Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (18), 1 de agosto de 2005

RELAÇÕES ENTRE O FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA CIDADE DE SÃO PAULO: CASOS DE SEGREGAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO ESPACIAIS

Adriano Botelho

Aluno de Doutorado – Departamento de Geografia - USP – SP

Bolsista FAPESP – 02/00915-4

E-mail: abot@usp.br

 


Relações entre o financiamento imobiliário e a produção do espaço na cidade de são paulo: casos de segregação e fragmentação espaciais (Resumo)

A análise das relações entre o setor imobiliário e o mercado financeiro pode contribuir para a compreensão de intensificação da fragmentação do espaço urbano e para o entendimento da complexificação do processo de segregação sócio-espacial. Dessa forma, são discutidos três casos de empreendimentos imobiliários na cidade de São Paulo - Fundos de Investimentos Imobiliários [FII’s] e Certificados de Recebíveis Imobiliários [CRI’s]; cooperativas (autofinanciamento); e provisão estatal de moradia através de Companhias Habitacionais -, sendo que cada um deles possui distintas fontes de financiamento e relações com o setor financeiro. O estudo de cada caso, destacando-se a sua  localização no urbano e as características do mercado a que se destina, revela importantes elementos do processo de hierarquização, fragmentação e segregação no espaço da metrópole paulistana. 

 

Palavras-chave: setor imobiliário, financiamento, espaço, fragmentação, segregação.


Relationships between real estate financing and the production of space in the city of são paulo: spatial cases of segregation and fragmentation (Abstract)

The analysis of the relationships between the real estate business and the financial market can contribute to the comprehension of the fragmentation of the urban space and to the understanding of the social-spatial segregation process. Three cases of real estate enterprises in the city of São Paulo are discussed – Real Estate Investment Shares and Mortgage Securitization; housing cooperatives (self-financing); and the public assistance of dwelling by the Housing Companies -, considering that each one of them has distinct sources of financing and different relationships with the financial market. The study of each case, focusing on its urban location and the characteristics of its target market, reveals important elements of the hierarchization, fragmentation and segregation process in the metropolis of São Paulo.

Keywords: real estate, financing, space, fragmentation, segregation.


Introdução

O presente artigo tem como tema as relações entre o setor imobiliário e o capital financeiro e algumas de suas conseqüências para o espaço urbano. Para tanto, pesquisaram-se algumas formas de financiamento dos empreendimentos imobiliários na cidade de São Paulo, buscando, além das relações do setor imobiliário com o setor financeiro, analisar como as essas diferentes formas de financiamento se articulam com as classes ou frações de classes sociais, produzindo um espaço diferenciado e segregado na cidade. Vale lembrar que o capital financeiro, em sentido amplo, é um elemento dominante nas novas estratégias de reprodução capitalistas que configurariam o momento histórico contemporâneo, como bem assinalou Harvey (1993), Hirst & Thompson (1998), Chesnais (1997), Swary & Topf (1993), Belluzo (1997) entre outros.

O setor imobiliário possui, além das contradições comuns à própria produção capitalista (capital e trabalho), algumas contradições próprias e particulares: a questão da propriedade fundiária e da renda da terra urbana que permeia o movimento de reprodução do capital no setor; e a necessidade de um capital de giro exterior ao setor que possibilite a rotação dos capitais aí investidos (Topalov, 1979), dado que há grande necessidade de recursos para a compra de materiais, quase sempre bens intermediários duráveis, para o pagamento da força de trabalho (parte dela qualificada, como engenheiros), para a adequação às inovações tecnológicas (particularmente sensível na construção de imóveis comerciais), e para o acesso ao solo urbano (como visto anteriormente, a renda da terra é um elemento fundamental a ser levado em conta). Esses fatores têm por conseqüência que o aporte inicial de capital para a construção capitalista de imóveis seja elevado, superando muitas vezes a capacidade de investimento dos empresários do setor. Por outro lado, a demanda desse setor se encontra fragmentada entre os diversos usos a que se destina a produção imobiliária e às diversas faixas de renda da população que procura um imóvel para morar, o que exige também a existência de um capital externo para o financiamento dos compradores.

