Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (49), 1 de agosto de 2005

 

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PRECARIEDADE: ESTADO E HABITAÇÃO POPULAR NO AGLOMERADO URBANO DE FLORIANÓPOLIS

 

Luís Fugazzola Pimenta

Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina.

E-mail: luisfpimenta@uol.com.br

 

Margareth de Castro Afeche Pimenta

Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina.

E-Mail:afeche@uol.com.br

 


A institucionalização da precariedade: Estado e habitação popular no Aglomerado Urbano de Florianópolis (Resumo)

A persistente crise brasileira e as políticas econômicas adotadas nas últimas décadas reduziram drasticamente os recursos aplicados em habitações sociais. O quase desaparecimento dos programas federais que, ainda que marginalmente, financiaram populações de baixas rendas e construíram conjuntos de moradias, deu lugar a um vazio no campo das políticas habitacionais que produziu inúmeros movimentos de ocupações de áreas urbanas precárias. Os antigos conjuntos habitacionais populares assistem a uma constante elevação no nível médio de renda exigido para as populações ali permanecerem. Os novos programas habitacionais financiados pelo Estado são quantitativamente irrisórios e exigem níveis de renda mais elevados e situação trabalhista estável, o que exclui a grande maioria da população. A ausência de políticas fundiárias progressistas promove a exclusão dos pobres pelo mercado de terras. As intervenções públicas nas áreas ocupadas, quando acontecem, consolidam a penúria. Passadas quatro décadas desde a construção dos primeiros conjuntos habitacionais na região de Florianópolis, várias realidades apontam para uma nova condição de institucionalização da precariedade.

 

Palavras chave: pobreza urbana; habitação social; Florianópolis SC Brasil.


Instituting precariousness: State and popular housing in Florianópolis Urban Agglomeration (Abstract)

The persistent Brazilian crisis and economical policies adopted in the last decades drastically reduced the budget for social housing.  Brazilian Federal programs which previously had financed property acquisition for the low income population and had built housing complexes were drastically reduced.  The original housing complexes now require a much higher minimum income and therefore serve a minority or only a fraction of the population in need.  The new housing programs financed by the State are quantitatively insignificant and also require individual or familial high income and stable employment, therefore excluding the vast majority of the population. The absence of innovative and adequate land planning and allocation policies promotes the exclusion of lower income classes from the housing market. The absence of housing plan policies triggered several social movements leading to illegal occupation of precarious urban areas. Public interventions in such illegally occupied areas are rare and when applied ratifies penury.  Four decades has passed since the building of the initial social housing projects in the Florianópolis area, a reality that strongly imposes a new condition of institutionalized  precariousness and call for immediate and adequate strategies.

 

Key words: urban poverty, social housing, Florianópolis SC Brazil

 


 

O Banco Nacional da Habitação e seus conjuntos habitacionais em Florianópolis

 

Os primeiros conjuntos habitacionais.

 

Os primeiros conjuntos habitacionais populares da região de Florianópolis começaram a ser construídos na segunda metade da década de 1960, no âmbito das políticas da ditadura militar para o setor de financiamento e construção de imóveis, com recursos do Banco Nacional de Habitação. Este organismo foi fundado em 1964 para implementar uma política habitacional capaz de dinamizar o mercado de imóveis para um amplo espectro de camadas sociais, principalmente as classes médias, para quem foram destinados aproximadamente três quartos dos recursos mobilizados pelo banco em toda sua curta história de pouco mais de 20 anos.

