, os principais investidores nos FII’s eram os grandes fundos de pensão e
investidores institucionais. Somente a partir desse ano é que se buscou atrair
os pequenos e médios investidores, com o lançamento de fundos com cotas de
valor unitário mais baixo.
Os projetos que são
alvo dos FII’s são variados, desde shopping centers
e parques temáticos a hospitais, de edifícios de escritórios e galpões
industriais a conjuntos habitacionais e condomínios residenciais de alto
padrão. No Brasil, as grandes “estrelas” dos FII’s são os shoppings centers
(como o Shopping Pátio Higienópolis
Já os Certificados
de Recebíveis Imobiliários (CRI’s) foram criados com a lei 9.514 de 1997, que
criou o SFI. Segundo essa lei, “o Certificado de Recebíveis Imobiliários –
CRI é um título de crédito nominativo, de livre negociação, lastreado em
créditos imobiliários e constitui promessa de pagamento em dinheiro”. De
forma equivalente a uma debênture, o CRI pode ser colocado no mercado através
de uma emissão pública (títulos postos à venda junto ao mercado, sem
necessidade de destino específico) ou de uma emissão privada (específica para
determinados investidores já acertados). Além de ser fonte de financiamentos,
os CRI’s podem, com a formação de um mercado secundário de negociação desses
créditos, se transformarem em uma nova fonte de ganhos com especulação com
papéis, elemento fundamental da nova configuração do capitalismo contemporâneo,
onde o circuito financeiro ganha importância. Baseando-se em dados da Comissão
de Valores Mobiliários (CVM), estima-se que foram emitidas, até 2002, cerca de
R$ 340 milhões em CRI’s (Vendrossi, 2002). Desse total, 50 por cento
corresponderiam a operações relativas ao mercado de imóveis residenciais.
Através de uma série
de procedimentos e de regulamentações busca-se um sistema em que os riscos são
minimizados para os investidores através da criação de elementos de controle
independentes, além da obrigatoriedade de análise de risco da carteira de
imóveis securitizados por agências especializadas em risco.
Trata-se de um
mercado financeiro-imobiliário ainda pequeno no país e cujo desenvolvimento
depende da política macroeconômica relativa à taxa de juros, de incentivos
fiscais e deduções de impostos, da resolução de alguns impasses jurídicos, do desinteresse
dos grandes bancos em entrar nesse mercado, bem como de uma maior aceitação de
seu formato pelos investidores. Mas é o caminho que o setor da produção
imobiliária no Brasil, através de seus representantes de classe, vê como a
saída para a captação de recursos para o setor no futuro.
Em levantamento
realizado junto à Comissão de Valores Mobiliários e empresas ligadas à emissão
desses papéis, pôde-se perceber que a grande maioria dos FII’S e dos CRI’s
lançados na cidade de São Paulo a partir de 1994 concentram-se no chamado
“vetor sudoeste”, área que engloba as áreas mais valorizadas da cidade ou em
forte processo de valorização (como as áreas da Av. Paulista, Av. Faria Lima,
Av. Eng. Luis Carlos Berrini, Av. das Nações Unidas etc.). De 46 FII’s existentes
em 2004, 36 encontram-se nesse setor. E dos 40 CRI’s consultados, 24 estão
situados no chamado “vetor sudoeste”. Ou seja, a percepção dos agentes de que a
localização dos empreendimentos é fundamental para seu maior retorno faz com
que seus interesses se voltem para as áreas mais valorizadas das cidades. Dessa
forma, por tratarem-se de empreendimentos de mercado, voltados para as camadas
de rendimentos mais altos da população, acentuam o caráter de fragmentação e
hierarquização do espaço urbano, ao concentrarem seus investimentos em áreas já
valorizadas, aumentado a distância sócio-econômica e estética que separa essas
áreas do restante da cidade. E o poder de intervenção das empresas do setor
imobiliário no espaço se amplia com a aliança com o setor financeiro,
garantindo recursos necessários tanto para a superação da barreira colocada
pelos altos preços da terra urbana aos empreendedores imobiliários quanto para
a aceleração do tempo de rotação do capital no setor da construção. Por outro
lado, complexifica-se a questão da segregação sócio-espacial, pois os
empreendimentos em questão (principalmente os grandes condomínios residenciais
e centros empresariais) muitas vezes encontram-se isolados de seu entorno,
formado por áreas pobres ou de favelas, tornando-se verdadeiras fortalezas
muradas e dependentes de um forte aparato de segurança para garantir a
tranqüilidade de seus moradores, como é o caso do Bairro Panamby.
