Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (35), 1 de agosto de 2005

 

AGENTES E NORMAS NA TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO URBANO: A EMBRAER EM GAVIÃO PEIXOTO, SP, BRASIL

 

Mirlei Fachini Vicente Pereira

Professor Substituto do Curso de Geografia, DAH, CCHLA, Universidade Federal de Viçosa-MG. Mestre em Geografia pela UNESP, Campus Rio Claro.

E mail: mirleipereira@yahoo.com.br

 


Agentes y normas en la transformación del espacio urbano: La Embraer en Gavião Peixoto, SP, Brasil (Resumen)

Las grandes compañías han constituido los principales agentes de la organización del territorio y han puesto sus normas y estrategias para la producción, reorganizando así la dinámica de los lugares. La Embraer, compañía brasileña productora de aviones, sirve como ejemplo de este proceso, donde nosotros podemos resaltar la instalación de una nueva unidad productiva de la compañía en la municipalidad de Gavião Peixoto, SP, Brasil. Con la instalación de esta nueva unidad, la Embrear, en búsqueda del poder público para adaptar el territorio localmente para la producción, genera una nueva dinámica de las acciones en la ciudad. La política pública se vuelve al proveer las necesidades de la compañía, y así viene promoviendo un uso corporativo del territorio, y reorganice gran parte de las acciones en la municipalidad, transformando el cotidiano del lugar.

 
Palabras clave: Grandes compañías, Normas, Relaciones urbanas, Gavião Peixoto SP-Brasil.

 


Agents and norms in the transformation of the urban space: The Embraer in Gavião Peixoto, SP, Brazil (Abstract)

The great companies have constituted the main organization agents of the territory, imposing its norms and strategies for the production, and reorganizing like this the dynamics of the places. The Embraer, brazilian producing of airplanes, serves as example of this process, where we can stand out the installation of a new productive unit of the company in the municipality district of Gavião Peixoto, SP, Brazil. With the installation of this new unit, the Embraer falls back upon the public power to adapt the territory locally for the production; it generates a new dynamics of the actions in the city. The public politics returns to supply the necessities of the company, promoting a corporate use of the territory, and reorganize great part of the actions in the municipal district, transforming the daily from the place.

 

Key-words: Great companies, Norms, Urban relationships, Gavião Peixoto SP-Brazil.  

 


 

O território entre agentes e normas

 

O território, entendido aqui como o espaço geográfico usado pela sociedade, ou ainda, como propõe Milton Santos – simplesmente “território usado”, é a instância social e material onde as relações sociais se expressam organicamente, e justamente por isso se revela como objeto privilegiado da análise geográfica.

 

Unindo materialidade e ação, o território oferece a nós geógrafos um laboratório vivo e renovado para a compreensão dos problemas que envolvem a vida cotidiana das sociedades, em suas mais distintas esferas. Assim, e como propõem Santos e Silveira (2001), o território pode, e deve ser compreendido por nós geógrafos como a fala privilegiada da nação.

 

Na geografia tradicional, e de certa forma até os dias de hoje como resultado da influenciada do pensamento de Ratzel (fundador da Geografia Política Clássica no século XIX), a categoria território tem normalmente acolhido a idéia de espaço apropriado e de poder, delimitado principalmente pelo Estado, o qual seria o seu principal agente controlador e normatizador. A idéia que aqui pretendemos desenvolver, baseados na proposta de Milton Santos et al (2000), é de tomar o território simplesmente como espaço usado, onde a ação social é produzida e se revela como produto de uma série de ações e intenções dos distintos agentes sociais que ao mesmo tempo o produzem e o integram.

 

Estes distintos agentes territoriais procuram, através e por seus interesses divergentes e conflitantes, criar as condições plenas de uso do território para que as suas ações possam ser realizadas da forma mais adequada possível, concretizando desta forma a (re)produção das suas ações/intenções no espaço geográfico.

 

Neste trabalho, pretendemos destacar, de forma particular, o papel das normas como elementos constituintes do território, que nos dias de hoje se revelam de extrema importância para a ação, orientando a estratégia de diferentes agentes territoriais no período atual. Assim, norma é aqui entendida como as ações políticas e institucionais, implementadas para uma nova regulação das ações e do trabalho no território.

