Scripta Nova |
ORDENANDO O ESPAÇO PÚBLICO : A
CRIAÇÃO DAS FEIRAS LIVRES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Departamento de
Geografia Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E- mail: gilmasc2001@yahoo.com.br
A
feira livre na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904, como um modelo de
inspiração européia, calcado em “modernos” princípios de beleza, disciplina e
higiene, modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil
urbano. O objetivo deste trabalho é avaliar o contexto e o significado da
criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro, enfocando a questão dos
espaços públicos e o projeto de uma nova ordem urbana. O fio condutor deste
trabalho é a perspectiva da modernidade como matriz ideológica e processo de
reordenamento concreto da vida cotidiana, no sentido da implantação de uma nova
ordem sobre os espaços públicos. Uma iniciativa que, no plano mais geral, se
configura como estratégia burguesa de transição da antiga cidade colonial ao
espaço da modernidade.
Palavras chave:
feiras livres, espaços públicos, Rio de Janeiro.
Organizing the public space: the creation of the street markets in
Key words: Street markets, public
space, Rio de Janeiro.
A
feira livre na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904. Tal ato da
municipalidade representou a culminância de um crescente processo de
intervenções sobre as estruturas do varejo herdadas da cidade colonial,
desterritorializando-as brutalmente. Em seu lugar, um modelo de inspiração
européia calcado em “modernos” princípios de beleza, disciplina e higiene,
modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil urbano.
Após consultas aos códices de abastecimento do Arquivo
da Cidade do Rio de Janeiro, podemos afirmar que desde pelo menos 1880 já se
esboça um conjunto de medidas de restrição às formas populares de varejo
consideradas rudimentares e promíscuas, avessas aos princípios do higienismo.
Naquele contexto, o cotidiano dos espaços públicos era preenchido pelos
vendedores ambulantes e negras quitandeiras (do quimbundo kitanda: mercado). Para alguns, conferindo à cidade um pitoresco
aspecto “árabe”; para outros, o lamentável resquício de um passado que se quer
sucumbir pela força do progresso. Para contornar a crise crônica do
abastecimento numa cidade em rápido processo de reestruturação, a prefeitura do
Distrito Federal inicialmente decidiu pela multiplicação dos mercados cobertos,
por volta de 1870. Tal iniciativa permitia muito maior controle sobre o varejo,
mas somente a posterior criação do sistema de feiras livres iria abrigar
plenamente os ideais civilizadores de beleza e higiene.
O objetivo deste trabalho é avaliar o contexto e o
significado da criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro.
Pretende-se, num primeiro momento, analisar o contexto de criação das feiras
livres, enfocando a questão dos espaços públicos e o projeto de uma nova ordem
urbana. A seguir, com base no levantamento em fontes primárias, pretendemos
examinar as medidas municipais relacionadas ao sistema de abastecimento urbano
no período que antecede a Reforma Passos; para enfim avaliar o projeto de
criação das feiras livres e seu funcionamento. O fio condutor deste trabalho é
a perspectiva da modernidade como matriz
ideológica e processo de reordenamento concreto da vida cotidiana, no sentido
da implantação de uma nova ordem sobre os espaços públicos. Um paradigma
urbanístico que, no plano mais geral, se configura como estratégia burguesa de
transição da antiga cidade colonial ao espaço da modernidade.
Considerando-se
as enormes lacunas documentais que o tema apresenta, acreditamos que o presente
trabalho se reveste do mérito de lançar breves olhares sobre zonas até então pouco iluminadas pela
pesquisa acadêmica.