 

Os conjuntos populares locais, em sua maior parte foram conjuntos habitacionais compostos por unidades unifamiliares, que utilizavam grandes glebas de terra em áreas muito periféricas, seguindo o mesmo padrão do que se implantava pelo Brasil afora. Espelhavam a tendência de uma política extremamente conservadora, calcada no discurso ilusório e demagógico de fornecer a cada brasileiro uma casa própria, em geral nos padrões de pequenas unidades isoladas em lotes. Assim construíram-se bairros periféricos formados pela repetição de pequenas casas de duas águas, em quadras que se repetiam, sem qualquer preocupação com composições urbanas que pudessem favorecer o aparecimento de espaços públicos dotados de qualquer qualidade de congregação das populações moradoras. Este mesmo padrão repetiu-se desde as grandes regiões metropolitanas até as pequenas cidades, passando pelas cidades médias, privilegiando assim um crescimento com tecidos urbanos de densidades extremamente baixas. Reforçavam estas características o fato dessas implantações não se fazerem exatamente nos limites da área urbana ocupada, mas além, muito além dela, deixando para trás vazios urbanos a serem preenchidos posteriormente por processo especulativos.

 

Nas cidades de maior porte, conjugaram-se as edificações unifamiliares com pequenos blocos de apartamentos em geral de quatro pavimentos, muito padronizados e repetidos. Não contavam, em qualquer grau, com elementos de maior de qualidade na elaboração de seus projetos, tanto no que dizia respeito às edificações, quanto à composição geral dos conjuntos e áreas comuns.

 

No Aglomerado Urbano de Florianópolis, devido a este predomínio de conjuntos tipologicamente formados por casas, os novos bairros assim constituídos se espraiaram pelas periferias continentais, onde o preço da terra era muito mais barato do que na parte insular do conjunto urbano, onde a concorrência pelo uso do solo por residências secundárias, junto às praias e às áreas próximas, já encarecia a terra e, evidentemente, encarecia também a terra estocada das grandes planícies nas partes centrais da ilha, entre as praias.

 

O lugar dos pobres não é mais nos antigos conjuntos habitacionais.

 

As habitações populares assim realizadas, eram edificadas sobre terrenos que variavam entre 250 m2 e 360 m2, dispostos em quadras regulares, com arruamentos realizados segundo as normativas municipais, resultando em ruas do mesmo padrão do restante do espaço da cidade.

 

O tamanho dos lotes, compatíveis com os padrões praticados usualmente pelo mercado, propiciava taxas de ocupação baixas na origem das edificações. Estas características destes bairros propiciaram o aparecimento de dois fenômenos inter-relacionados: a melhoria das edificações e a melhoria dos bairros.

 

O crescimento do aglomerado urbano provocava a diminuição do isolamento das áreas ocupadas pelos conjuntos, e o distanciamento inicial destes bairros de casas populares se rompia pela expansão da malha urbana, pela melhoria dos transportes, das vias de ligação e dos serviços e equipamentos citadinos. Concomitante a este processo, a poupança familiar podia ser dirigida à expansão da área edificada, melhorando sensivelmente o tamanho e a qualidade das casas. elevando-se o padrão dos bairros. Assim, muitos moradores tinham suas rendas elevadas pela melhor inserção da família no mercado de trabalho, como resultado da permanência na cidade. Aqueles moradores que considerassem tentadores os novos preços mais elevados de suas casas, quando comparados à sua renda, vendiam os imóveis para, com a renda obtida, procurarem melhorar sua condição social em outra localização. A quase totalidade dos bairros edificados desta maneira, abriga hoje populações cuja situação econômica se distancia muito daquela dos mais necessitados dentro do espaço urbano. Muitas edificações reformadas tornaram-se casas grandes, muitas vezes assobradadas, multiplicando a área construída, de tal maneira que alguns desses bairros nem permitem mais a identificação de suas origens em casas populares.

 

 

As intervenções do Estado nas ocupações irregulares

 

Intervenções provocadas por interesses privados

 

Partidos e políticos muito conservadores sucederam-se no executivo e no legislativo dos municípios componentes da Grande Florianópolis, constituindo-se em raras exceções os mandatos com algum vínculo mais popular. No município de Florianópolis, as administrações dos últimos 40 anos foram dirigidas por representantes das oligarquias regionais pertencentes a partidos nacionais conservadores, com exceção de dois mandatos de quatro anos, um do PMDB e outro de uma Frente Popular, com o PPS tendo o cargo de Prefeito. Desta forma, a presença do Estado realizando obras ou dando assistência às populações mais pobres, moradores de áreas ocupadas irregularmente, sempre foi ínfima, exceção feita aos dois períodos mencionados, onde algumas melhorias foram realizadas, mas nada que permitisse mudar significativamente e duravelmente as condições dos assentamentos.

