Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (62), 1 de agosto de 2005

 

ORDENANDO O ESPAÇO PÚBLICO : A CRIAÇÃO DAS FEIRAS LIVRES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

 

 

Gilmar Mascarenhas de Jesus

Departamento de Geografia Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E- mail: gilmasc2001@yahoo.com.br


Ordenando o espaço público: a criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro (Resumo)

A feira livre na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904, como um modelo de inspiração européia, calcado em “modernos” princípios de beleza, disciplina e higiene, modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil urbano. O objetivo deste trabalho é avaliar o contexto e o significado da criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro, enfocando a questão dos espaços públicos e o projeto de uma nova ordem urbana. O fio condutor deste trabalho é a perspectiva da modernidade como matriz ideológica e processo de reordenamento concreto da vida cotidiana, no sentido da implantação de uma nova ordem sobre os espaços públicos. Uma iniciativa que, no plano mais geral, se configura como estratégia burguesa de transição da antiga cidade colonial ao espaço da modernidade.

 

Palavras chave: feiras livres, espaços públicos, Rio de Janeiro.


Organizing the public space: the creation of the street markets in Rio de Janeiro city (Abstract)

 

Rio de Janeiro street market was created in 1904, as a European-based model with modern principles of beauty, discipline and hygiene. This model was gradually diffused and consolidated through the urban Brazilian system. This paper aims to analyse the context and the meaning of the creation of Rio de Janeiro street markets, examining the public space and the project of a new urban order. The main aspect of this research is the perspective of the modernity as ideological fundamental and the concrete reorganizing of the daily life, in the sense of a new order in the urban public space. The creation of Rio de Janeiro street markets represents an elitist strategy in the transition from the colonial city to the space of modernity.

 

Key words: Street markets, public space, Rio de Janeiro.


 

Introdução

 

A feira livre na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904. Tal ato da municipalidade representou a culminância de um crescente processo de intervenções sobre as estruturas do varejo herdadas da cidade colonial, desterritorializando-as brutalmente. Em seu lugar, um modelo de inspiração européia calcado em “modernos” princípios de beleza, disciplina e higiene, modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil urbano.

 

Após consultas aos códices de abastecimento do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, podemos afirmar que desde pelo menos 1880 já se esboça um conjunto de medidas de restrição às formas populares de varejo consideradas rudimentares e promíscuas, avessas aos princípios do higienismo. Naquele contexto, o cotidiano dos espaços públicos era preenchido pelos vendedores ambulantes e negras quitandeiras (do quimbundo kitanda: mercado). Para alguns, conferindo à cidade um pitoresco aspecto “árabe”; para outros, o lamentável resquício de um passado que se quer sucumbir pela força do progresso. Para contornar a crise crônica do abastecimento numa cidade em rápido processo de reestruturação, a prefeitura do Distrito Federal inicialmente decidiu pela multiplicação dos mercados cobertos, por volta de 1870. Tal iniciativa permitia muito maior controle sobre o varejo, mas somente a posterior criação do sistema de feiras livres iria abrigar plenamente os ideais civilizadores de beleza e higiene.

 

O objetivo deste trabalho é avaliar o contexto e o significado da criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro. Pretende-se, num primeiro momento, analisar o contexto de criação das feiras livres, enfocando a questão dos espaços públicos e o projeto de uma nova ordem urbana. A seguir, com base no levantamento em fontes primárias, pretendemos examinar as medidas municipais relacionadas ao sistema de abastecimento urbano no período que antecede a Reforma Passos; para enfim avaliar o projeto de criação das feiras livres e seu funcionamento. O fio condutor deste trabalho é a perspectiva da  modernidade como matriz ideológica e processo de reordenamento concreto da vida cotidiana, no sentido da implantação de uma nova ordem sobre os espaços públicos. Um paradigma urbanístico que, no plano mais geral, se configura como estratégia burguesa de transição da antiga cidade colonial ao espaço da modernidade.

 

Considerando-se as enormes lacunas documentais que o tema apresenta, acreditamos que o presente trabalho se reveste do mérito de lançar breves olhares sobre  zonas até então pouco iluminadas pela pesquisa acadêmica.