 

Exemplo de normas que atuam como reguladores, e mesmo como componentes que integram o território, são as estruturas jurídicas agregadas a porções específicas do espaço geográfico, que normatizam os fazeres no seu interior, viabilizam formas distintas de uso, conferindo desta forma, uma maior concretude ao território [1] (Silveira, 1997).

 

As normas são, deste modo, estruturas de regulação territorial implementadas no mais das vezes pelo poder público, em suas distintas esferas de ação, que, regulando a natureza das ações e o funcionamento dos objetos no espaço geográfico, funcionam como subsídios para a ação, principalmente das grandes empresas, no território usado para a produção.

 

Como exemplo empírico, destacaremos neste trabalho o caso de Gavião Peixoto, município do interior do Estado de São Paulo – Brasil, onde a ação da Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.) redefine o conjunto do território conforme as suas necessidades de produção, fato este que se dá, entre outras formas, com a adição de nova normatização do território usado pela empresa para as suas atividades industriais no lugar.  

 

 

As grandes empresas como agentes transformadores do espaço urbano: a Embraer em Gavião Peixoto

 

Ao procurar um local para a instalação de uma nova unidade produtiva que envolveria, a contratação de três mil empregos diretos num período de dez anos para as atividades de fabricação de peças e montagem final dos aviões do segmento militar (aviões de defesa) e corporativo (jatos particulares), uma pista de pouso e decolagem especial para testes com cinco quilômetros de extensão (a maior do hemisfério sul), onde os produtos são avaliados e homologados, e ainda um condomínio industrial que pudesse receber empresas estrangeiras que participam da sua rede, a Embraer empreende um novo projeto técnico no município de Gavião Peixoto, que viabiliza um melhor meio de realizar a sua produção.

 

O município de Gavião Peixoto, que conta com cerca de 4.120 habitantes (2000) e desde a década de sessenta do século passado apresenta como principal atividade econômica a produção de gêneros agrícolas para os circuitos produtivos de citrus e cana-de-açúcar, passa a partir do ano 2000 a ver suas possibilidades produtivas renovadas, com a instalação do novo empreendimento, viabilizada através de um Decreto-Lei do Estado de São Paulo.  

 

Em funcionamento desde o final de 2001, a unidade de Gavião Peixoto é utilizada para os teste dos aviões desenvolvidos pela empresa, que são realizados na pista especial de treinamento. Nas atividades de produção propriamente ditas, a Embraer mantêm em Gavião Peixoto as linhas de montagem dos caças AMX e do ALX Supertucano. A empresa também instala uma fábrica de móveis de madeira para o equipamento dos jatos corporativos.

 

Ainda são realizadas atualmente no pólo as atividades de reforma e modernização dos caças F-5, e a partir do início de 2005 serão desenvolvidas as atividades de reforma dos caças AMX A-1, ambos da Força Aérea Brasileira (FAB), mediante contrato firmado entre a empresa e o governo federal.

 

Até o momento, apenas uma empresa parceira de risco da Embraer mantém em funcionamento uma unidade produtiva no empreendimento. Trata-se da empresa japonesa Kawasaki Heavy Industries, fabricante das asas para os jatos da família EMB, que são montados na unidade de São José dos Campos.  

 

Em estudo anterior (Pereira, 2003), apontamos os principais motivos da escolha do local para implantação da nova unidade da empresa em Gavião Peixoto, que podem ser resumidos basicamente por um conjunto de possibilidades encontradas no território. Num primeiro momento, destacaríamos a existência, no local, da viabilidade técnica de se instalar um empreendimento desta natureza [2]. No entanto, entendemos que é principalmente a partir de um outro conjunto de variáveis que se dá a orientação de localização dos novos empreendimentos industriais no território. Para tanto, o papel do governo do Estado foi de fundamental importância, porque atuou como normatizador, no sentido de tornar o Estado de São Paulo, e também o município de Gavião Peixoto, atraentes e viáveis ao projeto da Embraer, que, por sua vez, acaba por dotar o lugar com objetos necessários à sua eficácia produtiva, constituindo desta forma um “espaço racional” às suas atividades.

Nesse sentido, com rapidez o território é localmente transformado, resultado das novas densidades do meio técnico que são adicionadas para conferir êxito à produção moderna, e encontramos desta forma um esforço de organização do território pela empresa, visando a adequação deste às suas atividades, na procura por uma produtividade espacial maior.