 

Nos últimos oito anos, entretanto, algumas intervenções dos poderes públicos em áreas de ocupações irregulares fizeram-se necessárias, por razões bem distintas das necessidades sociais dos moradores. Foram os casos de remoções de populações moradoras em locais necessários para complementar sistemas viários e, assim, modificar áreas onde investimentos privados estavam sendo realizados, na criação de grandes estabelecimentos comerciais, junto a eixos de acesso do aglomerado urbano.

 

São poucas obras habitacionais, mas revelam o caráter das novas intervenções que vêm ocorrendo. Trata-se de um processo de remoção de população e outro de regularização de uma área de grandes dimensões ocupada irregularmente, ambas localizadas no mesmo setor da cidade.

 

Remoções e relocações: o caso do Conjunto Habitacional Abraão

 

O primeiro caso foi o processo de remoção de populações que haviam se assentado na faixa de domínio da BR 282, via expressa de acesso ao centro urbano e demais áreas da ilha de Santa Catarina. A BR 282 localiza-se na parte continental do município e constitui-se na principal ligação entre a ilha e a BR 101, estrada litorânea de ligação nacional. O assentamento era extremamente precário e não apresentava melhoras ao longo do tempo, pois os moradores conheciam sua fragilidade e a impossibilidade de permanecer na área, por se tratar de faixa de domínio de via expressa onde deveriam ser construídas pistas marginais para o tráfego local.

 

A remoção fez-se para duas áreas. A primeira, muito próxima do assentamento original, foi a construção de alguns blocos de apartamentos no bairro do Abraão, entre 1997 e 2000, que constituem-se hoje em um dos piores conjuntos habitacionais da Grande Florianópolis. A segunda área escolhida para alocar os removidos localiza-se em bairro muito distante da ocupação original, situado na parte insular do município, no bairro do Saco Grande. Os poderes públicos locais encontraram-se frente à necessidade de realizarem aquilo que nunca havia sido sua intenção nem sua prática: a construção de moradias para populações muito pobres. Tratou-se, em verdade, de um processo revelador, pela explicitação do caráter das administrações municipais locais. Os imóveis construídos, devido a uma série de características dos projetos, realizaram uma precarização de novo tipo no contexto local, por se tratar de obra realizada pelo Estado.

 

Os apartamentos do conjunto habitacional Abraão são minúsculos, contando com 32,84 m2, e os detalhes de sua construção chamam a atenção pela forma de tratar os pobres. Os alojamentos foram entregues sem revestimentos nos pisos e sem paredes internas divisórias. Os moradores é que deveriam realizar estas melhorias, na medida em que conseguissem constituir alguma poupança para a compra dos materiais necessários e utilizando sua própria mão-de-obra. Assim, os habitantes foram transferidos para estes apartamentos, improvisando as suas condições de permanência dentro daqueles míseros 30 m2, sem divisórias e sem revestimentos, permanecendo, famílias inteiras, sem espaços mínimos e sem qualquer privacidade entre seus membros e entre as funções da habitação. Os motivos alegados para construção de imóveis com condições tão precárias foi o custo de cada unidade, que deveria ficar em patamares muito baixos. Os moradores pagam prestações que supõem o reembolso em vinte anos, do capital investido pelo Estado. Como não poderia deixar de ocorrer em situação de tal gravidade social, os moradores têm muita dificuldade em pagar as prestações, mesmo sendo muito baixas, e deixam sistematicamente de pagar as pequenas taxas de condomínio, o que impede a manutenção do conjunto habitacional.