 

 

Sobre os espaços públicos e a construção da ordem na cidade

 

 

A modernidade, com sua reiterada aura otimista de fé inabalável no progresso, impulsionou nas cidades novos valores comportamentais, enquadrados numa “nova economia de gestos” (Rago, 1987), que ajudam a compor a nova ordem urbana. Vale registrar que entendemos a atmosfera moderna como portadora não apenas de todo um conjunto de novas expectativas e práticas sociais, mas também de decisivas transformações na espacialidade urbana, destruindo velhas urbanidades e as substituindo por novos formatos. As grandes reformas urbanísticas européias da segunda metade do século XIX abriram amplos espaços públicos e os preencheram com monumentos que discursam o triunfo da burguesia, bem como os dotaram de eventos e cerimoniais de apologia a este período que, para alguns, se define como a “bela época”.

 

Para compreender a dimensão e alcance desta profunda transformação dos espaços públicos no Brasil, é preciso retomar a natureza destes nos marcos da cidade colonial. Razão pela qual, dedicaremos a seguir algumas observações.

 

Operar uma distinção absoluta entre um urbano colonial e um outro que lhe é consecutivo e “moderno” é reconhecidamente uma tarefa arriscada. No caso brasileiro, estes dois períodos da evolução urbana comparecem de forma visível em cidades como o Rio de Janeiro, o que não significa dizer que se pode estabelecer um momento preciso de ruptura entre um passado colonial que cede lugar à modernidade. A vida urbana encerra facetas diversas, e cada uma delas pode apresentar um movimento relativamente diferenciado do conjunto. No plano político-administrativo, por exemplo, a cidade perde sua condição colonial em 1822, com a proclamação formal da independência nacional. No plano econômico, entretanto, as estruturas de dominação e exploração colonial persistiram, sob a égide do Império Britânico. Se observarmos por outro lado a forma urbana, podemos concordar com Maurício Abreu (1987: 67) e supor que a herança colonial-escravocrata na fisionomia da cidade somente é removida definitivamente da paisagem carioca com a radical reforma de Pereira Passos, já no início do século XX, quando o traçado irregular e acanhado de vielas, largos e becos da área central cede a preferência aos amplos e retilíneos boulevares de arquitetura monumental, símbolos da modernidade capitalista.

 

No plano das sociabilidades e usos dos espaços públicos na cidade do Rio de Janeiro, talvez seja prudente basear-se num longo processo de transição das estruturas da vida cotidiana, que se inicia discretamente em 1808, com a abertura dos portos e a chegada da família real e seu novo conceito de vida urbana. O movimento adquire força a partir de 1850, com a adesão crescente ao “mundanismo”(Buarque, 1994) e vai se consolidar já em plena belle époque, quando finalmente novas possibilidades de experiência encontram um cenário urbano propício.

 

As limitações de sociabilidade não se restringem às praças, rossios e largos da cidade colonial: as ruas, segundo Reis Filho (1968: 130-1), não apenas apresentavam  o por demais conhecido aspecto medieval de escassa largura e grande irregularidade como também não tinham, na maior parte dos casos, qualquer significado como local de permanência. Delgado de Carvalho (1994:105), por exemplo, comenta a falta de dinamismo social nas ruas ao apontar para o fato de inexistir nas elites e classes médias do Rio de Janeiro até meados do século XIX o hábito de sair de casa, exceto a freqüência socialmente obrigatória à missa dominical. A atitude das classes dominantes é bastante clara neste aspecto: deixar evidente a profunda diferença para com aqueles que, desprovidos de qualquer nobreza, necessitam trabalhar com base no esforço muscular. Tal atitude deixará profundas marcas nos espaços públicos de nossas cidades: durante a maior parte do tempo estes serão povoados quase que exclusivamente pelas massas de negros escravos em sua pesada labuta cotidiana: o varejo ambulante, a coleta de água, o transporte de pessoas e mercadorias, etc..

 

Benchimol (1990:28-32), em seu exaustivo levantamento sobre as condições materiais da cidade às “vésperas” da Reforma Passos, comenta que os escravos dominavam a paisagem das ruas, em trajes indecentes para os padrões “familiares”. Outros aspectos como o mau cheiro, o tráfego intenso, barulhento e perigoso dos carroceiros, além do péssimo estado do calçamento das ruas, tornavam os espaços públicos muito pouco convidativos, sobretudo para as senhoras brancas, que praticamente viviam enclausuradas em seus lares.