Sobre os espaços públicos e a construção da
ordem na cidade
A modernidade,
com sua reiterada aura otimista de fé inabalável no progresso, impulsionou nas
cidades novos valores comportamentais, enquadrados numa “nova economia de
gestos” (Rago, 1987), que ajudam a compor a nova ordem urbana. Vale registrar
que entendemos a atmosfera moderna como portadora não apenas de todo um
conjunto de novas expectativas e práticas sociais, mas também de decisivas
transformações na espacialidade urbana, destruindo velhas urbanidades e as
substituindo por novos formatos. As grandes reformas urbanísticas européias da
segunda metade do século XIX abriram amplos espaços públicos e os preencheram
com monumentos que discursam o triunfo da burguesia, bem como os dotaram de
eventos e cerimoniais de apologia a este período que, para alguns, se define
como a “bela época”.
Para compreender
a dimensão e alcance desta profunda transformação dos espaços públicos no
Brasil, é preciso retomar a natureza destes nos marcos da cidade colonial.
Razão pela qual, dedicaremos a seguir algumas observações.
Operar
uma distinção absoluta entre um urbano colonial e um outro que lhe é consecutivo
e “moderno” é reconhecidamente uma tarefa arriscada. No caso brasileiro, estes
dois períodos da evolução urbana comparecem de forma visível em cidades como o
Rio de Janeiro, o que não significa dizer que se pode estabelecer um momento
preciso de ruptura entre um passado colonial que cede lugar à modernidade. A
vida urbana encerra facetas diversas, e cada uma delas pode apresentar um
movimento relativamente diferenciado do conjunto. No plano
político-administrativo, por exemplo, a cidade perde sua condição colonial em
1822, com a proclamação formal da independência nacional. No plano econômico,
entretanto, as estruturas de dominação e exploração colonial persistiram, sob a
égide do Império Britânico. Se observarmos por outro lado a forma urbana,
podemos concordar com Maurício Abreu (1987: 67) e supor que a herança
colonial-escravocrata na fisionomia da cidade somente é removida
definitivamente da paisagem carioca com a radical reforma de Pereira Passos, já
no início do século XX, quando o traçado irregular e acanhado de vielas, largos
e becos da área central cede a preferência aos amplos e retilíneos boulevares
de arquitetura monumental, símbolos da modernidade capitalista.
No plano das
sociabilidades e usos dos espaços públicos na cidade do Rio de Janeiro, talvez
seja prudente basear-se num longo processo de transição das estruturas da vida
cotidiana, que se inicia discretamente em 1808, com a abertura dos portos e a
chegada da família real e seu novo conceito de vida urbana. O movimento adquire
força a partir de 1850, com a adesão crescente ao “mundanismo”(Buarque, 1994) e
vai se consolidar já em plena belle
époque, quando finalmente novas possibilidades de experiência encontram um
cenário urbano propício.
As limitações de sociabilidade não se restringem às praças,
rossios e largos da cidade colonial: as ruas, segundo Reis Filho (1968: 130-1),
não apenas apresentavam o por demais
conhecido aspecto medieval de escassa largura e grande irregularidade como
também não tinham, na maior parte dos casos, qualquer significado como local de
permanência. Delgado de Carvalho (1994:105), por exemplo, comenta a falta de
dinamismo social nas ruas ao apontar para o fato de inexistir nas elites e
classes médias do Rio de Janeiro até meados do século XIX o hábito de sair de
casa, exceto a freqüência socialmente obrigatória à missa dominical. A atitude
das classes dominantes é bastante clara neste aspecto: deixar evidente a
profunda diferença para com aqueles que, desprovidos de qualquer nobreza,
necessitam trabalhar com base no esforço muscular. Tal atitude deixará
profundas marcas nos espaços públicos de
nossas cidades: durante a maior parte do tempo estes serão povoados quase que
exclusivamente pelas massas de negros escravos em sua pesada labuta cotidiana:
o varejo ambulante, a coleta de água, o transporte de pessoas e mercadorias,
etc..
Benchimol
(1990:28-32), em seu exaustivo levantamento sobre as condições materiais da
cidade às “vésperas” da Reforma Passos, comenta que os escravos dominavam a
paisagem das ruas, em trajes indecentes para os padrões “familiares”. Outros
aspectos como o mau cheiro, o tráfego intenso, barulhento e perigoso dos
carroceiros, além do péssimo estado do calçamento das ruas, tornavam os espaços
públicos muito pouco convidativos, sobretudo para as senhoras brancas, que
praticamente viviam enclausuradas em seus lares.