O
autofinanciamento da classe média: as cooperativas habitacionais
Observou-se na Região
Metropolitana de São Paulo a explosão do autofinanciamento2
da produção habitacional de mercado a partir da
segunda metade dos anos 90 (Castro, 1999). O autofinanciamento atendeu os
excluídos dos mercados tradicionais de financiamento através do SFH, em
especial a parcela da população com renda entre oito e quinze salários mínimos,
que possuísse condições de investir parte de sua renda mensal em uma casa
própria, antecipando os recursos à produção e dispensando o concurso de
intermediação financeira.
Com a estabilização
da economia decorrente do Plano Real (1992), os planos de autofinanciamento permitiram
que as camadas de renda média e média-baixa financiassem com recursos próprios
a produção habitacional, particularmente por meio de cooperativas habitacionais
organizadas por empresas de assessoria técnica. O autofinanciamento foi uma
alternativa de recuperação do nível de atividades do setor habitacional,
aumentando sua participação na ofertas de novas moradias, sobretudo a partir de
1996.
Quando da criação do
SFH, em
Entre 1964 e 1984
foram concedidos 487.471 financiamentos através de cooperativas habitacionais,
correspondendo a 11,2 por cento do total contratado pelo SFH (Castro, 1999).
Com a crise do financiamento público, o cooperativismo habitacional refluiu ao
longo da década de 1980. Com a Constituição de 1988, as cooperativas habitacionais
conquistaram sua autonomia frente ao Estado e frente às suas fontes de
financiamento, deixando de estar incluídas entre as instituições integrantes do
SFH após a nova regulamentação efetuada pelo Banco Central em 1993. Não
puderam, a partir de então, contar com recursos do FGTS para novas
contratações, mas, por outro lado, deixaram de estar sob o controle e a
fiscalização do Estado como agente financeiro.
Dessa forma, a
inexistência de mecanismos de fiscalização e controle externos foi certamente
um dos fatores que atraiu a atenção dos promotores imobiliários sobre esta
forma jurídica de associação, o que garantiria a flexibilidade de que
precisavam esses agentes para captar e investir capitais livremente na produção
habitacional, sem enfrentar riscos.
Embora existam
alguns sindicatos de trabalhadores que atuam como promotores imobiliários sem
interesses lucrativos, a grande maioria dos lançamentos de imóveis por
cooperativas a partir da década de 1990 foi realizada por empresas de
assessoria técnica do setor imobiliário, que reuniam e associavam os
interessados em participar dos empreendimentos. Embora não pudessem legalmente
obter lucro, essas assessorias desenvolveram formas de se apropriarem da renda
do solo, dos ganhos decorrentes da produção e circulação das unidades
construídas.
As empresas de
assessoria técnica atuam na mesma faixa de mercado dos planos de
autofinanciamento das construtoras e incorporadoras, mas focalizam sua produção
em produtos mais populares, assumindo a liderança no número de lançamentos
entre 1996 e 1997. Essas empresas recebem, em média, uma taxa de administração
entre 5 e 15 por cento do valor global do empreendimento, mas as funções de
planejamento e gestão, centrais no processo, abrem espaços para que se
apropriem dos resultados, tanto dos processos de compra e mudança do uso do
solo, como da contratação e controle da produção das construtoras e da
administração financeira (Castro, 1999). Como essas empresas atuam desde a
concepção do empreendimento até a sua conclusão, elas estão em uma posição
privilegiada para apropriação dos ganhos que ocorrem durante o empreendimento.
