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A MILITARIZAÇÃO DO URBANO E A CULTURA DO EXTERMÍNIO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Vânia Rubia Farias Vlach
Profa. Dra. Instituto de Geografia - Universidade Federal de Uberlândia- Brasil.
E-mail: vaniarubia@nanet.com.br
Sandra Rodrigues Braga
Profa. Ms. Analista em C & T - CNPq – Brasil.
E-mail:
sandrarbraga@terra.com.br
Militarization
of the urban area and the culture of extermination: initial considerations
(Abstract)
The emergence
and development of the Brazilian cities are impregnated by authoritarian models
of our socio-political and cultural process. That explains why traditional or
modern elites establish the rules of the political game of the State,
collaborating with the extra-national powers. In the context of a State that
organizes, in an authoritarian way, the dynamics of the society and in which
the economics is privileged, a favorable field to terror is originated. In that
way, a culture of violence is spread out in
Keywords: militarization of the urban area, violence,
culture of extermination, terror
O culto à desigualdade ou por que a sociedade brasileira é autoritária?
O Brasil tem uma das
mais marcadas disparidades de riqueza no mundo, com os 10% mais ricos da
população controlando mais de 50% da riqueza, enquanto os 10% mais pobres
controlam menos que um por cento. Esta desigualdade é particularmente visível
nas grandes metrópoles, “onde muitas das pessoas mais ricas do Brasil vivem e
trabalham” (Murray, 2004: 27).
Percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos da população, 2000
Fonte: PNUD;
IPEA; FJP, 2004.
A negação da igualdade vem sendo cada vez
mais caracterizada pela crescente concentração de renda nas mãos de pequenos
grupos, gerando uma marcante diferenciação entre os que tudo têm e os demais,
que nem sequer podem ser. Para uma grande parcela destes últimos resta como
perspectiva a sobrevivência em meio à pobreza e à miséria, ou o envolvimento em
esquemas de acentuada violência, onde a vida se torna artigo ou coisa sem valor
e onde a morte pode ser precocemente anunciada. (Cruz-Neto;
Minayo, 1994: 211).
Estes
autores invocam as
raízes autoritárias da formação sócio-política e cultural brasileira para
explicar a emergência de uma cultura do extermínio entre nós. De fato, vários estudos mostram que a violência, dos cangaceiros nordestinos aos
justiceiros das atuais metrópoles, faz “parte de la historia de Brasil, de su
estructura, y de sus raíces sociales y culturales. Toda la literatura sobre bandoleros y coronelismo del nordeste brasileño registra que una cultura
o subcultura de la violencia se ha desarrollado por mas de dos siglos”
(Valladares et al., 2004: 23).
Embora os termos totalitarismo e
autoritarismo sejam, habitualmente, utilizados como sinôminos e/ou correlatos,
eles não se remetem às mesmas práticas políticas, ainda que ambas, na Ciência
Política atual, se insiram entre os sistemas hierárquicos, sistemas em que o
poder deriva de uma cúpula (no limite, de um líder) ou de grupos de elite.
O totalitarismo pode
ser tipificado como um movimento de massas, de tendência centralizadora,
conduzido autoritariamente por uma minoria política por meio do monopólio da
autoridade e do Estado, que realiza a expansão do controle governamental sobre
a globalidade da vida social. Nesse caso, o Estado é o monopolizador da
verdade, negando a pluralidade de pensamento. Para tanto, ele dispõe da censura
política e do partido único; controla todas as atividades da sociedade e
monopoliza os meios de comunicação de massa (Cruz-Neto; Minayo, 1994).
As duas ferramentas fundamentais do totalitarismo são a propaganda política e o estabelecimento do terror pela atomização dos indivíduos; o extermínio físico, social, cultural e moral dos “inimigos objetivos”; o clima de espionagem e suspeita de todos sobre todos e a instituição da polícia secreta.
Ao contrário do que
ocorre na variante totalitária, nos regimes autoritários há poucos ou muitos partidos
políticos, burocratizados. “Geralmente florescem no seio de uma escassa
participação popular e as elites se legitimam pela inércia e passividade,
conformismo e apatia das massas. A mentalidade dominante é diluída, inerte e
rotineira” (Cruz-Neto; Minayo, 1994: 200).