 

A criação de um “espaço racional” às atividades da Embraer em Gavião Peixoto

 

Com a implantação da nova unidade produtiva no interior de São Paulo, a Embraer acaba por tornar mais denso e ao mesmo tempo também mais distribuído o seu circuito espacial de produção, promovendo uma renovação dos fluxos materiais e imateriais no Estado de São Paulo, área core da região concentrada do território nacional, que acolhe a maior parte das ações e dos objetos que envolvem a produção de aviões no país.

 

Desta forma, apesar de determinada parcela da produção ser deslocada do município de São José dos Campos, onde localiza-se a sede da Embraer, a empresa conseqüentemente cria novos laços de proximidade com a unidade de Gavião Peixoto, que agora participa de uma hierarquia das ações de comando da produção, atividade esta que continua concentrada na sede da empresa.

 

É possível encontrarmos neste exemplo a ocorrência de um acontecer hierárquico, ou seja, aquele que resulta das ordens e da informação provenientes de um lugar, mas que são realizas em um outro, especificamente na forma de trabalho; ou seja, o acontecer hierárquico “(...) é um dos resultados da tendência à racionalização das atividades e se faz sob um comando, uma organização, que tendem a ser concentrados” (Santos, 1997: 132).

 

Assim, enquanto as tomadas de decisão e o repasse de informações na rede produtiva têm como centro de difusão a cidade de São José dos Campos, a parcela técnica do trabalho é distribuída no circuito produtivo e a orientação e funcionamento desta divisão de tarefas é possibilitado a partir de uma solidariedade de sistemas técnicos que trabalham em conjunto, interligando as unidades da empresa e promovendo assim uma nova proximidade organizacional no território (Santos, 1997: 133), visto que a unidade de Gavião Peixoto funciona de forma integrada e solidariamente complementar às ações da empresa em outros pontos do território brasileiro e no exterior. É a ação vertical e controladora da produção que se dá em espaços complementares à lógica de uso do território pela empresa.

 

Cria-se desta forma um espaço racional [3] e especializado às atividades da Embraer, que participa de nova forma na hierarquia nos espaços utilizados pela empresa, e assim, a organização e o uso desta porção do território se renovam. Conforme destaca Adriana Bernardes,

 

Os espaços da racionalidade seriam os espaços produzidos e organizados segundo as lógicas do acontecer hierárquico, sob a égide das técnicas informacionais, de verticalidades, de razões globais, que impõem uma ordem alheia, instrumental e pragmática ao funcionamento dos lugares (...). São, pois, os espaços mais produtivos para as redes hegemônicas. Daí a força com que o meio técnico-científico-informacional, em suas escalas local, regional e nacional, atrai capitais e designa hierarquia entre lugares (Bernardes, 2001: 429). 

 

Para que o fazer, ou seja, para que as atividades da Embraer se realizem de forma mais adequada, e para que o território se transforme localmente num espaço funcional à suas  ações, a empresa, juntamente com o poder público, empreende todo um esforço de modernização e normatização que acaba também por gerar nova especialização produtiva no município.

 

Como destaca Silveira, “(...) os lugares são mais ‘exitosos’ quanto maior a sua carga de modernidade. Suas virtualidades decorrem, então, da sua densidade técnica – o conjunto de objetos modernos que abriga -, da sua densidade informacional – o acesso à informação hegemônica – e da sua densidade normativa – o império das normas do mundo num lugar” (Silveira, 2002: 45). Assim, pela e para as atividades do novo agente no lugar, são empreendidos tanto por parte da empresa, como do Estado e município, novos esforços de renovação e organização do território, visando tornar o lugar mais adequado, conferindo maior êxito ao território e às ações de produção. 

 

Renovação técnica e modernização corporativa

 

Um primeiro estágio de adaptação do meio local para as ações da empresa resulta do esforço técnico empreendido para a construção da nova unidade produtiva. Se a Embraer investe na construção das instalações físicas da nova unidade, o governo do Estado de São Paulo atua como o principal agente de organização e preparação técnica do território. São investidos pelo Estado R$ 37 milhões para a aquisição do terreno, composto originalmente por áreas onde eram desenvolvidas principalmente atividades de plantio de cana-de-açúcar e laranja – uma área de 14,4 Km2, que foi desapropriada e cedida à Embraer por um período de trinta e cinco anos, renováveis por mais trinta e cinco.