 

A partir de um determinado momento, a tradicional rigidez de nossos espaços públicos, vigente durante a maior parte do ano, tornara-se coisa do passado. Segundo Roberto Moura (1995:76),

 

“A complexidade crescente da cidade do Rio de Janeiro e a diversificação social de sua população geraria nos últimos anos do século um público novo, a quem não mais satisfaria, em sua ânsia de divertimentos, os dias de entrudo e as festas religiosas ao longo do ano cristão oferecida pelas paróquias”.

 

Atribuímos este novo momento ao advento da modernidade urbana, noção que devemos distinguir de modernização e modernismo. O conceito de modernização, quase sempre atrelado ao de modernidade, se move na literatura geográfica com grande fluidez e diversidade de acepções. Milton Santos (1994:71) chega mesmo a sugerir que não existe uma única modernidade, mas várias, e portanto existiriam modernizações sucessivas.

 

Restringindo nossa reflexão ao âmbito da modernidade na cidade, poderíamos adentrar pelo universo discursivo do urbanismo, onde a modernidade urbana somente começa com a obra de Le Corbusier e as realizações da Bauhaus, no pós-primeira guerra mundial, baseada sobretudo na abolição da rua (Choay, 1992: 20). Neste sentido, o modelo de cidade modernista em Holston (1993), por exemplo, é Brasília, enquanto o Rio de Janeiro apenas conserva, no aparato conceitual do autor, as estruturas urbanas pré-modernas. Holston aliás não difere cidade moderna de cidade modernista, deixando implícita a possível condição de palavras sinônimas. O modernismo, enquanto movimento estético de amplo alcance, seria a matriz das experiências de modernização urbana. Preferimos porém concordar com Harvey (1993: 34), que situa o urbanismo modernista mais como consequência do que  causa da modernidade urbana, tomando-a como o ambiente concreto de perplexidades, que se manifesta na experiência urbana como crise fomentadora de fecundas reflexões urbanísticas. Com efeito, a modernidade se instala na vida urbana antes do advento do urbanismo de inspiração modernista.

 

Nesta linha, há uma corrente de estudiosos da história da cidade e do urbanismo onde as noções de modernização e modernidade urbana se aplicam às intervenções que diversas cidades brasileiras sofreram a partir de meados do século passado, tendo seu ápice na Reforma de Pereira Passos. A modernização conviveria com modelos urbanos pretéritos numa mesma cidade, eliminando, neste caso, definições absolutas de cidade moderna ou pré-moderna.

 

A noção de modernização urbana aqui tomada (e conseqüentemente a de cidade moderna) vai ao encontro das reflexões de Marshall Berman (1987), que as desenvolve no sentido da concepção marxista de moderna sociedade burguesa. Um quadro alarmante composto por extremos contrastes materiais de condições de vida, envolvendo a experiência inédita das multidões, a laicização/profanização do sagrado, confluindo num ambiente urbano onde as referências tradicionais se diluem numa paisagem inconstante. Modernidade assim definiria este ambiente propiciador de imensas possibilidades, enquanto a modernização poderia ser concebida como a particular via burguesa de lidar com esta modernidade, resolvendo suas profundas contradições com drásticas reformas urbanas e investimento em melhoramentos técnicos, conforme nos aponta Barbosa (1990: 48-9), baseado em Berman e Lefebvre. Tal modernização não se detém no aspecto técnico-material, mas incorpora e realça uma face de dominação, através da explícita segregação sócio-espacial e do severo controle disciplinar no trabalho, nas vilas operárias e nos espaços públicos, preocupação aliás presente em diversos trabalhos, dos quais gostaríamos de destacar Bresciani (1982), Rolnik (1988), Rago (1985) e Chalhoub (1986).