O autoritarismo
refere-se a um fenômeno típico de países em desenvolvimento, nos quais as
regras do jogo político são dadas por elites tradicionais ou modernizantes, em
colaboração com poderes extranacionais.
É
neste contexto autoritário que emergem as cidades brasileiras.
Até o primeiro quarto
deste século [século XX], em um período que engloba quase 400 anos, a rede
urbana ou o sistema de cidades brasileiras não existia senão em função de suas
relações com o exterior e refletia nitidamente o caráter de exploração colonial
da economia (Andrade; Lodder, 1979: 14).
As cidades brasileiras têm seu boom,
no bojo do projeto modernizante, inaugurado por Getúlio Vargas em 1930.
Entrementes, se a utopia urbana afirma ser a cidade o “espaço primeiro dos encontros, do ajuntamento (festa)”, “o fetichismo da propriedade privada e a predominância exacerbada do econômico na sociedade, bem como o papel do Estado na coordenação e organização da vida cotidiana” (Cunha et al., 2003:10) acabam por gestar um campo para o terror.
O terror tem aí o seu lugar, a mesma tensão que empurra o urbano para a condição de produto de consumo (dirigido) das pessoas que ocupam este espaço, produz a condição de consumidor como premissa para a condição de cidadão, promovendo a supressão do valor de uso pelo valor de troca. As intenções “cosmogônicas” de reprodução do capital, desta forma, dirigem e organizam o consumo de massas (Cunha et al., 2003:19)
O terror é inerente a essa lógica sistêmica, pelo qual o urbano comanda a produção e a reprodução da vida. Inversamente do que apregoam os meios de comunicação de massa, o terror – e sua materialização, o terrorismo – não são uma ameaça externa à “ordem”, mas instrumentais para a manutenção dessa ordem, “desde a produção do espaço requerida (necessariamente urbano-industrial), até a integração de toda a sociedade no sistema - no consumo (dirigido) e na cidadania (formal)”
Se tal terror é imanente ao urbano, mesmo nas democracias clássicas, é óbvio que, nos Estados semi-periféricos, marcados pelo viés autoritário, a exclusão ou a inserção precária de grande parte da população à lógica do consumo o levará ao extremo. As deficiências históricas de compor uma unidade política que assegure um elenco de direitos ao conjunto dessa sociedade contribuem para a erosão da cidadania e a transformação das cidades em “zonas de guerra”.
“Essa zona de guerra contemporânea compreende não só o
terror dos esquadrões da morte e das gangues, mas também o terror das
fortalezas corporativas, e dos enclaves suburbanos” (Holston, 1996 apud Cunha
et al., 2003: 23). Rapidamente,
a cidade torna-se protagonista da distopia urbana. Os inimigos cruzam os muros
e, em um quadro de autoritarismo e extrema desigualdade
sócio-político-cultural, urge se criar muros dentro de muros.
Assim, o medo das
cidades caóticas, abarrotadas das classes perigosas, leva os segmentos sociais
de maior renda a se retirarem dos espaços públicos convencionais, produzindo
enclaves fortificados, exclusivos para o seu trabalho, residência, lazer e
consumo e novas modalidades de exclusão. As esferas
públicas são abandonadas e os espaços públicos abandonados a sua própria
desintegração na cidade.
Se real ou imaginado, este
medo de crime é freqüentemente entrelaçado com preconceitos de classe,
ansiedades étnicas e raciais e noções estereotipadas do pobre e marginalizado,
para gerar construções ideológicas híbridas – com variações locais distintas–
sancionando novos padrões de segregação espacial e discriminação social (Murray, 2004: 24).
Material e
simbolicamente, essas estratégias espaciais promovem, no urbano, diferenças,
partições e distâncias e impõem limit(açõ)es.