A partir de um determinado momento, a tradicional
rigidez de nossos espaços públicos, vigente durante a maior parte do ano,
tornara-se coisa do passado. Segundo Roberto Moura (1995:76),
“A complexidade crescente da cidade do Rio de Janeiro e a
diversificação social de sua população geraria nos últimos anos do século um
público novo, a quem não mais satisfaria, em sua ânsia de divertimentos, os
dias de entrudo e as festas religiosas ao longo do ano cristão oferecida pelas
paróquias”.
Atribuímos este
novo momento ao advento da modernidade urbana, noção que devemos distinguir de
modernização e modernismo. O conceito de modernização,
quase sempre atrelado ao de modernidade,
se move na literatura geográfica com grande fluidez e diversidade de acepções.
Milton Santos (1994:71) chega mesmo a sugerir que não existe uma única modernidade, mas várias, e portanto
existiriam modernizações sucessivas.
Restringindo
nossa reflexão ao âmbito da modernidade na
cidade, poderíamos adentrar pelo universo discursivo do urbanismo, onde a
modernidade urbana somente começa com a obra de Le Corbusier e as realizações
da Bauhaus, no pós-primeira guerra mundial, baseada sobretudo na abolição da
rua (Choay, 1992: 20). Neste sentido, o modelo de cidade modernista em Holston
(1993), por exemplo, é Brasília, enquanto o Rio de Janeiro apenas conserva, no
aparato conceitual do autor, as estruturas urbanas pré-modernas. Holston aliás
não difere cidade moderna de cidade modernista, deixando implícita a
possível condição de palavras sinônimas. O modernismo, enquanto movimento
estético de amplo alcance, seria a matriz das experiências de modernização
urbana. Preferimos porém concordar com Harvey (1993: 34), que situa o urbanismo
modernista mais como consequência do que
causa da modernidade urbana, tomando-a como o ambiente concreto de
perplexidades, que se manifesta na experiência urbana como crise fomentadora de
fecundas reflexões urbanísticas. Com efeito, a modernidade se instala na vida
urbana antes do advento do urbanismo de inspiração modernista.
Nesta linha, há
uma corrente de estudiosos da história da cidade e do urbanismo onde as noções
de modernização e modernidade urbana se aplicam às intervenções que diversas cidades
brasileiras sofreram a partir de meados do século passado, tendo seu ápice na
Reforma de Pereira Passos. A modernização conviveria com modelos urbanos
pretéritos numa mesma cidade, eliminando, neste caso, definições absolutas de
cidade moderna ou pré-moderna.
A noção de
modernização urbana aqui tomada (e conseqüentemente a de cidade moderna) vai ao encontro das reflexões de Marshall Berman
(1987), que as desenvolve no sentido da concepção marxista de moderna sociedade burguesa. Um quadro
alarmante composto por extremos contrastes materiais de condições de vida,
envolvendo a experiência inédita das multidões, a laicização/profanização do
sagrado, confluindo num ambiente urbano onde as referências tradicionais se
diluem numa paisagem inconstante. Modernidade assim definiria este ambiente
propiciador de imensas possibilidades, enquanto a modernização poderia ser
concebida como a particular via burguesa de lidar com esta modernidade, resolvendo suas profundas contradições
com drásticas reformas urbanas e investimento em melhoramentos técnicos,
conforme nos aponta Barbosa (1990: 48-9), baseado em Berman e Lefebvre. Tal
modernização não se detém no aspecto técnico-material, mas incorpora e realça
uma face de dominação, através da explícita segregação sócio-espacial e do
severo controle disciplinar no trabalho, nas vilas operárias e nos espaços
públicos, preocupação aliás presente em diversos trabalhos, dos quais
gostaríamos de destacar Bresciani (1982), Rolnik (1988), Rago (1985) e Chalhoub
(1986).