 

 

O Contexto do Surgimento das Feiras Livres

 

 

No momento em que Pereira Passos assume a gestão da cidade, esta apresentava um cenário complexo no tocante à estruturação e distribuição espacial do pequeno comércio, herdado de séculos de um longo passado colonial. Quando o prefeito inicia seu tão famoso bota-abaixo, remodelando a área central do Rio de Janeiro não apenas na fisionomia, mas sobretudo nas práticas sociais (expulsando os deselegantes, arcaicos e promíscuos usos populares), os espaços públicos do centro da cidade estão majoritariamente animados em seu cotidiano pelas formas mais rudimentares de mercadejar (Carvalho, 1994). Entende-se facilmente a razão pela qual não são poucos os autores de época que comparam o Rio de Janeiro a uma cidade árabe (Barbosa, 1990). Um contingente humano que Pereira Passos definia como formado por “toda a sorte de malandros e desocupados” (Menezes, 2003).

 

Dada a natureza informal destas atividades, o que resulta em escassa documentação, difícil seria tentar mensurar e mapear este duplo contingente de mercadores, entre os ambulantes (aparentemente um grupo muito mais numeroso) e aqueles assentados precariamente em pontos fixos nas vias públicas, exercendo seu ofício de forma relativamente sedentária. Debret, Rugendas e Chamberlain, para citar apenas alguns, deixaram-nos registros diversos desta modalidade de comércio através de aquarelas, estampas e outras formas de expressão. Sabemos pois de sua existência notória e difusa, mas não podemos ir muito além da mera constatação do fato.

 

Obras como as de João do Rio (1991) e Luis Edmundo (1938) nos remetem a um quadro panorâmico e pitoresco da heterogeneidade das formas de comércio ambulante na cidade de Rio de Janeiro. Por outro lado, Menezes (2003) e Benchimol (1990: 280-5) apresentam todo um conjunto de intervenções públicas radicais neste universo, eliminando das áreas centrais, confinando e regulamentando crescentemente tais atividades, sobretudo no contexto da Reforma Passos, sob alegações de defesa da higiene e circulação públicas. Consultas aos códices de abastecimento do Arquivo da Cidade nos permitem afirmar que desde pelo menos 1880 já se esboça este conjunto de medidas de restrição. Contudo, somente na gestão remodeladora da cidade que estas serão aprimoradas e mais efetivamente cumpridas. Também os velhos quiosques, pontos de concentração de trabalhadores pobres, foram reconhecidamente alvo fatal da fúria civilizadora de Pereira Passos.

 

Merecem ainda destaque as populares quitandas (do quimbundo kitanda: mercado), regularmente presentes na cidade brasileira desde o início do período colonial. Constituem aglomerações de negras ao ar livre, acocoradas ou dispondo de tabuleiros, situadas em pontos preestabelecidos, para a venda de produtos da pequena lavoura, da pesca e da indústria doméstica. A literatura nos deixa vagas referências a esta modalidade de varejo que, na aparência de um arremêdo de feira (Guimarães, 1968: 21), represente talvez a principal forma precursora das feiras livres do início do século XX. No final do século XVIII, o Rio de Janeiro contava com o significativo conjunto de 181 barracas de quitandeiras (Barreto F. ; Lima, A. 1992: 65).

 

O processo de territorialização destas modalidades populares de comércio se consumou através das muitas décadas de uma urbanização acelerada porém baseada em muitos aspectos no modelo colonial. A manutenção de um traçado aparentemente irregular, próprio da colonização lusitana, repleto de ruas estreitas e dotado de poucos espaços amplos, resultou na configuração de uma trama congestionada e ruidosa de pontos de comercialização varejista. Por outro lado, a presença numerosa de negros, e posteriormente de grupos de imigrantes estrangeiros, num quadro de baixa oferta de empregos, impuseram à cidade diferentes formas de comportamento territorial na luta cotidiana pela sobrevivência, de forma tal que esta parece ter sido, na virada do século, um fantástico laboratório de territorialidades populares. Laboratório este que sofreu um choque desterritorializante com a Reforma Passos.

 

Expulsos os quiosques, as kitandas ou feiras africanas, os ambulantes incompatibilizados com os novos padrões de civilidade, enfim, todo um conjunto de meios de sobrevivência popular, o que adveio em seu lugar?