Caldeira (2000)
informa-nos que os condomínios fechados surgem,
O Alphaville, lançado nesse momento, é emblemático, não somente por ser um dos primeiros loteamentos fechados implantados na região metropolitana da cidade, mas, igualmente, por propor uma nova forma de morar, baseada no resgate do subúrbio americano. Caldeira (2000) destaca esse parentesco, enfatizado em material publicitário, com as new towns e edge cities americanas. Os vários “residenciais” Alphaville prometem realizar o desejo de morar em casas unifamiliares isoladas, rodeadas de verde e protegidas contra a violência. Os condomínios fechados explicitam a deterioração da qualidade de vida das cidades brasileiras, da qual se beneficiam ao vender uma alternativa de habitar a urbe.
Alphaville,
verdadeiramente, é uma futurística “cidade-dentro-da-cidade”, oferecendo um
refúgio isolado, uma fuga da “cidade grande” e todos os seus problemas. É um
mini-universo enclausurado, auto-suficiente, com seu próprio centro comercial,
seus próprios supermercados e seus próprios espaços de recreação para acomodar
seus residentes (Murray,
2004, p. 25).
Figura Nº2
Favela à frente
de condomínio vertical fechado – São Paulo, 2004.
Autor: UNION,
2004.
Os condomínios fechados estabelecem um novo padrão de segregação espacial e desigualdade social, substituindo, aos poucos, a díade centro-rico / periferia-pobre (Figura Nº 2). Os espaços são (res)segregados, fragmentando-se em múltiplos territórios urbanos. Hamburger (2003: 52) comenta essa configuração a partir da favela Paraisópolis:
Situada no coração de um dos bairros mais ricos da cidade de São Paulo, Paraisópolis sintetiza de maneira poderosa alguns dos paradoxos da sociedade brasileira no início do terceiro milênio. A discriminação social está dramaticamente inscrita nesse território. Mansões situadas em ruas asfaltadas circunscrevem barracos de madeira, trilhas de terra com esgoto correndo a céu aberto. Edifícios cercados por grades e sistemas de segurança possuem varandas em cada andar, algumas munidas de piscinas bucolicamente voltadas para a paisagem de pobreza. Enquanto as ruas do bairro de classe média alta foram desenhadas à maneira tortuosa que caracteriza os bairros ricos paulistanos, as ruas da favela seguem a convenção “igualitária” de grade que marca o estilo das cidades norte-americanas.
A implantação desses
enclaves fortificados, nas cidades, reflete, não apenas o incremento das taxas
de crimes violentos, mas diversas variáveis socioeconômicas e do mercado imobiliário,
posto que “estatísticas são construções, e, dependendo de como são desenhadas e
os números agregados ou separados, podem originar diferentes imagens da
'realidade social'” (Caldeira, 2000: 115).
De fato, as estatísticas do crime são parte do discurso, promovido pelo marketing imobiliário e sustentado pela mídia sensacionalista que assevera a insegurança dos espaços públicos. Este discurso contrapõe o território das classes perigosas, e da violência que praticam, aos enclaves fortificados. No discurso da ordem, a segurança deixa de ser uma necessidade social, para ser a satisfação de um desejo, transferindo-se do âmbito público ao privado.
Os condomínios fechados expõem uma ordem normativa, típica das últimas décadas do século XX, nas quais o papel dos Estados nacionais se reduziu com a difusão das políticas neoliberais. Neste contexto, espaços públicos, como ruas, praças e parques, calçadas e transportes coletivos, deterioram-se, deixando de ser palco do convívio social para se tornarem meros territórios de passagem rápida, enfraquecendo a relação entre cidadão e cidade. Esses espaços são substituídos, paulatinamente, por espaços privados, como os condomínios fechados, os shopping centers e os clubes particulares.
Consoante com Murray (2004), essa redução do espaço público, com a militarização dos locais de congregação social e a expansão da injustiça espacial, acarreta a perda de variadas dimensões da vida urbana, da diversidade que a cidade propõe, que abre caminho ao conhecimento do outro e à experimentação das diferenças.
Nesse quadro, o urbano deixa de ser um todo coerente, para
ser um caleidoscópio, que “assume diferentes formas e cores em tempos
diferentes e lugares, dependendo do ângulo de visão e a qualidade de luz”
(Murray, 2004: 11). A cidade fragmentada, a urbanização precária, face às
disparidades extremas de renda, alimenta a insegurança.