O Contexto do Surgimento das Feiras Livres
No momento
Dada a natureza informal destas atividades, o que
resulta em escassa documentação, difícil seria tentar mensurar e mapear este
duplo contingente de mercadores, entre os ambulantes (aparentemente um grupo
muito mais numeroso) e aqueles assentados precariamente em pontos fixos nas
vias públicas, exercendo seu ofício de forma relativamente sedentária. Debret,
Rugendas e Chamberlain, para citar apenas alguns, deixaram-nos registros
diversos desta modalidade de comércio através de aquarelas, estampas e outras
formas de expressão. Sabemos pois de sua existência notória e difusa, mas não
podemos ir muito além da mera constatação do fato.
Obras como as de
João do Rio (1991) e Luis Edmundo (1938) nos remetem a um quadro panorâmico e
pitoresco da heterogeneidade das formas de comércio ambulante na cidade de Rio
de Janeiro. Por outro lado, Menezes (2003) e Benchimol (1990: 280-5) apresentam
todo um conjunto de intervenções públicas radicais neste universo, eliminando
das áreas centrais, confinando e regulamentando crescentemente tais atividades,
sobretudo no contexto da Reforma Passos, sob alegações de defesa da higiene e
circulação públicas. Consultas aos códices de abastecimento do Arquivo da
Cidade nos permitem afirmar que desde pelo menos 1880 já se esboça este
conjunto de medidas de restrição. Contudo, somente na gestão remodeladora da
cidade que estas serão aprimoradas e mais efetivamente cumpridas. Também os
velhos quiosques, pontos de concentração de trabalhadores pobres, foram
reconhecidamente alvo fatal da fúria
civilizadora de Pereira Passos.
Merecem ainda
destaque as populares quitandas (do quimbundo kitanda: mercado), regularmente presentes na cidade brasileira
desde o início do período colonial. Constituem aglomerações de negras ao ar
livre, acocoradas ou dispondo de tabuleiros, situadas em pontos
preestabelecidos, para a venda de produtos da pequena lavoura, da pesca e da indústria
doméstica. A literatura nos deixa vagas referências a esta modalidade de varejo
que, na aparência de um arremêdo de feira
(Guimarães, 1968: 21), represente talvez a principal forma precursora das
feiras livres do início do século XX. No final do século XVIII, o Rio de
Janeiro contava com o significativo conjunto de 181 barracas de quitandeiras
(Barreto F. ; Lima, A. 1992: 65).
O processo de
territorialização destas modalidades populares de comércio se consumou através
das muitas décadas de uma urbanização acelerada porém baseada em muitos
aspectos no modelo colonial. A manutenção de um traçado aparentemente
irregular, próprio da colonização lusitana, repleto de ruas estreitas e dotado
de poucos espaços amplos, resultou na configuração de uma trama congestionada e
ruidosa de pontos de comercialização varejista. Por outro lado, a presença
numerosa de negros, e posteriormente de grupos de imigrantes estrangeiros, num
quadro de baixa oferta de empregos, impuseram à cidade diferentes formas de
comportamento territorial na luta cotidiana pela sobrevivência, de forma tal
que esta parece ter sido, na virada do século, um fantástico laboratório de
territorialidades populares. Laboratório este que sofreu um choque
desterritorializante com a Reforma Passos.
Expulsos os
quiosques, as kitandas ou feiras africanas, os ambulantes
incompatibilizados com os novos padrões de civilidade, enfim, todo um conjunto
de meios de sobrevivência popular, o que adveio em seu lugar?