 

Mas a preparação pelo governo do Estado das infraestruturas territoriais para o funcionamento do “pólo” aeronáutico é expressa principalmente na implantação dos acessos rodoviários à nova unidade produtiva, nas instalações de água e energia elétrica para uso no empreendimento e na recuperação da rodovia SP 331, que dá acesso ao município vizinho de Araraquara e à rodovia Washington Luís (SP 310), por onde são escoados os componentes da produção. Desta forma, é principalmente através das ações do poder público estadual que a nova configuração do território para as atividades de produção é viabilizada.

 

O município, que apresenta uma série de carências e uma pequena arrecadação de impostos, não pôde arcar com o repasse de muitas verbas para o custeio das infraestruturas para a empresa. Um primeiro apoio do governo municipal ao projeto da Embraer foi estabelecido em um acordo, onde a prefeitura se responsabilizou pelos gastos com a recolocação das cercas que haviam sido retiradas das propriedades ao longo da estrada que dá acesso ao pólo, visto que o governo do Estado custeou as obras de alargamento da via para facilitar o fluxo dos veículos que transportam os equipamentos para a unidade de produção. O governo do Estado também executa outras obras que viabilizam o projeto da empresa no lugar, tal como foi o caso da instalação de redes para o fornecimento de energia elétrica e água para a nova fábrica.

 

É só a partir da instalação da nova unidade da empresa que o município de Gavião Peixoto começa a receber maior atenção dos investimentos públicos e também privados, e a partir destas ações o lugar conhece uma modernização de suas infraestruturas territoriais. Além das melhorias na principal rodovia que dá acesso à cidade, o governo do Estado financia a construção de uma estação de tratamento de esgoto no município. A Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), investe em 2004 mais de 11 milhões de reais na modernização dos equipamentos da Usina Hidrelétrica de Gavião Peixoto, aumentando em  35 por cento a capacidade de geração de energia (de 4,16 MW/h para 5 MW/h), com capacidade para abastecer uma cidade com 57 mil habitantes, visualizando um possível aumento da demanda por este serviço.

 

É nesse sentido que o território ganha maior concretude (Silveira, 1999) e se torna mais preciso, ganhando quantitativa e qualitativamente em técnica para dar conta das ações da empresa. O moderno, em determinado lugar, é tudo aquilo que se impõe como novo, e que, ganhando localmente um caráter de proeminência em relação às outras ações ou objetos tornados residuais, acaba por arrastar toda a atenção dos atores políticos e mesmo da sociedade, invertendo e distorcendo as atenções do poder público em todas as esferas para a racionalidade das ações privadas que se impõem, num determinado tempo, a um lugar também determinado. Assim, revelam-se as diversas formas de cooperação do setor público para a produção privada, ou seja, de uma política pública “mascarada”, porque produz uma  drenagem dos recursos públicos gastos com uma modernização corporativa, visto que esta é voltada aos interesses de um agente específico e não atende a população como um todo.

 

Novas formas, nova densidade normativa do território

 

Juntamente com os novos objetos técnicos adicionados para facilitar a produção, o lugar conhece também uma adequação uma normativa, que funciona de forma complementar, mas não menos importante, à adequação técnica. Como destaca Santos, “As formas técnicas são indicativas da maior ou menor rentabilidade do capital e do trabalho. Mas, como as formas não trabalham sozinhas, há uma exacerbação da necessidade de normas” (Santos, 2003: 60).

 

Em Gavião Peixoto, por exemplo, poderíamos destacar o papel do poder público local ao criar, em território municipal, uma área com uma normatização especial que favorece as ações da Embraer e demais empresas que por ventura venham a se instalar no município. Este é mais um exemplo de como as adequações técnica e normativa, promovidas na maior parte pelo poder público, tem como intenção tornar o território viável ao projeto das grandes empresas. 

 

É o que acontece por exemplo com a Lei Complementar N.o 013, de 26 de março de 2001, que cria o “Programa de Desenvolvimento Econômico, Social e de Viabilização de Investimento no Pólo Aeronáutico e Aeroespacial de Gavião Peixoto”. Com esta nova normatização, o poder público municipal, visando, como destaca o seu texto, a “(...) incrementação de receitas e a geração de empregos” (Artigo 1o), isenta o pagamento de todos os impostos e taxas municipais das empresas que, até o ano de 2006 (Artigo 2o, parágrafo único) se instalarem dentro dos limites do referido “Pólo”, isenção esta que terá vigor até o final do ano 2015.