As zonas militarizadas
– verdadeiros cordões sanitários – denotam que a conformação do urbano é um
processo sócio-espacial complexo que codifica relações de poder nas práticas da
vida cotidiana. Emergem novas governamentalidades do espaço. A privatização dos
serviços de segurança reflete esse quadro normativo, dando poder de fogo
àqueles que podem pagar por sua segurança pessoal e pela proteção de sua
propriedade.
Analisando a cidade de São Paulo, Murray (2004) informa-nos que a taxa de homicídio, nessa região
metropolitana, mais que triplicou durante os anos 1990, para aproximadamente 60
assassinatos por 100.000 residentes, que podem ser comparados com os índices de
7,4, de Washington, e os 7,8, de Nova Iorque. Em 2001, 307 homens, mulheres e
crianças foram seqüestrados no Estado de São Paulo.
Prisioneiros do medo,
os moradores de condomínios fechados não hesitam em arcar com cerca de 20% das
despesas condominiais com segurança. Em 1985, os policiais, no Brasil, excediam
em número os agentes de segurança privados numa relação de três para um.
Entretanto, em menos de duas décadas, a metrópole paulista tem 400.000 seguranças privados contra
120.000 oficiais de polícia (Murray, 2004). De fato, a segurança privada tornou-se a forma
padrão de policiamento entre os ricos.
Além de vender
condomínios fechados, tais índices vendem carros blindados, helicópteros, pessoal
e equipamentos de segurança. Este mesmo trabalho aponta a existência de 15.000
veículos à prova de balas nas ruas paulistanas, um mercado que cresce 15% ao
ano (idem).
Mas a insegurança
invade, até mesmo, os carros blindados. As ruas abarrotadas de São Paulo e os
engarrafamentos periódicos são apontados como oportunidades propícias para o roubo de veículos estacionados
ou para o seqüestro de seus ocupantes. Por isso,
O mito do isolamento
auto-suficiente, levado a cabo pelas elites, implica a implosão de qualquer
possibilidade de sobrevivência do público. Mais que nunca, o espaço urbano torna-se um terreno
de lutas, altamente desiguais, em que se corroem os direitos de cidadania. A
arquitetura do medo exibe a forma urbana do extermínio.
Gênese da cultura do extermínio
Cruz-Neto e Minayo (1994) propugnam que o extermínio é a materialização de uma sentença pronunciada por segmentos da sociedade, que legitimam tal fenômeno, de caráter sócio-político e cultural, em um contexto ideológico autoritário. Assim, vítima e exterminador são de natureza coletiva.
Arendt (1990) afirma que é a moderna sociedade de massas que produz o fenômeno do extermínio e que nem as democracias estão imunes a ele, na medida em que são produzidas “populações supérfluas”. As massas, politicamente neutras e indiferentes, se referem a um conjunto de pessoas que, por seu número ou sua indiferença, ou pela mistura de ambos, não se integram em uma organização baseada em interesses comuns. Paradoxalmente, o governo democrático repousaria na silenciosa tolerância e aprovação de “setores desarticulados do povo”, a massa, tanto quanto nas instituições articuladas, organizadas e visíveis do país (Arendt, 1990).
Para Baudrillard
(1993: 33), “as massas não escolhem, não produzem diferenças e sim
indiferenciações”, “não são boas condutoras nem do político, nem do social, nem
do sentido. Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das
constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido”
(Baudrillard, 1993: 9).
A sociedade do consumo dirigido, tutelada pelo Estado, proposta por Henri Lefèbvre, é responsável pela homogeneização por meio da diferença, que torna o homem incapaz de nomear quais são suas reais necessidades, achatando a psique do ser humano. “A contestação se vê imediatamente ou reduzida ao silêncio, ou marginalizada e, por isso mesmo, neutralizada, ou absorvida e integrada” (Lefèbvre, 1996 apud Cunha et al., 2003: 13).