Para substituir
as tradicionais formas de distribuição varejista de alimentos, a prefeitura do
Distrito Federal decidiu pela multiplicação dos mercados cobertos, iniciativa
que remonta a aproximadamente 1870, mas somente então ganha efetivo incentivo
governamental, incluindo a doação de terrenos públicos para sua construção e
exploração por empresas privadas. O capital internacional também se utilizou
desta prerrogativa (Benchimol, 1990: 283-4). Tais medidas representam não
apenas a possibilidade maior de fiscalização pública e controle das atividades
varejistas agora confinadas em edifícios dotados de portões como uma
fortificação. Significam também mais um passo no sentido de superar o tão
criticado aspecto árabe da cidade e remover da paisagem o passado
escravista-colonial, pela redução, afastamento ou mesmo dissolução das
aglomerações de negras quitandeiras.
Uma outra forma
de comércio estimulada, aliás concebida, pela moderna administração da cidade foi a feira-livre, criada em
13/10/1904. O texto do decreto 997 se refere a “feiras ou mercados livres”, sem no entanto explicar a adoção do
adjetivo livre, que posteriormente se
incorporou em definitivo ao nome (feira-livre)
gerando uma denominação intraduzível para outros idiomas. Assim é adotada em todo o Brasil para designar as
feiras semanais de caráter intra-urbano (de âmbito praticamente restrito ao
bairro), diferentes daquelas tradicionais que reunem compradores e vendedores
oriundos de áreas distantes, muito comum no Nordeste, e que preferimos
denominar feiras regionais (Mascarenhas,
1991).
O que nos
interessa porém é inserir esta iniciativa governamental no contexto das
transformações urbanas de então. Um dado importante a considerar é que até o
ano de 1916 (quando o decreto 1752 estabelece seu funcionamento diário), tais
feiras funcionaram em caráter experimental, realizando-se apenas aos domingos e
feriados. Isto nos remete à situação dos mercados cobertos, que certamente
desempenharam, pelo menos até aquele ano, um papel muito mais efetivo que as
feiras livres no abastecimento da cidade.
Não dispomos de
qualquer outra informação oficial sobre a realidade das feiras livres cariocas
no seu período inicial, mas supomos que seu papel tenha sido muito mais simbólico do que concretamente enquanto
veículo de distribuição varejista. Os comentários de Silva (1936) nos convida a
pensar que estas parecem ter funcionado como símbolo de higiene, de estética e
da racionalidade geometrizante, elementos da fantasia urbanística moderna. A limpeza e a organização eram rigorosamente
fiscalizadas; os horários obedecidos com pontualidade britânica; as barracas
enfileiradas em ordem absolutamente geométrica, e apresentando toldos com cores
referentes ao tipo de produto exposto. Vários outros aspectos eram severamente
observados pela fiscalização pública. O rigoroso policiamento impedia a
ocorrência de delitos. O autor chega a compara-las com as congêneres européias
(que visitara na Alemanha, Suécia e Dinamarca), pela harmonia e beleza do
conjunto (Silva, 1936:.10). Supomos que a feira-livre tenha consistido em projeto de plena inserção
nos objetivos da Reforma Passos, ainda que completamente ignorada pela
bibliografia especializada no assunto[1].
Levantamos então
algumas indagações: seriam as feiras livre de Pereira Passos um território
forjado para a fruição das elites? Até que ponto aos deserdados de sua Reforma
era permitido o acesso a tais territórios? Certamente poderiam inexistir
impedimentos legais a seu acesso, mas sabemos das barreiras invisíveis, aquelas
que Haussmann criou ao derrubar as velhas muralhas de Paris para erigir outras,
simbólicas e mais eficazes, para repelir o inimigo revolucionário, que vinha
convivendo dentro da cidade com os detentores do poder. Tal indagação se
fundamenta no reconhecimento de que o espírito da Reforma Passos era profundamente
haussmanniano, e que não foram poucas as suas iniciativas (e de seus seguidores
na gestão da cidade) no sentido de forjar situações/lugares onde a
sociabilidade burguesa pudesse se realizar e se exibir comodamente, a despeito
da miséria circundante:
Maurice Agulhon
(1994), um dos maiores estudiosos da história das sociabilidades, desenvolveu
um interessante estudo sobre escultura cívica e decoração urbana, onde procura
demonstrar que elementos arquitetônicos como fachadas de edifícios públicos,
monumentos como arcos do triunfo, chafarizes, obeliscos e outros elementos
edificados nos espaços públicos sobretudo a partir do século passado, não se
restringem ao efeito decorativo: têm função didática, exercendo papel
particular na pedagogia da ordem burguesa. Retomando a Paris de Haussmann, a nossa fonte
principal de inspiração urbanística, vemos que os grandes espaços abertos pela
reforma urbana, apesar de vazios, estão impregnados de sentido: eles proclamam alto e forte a glória e o
poder do Estado (Lefebvre, 1991:16).