A propriedade fundiária e o pagamento de uma renda para o seu uso aos seus proprietários cria uma barreira ao livre acesso do capital do setor imobiliário ao solo, e também contribui para hierarquizar os lugares através do preço pago para se ter acesso a determinada localização no interior do urbano, na forma de aluguéis ou do preço do terreno. Com a união entre o setor imobiliário e o capital financeiro, o poder deste setor frente à propriedade fundiária pode ser potencializado e a barreira colocada pela propriedade ao acesso dos capitalistas ao solo pode ser levantada. Mas é bom lembrar que são alguns sub-setores do setor imobiliário que possuem maior poder de atração do capital imobiliário, principalmente os ligados a empreendimentos residenciais de alto padrão, edifícios de escritórios e centros comerciais para as classes mais abastadas.

Por sua vez, o capital de giro externo ao setor é obtido através do financiamento bancário direto ao produtor e/ou consumidor final ou através de hipotecas, bem como através de novas formas de obtenção de recursos para o setor, como a criação dos fundos de investimento imobiliários (FII’s), da securitização de recebíveis imobiliários (CRI’s), do autofinanciamento através das cooperativas habitacionais ou consórcios imobiliários etc.

As formas mais sofisticadas de mobilização do capital financeiro – que garantem a superação da barreira colocada pela propriedade fundiária e garantem os recursos para a produção capitalista no setor imobiliário - não são acessíveis às camadas da população de menor renda, ou seja, à grande maioria desta, potencializando-se, então, a segregação sócio-espacial e a fragmentação do espaço urbano, já que as parcelas do mercado imobiliário com ligações mais intensas com o setor financeiro podem apropriar-se das áreas mais valorizadas da cidade, áreas que possuem melhores condições de infra-estrutura e de equipamentos urbanos, relegando a maioria da população às áreas distantes (periferia), em geral desassistidas desses recursos.

O Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI): os Fundos de Investimento Imobiliário e os Certificados de Recebíveis Imobiliários

A despeito de uma série de alternativas encontradas ao logo do tempo para a obtenção de financiamento extra-bancário por parte do setor imobiliário (caixas de aposentadorias, cooperativas habitacionais, consórcios imobiliários etc.), muitas vezes competiu ao Estado subsidiar parte da produção de moradias, através da produção direta, do financiamento aos construtores e promotores imobiliários ou da concessão de créditos acessíveis aos mais pobres e para as camadas de rendimentos médios da população para a compra de moradias. Esse foi o caso do Brasil entre 1964 até 1986, quando e Estado articulou os elementos necessários à obtenção de recursos para o financiamento habitacional (produção e consumo), através de criação do Sistema de Financiamento Habitacional e do Banco Nacional da Habitação (BNH, 1964). Os recursos para o SFH eram provenientes, principalmente de uma contribuição compulsória de empresários e trabalhadores, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), instituído em 1967, e da caderneta de poupança, que conformaria o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), responsável pelo financiamento de imóveis para a população de rendimentos médios.

A criação do SFH e do BNH não conseguiu atender às necessidades habitacionais das camadas mais pobres da população, sendo mesmo questionável se era esse o propósito real dessas instituições, já que grande parte do financiamento de moradias destinou-se aos estratos de rendimento médio e alto da população, de acordo com o interesse das empresas do ramo da construção civil. O BNH, porém, produziu mudanças radicais no sistema financeiro público e privado, bem como propiciou a modernização e concentração das empresas do ramo de construção civil, visando sempre a acumulação capitalista mais do que o atendimento ao problema habitacional.

As ações regulatória e produtiva do Estado entraram em colapso na década de 1980, devido ao descontrole inflacionário do período e ao escasseamento das fontes de recursos do sistema, o que comprometeu a capacidade de financiamento do setor habitacional a partir dessa década.  Com o colapso final desse sistema em 1986 (representado pela extinção do BNH), se inicia um tortuoso processo de reestruturação do financiamento do setor habitacional. O Governo Federal manteve seu controle sobre o financiamento ao setor habitacional ao centralizar os recursos financeiros necessários ao setor na figura da Caixa Econômica Federal (CEF) e pela função regulatória que exerce sobre os dois subsistemas do SFH (FGTS e SBPE), principalmente no que se refere à definição das taxas de remuneração dos recursos captados (Castro, 1999).