 

As deliberações desta lei, criando o Pólo Aeronáutico e isentando as empresas que nele se instalarem de todos os impostos e taxas municipais, já haviam sido acordadas entre o Estado de São Paulo, o município de Gavião Peixoto e a própria Embraer no chamado “Protocolo de Intenções”, assinado em 28/06/2000, designando o município de Gavião Peixoto como o local de instalação do “Pólo”. Foi por intermédio deste “Protocolo” que a empresa negociou com o Estado a plena instalação das condições que tornarão o lugar mais atrativo e rentável.  

 

Novas normas constituem, ao mesmo tempo, a emergência de novas formas no território. Como destaca María Laura Silveira, “(...) a norma é geneticamente uma ação e morfologicamente uma densidade, uma forma” (Silveira, 1999: 257). Ao mesmo tempo em que o território conhece a adição destas novas normas, estão criadas, efetiva e potencialmente, as possibilidades para as novas densidades materiais no território. É o que acontece em Gavião Peixoto com a lei que cria o “pólo aeroespacial” no município. Ao mesmo tempo em que o governo do Estado delibera a criação do novo espaço industrial para a Embraer, em conjunto e cooperação com o município, isentando as empresas que se instalarem nas dependências do “pólo”, ambos criam, a partir de suas respectivas ações de normatização, também uma nova forma espacial, um novo “objeto” funcional às atividades da empresa, que, no entanto, também atua como um enclave na organização local do território.

 

Um primeiro aspecto seria a própria fragmentação do território, com a delimitação de um perímetro ou “polígono” territorial, que corresponde ao traçado das “fronteiras” do empreendimento. A Lei Complementar destaca,  no seu parágrafo 2.o, a delimitação e a forma do “Pólo” no território municipal:

 

O polígono inicia-se no ponto "A", de coordenadas UTM (x=769.500,00 e y= 7.594.283,21), localizado no alinhamento da Rodovia Deputado Victor Maida (SP- 331), que dista 10.300 m da interseção com a Rodovia Washington Luís (SP-310); deste ponto, segue em linha reta a oeste pelo alinhamento da Rodovia Victor Maida (SP-331), por uma distância de 2.260,64m até encontrar o ponto "B", de coordenada UTM (x=767.250,00 e y=7.594.063,91’); deste ponto, deflete ao sul e segue em linha reta por uma distancia de 6.600,89 até encontrar o ponto "C", de coordenadas UTM (x=767.250,00 e y=7.587.463,02), no Córrego da Muladinha; deste ponto, segue pelo leito do Córrego da Muladinha, por uma distância de aproximadamente 515,00 m até encontrar o ponto "D", de coordenadas UTM (x=767.479,37 e y=7.587.001,99), localizado na interseção com a Estrada do Correntão; deste ponto, deflete a leste e segue em linha reta pelo alinhamento da Estrada do Correntão, por uma distancia de 1.758,55m até encontrar o ponto "E", de coordenadas UTM (x=769.184,19 e y=7.586.570,61), localizado na interseção da Estrada do Correntão com o Ribeirão da Mulada; deste ponto, deflete ao norte, pelo lado leito do Ribeirão da Mulada, por uma distância aproximada de 3.300,00 m até encontrar o ponto "F", de coordenadas UTM (x=769.500,00 e y=7.589.592,32); deste ponto, segue, ao norte, em linha reta pela distância de 4.690,95 m até o ponto "A", onde iniciou-se esta descrição poligonal, encerrando uma área aproximada de 736,00 (setecentos e trinta e seis) alqueires.

 

Esta área, composta por mais de 700 alqueires no território municipal, desapropriada pelo Estado e destinada para o uso da Embraer (e possivelmente de demais empresas que integram a sua rede produtiva), passa a funcionar como um novo atrativo local, uma porção do território que possibilita às empresas uma produtividade espacial maior, justamente pela sua densidade normativa – isenção de uma série de encargos e taxas públicas, e técnica – pelo provimento das infraestruturas adequadas à produção.    