 

Este conjunto, que se constitui, assim, no pior exemplar local de habitação popular multifamiliar, impinge à população moradora um destino de insatisfação, pois, mesmo que realizem melhorias, terminando internamente as obras para finalizar os apartamentos, o seu tamanho é um impeditivo para a melhoria social do conjunto como um todo. O tamanho das unidades é absolutamente incompatível com o seu uso por famílias, e principalmente por famílias que em média compõem-se de 5 membros como são as famílias de renda mais baixa na região. Aqueles moradores que melhorarem sua renda preferirão deslocar-se para moradias maiores, que resolvam o seu problema de superpopulação.

 

Remoções e relocações: o caso do Conjunto Habitacional Vila Cachoeira

 

No bairro do Saco Grande a Prefeitura Municipal de Florianópolis relocou a outra parte da população removida. O bairro fica junto à via que liga a parte mais central da Ilha de Santa Catarina às praias de sua porção Norte. Trata-se de um bairro muito diversificado socialmente, com áreas ocupadas por antigos conjuntos habitacionais populares, áreas de ocupações irregulares nas encostas dos morros e novas ocupações por condomínios residenciais de classes médias nas áreas mais próximas à rodovia. O conjunto Vila Cachoeira, construído para abrigar os removidos, localizou-se na parte mais distante do bairro, próximo às encostas dos morros. Inicialmente a população sofreu o impacto de ver-se distanciada de seus locais de atividades anteriores, o que, de súbito, fez com que muitas famílias perdessem suas minguadas fontes de renda, pois o deslocamento diário para a área anteriormente ocupada inviabilizava-se pelo custo do transporte. Foi um duro processo de adaptação até conseguirem novos pequenos serviços junto ao novo local de moradia. Sofreram também com a discriminação por serem considerados ex-favelados chegando a um bairro que já tinha uma certa conformação social, o que dificultou sua inserção.

 

O Conjunto Vila Cachoeira é formado por unidades habitacionais unifamiliares, dispostas em fita, em terrenos extremamente exíguos. A determinação de realizar o assentamento desta forma foi repleta de conseqüências nefastas para as populações ali residentes. Novamente, a política de realizar o mínimo possível de gastos com estas populações foi o fator responsável pelo comprometimento presente e futuro das condições habitacionais locais. A casas construídas foram feitas em dois pavimentos, acrescidos de um pequeno sótão no vão do telhado, inclinado para permitir esta finalidade. As casas têm área total de 40 m2, sendo geminadas lateralmente. Duas minúsculas áreas de terreno foram deixadas livres em cada imóvel: um pequeno quintal na parte posterior do imóvel e um pequeno jardim à frente. As casas foram entregues sem revestimentos nos pisos. Também neste caso a área das residências é muito pequena para abrigar as famílias. As conseqüências de tal projeto, de muito má qualidade em todos os seus aspectos, não tardaram a aparecer. Os moradores, diante da necessidade de aumentarem a área construída, buscando maior conforto para a família, têm iniciado a ocupação das pequenas áreas deixadas livres no terreno, levando à deterioração do conjunto como um todo por taxas de ocupação que ultrapassarão todos os limites do aceitável e que chegarão próximas aos 100%, comprometendo todo o espaço do novo bairro. Degrada-se a paisagem construída, impedindo-se assim a possibilidade de melhoria social da população. Os que obtiverem melhores rendas não tardarão a buscar novos locais de moradia que garantam espaços privados e públicos mais adequados para suas famílias.

 

Nestes dois casos observamos, nitidamente, a quebra de padrões mínimos de condições habitacionais nas construções, condições pelas quais, pela retórica oficial, o Estado deveria zelar, em lugar de ser o agente da precarização das condições das habitações sociais.

 

Precarizando a regularização: o caso do Assentamento Chico Mendes

 

O terceiro caso a ser aqui mencionado, constitui a última das três ações da Prefeitura Municipal de Florianópolis no campo da habitação popular. Trata-se da operação de intervenção em uma das maiores áreas de ocupação irregular realizada por populações pobres. O conjunto de ocupações conhecido como Monte Cristo teve início com a invasão organizada de uma grande área pertencente à COHAB-SC, órgão estadual responsável pela execução de moradias populares. Esta área destinava-se à construção de conjuntos habitacionais multifamiliares, dos quais apenas um havia sido construído.