Em 1997, foi criada a Lei 9.514, aprovada pelo Congresso Nacional a partir de proposta de lei da Associação Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliário (ABECIP), que estabeleceu o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), sistema de financiamento complementar ao SFH. Foram então realizadas inovações no financiamento imobiliário nacional, com a criação de instrumentos de securitização imobiliária, ou seja, que possibilitam a transformação de bens imóveis em títulos mobiliários, como os Fundos de Investimento Imobiliários (FII’s) e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI’s).  A lei que criou o SFI introduziu também um novo veículo legal denominado Companhia Securitizadora de Créditos Imobiliários, sociedades com propósitos de fazer a securitização dos recebíveis imobiliários através da emissão dos CRI’s, títulos imobiliários equivalentes a debêntures.

São inovações que buscam articular o setor imobiliário com o mercado financeiro, estabelecendo um processo de desintermediação bancária para o financiamento da produção, ao mesmo tempo em que oferecem possibilidades de ganhos financeiros aos investidores. A partir de 2002 alguns FII’s passaram a ser negociados na Bolsa de Valores do Estado de São Paulo, representando um marco na integração do setor imobiliário com o mercado financeiro.

Ambos são formas de securitização1 de ativos imobiliários, cujo sentido é a conversão de ativos de pouca liquidez em títulos mobiliários de grande liquidez, passíveis de serem absorvidos pelo mercado financeiro. Esses ativos possuem como lastro os imóveis que foram securitizados, tendo suas receitas baseadas nos fluxos de caixa proveniente, seja de juros sobre empréstimos, seja de outros recebíveis (Vendrossi, 2002).

O mecanismo da securitização amplia as possibilidades de captação de recursos e acesso a financiamento aos originadores desses créditos (as empresas que produzem os ativos a serem securitizados, como as incorporadoras, construtoras etc.), dando acesso direto ao mercado de capitais, reduzindo, teoricamente, os custos e riscos da captação. Também a securitização possibilita um giro maior do capital das empresas, que receberiam dos investidores os recursos e repassariam para estes seus créditos representados pelos ativos. Por exemplo, uma incorporadora, após vender as unidades de um edifício por ela construído, pode securitizar as dívidas dos adquirentes e vendê-las no mercado. Receberia, assim, de volta, o capital utilizado para financiar os compradores, e poderia reinvestir esse capital em outra atividade ou outro empreendimento. Os investidores, que compraram os títulos, por sua vez, passariam a receber os juros e a amortização das dívidas diretamente dos adquirentes. Dessa forma, a incorporadora não necessita esperar o vencimento da dívida dos mutuários, pode acelerar o tempo de rotação do capital imobilizado.

OS FII’s foram criados em junho de 1993, pela Lei 8.668, e regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em janeiro do ano seguinte, ano em que foi lançado o primeiro FII, o Memorial Office Building, na cidade de São Paulo. Atualmente já estão em funcionamento cerca de 60 fundos, com um patrimônio de cerca de R$ 1,4 bilhão, movimentando, por ano, cerca de R$ 600 milhões. Até 1999, os principais investidores nos FII’s eram os grandes fundos de pensão e investidores institucionais. Somente a partir desse ano é que se buscou atrair os pequenos e médios investidores, com o lançamento de fundos com cotas de valor unitário mais baixo.

Os projetos que são alvo dos FII’s são variados, desde shopping centers e parques temáticos a hospitais, de edifícios de escritórios e galpões industriais a conjuntos habitacionais e condomínios residenciais de alto padrão. No Brasil, as grandes “estrelas” dos FII’s são os shoppings centers (como o Shopping Pátio Higienópolis em São Paulo) e os edifícios comercias de alto padrão, além de um grande projeto imobiliário, o Bairro Panamby.

Já os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI’s) foram criados com a lei 9.514 de 1997, que criou o SFI. Segundo essa lei, “o Certificado de Recebíveis Imobiliários – CRI é um título de crédito nominativo, de livre negociação, lastreado em créditos imobiliários e constitui promessa de pagamento em dinheiro”. De forma equivalente a uma debênture, o CRI pode ser colocado no mercado através de uma emissão pública (títulos postos à venda junto ao mercado, sem necessidade de destino específico) ou de uma emissão privada (específica para determinados investidores já acertados). Além de ser fonte de financiamentos, os CRI’s podem, com a formação de um mercado secundário de negociação desses créditos, se transformarem em uma nova fonte de ganhos com especulação com papéis, elemento fundamental da nova configuração do capitalismo contemporâneo, onde o circuito financeiro ganha importância. Baseando-se em dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), estima-se que foram emitidas, até 2002, cerca de R$ 340 milhões em CRI’s (Vendrossi, 2002). Desse total, 50 por cento corresponderiam a operações relativas ao mercado de imóveis residenciais.