Nesta linha de
reflexão sobre os elementos constitutivos da cidade moderna, indagamos até que
ponto a feira-livre de Pereira Passos não teria sido concebida enquanto mais um
ornamento dedicado à pedagogia da civilização nos trópicos. Sabe-se que todo
território circunscreve em seu interior um conjunto específico de
possibilidades, ao sugerir determinado comportamento a quem se introduza em
seus domínios. No caso das feiras livres, imaginamos que seu formato carregado
do sentido de organização, beleza e asseio, inspirasse nos frequentadores
aquela nova economia de gestos de que
nos fala Margaret Rago (1985). E deixasse, após a visita, aquela imagem da nova
ordem civilizadora, induzindo a crença de que a cidade estava realmente
mudando, e para muito melhor. Como aliás funcionou um amplo conjunto de novos
espaços públicos de então. Afinal,
estamos imersos numa conjuntura de
rápido avanço de valores burgueses, algo que entendemos como o contexto
particular da modernidade na cidade.
Conclusão
Vimos que os
ideais de civilidade contidos no projeto modernizante de Pereira Passos
eram incondizentes com a permanência de feiras africanas e outras práticas de
comercialização pelas ruas da cidade. Não obstante a importância destas
práticas no abastecimento urbano e na provisão de oportunidades de trabalho,
bem como na manutenção de territórios de
sociabilidade informal, a Reforma Passos baniu tais usos, desterritorializando
formas de sobrevivência e de sociabilidade tidas como impróprias. Em seu lugar
estabeleceu territorios de alto grau
de disciplina e controle: mercados cobertos e feiras livres.
Supomos que as
feiras livres, por sua estética (o colorido, as linhas retas) e higiene (ao ar
livre, exposição ao sol), sobressaíram em relação aos mercados cobertos, e
assumiram a condição de mais um dos muitos espaços públicos festejados como
triunfo da burguesia ascendente sobre a barbárie colonial. Uma das hipóteses
aqui levantadas é justamente esta: a feira-livre, uma iniciativa tomada por
Pereira Passos, comporia junto a outras medidas em relação ao uso e formatação
dos espaços públicos da cidade, um amplo projeto de pedagogia da civilização.
Nestes territórios diversos (parques, avenidas), alguns de caráter
efêmero/periódico (as feiras livres, a batalha das flores, etc.), o cidadão
vivenciaria o triunfo da cidade moderna, reeducando seu comportamento
(vestuário, asseio, sociabilidade) e repensando a própria sociedade em que
vive, tomando-a como progressista e promissora, com grande potencial de
civilização redentora.
Vimos que, antes
do advento das feiras livres e dos mercados cobertos, prevalecia na cidade um
amplo leque de modalidades precárias de comércio de rua, movimentado pela
necessidade de sobrevivência de indivíduos pobres numa conjuntura de baixa oferta
de empregos. A Reforma Passos desfechou sobre este segmento do varejo um golpe
violento, desenraizando das ruas do centro da cidade os vários pontos e agentes
de comercialização e, com eles, meios de sobrevivência e formas populares de
sociabilidade. Em seu lugar, formatou-se um território comercial espelhado na
experiência dos mais prósperos centros urbanos europeus.