Lefèbvre demonstra a emergência da sociedade terrorista a partir da sociedade burocrática de consumo dirigido. O termo terrorismo, no vocabulário lefebvriano, corresponde a “um estado difuso de manutenção de tensões repressivas, próprias do mundo moderno, e decorrentes de lógicas avançadas de reprodução do capitalismo na sociedade de consumo” (Cunha et al., 2003: 14).
Este arranjo faz de toda sociedade de classes uma sociedade repressiva em sua natureza; essa é a pré-condição de sua reprodução. A sociedade terrorista seria, por fim, o resultado lógico e estrutural da sociedade repressiva. Toda a contestação aí seria silenciada, absorvida e integrada, ou marginalizada e neutralizada pelo extermínio real ou simbólico de grupos indesejáveis das massas.
As massas são, pois,
uma produção social de diferentes sistemas políticos modernos e se configuram
como um contingente populacional ora “funcional”, ora “supérfluo”, podendo
parte dele ser sacrificada ou escolhida como exterminadora, muitas vezes
superpondo as duas funções.
Incredulidade, indiferença ou medo de envolver-se faz com que 61% das vítimas de agressão física não recorram à instituição polícial, como denotam os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo IBGE em 1988, primeira e única investigação sobre vitimização com cobertura nacional:
La violencia letal parece, que en efecto aumenta drásticamente cuando
la población urbana excede el 70% (Cano
y Santos, 2001:73). Una comparación entre los diferentes municipios revela, un
diferencial comportamiento de la violencia según las distintas áreas de
Cruz-Neto e Minayo (1994)
caracterizam o fenômeno do extermínio:
·
Ele é parte de um
projeto político de grupos que se arrogam o direito e o poder de selecionar
camadas da sociedade a serem eliminadas, expulsas ou circunscritas. Sua
retórica é a da divisão da sociedade entre os benfeitores do povo (os que
propõem o extermínio) e os malfeitores (os alvos do extermínio). Segundo Arendt
(1990: 186), “uma política de força completamente destituída de princípios só
se pode exercer quando há uma massa igualmente isenta de princípios e
numericamente tão grande que o Estado e a Sociedade não podem controlá-la”.
· Os “exterminadores” se constituem em grupos e suas vítimas preferenciais configuram-se pela origem e/ou posição de classe, por suas opções sexuais e políticas, sua raça, etnia, e/ou de sanidade física e mental.
· O extermínio é um ato político revestido de intencionalidade, declarada ou não pelos executores e, mesmo institucionalizado, representa uma vontade geral abstrata: “um meio de estabelecer a justiça na terra, algo que a legalidade da lei positiva nunca pôde ou pretendeu conseguir” (Cruz-Neto e Minayo, 1994: 204).
·
Atuando em prol da
limpeza social ou da eliminação de populações supérfluas, o extermínio
representa o ponto culminante de um longo processo de remoção, deportação e
perseguição de populações, que constituem um estorvo no caminho de programas de
purificação racial, projetos de industrialização forçada ou controle
populacional.
· O extermínio é perpetrado pela tortura e seqüestro das vítimas e pelo uso do terror como pedagogia da superfluidade de todos, de sorte que “uma pessoa pode morrer em decorrência da tortura, da fome sistemática, ou porque a prisão está superpovoada e há necessidade de se liquidar o material humano supérfluo” (Arendt, 1990: 493). Trata-se de
“atingir indivíduos considerados como nós em
redes de relações familiares e sociais quantitativamente numerosas e através
daí atingir indiretamente o maior número possível de pessoas a fim de criar
nela, pelo terror, um habitus de aceitação passiva, ainda mais [para promover]
o desligamento e a eliminação do sujeito como origem da palavra” (Pinheiro,
2002: 3).
· A idéia de limpeza social traz imbutida em si a filosofia de banalização da vida e da morte, a desumanização das relações sociais, negando o projeto de cidadania e subjetividade. “A vida e a morte são tratadas como coisas meramente descartáveis e funcionais, porque, na verdade, os indivíduos são também assim considerados” (Cruz-Neto e Minayo, 1994: 20).
· O movimento totalitário de extermínio apropria-se de um aparato militar ou paramilitar, organizado em sociedades secretas, à disposição para eliminar as categorias indesejáveis.