Através de uma série de procedimentos e de regulamentações busca-se um sistema em que os riscos são minimizados para os investidores através da criação de elementos de controle independentes, além da obrigatoriedade de análise de risco da carteira de imóveis securitizados por agências especializadas em risco.

Trata-se de um mercado financeiro-imobiliário ainda pequeno no país e cujo desenvolvimento depende da política macroeconômica relativa à taxa de juros, de incentivos fiscais e deduções de impostos, da resolução de alguns impasses jurídicos, do desinteresse dos grandes bancos em entrar nesse mercado, bem como de uma maior aceitação de seu formato pelos investidores. Mas é o caminho que o setor da produção imobiliária no Brasil, através de seus representantes de classe, vê como a saída para a captação de recursos para o setor no futuro.

Em levantamento realizado junto à Comissão de Valores Mobiliários e empresas ligadas à emissão desses papéis, pôde-se perceber que a grande maioria dos FII’S e dos CRI’s lançados na cidade de São Paulo a partir de 1994 concentram-se no chamado “vetor sudoeste”, área que engloba as áreas mais valorizadas da cidade ou em forte processo de valorização (como as áreas da Av. Paulista, Av. Faria Lima, Av. Eng. Luis Carlos Berrini, Av. das Nações Unidas etc.). De 46 FII’s existentes em 2004, 36 encontram-se nesse setor. E dos 40 CRI’s consultados, 24 estão situados no chamado “vetor sudoeste”. Ou seja, a percepção dos agentes de que a localização dos empreendimentos é fundamental para seu maior retorno faz com que seus interesses se voltem para as áreas mais valorizadas das cidades. Dessa forma, por tratarem-se de empreendimentos de mercado, voltados para as camadas de rendimentos mais altos da população, acentuam o caráter de fragmentação e hierarquização do espaço urbano, ao concentrarem seus investimentos em áreas já valorizadas, aumentado a distância sócio-econômica e estética que separa essas áreas do restante da cidade. E o poder de intervenção das empresas do setor imobiliário no espaço se amplia com a aliança com o setor financeiro, garantindo recursos necessários tanto para a superação da barreira colocada pelos altos preços da terra urbana aos empreendedores imobiliários quanto para a aceleração do tempo de rotação do capital no setor da construção. Por outro lado, complexifica-se a questão da segregação sócio-espacial, pois os empreendimentos em questão (principalmente os grandes condomínios residenciais e centros empresariais) muitas vezes encontram-se isolados de seu entorno, formado por áreas pobres ou de favelas, tornando-se verdadeiras fortalezas muradas e dependentes de um forte aparato de segurança para garantir a tranqüilidade de seus moradores, como é o caso do Bairro Panamby.

O autofinanciamento da classe média: as cooperativas habitacionais

Observou-se na Região Metropolitana de São Paulo a explosão do autofinanciamento2 da produção habitacional de mercado a partir da segunda metade dos anos 90 (Castro, 1999). O autofinanciamento atendeu os excluídos dos mercados tradicionais de financiamento através do SFH, em especial a parcela da população com renda entre oito e quinze salários mínimos, que possuísse condições de investir parte de sua renda mensal em uma casa própria, antecipando os recursos à produção e dispensando o concurso de intermediação financeira.

Com a estabilização da economia decorrente do Plano Real (1992), os planos de autofinanciamento permitiram que as camadas de renda média e média-baixa financiassem com recursos próprios a produção habitacional, particularmente por meio de cooperativas habitacionais organizadas por empresas de assessoria técnica. O autofinanciamento foi uma alternativa de recuperação do nível de atividades do setor habitacional, aumentando sua participação na ofertas de novas moradias, sobretudo a partir de 1996.