Entre 1992 e 1997,
Castro (1999) observou a atuação de 60 cooperativas habitacionais do estado de
São Paulo, além das classistas. Delas, 27 lançaram empreendimentos com até 500
unidades habitacionais, 15 com até mil unidades e as 18 maiores desenvolveram
empreendimentos que abarcam até 4 mil unidades habitacionais, como a Paulicoop
Planejamento e Assessoria a Cooperativas Habitacionais que lançou, em apenas
cinco anos de atividades, aproximadamente 15 mil unidades habitacionais. Em
pesquisa realizada junto à Embraesp (Empresa Brasileira de Análise de
Patrimônio), observou-se que entre 1998 e 2003, outros 35 empreendimentos
ligados à cooperativas foram lançados na região da Grande São Paulo,
totalizando 6.575 unidades.
Os empreendimentos
espalharam-se inicialmente pelos municípios vizinhos a São Paulo, onde são, em
geral, maiores que os encontrados na capital paulista. Em consulta realizada
junto à Embraesp verificou-se que entre janeiro de 1993 e agosto de 2003, de
200 empreendimentos construídos sob a forma de cooperativa na RMSP, 115, ou
seja, 57,5 por cento situavam-se nos municípios vizinhos a São Paulo. Outros 58
(29 por cento) situavam-se em áreas da periferia consolidada ou antigas áreas
industriais e somente 27 (13,5 por cento) situavam-se no chamado “vetor
sudoeste”, mas não nas áreas mais nobres deste vetor de valorização imobiliária
do município.
Como resultado
espacial do desenvolvimento dos planos de autofinanciamento por cooperativas
organizados pelas empresas de assessoria técnica, temos a produção de
empreendimentos residenciais verticais de grande porte que intensificaram a
verticalização da periferia, redefinindo os espaços de moradia e barateando o
seu preço para as parcelas da população de renda média-baixa e média. Trata-se
de antigas áreas industriais que apresentam grandes terrenos disponíveis para a
reconversão do uso para fins de moradia. Dado o menor poder aquisitivo dos
cooperados e a escassez de recursos próprios das empresas de assessoria, a
solução encontrada é justamente a construção em áreas de menor valor
imobiliário, mais distantes dos centros da cidade, algumas vezes rodeadas por
indústrias remanescentes e com problemas de poluição e contaminação do solo,
devido às atividades industriais anteriores.
As cooperativas são
soluções encontradas pelos agentes imobiliários para a promoção habitacional
destinada a uma faixa de renda da população que possui condições de pagar por
um imóvel, mas que não é atendida pelo Estado, tendo em vista a inoperância do
SFH e seus altos custos para o consumidor, e pelo mercado imobiliário
tradicional, voltado para as camadas de rendas mais altas da população, o que
garante maior retorno para os promotores imobiliários. Como em geral trata-se
de empreendimentos localizados na RMSP, e na periferia consolidada da cidade de
São Paulo, intensifica-se a hierarquização e a fragmentação do espaço, bem como
a segregação por parte dos mais ricos com relação à classe média empobrecida,
que passa a concentrar-se nessas áreas menos valorizadas, e que perde a
capacidade de residir nas áreas mais nobres da cidade, o que antes era possível
devido à possibilidade de financiamentos subsidiados por parte do SFH.
A promoção estatal
A provisão
habitacional para a população de menores rendimentos está a cargo, no caso do
município de São Paulo, de duas companhias habitacionais, uma de âmbito
estadual, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e outra
de âmbito metropolitano, ligada à prefeitura do município de São Paulo, a
Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab-Sp). Embora tenham surgido para
promover o direito à moradia para a população mais pobre e incapaz de obter
algum tipo de financiamento segundo as leis de mercado (renda abaixo de três
salários mínimos), ao longo da vigência do binômio BNH-SFH tais companhias
acabaram por atender uma camada de renda superior à dos seus objetivos
originais, dada a exigência de retorno financeiro de mercado de seus
empreendimentos (Azevedo & Andrade, 1982).
Porém, quando se
fala em provisão estatal de moradias, isso não significa que o Estado seja o
efetivo produtor destas. A partir do estabelecimento do SFH, desenhou-se um
complexo quadro de relações entre o Estado e o setor privado. Ao primeiro cabia
ditar as regras do jogo, estabelecendo as formas de acesso às habitação através
de decisões sobre as exigências de renda familiar, prazos, juros e sistemas de
amortização,competindo-lhe ainda regular o mercado, credenciando instituições
para atuar como seus agentes e determinando os índices de remuneração da
poupança voluntária (Azevedo & Andrade, 1982). O setor privado seria o
provedor das habitações, tanto para as Companhias Habitacionais como para o
mercado irrigado pelos recursos da poupança voluntária regulada pelo Estado.