 

Para substituir as tradicionais formas de distribuição varejista de alimentos, a prefeitura do Distrito Federal decidiu pela multiplicação dos mercados cobertos, iniciativa que remonta a aproximadamente 1870, mas somente então ganha efetivo incentivo governamental, incluindo a doação de terrenos públicos para sua construção e exploração por empresas privadas. O capital internacional também se utilizou desta prerrogativa (Benchimol, 1990: 283-4). Tais medidas representam não apenas a possibilidade maior de fiscalização pública e controle das atividades varejistas agora confinadas em edifícios dotados de portões como uma fortificação. Significam também mais um passo no sentido de superar o tão criticado aspecto árabe da cidade e remover da paisagem o passado escravista-colonial, pela redução, afastamento ou mesmo dissolução das aglomerações de negras quitandeiras.

 

Uma outra forma de comércio estimulada, aliás concebida, pela moderna administração da cidade foi a feira-livre, criada em 13/10/1904. O texto do decreto 997 se refere a “feiras ou mercados livres”, sem no entanto explicar a adoção do adjetivo livre, que posteriormente se incorporou em definitivo ao nome (feira-livre) gerando uma denominação intraduzível para outros idiomas. Assim é  adotada em todo o Brasil para designar as feiras semanais de caráter intra-urbano (de âmbito praticamente restrito ao bairro), diferentes daquelas tradicionais que reunem compradores e vendedores oriundos de áreas distantes, muito comum no Nordeste, e que preferimos denominar feiras regionais (Mascarenhas, 1991).

 

O que nos interessa porém é inserir esta iniciativa governamental no contexto das transformações urbanas de então. Um dado importante a considerar é que até o ano de 1916 (quando o decreto 1752 estabelece seu funcionamento diário), tais feiras funcionaram em caráter experimental, realizando-se apenas aos domingos e feriados. Isto nos remete à situação dos mercados cobertos, que certamente desempenharam, pelo menos até aquele ano, um papel muito mais efetivo que as feiras livres no abastecimento da cidade.

 

Não dispomos de qualquer outra informação oficial sobre a realidade das feiras livres cariocas no seu período inicial, mas supomos que seu papel tenha sido muito mais simbólico do que concretamente enquanto veículo de distribuição varejista. Os comentários de Silva (1936) nos convida a pensar que estas parecem ter funcionado como símbolo de higiene, de estética e da racionalidade geometrizante, elementos da fantasia urbanística moderna.  A limpeza e a organização eram rigorosamente fiscalizadas; os horários obedecidos com pontualidade britânica; as barracas enfileiradas em ordem absolutamente geométrica, e apresentando toldos com cores referentes ao tipo de produto exposto. Vários outros aspectos eram severamente observados pela fiscalização pública. O rigoroso policiamento impedia a ocorrência de delitos. O autor chega a compara-las com as congêneres européias (que visitara na Alemanha, Suécia e Dinamarca), pela harmonia e beleza do conjunto (Silva, 1936:.10). Supomos que a feira-livre  tenha consistido em projeto de plena inserção nos objetivos da Reforma Passos, ainda que completamente ignorada pela bibliografia especializada no assunto[1].

 

Levantamos então algumas indagações: seriam as feiras livre de Pereira Passos um território forjado para a fruição das elites? Até que ponto aos deserdados de sua Reforma era permitido o acesso a tais territórios? Certamente poderiam inexistir impedimentos legais a seu acesso, mas sabemos das barreiras invisíveis, aquelas que Haussmann criou ao derrubar as velhas muralhas de Paris para erigir outras, simbólicas e mais eficazes, para repelir o inimigo revolucionário, que vinha convivendo dentro da cidade com os detentores do poder. Tal indagação se fundamenta no reconhecimento de que o espírito da Reforma Passos era profundamente haussmanniano, e que não foram poucas as suas iniciativas (e de seus seguidores na gestão da cidade) no sentido de forjar situações/lugares onde a sociabilidade burguesa pudesse se realizar e se exibir comodamente, a despeito da miséria circundante:

 

Maurice Agulhon (1994), um dos maiores estudiosos da história das sociabilidades, desenvolveu um interessante estudo sobre escultura cívica e decoração urbana, onde procura demonstrar que elementos arquitetônicos como fachadas de edifícios públicos, monumentos como arcos do triunfo, chafarizes, obeliscos e outros elementos edificados nos espaços públicos sobretudo a partir do século passado, não se restringem ao efeito decorativo: têm função didática, exercendo papel particular na pedagogia da ordem burguesa.  Retomando a Paris de Haussmann, a nossa fonte principal de inspiração urbanística, vemos que os grandes espaços abertos pela reforma urbana, apesar de vazios, estão impregnados de sentido: eles proclamam alto e forte a glória e o poder do Estado (Lefebvre, 1991:16).