Quando da criação do SFH, em 1964, a Lei nº 4.380 estabeleceu o Programa de Cooperativas Habitacionais, direcionado para o atendimento dos trabalhadores sindicalizados que compunham o mercado econômico, ou seja, ligado à parcela da população com renda entre 1,5 e 6 salários mínimos. Em 1966, o Decreto-Lei nº 59, estabeleceu a competência normativa do BNH sobre as cooperativas habitacionais. O Decreto nº 58.377/66, além de dar competência ao BNH para fixar normas sobre a constituição e funcionamento das cooperativas habitacionais3, criou, dentro da categoria de agentes de atividades complementares do BNH, os Institutos de Orientação de Cooperativas Habitacionais (INOCOOPs), uma modalidade de órgão assessor de apoio técnico, inspirado em práticas do cooperativismo norte-americano e chileno. O BNH exercia forte controle sobre eles, interferindo desde a homologação de seu corpo diretivo à reforma de estatutos ou mesmo sobre sua dissolução. Porém, o Programa rapidamente perdeu seu caráter associativista e os associados foram conduzidos à função de meros mutuários do BNH, sendo que a sua clientela passou a ser a classe média melhor remunerada.

Entre 1964 e 1984 foram concedidos 487.471 financiamentos através de cooperativas habitacionais, correspondendo a 11,2 por cento do total contratado pelo SFH (Castro, 1999). Com a crise do financiamento público, o cooperativismo habitacional refluiu ao longo da década de 1980. Com a Constituição de 1988, as cooperativas habitacionais conquistaram sua autonomia frente ao Estado e frente às suas fontes de financiamento, deixando de estar incluídas entre as instituições integrantes do SFH após a nova regulamentação efetuada pelo Banco Central em 1993. Não puderam, a partir de então, contar com recursos do FGTS para novas contratações, mas, por outro lado, deixaram de estar sob o controle e a fiscalização do Estado como agente financeiro.

Dessa forma, a inexistência de mecanismos de fiscalização e controle externos foi certamente um dos fatores que atraiu a atenção dos promotores imobiliários sobre esta forma jurídica de associação, o que garantiria a flexibilidade de que precisavam esses agentes para captar e investir capitais livremente na produção habitacional, sem enfrentar riscos.

Embora existam alguns sindicatos de trabalhadores que atuam como promotores imobiliários sem interesses lucrativos, a grande maioria dos lançamentos de imóveis por cooperativas a partir da década de 1990 foi realizada por empresas de assessoria técnica do setor imobiliário, que reuniam e associavam os interessados em participar dos empreendimentos. Embora não pudessem legalmente obter lucro, essas assessorias desenvolveram formas de se apropriarem da renda do solo, dos ganhos decorrentes da produção e circulação das unidades construídas.

As empresas de assessoria técnica atuam na mesma faixa de mercado dos planos de autofinanciamento das construtoras e incorporadoras, mas focalizam sua produção em produtos mais populares, assumindo a liderança no número de lançamentos entre 1996 e 1997. Essas empresas recebem, em média, uma taxa de administração entre 5 e 15 por cento do valor global do empreendimento, mas as funções de planejamento e gestão, centrais no processo, abrem espaços para que se apropriem dos resultados, tanto dos processos de compra e mudança do uso do solo, como da contratação e controle da produção das construtoras e da administração financeira (Castro, 1999). Como essas empresas atuam desde a concepção do empreendimento até a sua conclusão, elas estão em uma posição privilegiada para apropriação dos ganhos que ocorrem durante o empreendimento.

Entre 1992 e 1997, Castro (1999) observou a atuação de 60 cooperativas habitacionais do estado de São Paulo, além das classistas. Delas, 27 lançaram empreendimentos com até 500 unidades habitacionais, 15 com até mil unidades e as 18 maiores desenvolveram empreendimentos que abarcam até 4 mil unidades habitacionais, como a Paulicoop Planejamento e Assessoria a Cooperativas Habitacionais que lançou, em apenas cinco anos de atividades, aproximadamente 15 mil unidades habitacionais. Em pesquisa realizada junto à Embraesp (Empresa Brasileira de Análise de Patrimônio), observou-se que entre 1998 e 2003, outros 35 empreendimentos ligados à cooperativas foram lançados na região da Grande São Paulo, totalizando 6.575 unidades.