A partir do fim do
BNH em 1986, as diversas companhias habitacionais tiveram de enfrentar a
reestruturação do financiamento habitacional, diversificando suas fontes de
recursos. No caso de São Paulo, tanto a companhia habitacional estadual quanto
à ligada à gestão municipal/metropolitana tiveram de
adaptar-se aos novos tempos.
A CDHU, companhia
estadual, atua tanto em municípios do interior quanto na Região Metropolitana
de São Paulo. Suas origens encontram-se na CECAP, criada em 1949. Tendo passado
por transformações ao longo de quarenta anos, em
Tendo uma fonte
estável de recursos, a CDHU pôde transformar-se num dos maiores agentes
promotores para a indústria da construção civil, sendo que entre janeiro de
1990 e fevereiro de 2004, 270.353 unidades foram entregues no estado, e dentre
estas, apenas 60.081 foram entregues na cidade de São Paulo, uma das áreas mais
carentes em termos habitacionais, o que revela que a atuação prioritária dessa
companhia é o interior do estado, que rende maiores dividendos políticos aos
governos estaduais, além de ser uma área de terrenos relativamente mais
baratos. Por outro lado, em pesquisa realizada junto à CDHU, constatou-se que a
grande parte das unidades entregues
A Cohab-SP tem como
fontes de financiamento os recursos orçamentários e do Fundo Municipal de
Habitação (FMH), criado em 1994, que conta principalmente com recursos
provenientes do orçamento do município, programas de financiamento no âmbito da
Caixa Econômica Federal, destacando-se o PAR, o Programa de Arrendamento
Residencial, que utiliza recursos do orçamento Geral da União e recursos do
FGTS; e convênios com a CDHU. Possui atuação basicamente em duas frentes: a
produção de moradias através do modelo de mutirão/autogestão e do modelo mais
tradicional realizado por empreiteiras, com privilégio dado ao modelo
mutirão/autogestão na última administração municipal. Este se mostrou como um
modelo mais econômico e mais bem gerenciado, além de propiciar uma importante
participação da população moradora tanto no projeto arquitetônico, quanto no
gerenciamento financeiro e administrativo da obra e na execução desta.
Apesar de sua
expressiva produção esta foi insuficiente para o atendimento do déficit
habitacional da cidade.
E outro grave
problema é a localização desses empreendimentos, seja o mutirão/autogestão,
seja o grande conjunto habitacional: a sua grande maioria está localizada na
periferia distante da cidade - apesar de iniciativas de provisão habitacional
na área do centro histórico e em suas proximidades -, com piores condições de
infra-estrutura e equipamentos urbanos, distante dos empregos das áreas
centrais da cidade e dos principais mercados de consumo. Trata-se de uma
herança de políticas passadas - já que houve iniciativas da gestão 2001-2004 de
prover moradias em áreas mais centrais - e de uma prática que privilegia o
baixo custo do solo em detrimento da localização da moradia com relação ao
acesso às positividades do urbano.
Agrava-se, assim, o
problema da segregação sócio-espacial, e a maior parte da população mais pobre
que consegue acesso à moradia estatal é privada de outros serviços essenciais à
sua reprodução social. É bom lembrar que além dessa parcela, há a imensa
maioria da população vivendo em áreas de autoconstrução em loteamentos irregulares,
moradores de favelas e cortiços, uns privados de forma mais severa de
infra-estrutura e serviços urbanos, outros, do acesso a uma moradia digna.
Considerações
Finais
A grande dependência
da produção habitacional com relação ao financiamento é um fator que incentiva
a segmentação do mercado habitacional, com efeitos sobre o urbano.