Cruz-Neto
e Minayo (1994: 207)
afiançam que o
extermínio, baseado na limpeza social e na população supérflua, é um fato
“endêmico” no Brasil:
Vai se construindo no
país um senso comum de que temos um excesso de população (pobre),
economicamente supérflua e socialmente sem raízes, candidata à delinqüência e,
portanto, sem utilidade numa sociedade competitiva que aspira às riquezas da
civilização e à modernidade.
Tais idéias grassam nos períodos de maior desintegração social, quando os milhares de “indesejados” somam-se aos desempregados. Na sociedade brasileira, a exclusão não é explicitada em doutrinas, em milícias e chefias caracterizadas. Apesar disso, “a crença na serventia da tortura é uma doença crônica brasileira” (Pinheiro, 2002) que, como o extermínio no Brasil, é “um processo de aniquilamento, de exclusão e eliminação de grupos sócio-econômicos e culturais considerados ‘marginais’, ‘supérfluos’ e ‘perigosos’” e, em última instância, uma forma de controle populacional e social” (Cruz-Neto; Minayo, 1994: 207).
A ideologia do
extermínio se expressa na noção de que os grupos sócio-econômicos indesejáveis
não deveriam ter filhos, porque assim só aumentam a miséria do país. Como são
pobres, são incapazes de cuidar de seus filhos, que, por isso, tornam-se
marginais, ameaçando a vida e o patrimônio das pessoas consideradas de bem.
Destarte,
[...] varias teorías
sustentan que las poblaciones económicamente desfavorecidas se sienten mas
atraídas a involucrarse en actividades criminales, como un intento de obtener
ingresos que no pueden lograr en el mercado legal. De la misma forma se
considera que la degradación de los entornos urbanos y las aglomeraciones de
personas en los domicilios (hacinamiento) podrían estimular conductas
violentas. Esta perspectiva puede llevar a conclusiones simplistas de que los
indicadores sociales mas bajos y los peores índices de desarrollo urbano
promueven mayores tasas de homicidios (VALLADARES et al., 2004: 27).
Segundo tal ideologia, os pobres o são por fatalismo ou hereditariedade, sendo “geneticamente” estúpidos, preguiçosos e inclinados ao crime, do que se infere que não necessitam existir. Ao mesmo tempo, esta ideologia se desdobra na necessidade de forçar os pobres ao controle da natalidade, o que tem por corolário os programas de esterilização de mulheres, patrocinados por agências externas, em articulação com instituições do país. Tal ideologia vê na mortalidade infantil um instrumento da seleção social e sustenta que, apesar do controle da natalidade e da mortalidade infantil, “eles continuam a aumentar, a crescer, a invadir os patrimônios e as terras no campo, e a inchar as superfícies das grandes cidades” (Cruz-Neto; Minayo, 1994: 208).
Estes autores afirmam que este raciocínio esconde um projeto político excludente, incapaz de pensar um processo redistributivo e um convívio cidadão para os que não integram o circuito produtivo. Em tal contexto, vicejam as idéias de que a eliminação física dos criminosos resolveria o problema do crime e de que uma fronteira real, com muros e grades, pode separar os bons dos maus, que se materializa na construção de fortalezas condominiais.
A cultura do extermínio na sociedade brasileira está presente em amplas camadas da população que, vendo os pobres como representação do mal e a si como pessoas de bem, decretam, tacitamente, a sentença de morte dos grupos indesejáveis. Os governos corroboram tal posição, quer por omitir tais grupos dos projetos de futuro para o país, quer pela ausência de apuração dos crimes de extermínio perpetrados contra eles.
“Retirando a máscara
da hipocrisia”, “comerciantes dos grandes centros urbanos, lesados ou
amedrontados pelos delinqüentes de rua”; fazendeiros “que matam trabalhadores
em busca de um pedaço de terra para trabalhar” e os grupos econômicos,
envolvidos na mineração e extração de madeira e com a rede do narcotráfico
“recorrem freqüentemente ao extermínio para defender seus interesses de
propriedade” (Cruz-Neto; Minayo, 1994:
208), seus
territórios e mercados.