Os empreendimentos espalharam-se inicialmente pelos municípios vizinhos a São Paulo, onde são, em geral, maiores que os encontrados na capital paulista. Em consulta realizada junto à Embraesp verificou-se que entre janeiro de 1993 e agosto de 2003, de 200 empreendimentos construídos sob a forma de cooperativa na RMSP, 115, ou seja, 57,5 por cento situavam-se nos municípios vizinhos a São Paulo. Outros 58 (29 por cento) situavam-se em áreas da periferia consolidada ou antigas áreas industriais e somente 27 (13,5 por cento) situavam-se no chamado “vetor sudoeste”, mas não nas áreas mais nobres deste vetor de valorização imobiliária do município.

Como resultado espacial do desenvolvimento dos planos de autofinanciamento por cooperativas organizados pelas empresas de assessoria técnica, temos a produção de empreendimentos residenciais verticais de grande porte que intensificaram a verticalização da periferia, redefinindo os espaços de moradia e barateando o seu preço para as parcelas da população de renda média-baixa e média. Trata-se de antigas áreas industriais que apresentam grandes terrenos disponíveis para a reconversão do uso para fins de moradia. Dado o menor poder aquisitivo dos cooperados e a escassez de recursos próprios das empresas de assessoria, a solução encontrada é justamente a construção em áreas de menor valor imobiliário, mais distantes dos centros da cidade, algumas vezes rodeadas por indústrias remanescentes e com problemas de poluição e contaminação do solo, devido às atividades industriais anteriores.

As cooperativas são soluções encontradas pelos agentes imobiliários para a promoção habitacional destinada a uma faixa de renda da população que possui condições de pagar por um imóvel, mas que não é atendida pelo Estado, tendo em vista a inoperância do SFH e seus altos custos para o consumidor, e pelo mercado imobiliário tradicional, voltado para as camadas de rendas mais altas da população, o que garante maior retorno para os promotores imobiliários. Como em geral trata-se de empreendimentos localizados na RMSP, e na periferia consolidada da cidade de São Paulo, intensifica-se a hierarquização e a fragmentação do espaço, bem como a segregação por parte dos mais ricos com relação à classe média empobrecida, que passa a concentrar-se nessas áreas menos valorizadas, e que perde a capacidade de residir nas áreas mais nobres da cidade, o que antes era possível devido à possibilidade de financiamentos subsidiados por parte do SFH.

A promoção estatal em São Paulo: Cohab e CDHU

A provisão habitacional para a população de menores rendimentos está a cargo, no caso do município de São Paulo, de duas companhias habitacionais, uma de âmbito estadual, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e outra de âmbito metropolitano, ligada à prefeitura do município de São Paulo, a Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab-Sp). Embora tenham surgido para promover o direito à moradia para a população mais pobre e incapaz de obter algum tipo de financiamento segundo as leis de mercado (renda abaixo de três salários mínimos), ao longo da vigência do binômio BNH-SFH tais companhias acabaram por atender uma camada de renda superior à dos seus objetivos originais, dada a exigência de retorno financeiro de mercado de seus empreendimentos (Azevedo & Andrade, 1982).

Porém, quando se fala em provisão estatal de moradias, isso não significa que o Estado seja o efetivo produtor destas. A partir do estabelecimento do SFH, desenhou-se um complexo quadro de relações entre o Estado e o setor privado. Ao primeiro cabia ditar as regras do jogo, estabelecendo as formas de acesso às habitação através de decisões sobre as exigências de renda familiar, prazos, juros e sistemas de amortização,competindo-lhe ainda regular o mercado, credenciando instituições para atuar como seus agentes e determinando os índices de remuneração da poupança voluntária (Azevedo & Andrade, 1982). O setor privado seria o provedor das habitações, tanto para as Companhias Habitacionais como para o mercado irrigado pelos recursos da poupança voluntária regulada pelo Estado.

A partir do fim do BNH em 1986, as diversas companhias habitacionais tiveram de enfrentar a reestruturação do financiamento habitacional, diversificando suas fontes de recursos. No caso de São Paulo, tanto a companhia habitacional estadual quanto à ligada à gestão municipal/metropolitana tiveram de adaptar-se aos novos tempos.