 

A crise do Sistema Financeiro da Habitação, que nos anos oitenta levou à extinção do Banco Nacional da Habitação, provocou uma queda acentuada nas realizações das COHAB por todo o Brasil. Em Florianópolis, esta situação levou, em 1986, à ocupação organizada da maior gleba de terras da COHAB por populações carentes, migrantes do interior do Estado.A localização desta grande área encontra-se junto ao principal acesso à capital do Estado, constituindo-se em passagem obrigatória de todos que se dirigem à ilha de Santa Catarina. Não é pois de se estranhar que esta operação tenha se iniciado, em 1998, pela construção de uma fiada de pequenas casas coloridas junto à via expressa, que esconde atrás de si a irregularidade das edificações constituintes do assentamento chamado Chico Mendes. Este projeto, o maior da Prefeitura, é realizado com verbas do Projeto Habitar Brasil, com recursos do BID. Tratou-se, portanto de uma captação de recursos externos, disponíveis para habitação popular, e que não implicava em retirar verbas municipais de outros projetos voltados para as áreas mais privilegiadas do espaço da cidade, que foram o foco central da administração municipal do PPB, partido ultra-conservador que administrou a cidade por oito anos entre 1997 e 2004.

 

No âmbito das unidades habitacionais, a intervenção nesta área possui as mesmas características das edificações já analisadas no caso da Vila Cachoeira. Em realidade o mesmo projeto arquitetônico aplicado no bairro Chico Mendes foi usado na construção da Vila Cachoeira, sem qualquer alteração, realizando-se modificações na topografia do terreno, ligeiramente acidentado da área do Saco Grande, para adaptá-lo ao projeto já existente desenvolvido para uma área plana.

 

É incontornável a constatação de que, em pelo menos oito anos de administração, a Prefeitura Municipal de Florianópolis desenvolveu um único projeto arquitetônico de uma única casa, repetindo esta unidade residencial em todas as suas intervenções, impermeável a qualquer avaliação das péssimas características deste projeto. Revela-se também neste detalhe, o descaso no tratamento das populações pobres da cidade, quando milhares de pessoas a serem alojadas não merecem o esforço de mais do que um pequeno projeto de uma casinha, repetida em seguida à exaustão.

 

As populações do Bairro Chico Mendes ressentiram-se do tamanho reduzido das edificações, construídas com 32 m2 em aproximadamente um terço da unidades, passando numa segunda etapa a 40 m2, pois, em muitos casos, as suas casas originais, muito precárias sem dúvida, eram, entretanto, maiores do que as construídas pela Prefeitura. Os terrenos são igualmente exíguos e deve-se supor que aqui venha a ocorrer o mesmo processo já em curso na Vila Cachoeira, de aumento da taxa de ocupação dos lote,s com o aumento da área construída dos imóveis, conduzindo à degradação das condições de moradia das casas e do bairro.

 

Institucionalizando a precariedade

 

Passadas quatro décadas desde a construção dos primeiros conjuntos habitacionais no Aglomerado Urbano de Florianópolis, é forçoso apontar a deterioração das condições habitacionais que se agravaram muito a partir dos anos 90. As migrações se intensificaram pela expulsão de populações rurais no Estado de Santa Catarina onde a pequena agricultura vê-se atrelada ao grande agro-negócio voltado para a exportação de carnes frigorificadas e soja. A seletividade crescente dos pequenos agricultores que podem permanecer em atividade no campo, expulsa famílias que buscam na capital do estado as condições de sua sobrevivência.

 

Coincide o aumento da migração de populações pobres com o aumento muito grande dos preços da terra na região, onde o turismo e a construção de residências secundárias disputa o mercado de terras com as demais atividades. Muitas áreas cujo uso se fazia pela construção de residências de populações de baixas rendas começam a ser disputadas por classes médias que não têm mais acesso às zonas mais privilegiadas. Os mais pobres são assim compelidos a ocupar as franjas e os interstícios mais indesejáveis do espaço da cidade. As periferias continentais onde o preço dos lotes ainda é acessível tornam-se tão longínquas que o custo dos transportes tende a inviabilizar o trabalho, agravando a pobreza pela redução da renda.