 

O governo de São Paulo também atua em outras direções para que o novo empreendimento da Embraer encontrasse, em território paulista, as condições mais favoráveis às suas ações. Apesar de não ter isentado a empresa do pagamento das taxas públicas estaduais, através da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP o governo disponibilizou uma soma de R$ 60 milhões para custear, num período de seis anos,  tanto as atividades de pesquisa e desenvolvimento, realizadas na maioria das vezes nos institutos de pesquisa das universidades públicas do Estado e também nos laboratórios da empresa, como também para apoiar o desenvolvimento do novo empreendimento da Embraer em Gavião Peixoto, através dos Programas PITE (Programa Parceria para a Inovação Tecnológica) e PICTA - (Parceria para Inovação em Ciência e Tecnologia Aeroespacial).

 

Desta forma, os investimentos dos novos projetos, e mesmo para a adequação das suas estruturas de produção no pólo, estariam praticamente garantidos se este se localizasse no  Estado de São Paulo, e mais uma vez o poder público transforma o território segundo   interesses específicos da empresa [4]. Estas novas normas e formas locais são em última análise, os elementos que tornam o território “viável” e funcional às ações das grandes empresas no atual período.

 

Densidade informacional e novas relações urbanas

 

Com a instalação de mais uma unidade de produção da Embraer, o município de Gavião Peixoto conhece uma nova fluidez de materiais e de informações, e a cidade passa a integrar tanto as redes que conformam o circuito produtivo dos aviões, como a rede de pontos envolvidos na produção da Embraer. Este processo marca a existência de uma rede de “cidades-chaves” que se associam à produção da empresa, tornando estes centros funcionalmente especializados às suas atividades, tal como destaca Roberto Lobato Corrêa (2001: 228). Nesse sentido, Gavião Peixoto também conquista uma nova posição na hierarquia urbana regional.

 

A partir de uma nova densidade técnica, o lugar também conhece uma nova densidade informacional (Santos,1997), porque as estruturas produtivas agora adicionadas e em funcionamento no lugar requerem um intercâmbio de ordens e ações para a efetivação do uso do território pela empresa. De certa forma, tanto o lugar quanto o funcionamento do território para a produção se expõem a comandos e objetivos que lhes são externos, e uma dependência entre diferentes pontos na rede de produção também reforça a dependência dos diferentes espaços geográficos por ela envolvidos. Como destaca Milton Santos,   

 

A densidade informacional nos indica o grau de exterioridade do lugar e a realização de sua propensão a entrar em relação com outros lugares, privilegiando setores e atores. A informação unívoca, obediente às regras de um ator hegemônico, introduz, no espaço, uma intervenção vertical, que geralmente ignora o seu entorno, pondo-se ao serviço de quem tem os bastões de comando (Santos, 1999a: 17).

 

Este processo é fruto e mais uma vez caracteriza a especialização de caráter exógeno e hierárquico que as ações verticais da Embraer acabam por ocasionar em Gavião Peixoto. Nas palavras de María Laura Silveira, “Graças às solicitações do mundo, os lugares especializam-se, e, por conseguinte, multiplicam-se os intercâmbios. Esses conteúdos, causa e conseqüência da consagrada competitividade, não constituem porém necessidades genuínas do lugar (Silveira, 1999: 424). 

 

Tanto a especialização induzida pelas atividades da Embraer, como os novos intercâmbios e fluxos inerentes ao processo produtivo da empresa no lugar, acabam por dotar o município de novas características no que diz respeito às suas relações e conexões com outros lugares no território. 

 

Ocorre desta forma significativas transformações na vida de relações do município, pois enquanto Gavião Peixoto apenas participava dos circuitos locais de produção do álcool, açúcar e suco de laranja, que é finalizada nos municípios vizinhos, a esfera das relações urbanas e principalmente das relações entre campo e cidade, estavam circunscritas ao entorno regional, ocorrendo entre as cidades próximas maiores, principalmente com o município de Araraquara [5], para onde a produção de laranja é remetida à indústria e onde grande parte da produção de cana-de-açúcar é beneficiada, além do suprimento de serviços como os de saúde, educação e comércio.