A CDHU, companhia estadual, atua tanto em municípios do interior quanto na Região Metropolitana de São Paulo. Suas origens encontram-se na CECAP, criada em 1949. Tendo passado por transformações ao longo de quarenta anos, em 1989, a companhia assumiu a forma e o nome atuais (CDHU), e segundo a Lei nº 6.556 de 30 de novembro de 1989, 1 por cento da arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços de âmbito estadual) deveria ser destinado à companhia a cada ano. Além disso, essa lei previa expressamente o subsídio estatal, na medida em que priorizava o atendimento da demanda de renda familiar até cinco salários mínimos, com prestações não superiores a 20 por cento da referida renda (Royer, 2002). Porém, segundo Royer (2002), seria uma permanente marca do desenvolvimento da CDHU, por um lado, a existência de um discurso claramente voltado ao atendimento das demandas organizadas da sociedade, bem como à promoção das políticas públicas de universalização de direitos; de outro, uma prática que teria como principal beneficiário o setor privado da construção civil, estruturado sobre o fundo público destinado à provisão habitacional.

Tendo uma fonte estável de recursos, a CDHU pôde transformar-se num dos maiores agentes promotores para a indústria da construção civil, sendo que entre janeiro de 1990 e fevereiro de 2004, 270.353 unidades foram entregues no estado, e dentre estas, apenas 60.081 foram entregues na cidade de São Paulo, uma das áreas mais carentes em termos habitacionais, o que revela que a atuação prioritária dessa companhia é o interior do estado, que rende maiores dividendos políticos aos governos estaduais, além de ser uma área de terrenos relativamente mais baratos. Por outro lado, em pesquisa realizada junto à CDHU, constatou-se que a grande parte das unidades entregues em São Paulo localizam-se na periferia distante da cidade – apesar de algumas iniciativas de construção de pequenos conjuntos habitacionais nas áreas mais próximas ao centro -, configurando um quadro de exclusão da população mais pobre no interior da cidade, já que está fica relegada a áreas com escassas oportunidades de consumo e emprego, com infra-estrutura precária e baixo nível e qualidade de equipamentos urbanos.

A Cohab-SP tem como fontes de financiamento os recursos orçamentários e do Fundo Municipal de Habitação (FMH), criado em 1994, que conta principalmente com recursos provenientes do orçamento do município, programas de financiamento no âmbito da Caixa Econômica Federal, destacando-se o PAR, o Programa de Arrendamento Residencial, que utiliza recursos do orçamento Geral da União e recursos do FGTS; e convênios com a CDHU. Possui atuação basicamente em duas frentes: a produção de moradias através do modelo de mutirão/autogestão e do modelo mais tradicional realizado por empreiteiras, com privilégio dado ao modelo mutirão/autogestão na última administração municipal. Este se mostrou como um modelo mais econômico e mais bem gerenciado, além de propiciar uma importante participação da população moradora tanto no projeto arquitetônico, quanto no gerenciamento financeiro e administrativo da obra e na execução desta.

Apesar de sua expressiva produção esta foi insuficiente para o atendimento do déficit habitacional da cidade. Em São Paulo, o conjunto da produção da Cohab-SP representa 400 mil unidades, ou seja, apenas 2,5 por cento do parque de habitações existentes na região metropolitana, num universo de cerca de 3 milhões de moradores em cortiços, 1 milhão de moradores em favelas e 2 milhões de moradores em habitações precárias nos loteamentos periféricos da cidade (Sachs, 1999).

E outro grave problema é a localização desses empreendimentos, seja o mutirão/autogestão, seja o grande conjunto habitacional: a sua grande maioria está localizada na periferia distante da cidade - apesar de iniciativas de provisão habitacional na área do centro histórico e em suas proximidades -, com piores condições de infra-estrutura e equipamentos urbanos, distante dos empregos das áreas centrais da cidade e dos principais mercados de consumo. Trata-se de uma herança de políticas passadas - já que houve iniciativas da gestão 2001-2004 de prover moradias em áreas mais centrais - e de uma prática que privilegia o baixo custo do solo em detrimento da localização da moradia com relação ao acesso às positividades do urbano.

Agrava-se, assim, o problema da segregação sócio-espacial, e a maior parte da população mais pobre que consegue acesso à moradia estatal é privada de outros serviços essenciais à sua reprodução social. É bom lembrar que além dessa parcela, há a imensa maioria da população vivendo em áreas de autoconstrução em loteamentos irregulares, moradores de favelas e cortiços, uns privados de forma mais severa de infra-estrutura e serviços urbanos, outros, do acesso a uma moradia digna.