 

Nesta linha de reflexão sobre os elementos constitutivos da cidade moderna, indagamos até que ponto a feira-livre de Pereira Passos não teria sido concebida enquanto mais um ornamento dedicado à pedagogia da civilização nos trópicos. Sabe-se que todo território circunscreve em seu interior um conjunto específico de possibilidades, ao sugerir determinado comportamento a quem se introduza em seus domínios. No caso das feiras livres, imaginamos que seu formato carregado do sentido de organização, beleza e asseio, inspirasse nos frequentadores aquela nova economia de gestos de que nos fala Margaret Rago (1985). E deixasse, após a visita, aquela imagem da nova ordem civilizadora, induzindo a crença de que a cidade estava realmente mudando, e para muito melhor. Como aliás funcionou um amplo conjunto de novos espaços públicos de então. Afinal, estamos imersos numa conjuntura de  rápido avanço de valores burgueses, algo que entendemos como o contexto particular da modernidade na cidade.

 

 

Conclusão

 

Vimos que os ideais de civilidade contidos no projeto modernizante de Pereira Passos eram  incondizentes com a permanência de feiras africanas e outras práticas de comercialização pelas ruas da cidade. Não obstante a importância destas práticas no abastecimento urbano e na provisão de oportunidades de trabalho, bem como na manutenção de territórios de sociabilidade informal, a Reforma Passos baniu tais usos, desterritorializando formas de sobrevivência e de sociabilidade tidas como impróprias. Em seu lugar estabeleceu territorios de alto grau de disciplina e controle: mercados cobertos e feiras livres.

 

Supomos que as feiras livres, por sua estética (o colorido, as linhas retas) e higiene (ao ar livre, exposição ao sol), sobressaíram em relação aos mercados cobertos, e assumiram a condição de mais um dos muitos espaços públicos festejados como triunfo da burguesia ascendente sobre a barbárie colonial. Uma das hipóteses aqui levantadas é justamente esta: a feira-livre, uma iniciativa tomada por Pereira Passos, comporia junto a outras medidas em relação ao uso e formatação dos espaços públicos da cidade, um amplo projeto de pedagogia da civilização. Nestes territórios diversos (parques, avenidas), alguns de caráter efêmero/periódico (as feiras livres, a batalha das flores, etc.), o cidadão vivenciaria o triunfo da cidade moderna, reeducando seu comportamento (vestuário, asseio, sociabilidade) e repensando a própria sociedade em que vive, tomando-a como progressista e promissora, com grande potencial de civilização redentora.

 

Vimos que, antes do advento das feiras livres e dos mercados cobertos, prevalecia na cidade um amplo leque de modalidades precárias de comércio de rua, movimentado pela necessidade de sobrevivência de indivíduos pobres numa conjuntura de baixa oferta de empregos. A Reforma Passos desfechou sobre este segmento do varejo um golpe violento, desenraizando das ruas do centro da cidade os vários pontos e agentes de comercialização e, com eles, meios de sobrevivência e formas populares de sociabilidade. Em seu lugar, formatou-se um território comercial espelhado na experiência dos mais prósperos centros urbanos europeus.

 



Notas

1 Benchimol (1990), com seu estudo bastante minucioso, e mais recentemente, Pereira (1996) em seu belo trabalho, pretendem percorrer os mais variados aspectos da Reforma Passos, sem entretanto mencionar a feira-livre. Também Abreu (1987), Rocha (1983), Carvalho (1989) e Barbosa (1990), em obras de maior alcance temático, omitem a existência da feira-livre.

 

 

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© Copyright Gilmar Mascarenhas de Jesus, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

Ficha bibliográfica:

MASCARENHAS, G. Ordenando o espaço público: a criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (62). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-62.htm> [ISSN: 1138-9788]

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