 

No entanto, após a presença da Embraer, estabelece-se uma nova hierarquia funcional e uma ampliação da vida de relações do município, embora apresentem um caráter extremamente privado e seletivo, porque dizem respeito somente às ações da empresa. Participando agora da rede internacional de produções e do circuito espacial de produção aeronáutica, Gavião Peixoto ganha papel de destaque no que diz respeito às atividades de produção da Embraer e também dos parceiros que compõem a sua rede, e estrutura-se no lugar um circuito muito mais amplo de trocas de matérias primas, mercadorias e informações. Assim, com a instalação da unidade produtiva da Embraer em Gavião Peixoto, sobrepõe-se a um contexto pretérito de relações uma nova posição do município na rede urbana como um todo, ainda que esta nova posição e vida de relações sejam um tanto quanto “artificiais”, visto que, na realidade, é apenas a Embraer quem estrutura e comanda estes novos fluxos produtivos que permeiam o lugar, fluxos estes que agora se tornam os mais proeminentes. É assim que

 

(...) as empresas, isoladamente ou associadas, estabelecem redes privadas, cuja geografia e funcionalização correspondem ao seu próprio interesse mercantil. É por onde circulam – não raro de forma exclusiva – as informações, os dados especializados e as ordens que estruturam a produção. Quando se fala em fluidez, deve-se, pois, levar em conta essa natureza mista (e ambígua) das redes e do que elas veiculam (Santos, 1997: 220).

 

É a partir destas possibilidades de comunicação entre empresas e lugares que as  formas de produção no meio técnico-científico-informacional se renovam, ganhando mesmo uma nova natureza. As possibilidades de comunicação e de intercâmbio, principalmente no que diz respeito às informações e ao controle da parcela política da produção, são agora facilitadas pelos sistemas técnicos modernos, e estes mecanismos adicionados ao território, produzidos e utilizados principalmente pelos agentes hegemônicos, representam sobremaneira a essência das verticalidades e do controle vertical dos lugares. Ao mesmo tempo, é preciso destacar que estas possibilidades de fluidez da comunicação e dos contatos, são, em verdade, praticadas de forma corporativa, visto que estas facilidades se não estendem a maioria dos que habitam o lugar. Assim, da mesma forma que as verticalidades redefinem as hierarquias dos lugares e as possibilidades de conexão entre os subespaços articulados para a produção, as antigas hierarquias e mesmo as relações de dependência são por vezes reforçadas, quando o que se leva em conta é a sociedade e o território encarados como um todo.  

 

 

Agentes, normas e a alienação do território

 

Como pudemos observar a partir do exemplo da Embraer e de suas ações no município de Gavião Peixoto, o território é hoje uma instância de fundamental importância às atividades dos agentes produtivos, e o mesmo acaba sendo encarado por estes agentes como uma extensão das suas estratégias de produção e acumulação de capital. Desta forma, o território, localmente regulado e normatizado para determinados fazeres, surge como elemento central que defini o comportamento dos agentes no espaço geográfico.

 

Como nos dias de hoje as estratégias de ação se pretendem cada vez mais precisas e perfeitas, os agentes de produção acabam por dotar o território com as infraestruturas técnicas mais bem adaptadas para o exercício de suas atividades (tal é o caso das renovação do meio local para a produção através da construção de estradas, redes de energia, da doação de terrenos às grandes empresas, etc.),  e ainda mais uma adequação normativa que viabiliza e confere caráter de maior rentabilidade às ações das grandes empresas (criação de espaços especializados para a produção e normas territoriais para isenção se impostos para as empresas).

 

É pelo fato de cada vez mais os lugares enxergarem os agentes do circuito superior de produção (grandes empresas da produção moderna) como a verdadeira “salvação” para os problemas do território, que mais este é entregue aos interesses do grande capital. O poder público cria as condições normativas que tornam cada vez mais o território o substrato mais produtivo às grandes empresas, e assim o território cada vez mais se aliena porque os interesses e projetos comuns a população que habita estes lugares se tornam distantes de sua concretização. É a instalação de uma ordem no espaço, presidida pelos interesses dos agentes mais proeminentes da produção e da política, colaborando sobremaneira para a constituição de um território cada vez mais anárquico e ingovernável para tudo o mais.

© Copyright Mirlei Fachini Vicente Pereira, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

Ficha bibliográfica:

VICENTE, M. Agentes e normas na transformação do espaço urbano: a embraer em gavião peixoto, SP, Brasil. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (35). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-35.htm> [ISSN: 1138-9788]

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