Considerações Finais

A grande dependência da produção habitacional com relação ao financiamento é um fator que incentiva a segmentação do mercado habitacional, com efeitos sobre o urbano.

A sofisticação da captação de recursos é um elemento que amplia o poder dos grandes capitais do setor que atendem à população de maiores rendimentos, possibilitando sua atuação nas áreas mais valorizadas da cidade, e excluindo, pelo jogo do mercado, os setores de renda mais baixos. A solução do autofinanciamento por parte da classe média através de consórcios e cooperativas habitacionais acentua a fragmentação e hierarquização do espaço urbano, pois como visto, os empreendimentos construídos através dessa modalidade estão fora das áreas mais valorizadas, na chamada periferia consolidada ou mesmo na RMSP. Essa talvez tenha sido o setor de renda mais afetado pelo colapso do SFH, já que havia sido grande beneficiária do sistema para a compra da casa própria num contexto de alta inflação, possibilitando, durante a sua vigência, uma maior integração dessa camada da sociedade nas áreas melhor providas de infra-estrutura e equipamentos urbanos. Ou seja, cria-se uma situação de polarização de classes no urbano, na medida em que o acesso às melhores áreas da cidade se torna cada vez mais exclusivo.

Já a camada de rendimentos mais baixos que consegue ser atendida pela provisão estatal paga o preço da segregação sócio-espacial. Tal fato se deve à lógica de mercado que permeou e ainda permeia tanto os agentes de financiamento quanto os agentes de provisão pública, num contexto de economia de mercado em que a propriedade da terra atua como fator limitante à aquisição da moradia em locais de melhores condições de infra-estrutura e serviços urbanos. E essa lógica também é responsável pela ineficiência em termos de minimização do déficit habitacional, já que a definição da necessidade de autofinanciamento das companhias habitacionais para custear a provisão de novas moradias acabou por restringir a oferta destas e selecionar a demanda em um nível superior de renda àquele para o atendimento do qual as companhias foram criadas (até 3 salários mínimos) como forma de evitar a inadimplência por parte dos mutuários. Historicamente a ação do Estado visou muito mais à dinamização do setor da construção civil do que o real atendimento das necessidades da população de menores rendimentos.

O momento atual é de reestruturação das formas de financiamento habitacional. As soluções de mercado atendem apenas a uma minoria da população e o laissez-faire das condições de mercado acentuam as divisões no interior do urbano. A atuação das companhias habitacionais, embora em alguns casos conscientes de suas limitações e buscando melhorar sua eficiência e seus critérios de eqüidade (como é o caso da Cohab-SP entre 2001 e 2004), acaba por reproduzir a dinâmica de segregação dos mais pobres nas periferias distantes e mal-equipadas. E, finalmente, a grande maioria da população, o estrato mais baixo da economia urbana, que não é atendida pelos programas estatais, busca soluções de moradia nos loteamentos irregulares autoconstruídos, nas favelas e nos cortiços. Esses elementos contribuem para a produção de um espaço na cidade de São Paulo marcado pela fragmentação e hierarquização do espaço, bem como pela segregação sócio-espacial daí decorrente.

 

Notas

1 Vendrossi (2002, p. 21) define securitização como a “emissão de títulos mobiliários com vínculo em um determinado ativo”. Para um estudo mais detalhado da securitização de recebíveis imobiliários, ver Vendrossi (2002).

2 Por autofinanciamento entende-se a modalidade de construção e venda de imóveis caracterizada pelo co-financiamento entre imobiliárias, incorporadores, construtoras e compradores de imóveis que integralizam parte expressiva ou a totalidade do capital necessário para a construção habitacional (Castelo, 1997).

3 Segundo o Artigo 3 desse decreto, as cooperativas habitacionais seriam: “Organizações mutualistas, de tipo fechado, sem fins de lucro, com número pré-fixado de associados, constituídas apenas de trabalhadores sindicalizados (ou filiados às associações de classe definidas na Lei nº 1.134/1950), tendo como objetivo exclusivo a realização de um plano habitacional para atendimento de seus associados, através de um sistema de poupança e amortização” (Castro, 1999, p. 90).



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Ficha bibliográfica:

BOTELHO, A. Relações entre o financiamento imobiliário e a produção do espaço na cidade de São Paulo: casos de segregação e fragmentação espaciais. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (18). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-18.htm> [ISSN: 1138-9788]

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