A sofisticação da
captação de recursos é um elemento que amplia o poder dos grandes capitais do
setor que atendem à população de maiores rendimentos, possibilitando sua
atuação nas áreas mais valorizadas da cidade, e excluindo, pelo jogo do
mercado, os setores de renda mais baixos. A solução do autofinanciamento por
parte da classe média através de consórcios e cooperativas habitacionais
acentua a fragmentação e hierarquização do espaço urbano, pois como visto, os
empreendimentos construídos através dessa modalidade estão fora das áreas mais
valorizadas, na chamada periferia consolidada ou mesmo na RMSP. Essa talvez
tenha sido o setor de renda mais afetado pelo colapso do SFH, já que havia sido
grande beneficiária do sistema para a compra da casa própria num contexto de
alta inflação, possibilitando, durante a sua vigência, uma maior integração
dessa camada da sociedade nas áreas melhor providas de infra-estrutura e equipamentos
urbanos. Ou seja, cria-se uma situação de polarização de classes no urbano, na
medida em que o acesso às melhores áreas da cidade se torna cada vez mais
exclusivo.
Já a camada de
rendimentos mais baixos que consegue ser atendida pela provisão estatal paga o
preço da segregação sócio-espacial. Tal fato se deve à lógica de mercado que
permeou e ainda permeia tanto os agentes de financiamento quanto os agentes de
provisão pública, num contexto de economia de mercado em que a propriedade da
terra atua como fator limitante à aquisição da moradia em locais de melhores
condições de infra-estrutura e serviços urbanos. E essa lógica também é
responsável pela ineficiência em termos de minimização do déficit habitacional,
já que a definição da necessidade de autofinanciamento das companhias
habitacionais para custear a provisão de novas moradias acabou por restringir a
oferta destas e selecionar a demanda em um nível superior de renda àquele para
o atendimento do qual as companhias foram criadas (até 3 salários mínimos) como
forma de evitar a inadimplência por parte dos mutuários. Historicamente a ação
do Estado visou muito mais à dinamização do setor da construção civil do que o
real atendimento das necessidades da população de menores rendimentos.
O momento atual é de reestruturação das formas de financiamento habitacional. As soluções de mercado atendem apenas a uma minoria da população e o laissez-faire das condições de mercado acentuam as divisões no interior do urbano. A atuação das companhias habitacionais, embora em alguns casos conscientes de suas limitações e buscando melhorar sua eficiência e seus critérios de eqüidade (como é o caso da Cohab-SP entre 2001 e 2004), acaba por reproduzir a dinâmica de segregação dos mais pobres nas periferias distantes e mal-equipadas. E, finalmente, a grande maioria da população, o estrato mais baixo da economia urbana, que não é atendida pelos programas estatais, busca soluções de moradia nos loteamentos irregulares autoconstruídos, nas favelas e nos cortiços. Esses elementos contribuem para a produção de um espaço na cidade de São Paulo marcado pela fragmentação e hierarquização do espaço, bem como pela segregação sócio-espacial daí decorrente.
Notas
1
Vendrossi (2002, p. 21) define securitização como a “emissão de títulos
mobiliários com vínculo em um determinado ativo”. Para um estudo mais
detalhado da securitização de recebíveis imobiliários, ver Vendrossi (2002).
2 Por autofinanciamento entende-se a modalidade de
construção e venda de imóveis caracterizada pelo co-financiamento entre
imobiliárias, incorporadores, construtoras e compradores de imóveis que
integralizam parte expressiva ou a totalidade do capital necessário para a
construção habitacional (Castelo, 1997).
3 Segundo
o Artigo 3 desse decreto, as cooperativas habitacionais seriam: “Organizações
mutualistas, de tipo fechado, sem fins de lucro, com número pré-fixado de
associados, constituídas apenas de trabalhadores sindicalizados (ou filiados às
associações de classe definidas na Lei nº 1.134/1950), tendo como objetivo
exclusivo a realização de um plano habitacional para atendimento de seus
associados, através de um sistema de poupança e amortização” (Castro, 1999, p.
90).
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© Copyright Adriano Botelho, 2005
© Copyright Scripta
Nova, 2005
Ficha bibliográfica:
BOTELHO, A. Relações entre o financiamento imobiliário e a produção do espaço na
cidade de São Paulo: casos de segregação e fragmentação espaciais. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y
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2005, vol. IX, núm. 194 (18). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-18.htm>
[ISSN: 1138-9788]
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