Entre 1985 y 1995,
el personal ocupado en actividades de vigilancia y seguridad presento un
incremento de 112% [...] ciertamente relacionado con la deslegitimización
de los órganos de seguridad publica, en los cuales la población hace mucho, ha
dejado de confiar (Valladares et al., 2004: 30).
A incumbência de
executar a sentença condenatória advinda das “massas” pertence ao justiceiro;
ao Esquadrão da Morte; aos grupos paramilitares e às organizações do tráfico.
Grupos locales que
son una especie de policía privado (ilegal y discriminatorio) en las favelas de la periferia de la ciudad, algunos de los cuales
han surgido bajo la inspiración de una organización paramilitar de policías
denominada “Escuadrones de la muerte” creada durante el periodo de la dictadura
militar, cuyo objetivo básico era matar (e achacar) bandidos. Tiene una fuerte
evidencia de ligación entre la “policía mineira” y
las actividades subterráneas de las agencias policiales regulares aun que, en
algunos casos – como lo demuestra el ciudadano citado- tenga soporte popular
para sus actividades (Valladares et al., 2004: 10).
A mentalidade de
“limpeza” através da justiça por conta própria vem se deslocando do meio
policial e atingindo vários segmentos da sociedade civil, de sorte que a taxa de
homicídios por 100 mil habitantes é crescente e elevada, subindo de 19,21 mortes em 1992 para 27,84 em 2002 (IBGE, 2004), 40%
de aumento em dez anos, um aumento “muy superior al crecimiento de la población: 50% contra 15,6% durante el
mismo período” (IBGE, 2004: 25). Estos índices incidem, particularmente, sobre
a população masculina entre 15 e 24 anos. “Datos referentes al año 2000 muestran que,
con respecto a la población total del país el 4,7% de las muertes son por
homicidio. Entre los jóvenes, los homicidios son responsables por el 32% del
total de muertes” (Waiselfitz, 2002 apud Valladares,
2004: 26).
O extermínio, enquanto
dinâmica social, é fruto, fundamentalmente, dos conflitos humanos gerados pela
negação do outro, do diferente e da utopia da igualdade. Sem projeto de vida
enquanto indivíduo, e sem projeto social enquanto cidadã, à “população
supérflua” resta o projeto do extermínio simbólico ou real (Cruz-Neto; Minayo, 1994: 210).
Para Pinheiro (2002), essa
“mentalidade aberta” para a tortura, uma das constituintes do extermínio, é
mais perigosa que sua defesa pública, pois apóia uma ação policial
guarda-fronteira para deixar as elites a salvo das classes perigosas.
Dado
que, como afiançam Valladares et al. (2004: 4), no “Estado mínimo”, exigido pelas políticas
neoliberais, há “un incremento del déficit habitacional y el paralelo
crecimiento de los espacios informales y precarios de vivienda” e “un
crecimiento de la ‘economía de la ilegalidad’”, faz-se, no entender das elites,
progressivamente mais necessária, tal ação policial no tecido urbano
brasileiro.
A militarização do
espaço urbano, em parte uma decorrência da transferência da questão pública da
segurança para o âmbito do privado, certifica, na cena política brasileira, não
apenas a disseminação de uma cultura de extermínio, sobretudo no tecido urbano
do território nacional, mas, antes de qualquer coisa, a negação do projeto de
uma cidadania democrática. Se essa negação se confirmar, de fato, indagamo-nos
se ou até quando a cidade de muros poderá conter a violência, evitando
comparações com as muralhas que (de)limitavam, também do ponto de vista
psicológico (ou dos sentimentos das pessoas), as cidades medievais, cuja
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© Copyright Vânia Rubia Farias Vlach y Sandra Rodrigues Braga, 2005
© Copyright Scripta Nova, 2005
Ficha
bibliográfica:
FARIAS, V.; RODRIGUES, S. Militarization of the urban
area and the culture of extermination: initial considerations. Scripta Nova. Revista electrónica
de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de
Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (56).
<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-56.htm> [ISSN: 1138-9788]
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