1 Benchimol (1990), com seu estudo bastante minucioso, e mais recentemente, Pereira (1996) em seu belo trabalho, pretendem percorrer os mais variados aspectos da Reforma Passos, sem entretanto mencionar a feira-livre. Também Abreu (1987), Rocha (1983), Carvalho (1989) e Barbosa (1990), em obras de maior alcance temático, omitem a existência da feira-livre.
Bibliografia
ABREU, M. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar/IPLANRIO, 1987.
ABREU, M
Construções do urbano: espaço, tempo e lugar. In FERNANDES, A. e GOMES, M. (orgs.) Cidade e História: Modernização das Cidades Brasileiras nos Séculos XIX
e XX. Salvador: UFBA, 1992. p.169-173.
AGULHON, M. Historia
Vagabunda., México DF: Instituto Mora, 1994.
BARBOSA,
J. Modernização Urbana e Movimento Operário. Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRJ, 1990.
BENCHIMOL,
J. Pereira
Passos: um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, 1990.
BERMAN,
M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a
aventura da modernidade. São Paulo:
Cia. das Letras, 1986.
BRESCIANI,
M. Londres
e Paris no Século XIX: o Espetáculo da Pobreza.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
BUARQUE, V. Mundanismo: Brisa Renovadora. Moral e Sociedade no Rio de Janeiro (1850-1870). UFRJ, 1994.
CARVALHO,
C. História da Cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1994. 125 p.
CARVALHO,
J. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
CHALHOUB,
S. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano
dos trabalhadores do Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
CHOAY,
F. O Urbanismo
EDMUNDO,
L. O Rio de Janeiro de meu tempo. Rio
de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938.
GUIMARÃES,
O. O Papel das Feiras Livres no Abastecimento da Cidade de São Paulo. São
Paulo: USP, Série Teses e Monografias, nº22, 1968.
HARVEY,
D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
HOLSTON,
J. A Cidade Modernista. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
LEFEBVRE, H .O Direito à Cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
MASCARENHAS,
G. O Lugar da Feira Livre na Grande Cidade Capitalista: Conflito, Mudança e
Persistência (Rio de Janeiro: 1964-1989). Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRJ, 1991.
MASCARENHAS,
G. The Territoriality of the Street Markets in Rio de Janeiro. The European Geographer, Lisboa: Associação de Jovens Geógrafos, V. 9, 1995, p. 112-118.
MASCARENHAS,
G Modernidade Urbana e Flexibilidade Tropical: as feiras livres na Cidade do
Rio de Janeiro (1904 - 1934), In Revista GeoUerj, 1997, nº2, p. 29-41.
MENEZES,
W. O punga saiu do entulho: o pequeno comércio do Rio de Janeiro às vésperas da
Reforma Pereira Passos. In Revista Rio de
Janeiro, 2003, nº10,
p.65-88.
MOURA,
R. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria
Municipal de Cultura, 1995.
PARGA,
E. Entre Fazendas, Secos e Molhados: o Pequeno Comércio na Cidade do Rio de
Janeiro (1850 - 1875). Dissertação de mestrado
RAGO, M.
Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade
Disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985.
ROLNIK,
R. São Paulo na Virada do Século: o Espaço é Político. Espaço & Debates.
1988.
SANTOS,
M. Técnica, Espaço e Tempo: Globalização
e Meio Técnico Científico Informaciona.,
São Paulo: Hucitec, 1994.
SILVA,
A. Feiras Livres no Distrito Federal: Hábitos e Costumes Populares. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Jornal do
Brasil, 1936.
© Copyright Gilmar Mascarenhas de Jesus, 2005
© Copyright Scripta
Nova, 2005
Ficha bibliográfica:
MASCARENHAS, G. Ordenando
o espaço público: a criação das feiras livres na cidade do Rio de Janeiro. Scripta Nova. Revista electrónica de
geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de
agosto de 2005, vol. IX,
núm. 194 (62). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-62.htm> [ISSN: 1138-9788]
Volver
al índice de Scripta Nova número 194
Volver
al índice de Scripta Nova