 

Muitas populações optam pelas localizações mais próximas à zona central do aglomerado urbano. Os morros mais centrais já haviam sido ocupados por populações mais antigas. Os novos migrantes dirigem-se então para as áreas mais elevadas, mais íngremes e mais instáveis dos morros para permanecer no centro, enquanto parcelas mais numerosas voltam-se para uma coroa de morros num raio de distâncias intermediárias com relação ao centro, criando novas ocupações em áreas até então preservadas.

 

A presença do Estado no campo da habitação social no Aglomerado Urbano de Florianópolis decresce brutalmente quando escasseiam os recursos federais baratos, oriundos das poupanças populares voluntárias (Cadernetas de poupança) e compulsórias (Fundo de garantia por tempo de serviço - FGTS). Destas verbas, índices nacionais apontam que aproximadamente 25% destinaram-se a habitações populares, indo os três quartos restantes para imóveis destinados às rendas mais elevadas da sociedade, alimentando a industria da construção civil e o sistema financeiro correspondente. Com estes 25% os políticos conservadores fizeram conjuntos habitacionais nas épocas de fartos recursos, com verbas federais de alocação praticamente vinculada, que não podendo ser usadas para outras finalidades, constituíam parte da construção da política clientelista de sustentação das oligarquias locais. A crise que se inicia em 1973 e que se aprofundando nos anos 1980 e 90 perdura até hoje, faz desaparecerem os recursos financeiros baratos para a habitação. Desde então, praticamente desaparecem os investimentos estatais nesta área social, agravando muito as condições de vida urbana.

 

As políticas econômicas seguidas incessantemente desde o início dos anos 90 até hoje privilegiaram os setores exportadores para garantir o pagamento da dívida externa, e os juros internos elevados para atrair recursos internacionais, levando o país a taxas de crescimento muito baixas e ao estrangulamento do mercado interno. Esvaneceu-se qualquer perspectiva de investimento estrutural em serviços públicos urbanos e construção de habitações em massa como fatores de crescimento econômico sustentado e criação de empregos.

 

O que se observou no Aglomerado Urbano de Florianópolis foi um reflexo das condições das políticas sociais no país, agravado e amplificado pelas condições de predomínio de partidos muito conservadores na política local e regional. Sucederam-se administrações que nada fizeram diante do agravamento das condições sociais em geral e habitacionais em particular.

 

As poucas realizações empreendidas no campo da habitação popular refletem, longinquamente, o ideário de focalizar algumas ações na margem da extrema pobreza provocada pela inserção submissa da nação no processo de globalização e financeirização. Ainda assim, estas ações foram forçadas por circunstâncias derivadas de projetos de remodelações urbanas voltadas para acomodar investimentos de grandes capitais.

 

Os resultados observados provocam a reprodução ou o agravamento da pobreza e das condições de penúria habitacional. O Estado recusa-se a pensar a integração das habitações populares ao espaço urbano através de políticas fundiárias mais justas e de investimentos na indústria da construção civil voltados ao atendimento dos setores populares. A alternativa encontrada pelos pobres tem sido, assim, o processo de instalação por ocupação irregular de terra urbana e a lenta melhoria de seus imóveis pelo investimento da minguada poupança, por anos a fio, na auto-construção. Na realização de seus projetos, o Estado ao privar de espaço e de terra as populações pobres, limitando a possibilidade de ocorrência de investimentos próprios na melhoria das condições habitacionais e sociais, institucionaliza a precariedade sob o manto da pretensa inclusão social e urbana.

 

 

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Ficha bibliográfica:

FUGAZZOLA, L. A institucionalização da precariedade: estado e habitação popular no aglomerado urbano de Fflorianópolis. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (49). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-49.htm> [ISSN: 1138-9788]

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